quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15531: Notas de leitura (791): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: Parte I


1. Por cortesia de autor, pela grande amizade que ele nutre pelo editor do nosso blogue (e vice-versa), e pela paixão que o nosso blogue tem demonstrado pela epopeia da pesca do bacalhau (que chegou a ser alternativa à guerra colonial), transcrevemos, em três postes,  o capítulo 7 (A viagem “O Mar por Tradição”), pp. 83-107, do livro A Rua Suspensa dos Olhos, de Ábio de Lápara (edição de autor, Aveiro, 2015) (*)

O autor, ilhavense, filho de marinheiro, evoca e descreve com enorme ternura e talento a rua onde nasceu e cresceu, e onde conheceu algumas das figuras humanas da sua terra, que marcaram a sua memória e o seu imaginário ...

Como já escrevemos em poste anterior, "um simples olhar de relance pelo índice do livro, de 164 pp., permite advinhar quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na rua suspensa dos olhos"...

Já tínhamos prometido aqui publicar aqui, no todo ou em parte, com a devida autorização do autor, o relato da sua viagem de seis meses na safra do bacalhau, nas costas da Terra Nova e da Groenlândia, quando ainda adolescente, aos 17 anos, e como estágio final do curso da Escola Profissional de Pesca, em Pedrouços, Lisboa, é chamado para embarcar e fazer "A Viagem" (*)...

É uma experiência que o marcou para o resto da vida, não só pela dureza das condições de vida a bordo como pela descoberta e reforço da camaradagem, solidariedade e amizade entre a tripulação (marinheiros e pescadores)..

A vida deu, entretanto,  outras voltas e o autor não seguiu o destino dos seus antepassados... Aluno brilhante, acabou por ganhar uma bolsa de estudo, ficar em Lisboa e poder aceder à universidade, sendo hoje um nome de referência da arquitetura e urbanismo em Portugal. (Entraria para o curso de arquitetura na Escola Superior de Belas Artes, no ano letivo de 1960/1961; fundou e geriu a empresa PAL - Planeamento e Arquitectura, com sede em Lisboa, e ainda em atividade; tem obra por todo o país, e em especial na Região Autónoma da Madeira).

O livro está fora do mercado livreiro, tratando-se de edição de autor. Mas, contra reembolso, pode ser pedido autor, através do seu endereço pessoal. Ver igualmente a sua página pessoal no Facebook.


2. A Rua Suspensa dos Olhos > 7. A viagem “O Mar por Tradição”, de Ábio de Lápara (2015) > Parte I (pp. 83-91)


Naquele tempo, eu já sabia que nem tudo eram rosas neste mundo.  (**)

Os dois anos anteriores tinham-me imposto um crescimento veloz, na passagem do mundo do brincar para o do trabalho; na perda dos amigos, porque ao abandonar o liceu perdi a maioria deles; no novo convívio com os mais velhos, companheiros de trabalho, e na enorme mudança dos conversares, agora afastado do ambiente estudantil. 

Dois anos depois, completados os dezasseis, eu iria partir novamente. Atingida a idade da diáspora entre os cúmplices companheiros de então, foi um tempo de despedidas! Por um lado, entre os que, chamados pelos pais, seguiam para outros continentes, impondo-me segunda perda de companheiros, por outro, eu, que ia partir também, consciente de que ninguém me chamara e portanto no outro extremo, à chegada, ninguém me esperaria. 

Quando isso aconteceu, na minha mala pouca coisa levava. Entre duas mudas de roupa, um sabonete perfumado que a mãe lá pusera seria o cheiro mais próximo de casa e a única réstia de carinho materno durante longos tempos. 

Levava comigo também uma paixão adolescente, subjacente na permanência do pensar, que dava suporte ao sofrido dia a dia, como um bálsamo! 

Era um amor feito de lembranças e palavras suspensas no desejo de as dizer sem conseguir. Conversas prontas, feitas de perguntas e respostas, ocupando todo o espaço livre entre os afazeres, correndo como um filme de imagens nítidas do objecto ausente, de impossível contacto, como só acontece nos sonhos. Imagens feitas de fugazes momentos junto dela, de olhares comprometidos, pedaços de gestos e sussurros vindos do Jardim e de outros cantos da minha vila. 

Lisboa para mim não era novidade. Por ali vivera entre os doze e os catorze anos. Os “eléctricos” e as anacrónicas carroças desse tempo, puxadas por mulas e machos, calçados no ferrador do Altinho, eram-me familiares, bem como os escuros guindastes dos cais e os navios que na infância frequentara com os meus pais. 

Esses conhecimentos minoraram algumas difculdades práticas mas não o desatino interior de alguém que, habituado a dispor de um nome e da liberdade de gerir o seu dia a dia no trabalho, passou num ápice, a ser designado por um número. Nunca tinha sido aluno interno e embora no liceu tivesse um número na turma, continuava a ser conhecido pelo meu nome. Era uma sensação esquisita, a que levei algum tempo a adaptar-me. 

 Como o castigo era algo que não almejava, tratei de compreender o funcionamento daquela realidade: a Escola ProfIssional de Pesca. Prudente, resolvi vestir a alma de cinzento e clareá-la só nos momentos de folga, evitando demasiada visibilidade. Tentei recuperar dois ou três antigos companheiros de liceu residentes em Lisboa para sair ao fim de semana, mas,  fardado de pescador, verifiquei que estavam pouco interessados na companhia. Paciência… aprendi que o preconceito molda com frequência a alma humana. 


Costa Nova > Ria de Aveiro > 25 de Agosto 
de 2008 > Um amigo comum,  do nosso 
editor e do nosso camarada Jorge Picado, 
o arquitecto José António Boia Paradela 
(pseudónimo literário, Ábio de Lápara). 
Foto de LG..
Botas de cabedal atanado, umas calças e um boné de burel castanho sombrio, áspero como palha, e uma camisa de xadrez em tons avermelhados, eram o ferrete com que o regime (#) marcava os filhos dos pescadores que quisessem seguir as pegadas dos pais. Porém, nem os nossos pais se vestiam assim! Talvez algum nazareno mais antigo, durante o trabalho, mas em terra usavam fato, camisa e gravata ou colarinho desabotoado como era hábito no tempo. 

Assim, resolvi passar a ser o Sessenta, de modo muito assumido, e fazer novos amigos. Mas não me perguntem os nomes deles. Eram o Trinta e Três, da Ericeira, o Cem, da  Gafanha, o Onze,  da Nazaré, o Vinte Cinco, de Ílhavo…e por aí fora! E o Sessenta passou a ser um dos meus números mágicos!

Éramos cem alunos procedentes de várias localidades costeiras, ente os quais dois cabo-verdianos que não aguentaram as saudades da ilha. Entristeceram de tal  
modo durante as duas ou três semanas iniciais que tiveram de regressar à procedência. Claro que não foram só as saudades, mas também as notórias diferenças culturais, na capital de um império à qual a negritude colonial, naquele tempo, quase não tinha acesso. Porém, mais do que isso, foi sobretudo a incapacidade de um bafiento paternalismo institucional para verter a dose de ternura necessária em tal situação. Dois entre cem, crioulos em caldo de portugas, liberdade da praia posta em prisão guardada por quatro cabos da marinha! Ao fim de alguns dias, foram-se.

A verdade é que nos restantes noventa e oito, as condições adversas da nova situação geraram cumplicidades e solidariedades inesquecíveis, que ficaram para a vida como faróis colocados ao longo da costa, para esconjurar o mal no meio da procela. Se essa lição não fosse aprendida tornava-se difícil, mais tarde, o entendimento mútuo e até a comunicação com a linguagem exclusiva do olhar em momentos cruciais de necessária entreajuda a bordo. Ali fiz, pois, aprendizagens várias: As do convívio institucional, da solidariedade, do jogo do desenrasca e também, da perda da inocência!

Inesquecíveis foram as travessias do rio metafórico da minha aldeia, em grupo, aos fins de semana, na visita às esconsas escadas das ruas da Bela Vista e do Ferragial, na área portuária, onde para muitos de nós, recém chegados da província, a iniciação sexual tinha uma aura de magia negra: Subir a escada escura com a respiração suspensa… e não só pelo cheiro da urina na escuridão dos degraus (urinar após o acto, evitava as maleitas blenorrágicas, dizia-se), pulsação aumentada, bater à porta, esperar a sua abertura, com parcimónia, por uma senhora de prazo esgotado…

Depois, o jogo do olhar escolhendo a parceira de entre as que se sentavam em volta na prática de alguns aperitivos, aceitando moedas de pequeno valor colocadas por mãos, ora hesitantes ora atrevidas, na comissura dos seios generosamente expostos pelos decotes… Para os de educação católica, onde se instilara o medo do fogo eterno, restava ainda um sentimento de pecado…

Duros tempos! Ainda hoje me lembro do hálito bafiento do prior da igreja de S. Paulo a quem, ajoelhado, algumas vezes confessei esses “pecados”! E saía perdoado, cheio de alívio até à próxima oportunidade, que a carne é fraca… Poderia desenvolver mais o tema desta instituição corporativa da panóplia instrumental de um tal [Henrique] Tenreiro de má fama, mas confesso que ela faz parte do meu universo privado que não me apraz recordar, embora este sentimento se tenha desenvolvido mais tarde, quando a consciência social e política despertou.

Na verdade eu não pagava nada. Tinha comida, cama e roupa lavada. E formação profissional… Era uma benesse do Estado Novo, que devíamos aceitar agradecidos. Num país com nove milhões de pessoas, noventa podiam anualmente ascender a aprendizes de pescador de bacalhau! Uma honra portanto!…

Mas não descurei a teoria e aprendi que o bacalhau era um teleósteo, na sua classificação científica. Fiz um saco para o pão e um cinto para as calças em arte de marinheiro. Aprendi a escamar e amanhar peixe, a remar e navegar à vela no Tejo até ao Ponto Final, um tasco da outra margem, onde por vezes se descansava um pouco antes do regresso. Ali se bebia um copo quando para isso havia dinheiro, para empurrar o quarto de “pão de segunda” da merenda que a instituição fornecia.

Porém o balanço final resultou muito positivo em termos humanos. Foi uma experiência longa, num microcosmos com personagens interessantes, cada uma a seu modo, das quais algumas ainda moram comigo: Duas Eugénias, uma digna do céu, outra, talvez do purgatório; um director ausente, apenas presente na missa dominical rezada pelo Capelão do Gil Eanes, que, dizia-se, escondia whisky sob o altar para traficar em St. Jonh’s; um senhor contabilista, todo vestido de um luto negro pela morte de uma jovem filha, que se movimentava por ali indiferente à rapaziada, como se fôssemos galinhas de um qualquer aviário; um mestre de redes, excelente pessoa, que de noite, contava-se, para assustar os alunos, teria encarnado na lendária Princesa que habitara aquela mansão e dera o nome ao Largo fronteiro. Envergando um lençol sobre a cabeça, percorria o corredor junto das camaratas, até que um dia apareceu com uma equimose no sobrolho provocada por um aluno mais afoito que,
definitivamente, desmascarou o farsante.

As disciplinas teóricas eram ministradas por alguns professores, normalmente dos quadros da Marinha de Guerra, que faziam daquilo um complemento pecuniário. E, finalmente, quatro monitores, qual deles o mais bizarro, cabos de marinha, que se revezavam na condução dos alunos com métodos de manutenção da ordem por vezes achibantados, embora a esta distância me pareçam criaturas simpáticas e complacentes, com direito ao minha admiração.

De um deles se dizia ter sido gaseado na Grande Guerra, pela saliência esbugalhada do olhar. Outro, tomava da pinga, que lhe abrilhantava os olhos… Outro ainda, mulherengo de saltar o muro, impunha-se pela corpulência e vozeirão militar; e o de menor estatura, fazia-se respeitar pelo cacete escondido sob a farda, onde o alcache e o boné de marinheiro justo à minúscula cabeça lhe conferiam um ar de miniatura. Quando alguma quezília surgia, usava aquele argumento sobre nós sem curar de ouvir o preço da restumenga!

As tardes passadas no rio, remando ou velejando, eram normalmente divertidas, escapando um pouco ao rigor da disciplina na Escola. Os monitores abrandavam a exigência disciplinar e aproveitavam para prevaricar um pouco também, saltando na outra margem para beber uns copos,  ou para confraternizar com os colegas da velha fragata das Índias, “D. Fernando II e Glória”.

A fragata Dom Fernando II e Glória, ancorada em Ponta
Delgada, Açores, em 1878, na sua última viagem da carreira
da Índia. Encomendada em 1821, foi lançada à água
em 1841. Veleiro, em madeira, tinha 50 bocas de fogo.
Na sua vida útil, faz cem mil mil marítimas, o equivalente
a cinco voltas ao mundo. Está hoje fundeada em Almada, e
funciona como museu.
Fonte: Museu da Marinha, Lisboa.
Imagem do domínio público.
Cortesia de Wikimedia Cmmons.
Fundeada no meio do Tejo, nesse tempo, era albergue de crianças desprotegidas. Ali atracávamos estabelecendo convívio fraterno, uma vez que alguns dos colegas da nossa instituição eram de lá oriundos. Por isso os designávamos por “fragatas”.

Mas se o nosso comportamento, durante o périplo ribeirinho se tornasse menos contido, logo surgia o devido castigo:
Safa lanches!– ordenava o cabo monitor em frente da saída de esgotos do Caneiro de Alcântara. Fundeados no local, obrigava-nos a comer o magro quarto de pão com torresmo, cercados pelo fétido líquido.

Cumprida que fosse a via sacra ao longo de cerca de ano e meio, havia que pagar o vinagre e o fel, e ainda a coroa de espinhos: embarcar na frota da pesca do 
bacalhau, em navio de pesca à linha, 
onde seriam descontadas as despesas 
que a Escola tinha efectuado connosco, algumas delas impostas pela própria instituição, tais como a aquisição de roupa, normalmente de fraca qualidade, para “A Viagem”.

Assim a aparente benesse do Estado Novo era agora descontada ao longo dos dois ou três primeiros anos de faina obrigatória na pesca do Bacalhau. Como naquele tempo, tudo era decidido na ausência dos interessados, fui colocado numa vetusta glória da frota, o “Gazela Primeiro”, um pequeno navio de três mastros armado em lugre-patacho, isto é, com velas redondas no mastro de vante e velas latinas nos dois restantes [vd. fotop aqui].

Fui ver o barco. Fiquei desolado. O aspecto era miserável, talvez porque ainda não tivesse sido arrumado e limpo para a nova campanha, mas o beliche que me estaria destinado era atravessado por um dos mastros! Por ter sido bom aluno, (nesse aspecto tinha nítida vantagem sobre os colegas por ter um nível de estudos um pouco mais avançado) foi-me prometido um regresso aos estudos por uma instituição ecuménica cuja direcção promovia algumas bolsas de estudo para filhos de pescadores que, naquela Escola, tivessem revelado capacidades para poderem vir a ser oficiais da marinha mercante.

Nessa medida, pareceu-me que embarcar no “Gazela”, era embarcar no passado, e eu tinha só dezassete anos e toda uma promessa de vida à minha frente. Alegando essas razões, pedi para ser “matriculado” num navio de pesca à linha que tinha sido construído recentemente. Aceite o pedido, fui colocado na tripulação do Lousado”, assim se chamava o navio [vd. foto aqui].

Acabado o curso, cumpria-se mais uma vez, o caminho inquestionável do mar por tradição, que atirava para o Atlântico Norte um naco de juventude, amputando-lhe definitivamente as hipóteses de desenvolvimento humano a que deviam ter direito. E isso apenas a troco de um vencimento regular, embora reduzido, mas que não tinha paralelo nos outros moldes de pesca do país, sujeitos às vicissitudes do clima e de um sistema corporativo claustrofóbico onde a miséria era maior.

Corria o ano de 1955 [e não 1954, como escreve o autor, (LG)], longe ainda dos tempos da emigração maciça e da guerra colonial.

(Continua)

[Fixação de texto, ilustrações, links e notas, exclusivamente para efeitos deste poste: LG]
__________________

Nota do autor:

(#) O regime do Estado Novo alimentava-se de populismos, inventava tipicismos, louvava a pobreza franciscana, transpunha a glória da pátria para fora do presente: a glória passada, para o século XVI, a glória futura, para o Além, nas asas da concordata. Exactamente ao contrário do seu inspirador nazismo, que destinava o povo a incarnar uma raça superior e mandava costurar as fardas mais elegantes do planeta! Uma ligeira diferença entre Braunau e Santa Comba Dão!… Ambos os resultados foram repugnantes, mas os métodos mais macios, como sabemos, perduraram mais tempo…)
_________________

Notas do editor

1 comentário:

Luís Graça disse...

Zé António, amigalhão: Aqui vai a primeira parte... Logo que puder publico a segunda... Gostava de ter mais fotos... Tens que me dizer quanto custa o livro pedido pelo correio (preço de capa + portes)... Há malta que pode estar interessada em comprá-lio... Pus o teu endereço de email... O blogue tem neste momento cerca de 2 mil visitas/visualizações por dia e 700 e tal membros...

Festas quentes e boas!... Dá um xicoração ao teu mano e amigos da Costa, incluindo o Jorge Picado, nosso grã-tabanqueiro... Um abração com 250 km de comprido. Depois telefono. Luis