quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15534: Manuscrito(s) (Luís Graça) (72): Um dia de cada vez...

Um dia de cada vez

por Luís Graça

Coitado de quem está doente,
Seja na terra ou no mar,
Doente de soltar gemidos, suspiros e ais,
Doente de sangrar e purgar,
Esperando e desesperando
Nas salas de esperança e desesperança
Dos hospitais.

Coitado de quem está desempregado,
E se sente desamparado,
Ficando horas a fio,
Dias, meses e até anos,
Na bicha do centro de emprego,
Ao sol, à chuva, ao frio,
À espera de obter,
Por ali perto,
O primeiro contrato de trabalho
A termo certo.

Coitado de quem pegou na bússola,
Baralhou os pontos cardeais,
E perdeu o norte:
A cabeça é um catavento,
Vai no carrossel da morte,
Sem mão no freio,
Sem receio,
Os cabelos soltos ao vento.

Coitado de quem morre de fome de justiça
E de sede de liberdade;
Coitado de quem ama e não é amado;
Coitado de quem anda de lugar em lugar,
De cidade em cidade,
Fugido, deslocado, aterrado;
Coitado de quem estende a mão à caridade,
Os olhos postos no céu.

Coitado de quem foi à guerra,
Perdeu algo de seu,
A alma, a vista ou uma perna,
E é soldado desconhecido na sua terra;
Coitado de quem não tem Natal,
Mesmo quando quer;
Coitado de quem não acredita na vida eterna,
E que, depois do inferno terrestre,
Não tem lugar no paraíso celestial.

Coitado de quem é velho
E que vive no Portugal, 
Ainda mais velho e relho,
E conta os cêntimos da pensão de cada mês,
E que não espera mais nada da vida
Do que viver um  dia de cada vez.

Natal 2015, 
Lisboa, 24/12/2015

1 comentário:

Anónimo disse...



Amigo Luís:

A tua sensibilidade social e poética, sempre atenta às injustiças e infortúnios, vai-nos chamando a atenção para os males dos outros e obriga-nos a sair por momentos do nosso egoísmo de desgraças. Obrigado, depois dos excessos alimentares e vinicos do Natal faz-nos bem um momento de reflexão urbi et orbi. Gostei muito do teu poema.
Um abraço. Francisco Baptista.