quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Guiné 63/74 - P15536: Conto de Natal (23): O antigo Natal (Domingos Gonçalves, ex-Alf Mil da CCAÇ 1546)

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68), com data de 23 de Dezembro de 2015:

O Antigo Natal

Pelo entardecer, o lavrador recolheu a casa. Era dia de consoada. Na cozinha, a mulher e a filha trabalhavam com afã na preparação da ceia.

A ceia de Natal, da festa grande, merecia canseiras especiais. Era necessário fazer os mexidos, a aletria, as rabanadas, enfim, preparar tudo para que a festa da família fosse mesmo uma festa. E o lavrador, esse, chamou o filho, pegou numa grande infusa de barro vermelho, e os dois foram para a adega, que era um espaço escuro, no rés-do-chão da casa, onde os pipos do vinho se alinhavam, cobertos de pó e de algumas teias de aranha.

Aquele era um espaço onde apenas a luz ténue da candeia de petróleo permitia descobrir as pedras negras do lagar, e a grande trave de carvalho, que o atravessava, com um fuso em madeira na extremidade, que servia para espremer os restos das uvas, por altura das vindimas. Os cascos do vinho repousavam ali, desde a colheita que tivera lugar ainda havia escassos três meses. Voltando-se para o filho, o lavrador murmurou, apontando para um pipo, não muito grande, feito de madeira de castanho, já muito escuro:
- Vamos experimentar este. Daqui costuma sair uma boa pinga.

Menos conhecedor daqueles segredos, que só os muitos anos ajudam a desvendar, o filho respondeu-lhe:
- Está bem, pai. Pode ser mesmo desse. De certeza que deve estar uma categoria.

O velho homem poisou a candeia ali ao lado, sobre um pequeno banco, passou a infusa para as mãos do filho e, servindo-se de uma verruma, começou a retirar de um pequeno orifício que existia na cabeça do pipo, a bucha de estopa que impedia que o vinho saísse para o exterior do casco.
Depois de retirada a estopa, começou a jorrar pelo pequeno buraco, para dentro da infusa, um vinho tinto maravilhoso, que se desfazia em espuma avermelhada, de impressionante beleza.

Ao fim de alguns segundos, o lavrador colocou de novo a bucha no orifício e, voltando-se para o rapaz, disse-lhe:
- Vamos prová-lo. Se não estiver em condições, experimentamos outro.

Num gesto quase religioso, tomou nas suas mãos calejadas a infusa, olhou para aquele líquido sagrado feito com as uvas vindas da generosidade das videiras e do trabalho das suas mãos e bebeu alguns tragos do elixir maravilhoso. Depois, voltando-se para o filho, desabafou:
- Vinho melhor do que este não pode haver. É uma verdadeira preciosidade.
Passando-lhe a vasilha para as mãos, ordenou:
- Anda! Prova também tu esta delícia.

Repetindo o gesto do pai, o moço levou aos lábios o bico da infusa, e saboreou uns golos daquele líquido sagrado, dizendo depois para o velho:
- Sim! Este vinho é uma verdadeira delícia. Não pode haver melhor para uma ceia de Natal.

Em seguida, o lavrador encheu a caneca com aquele vinho tão especial e voltando-se para o filho recomendou-lhe:
- Este, vai levá-lo ao senhor Rodrigues.

O moço lá foi, apressado, entregar aquele presente.
O senhor Rodrigues era um pobre homem que morava ali perto, jornaleiro de profissão, que vivia miseravelmente, com a mulher, também um pobre diabo, para quem a vida tinha sido mais madrasta do que mãe. Mas na noite de Natal aquela gente tinha direito a ter à mesa pelo menos um vinho de excelente qualidade, acabado de jorrar de um pipo acabado de violar.

Enquanto o filho foi à casa do vizinho, o lavrador, deleitou-se a fumar um cigarro, na penumbra da adega, aguardando que ele regressasse. Depois, quando o filho chegou com a infusa, ele encheu-a de novo e ordenou-lhe:
- Este, vai levá-lo a casa de fulana.

O rapaz lá foi de novo levar aquela oferta, que se repetiu várias vezes, generosamente, pois não podia faltar vinho na mesa dos pobres durante a ceia de Natal.
Quando o filho regressou, depois de entregar a última oferta, o homem encheu de novo a infusa e, acompanhado pelo rapaz, subiu para a cozinha que ficava no primeiro andar da casa. Na lareira, o lume ardia a bom arder. Os potes muito negros, feitos de ferro fundido, dispostos à volta do lume, ferviam havia muito tempo e deixavam soltar-se um vapor quente e perfumado, sinal de que a ceia estava quase pronta. Era uma mistura de odores agradáveis que se desprendiam das couves galegas já quase cozidas, do bacalhau e das batatas, que na noite de Natal têm sempre um cheiro e um sabor inconfundíveis.

Quando tudo estava pronto, a mulher do lavrador retirou os potes do lume, escoou a água fervente e colocou toda aquela comida sobre as travessas de porcelana, previamente colocadas sobre a mesa. Depois sentaram-se todos à mesa, na cozinha iluminada apenas pelo brilho da lareira e pela mortiça luz da candeia de petróleo e comeram daquelas iguarias quase sagradas e beberam daquele vinho maravilhoso feito ali, naquela casa, pelas mãos experientes e sábias do homem do campo.

Terminada a refeição, o lavrador e o filho voltaram para a lareira, enquanto a mãe e filha arrumavam os pratos e outra loiça. Foi então que o filho reparou que a mãe não tinha retirado da mesa a toalha de linho muito branco, apenas ligeiramente manchada por algumas gotas do vinho tinto. E voltando-se para ela perguntou-lhe:
- Ó mãe! Por que não retiras a toalha da mesa?

E a mãe, ocupada ainda com o arrumo das loiças, respondeu-lhe:
- Na noite de Natal, a mesa fica posta até ao dia seguinte.
- Então, porquê?
- É que, durante a noite, quando a escuridão baixar sobre a cozinha, as alminhas dos nossos antepassados vêm sentar-se a esta mesa e saciar-se com o nosso pão e com o nosso vinho. É por isso que na noite de Natal a mesa deve ficar posta. Vai ficar tudo conforme estava quando nós terminámos de cear. Depois de saciadas, de terem comido do nosso pão e bebido do nosso vinho, as alminhas vão para a igreja e ficam junto do presépio a adorar o Menino Jesus.

Naquela santa noite, e na casa daquele lavrador, havia como que um ressuscitar de todos os antepassados mortos. Só Deus sabe quantas gerações vinham ali conviver na solidão daquela mesa, na santa noite de Natal! Era a família toda, - as gerações desaparecidas só Deus sabe há quanto tempo, e as pessoas ainda vivas, que ali moravam a celebrar religiosamente a Santa Noite.

Depois de arrumar a cozinha, a mãe e a filha também se sentaram à lareira, junto daquele calor sagrado e toda a família ficou ali durante longo tempo, à espera que chegasse a meia noite, para celebrar o nascimento do Senhor.
Quando a hora sagrada chegou, o lavrador abriu uma garrafa de vinho do Porto, enquanto a mulher trazia o prato com as rabanadas e todos celebraram o Feliz Nascimento. Em seguida, acossados pelo sono, foram descansar.

Antes de sair da lareira, o filho reparou que a mãe retirou do fogo uma grande canhota de carvalho, que apagou com muito cuidado, colocando-a fora do lume.
Curioso, perguntou-lhe:
- Ó mãe! Para que serve essa canhota?

Com muito respeito, a mãe voltou-se para o rapaz, dizendo-lhe:
- Esta canhota é para ser muito bem guardada e serve para se colocar no lume a arder quando houver trovoadas ou tempestades. Por onde o fumo que esta canhota libertar, quando estiver a arder, for passando, a trovoada e a tempestade desfazem-se. É um fumo milagroso o que se liberta desta canhota retirada da fogueira de Natal. Nunca te esqueças disto. Quando fores grande, guarda sempre uma canhota de carvalho, retirada do lume do Natal, para proteger a tua casa. E, se puderes, quando trovejar muito, põe também no lume um bocadinho do ramo de oliveira benzido no Domingo de Ramos.

O filho guardou a mensagem. Nunca mais esqueceu aquelas palavras da mãe. E aquela família, cumprido que foi todo aquele ritual, uma mistura de fé em Deus e na força telúrica bebida ali à sombra do céu da aldeia, e na tradição antiga, que tantos antepassados foram passando de boca em boca, foi descansar. É que, pela manhã, muito cedo, todos tinham de ir à missa, beijar o Menino Jesus e admirar a simplicidade do presépio.

Quantas saudades restarão, hoje, no seio de tantas famílias, - meu Deus -, desse Natal distante?
Já não existem, por certo, pais a contar estas histórias, e também não aquelas lareiras aconchegadas.
Já não há crianças a distribuir infusas de vinho pelos pobres, nem alminhas que vêm pela noite comer na mesa dos mortais!
E já ninguém retira da lareira a canhota de carvalho, o lenho sagrado, capaz de afastar as trovoadas e as tempestades!...

O próprio Menino Jesus no seu presépio, já não é o que era!...
A ele, hoje, dá-se menos importância do que ao Pai Natal, - esse barbudo esquisito, que nesta época aparece por todo o lado, e até entra pelas janelas -, que o suplantou na distribuição das prendas à criançada!
Quem se lembra dele, a descer durante a escura solidão da noite, para deixar no sapatinho, junto à lareira, as tão desejadas prendas?!...

O Natal de outrora, já tão distante, é a saudade.
E não regressa mais!...
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de dezembro de 2014 Guiné 63/74 - P14077: Conto de Natal (22): Uma bênção dos Céus (Domingos Gonçalves)

5 comentários:

José Botelho Colaço disse...

Sem dúvida este conto é a nostalgia do dos nossos antigos natais então vividos por esta geração dos anos 40.
Para todos desejo um Feliz Natal e um bom 2016.

Um abraço
Colaço.

Luís Graça disse...

Domingos, li com muito apreço e emoção o teu "conto de Natal"... Por certo, tem reminiscências da tua infância e da infância de muitos camaradas nossos. Costumo dizer que o Natal no norte tem outro encanto...

Na minha região, Estremadura, nós, os "mouros", nunca ligámos tanto ao Natal como vocês... Íamos à missa do galo, à meia noite, e só depois disso é que partilhávamos as guloseimas que as nossas faziam para essa quadra: as filhós de sangue (!), os coscorões, o arroz doce... Verdadeira ceia de Natal, com a família alargada, era (ou ainda é) no norte que eu só descobri no pós-25 de abril...

Por outro lado, acho lindas as tradições da tua região e da tua infância: a toalha que fica posta na noite de Natal para as "alminhas" se associarem à festa dos vivos; a "canhota" de carvalho que se retira da fogueira de Natal para afugentar as trovoadas quando for tempo delas; a partilha do vinho novo com os vizinhos... São coisas que devemos recordar e transmitir aos mais novos...

Já não há (nem p ode haver) Natal como antigamente... Quisemos, rapidamente, esquecer as nossas origens telúricas... Festas, quentes e boas! Luís

José Botelho Colaço disse...

As tradições desde o Norte ao Sul têm pequenas semelhanças por exemplo as partilhas.
Na minha terra em pleno Baixo Alentejo Castro Verde viveu um agrário de (apelido meu homónimo).
Esse Sr. tinha por hábito pelo Natal mandar matar um porco e distribuir a carne pelos mais pobres da vizinhança. Tudo isto se perdeu com o tempo pois não me lembra de a viúva ou os filhos terem seguido essa tradição.
Como diz o provérbio: Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso.

Colaço.

Anónimo disse...



Amigo Domingos Gonçalves:

No teu poema tal como no teu conto há a humildade e sabedoria de um homem inteligente, que da tradição e do passado familiar soube guardar o melhor. Parabéns. Gostei muito
Um abraço.Francisco Baptista

Anónimo disse...

O Natal dos dias da nossa adolescência. O Natal sem Pai Natal, só com o Menino Jesus. A festa da família grande. Tudo sabia bem porque não havia o exagero deste tempo. Nada se estragava e muito se partilhava com os vivos e até com os mortos. Adorei a descrição do Domingos.

Um Bom Natal e um próspero Ano Novo

Um abração

Carvalho de Mampatá