A
LFG Orion a navegar no Cacheu em Janeiro de 1967
Foto: © Lema Santos (2006)
Texto do Lema Santos, ex-oficial da Marinha (Guiné, 1966/68):
Caro Moura Ferreira,
Inicio esta minha segunda investida como
apanhado pelo clima agradecendo-te as Boas Vindas (2), cumprimentando-te com Amizade bem como a todos os Membros e, dentro da minha capacidade e conhecimento, permitir que algum esclarecimento adicional seja acrescentado a toda a Tertúlia e à História, em nome do que é conhecido e também do que o não é, do teatro de operações que foi a Guiné.
Difícil é fazê-lo deixando de lado debates sobre massudos conceitos de estratégia naval, articulados com dispositivos locais existentes, tudo muito pouco interessante, mas sem deixar de respeitar a autenticidade dos factos relatados.
Na diferente emotividade das vivências sentidas e das diversas opiniões expressas sobre um mesmo facto ou narrativa, o oportuno esclarecimento ou opinião por quem participou directamente, marcará sempre a diferença.
Abordarei inicialmente alguns pontos sem os quais será difícil, a quem lê, enquadrar pessoalmente os acontecimentos e, bem pior, compreender correctamente os diálogos e sequências. Se entenderem que estou a pisar o risco das
aulas de marinharia , açoitem-me.
Fá-lo-ei sempre com o cuidado de não ferir a veracidade de factos comprovadamente registados, ainda que aligeirados e respeitando diferentes sensibilidades.
A
Orion, Lancha de Fiscalização Grande (LFG), com o número de costado P362, pertencia a uma classe de navios denominada
Argos das quais estiveram operacionais na Guiné, entre Maio de 1966 e final de Abril de 1968 (data do final da minha comissão), outras quatro unidades idênticas:
Cassiopeia, Hidra, Lira e
Sagitário.
A LDG Ariete onde se transportava, tal como na Montante e na Alfange, 1 Batalhão.
Foto: Revista da Armada (gentilmente enviada por e-mail pelo Lema Santos)
Todas estas 5 LFG's tiveram como tónica comum, entre 1963 e 1975, o teatro de operações único da Guiné e vida operacional semelhante.
Mais tarde, outras duas, a
Argos em 1970, a primeira a ser construída, e a
Dragão em 1969, se lhe juntaram. Estas duas últimas já tinham estado na Guiné em 1964/1965 , ano em que, em Fevereiro, foram para Moçambique.
Ainda uma outra, a
Escorpião esteve durante cerca de um ano - 1964 - também na Guiné, após o que permaneceu, até ao final da sua vida operacional, repartida entre Angola e S.Tomé.
Em 1975 todas as LFG's rumaram para Angola, salvo a
Cassiopeia e a
Sagitário, afundadas na Guiné ao largo da costa, pelo justificado mau estado em que se encontravam.
Nenhuma destas LFG's tinha nada a ver, quer em aspecto quer em capacidade operacional, com as que são referidas por ti nas observações que fazes e, referindo-me apenas à época da minha comissão de serviço, havia ainda:
- LFP's (Lanchas de Fiscalização Pequenas) -
Bellatrix, Canopus e
Deneb.
- LDG's (Lanchas de Desembarque Grandes) -
Alfange e
Montante.
- LDM's (Lanchas de Desembarque Médias) - diferindo apenas em aspectos de pormenor e nos números de costado.
- LDP's (Lanchas de Desembarque Pequenas) - como as LDM's mas de porte mais pequeno.
Limitando-me apenas às LFG's e especificamente à Orion, refiro alguns aspectos genéricos:
O aspecto visual do perfil era claramente o de um patrulha. Em profundidade,
havia navio até 2,20 m abaixo da linha de água o que lhes vedava, em alguns rios, o acesso parcial ou, noutros casos, total. O risco corrido da não observação deste princípio náutico, a respeitar na informação dada pela sonda, era o encalhe pura e simples, como sucedeu algumas vezes.
Estas unidades navais efectuavam inicialmente a docagem de conservação (alagem) nos estaleiros navais de S. Vicente, em Cabo Verde e, mais tarde em Bissau. Significava que, com alguma dificuldade e amargos diversos de estômago, efectuavam navegação oceânica.
Tinham a base naval em Bissau, na ponte cais em T, frente ao Comando de Defesa Marítima na parte interior da ponte-cais em T onde, na parte exterior atracavam também os comerciais e alguns TT's. Estou a lembrar-me do Rita Maria, Ana Mafalda e até mesmo o Funchal.
Para lá de toda a zona costeira da Guiné, incluindo os Bijagós, eram navegáveis, para as LFG's, os cursos do rio Cacheu (até Farim), do Mansoa, do Geba até ao início do Corubal, do Grande Buba até um pouco acima de Bolama, do Tombali praticamente apenas na foz, do Cumbijã até em frente a Cadique e do Cacine até um pouco acima da foz do Unconde.
Quando a curso dos rios já o não permitia, a navegabilidade mais para montante era preenchida complementarmente pelas LFP's. Depois as grandes heroínas do tarrafo, do lôdo, dos desembarques, dos pequenos transportes, as LDM's e as LDP's; nos imprescindíveis grandes transportes de pessoal, material e abastecimentos as LDG' s assumiam a função.
Depois destes minúsculos esclarecimentos passo a temas específicos que e muito bem, colocaste:
Pela descrição, penso que terás ido para Cufar (podia ser Bedanda) numa LDM, na companhia de alguns batelões e que, certamente, foram escoltados até à curva da mata do Cantanhês, frente a Cadique, por uma LFG e uma LFP; era uma das missões de rotina no Sul dado que se encontrava permanentemente em cruzeiro nessa área uma LFG que era rendida ao fim de duas semanas; alternava a fiscalização do rio Cacine com o Cumbijã e era complementada por uma LFP, mantendo-se também na área uma ou duas LDM's.
Sempre que havia um comboio de abastecimentos, transporte de pessoal ou material e escoamento de produtos comerciais (Bedanda), a escolta de ida, para montante ou de regresso, para juzante, era feita pela LFG que permanecia na área. Conjuntamente com os restantes meios navais no local navegavam em comboio, a maioria das vezes com o apoio da FA:
Iniciava-se na barra do Cumbijã, na parte açoreada junto da Ilha de Melo, a montante da foz do rio Massancano (Canal de Melo), junto da marca Almirante.
Navegando para montante, deixava-se a estibordo (à direita) o braço de rio Iade que conduzia ao aquartelamento de Cabedú, nosso último reduto a Sul da mata do Cantanhês.
Curvava largo e lento para bombordo (à esquerda) deixando desse lado as povoações de Sinchã e Cametonco, agora quase rumo a Norte, à foz do Cobade, próximo de Catió.
A estibordo recortava-se a sempre temível mata do Cantanhês - relembrando a Operação Tridente (1) - com as povoações de Catesse e Darsalame primeiro e já depois de inflectir francamente para estibordo, depois da foz do rio Cobade, Cafine e depois Cadique zona onde, salvo raras excepções, os comboios eram sistematicamente flagelados.
A travessia fazia-se sempre com o apoio da FA (T6 e mais tarde os Fiat G91). Morteiro, metralhadora pesada, as nossas peças Boffors de 40 mm, as MG's 42 nossas e das lanchas, os lança-rockets da LFP, mata incendiada, o T6 que entrava pela copa das árvores para voltar a sair mais à frente, num cenário e espectáculo indescritíveis.
Depois de nova curva a bombordo junto à foz do rio Macobum, navegação para Norte na direcção de Cufar. Mais tarde, nessa zona, foi referenciado canhão sem recuo.
Uma longa meia-hora para cada lado, deixando o combóio em segurança, já para montante de Cadique.
O registo da ponte alta da LFG Orion em 1967: 18 ataques, 32 impates e 1 ferido grave
Foto: © Lema Santos (2006)
Há vários relatos registados e especificamente um da Orion que ostentava na ponte alta uma placa de honra, em bronze,
Rio Cumbijã, onde foi violentamente atacada em 8 de Maio de 1966. A situação foi tão frequente que a tua observação até se torna caricata...apenas saudações dos turras! Eram alguns dos espinhos que a Marinha também tinha. Pelos menos 3 ou 4 LFG's tinham placas idênticas de datas diferentes. Reparem que, depois da foz do Macobum o comboio, normalmente, não tinha problemas até Bedanda.
Num belo dia tudo isso ficou gravado num Sony pré-instalado para o efeito, com os cabos de som a passar para o exterior pelas vigias da câmara de oficiais. Não na Orion mas na irmã gémea Lira; ainda tenho guardadas as fitas originais cedidas pelo meu camarada da LFG. Tenho andado a adiar a oportunidade de as converter em som audível num CD para podermos reviver e partilhar também esses pesados momentos (2).
Sabes em que datas, ou datas próximas, chegaste e saiste da Guiné? Seria interessante saber uma vez que, praticamente todos os TT's, eram escoltados na entrada e saída do farol de Caió por uma LFG. Posso talvez disponibilizar esses elementos. Há muitas lacunas mas nem tudo está branco.
Há muitos factos, acontecimentos e histórias por relatar e felicito-te pela forma como te identificas na necessidade de alargar o painel de diálogo.
Para se efectuarem relatos decentes, a pesquisa terá de ser obrigatoriamente cuidadosa, criteriosa e isenta sob pena de a história passar a ser filosofia política.
Continuarei ao dispor da Tertúlia com Amizade e voltarei a dar notícias. Da próxima vez, completado o capítulo das apresentações, só mesmo Guiné.
Claro que teria forçosamente de enviar algumas fotos e elas acompanham o magro relato.
Um abraço e obrigado pelo reforço do chamamento.
Manuel Lema Santos
Ex-1º TEN RN 1965/72
Guiné 1966/68 - NRP ORION
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Nota de L.G.
(1) vd. post de 2 de Maio de 2006 >
Guiné 63/74 - DCCXXVI: Boas vindas ao marinheiro Lema Santos (Hugo Moura Ferreira)
(...) "Verifiquei com alguma satisfação que tu és do meu tempo (2) e tentei recordar-me do pessoal de Marinha que, com o sacrifício que quem ia metido numa lata a servir de alvo, para os lados do Cumbidjã, nos ia abastecer a Cufar (CCAÇ 1621), acostando, no cais de Cantone, e também a Bedanda (CCAÇ 6), quando, com o coração ao pé da boca, tinham que progredir rio acima tendo na outra margem o celebérrimo Cantanhez, que naquela altura era impenetrável.
(...) "Penso, e tu o confirmarás ou não, que realmente nunca as LDM [Lanchas de Desembarque Médias], que nos levavam abastecimentos a Bedanda, foram atacadas naquela zona. Aliás, como se acontecia com a LDP que diariamente levava a água de Catió para a nossa base no Cachil. Enquanto por lá andei não me recordo de ter ouvido alguma vez notícias de ataques a abastecimentos naquela zona.
"Em Cacine, eu sei que eram habituais as saudações dos turras, mas depois de passarem essa zona havia algum respeito e pode dizer-se condescendência do IN, para com a nossa paparoca" (...).