BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 9
Feliz em África (em jeito de biografia)
À medida que se aproximava o fim da comissão de serviço militar na Guiné, aumentava o sonho de me isolar numa ilha deserta. Era aquele sonho supremo de vir a ter uma cana de pesca, um amor e uma cabana. O cansaço, a saturação e os traumas da guerra, iam-se acumulando e provocando, cada vez mais, a necessidade dessa fase de grande repouso.
Todavia, quando regressados dessa ingrata missão, sentimos que os sonhos foram logo ultrapassados pelas aceitáveis realidades, pelo amor presente, pelas velhas amizades e por um envolvente nacional comodismo. No meu caso, não foi difícil assumir um emprego.
No entanto, mesmo a trabalhar e mantendo algum espírito de revolta e contestação (mesmo não sendo universitário), em Abril de 1969 juntei-me a amigos em Coimbra a apoiar a justa luta estudantil, tal como já o havia feito no ano anterior durante o período de férias durante a guerra na Guiné.
Em poucos meses somos acordados com as tristes realidades que continuam a prevalecer no nosso País. A leve esperança em Marcelo Caetano que, apesar do seu aparente fulgor, não nos convencia estar orientado para a mudança desejada. Portugal isolava-se cada vez mais, a guerra colonial continuava, os seus mortos e estropiados aumentavam e os trabalhadores fugidos também. Continuam a reinar os servidores do regime, seus bufos e seus lacaios. A Igreja Católica colabora, os ricos engordam e os pobres resignam-se. E continuam a imperar os medos, tabus e preconceitos.
As coisas não estão bem, mas também não há força nem grande disposição para lutar. Insatisfeito com a situação profissional surgida e seu impacto no ansiado desfecho amoroso, aproveito a visita do empresário Sr. Celestino, irmão da amiga Professora Patrocínio, que estudara com a minha Gilda, que nos incentivou e ajudou a irmos para Cabinda.
Pelo que ouvia falar sobre Angola e os angolanos, há muito que via ali a tal “ilha tropical”, de mar calmo, areias finas e coqueiros junto da água.
O sonho de ir para uma “ilha deserta” veio a concretizar-se
Vendi o carro à pressa, por baixo preço e parti de barco para Luanda. Embora “desacompanhado”, beneficiei de uma óptima viagem, em 1.ª classe, que muito me agradou. Lembro-me que numa das festas diárias a bordo, foquei a miúda mais linda que ia no barco. Ela também se afastou um pouco a meio da festa e veio encostar-se ao gradeamento, perto de mim, beneficiando também da agradável brisa do mar. Não resisti à tentação de lhe dirigir a palavra:
- Desculpe, a menina sente-se mal?
Ela voltou-se toda receptiva, posicionou-se mostrando todo o seu charme e a sua deslumbrante beleza, e respondeu:
- Sein, aum pocochaeinho.
Ainda trocámos algumas palavras, mas aquele sotaque madeirense saído de uma tal beleza, caiu-me que nem o tal “balde de água fria”.
Chegado a Luanda, aceitei a oferta de uma miúda que me levou para uma pensão familiar. Fui comer à Restinga e fui ao cinema. Quando cheguei ao quarto, revi tanta coisa boa que me atraía, que me parecia prender a ficar por ali. De repente, reajo e assumo: esquece, é hora de mudar de vida, vais para Cabinda e é lá que esperas receber muito brevemente a tua Mulher.
Com a Câmara Municipal ao fundo
O amigo Celestino que me levou para lá, era sócio do melhor Hotel de Cabinda e foi lá que ele me mandou aguardar. Por curiosidade, refiro que conheci ali o famoso Joselito, meu ídolo de infância, que passara por Cabinda em digressão artística.
Desde logo conheci, nos primeiros dias, os seus amigos, que eram das pessoas mais importantes de Cabinda.
Pensava ingressar na empresa Cabinda Gulf Oil Company. Porém, nessa mesma semana, a empresa despedira mais de 700 pessoas, em virtude de ter terminado a fase necessária à sua estruturação.
À esquerda, a fachada lateral direita do edifício da Câmara Municipal de Cabinda
Fui para a Câmara Municipal. No meu concurso, para Aspirante, entre outros documentos, tive que juntar a Caderneta Militar. Quando o secretário ma devolveu, após a minha admissão, teve o cuidado de realçar:
- O melhor documento que o Executivo valorizou foi a sua Caderneta Militar, com um louvor.
Quem havia de dizer que aquilo que eu mais tinha desvalorizado na guerra, me viesse a ajudar? Todos os militares devem lembrar-se que na sua maioria os louvores eram injustos (na sua justificação e na sua distribuição). E então voltei a lembrar-me daquele discurso público do meu Capitão, incentivando os militares:
- “Ainda vamos ver o nosso Furriel Silva de Cruz de Guerra ao peito”.
Ao que eu, sem a educação devida, respondi:
- “Não meu Capitão, eu não quero ser Cantoneiro. Nunca serei Funcionário Público”.
Primeira patuscada em Cabinda, ao norte, junto a um lago. Funcionários da Câmara Municipal com Administrador local.
Em Cabinda passei dos melhores anos da minha vida. A progressão profissional na Câmara Municipal foi notória. Minha mulher chegou e foi ensinar para a Escola Secundária. Nasceu o primeiro filho e com ele uma estabilidade emocional inigualável.
O meu filho identificou-se cedo com “barman”
Petiscando com o meu sogro, em dia de caça, no norte de Cabinda
Fomos à caça para o norte de Cabinda. Elefantes? Só lhes vimos as marcas. Mas deu para ver que o meu sogro era bom atirador. Aqui, abateu uma abetarda.
Com os sogros junto à praia das Missões (Dez 1971)
Passaram-se os primeiros dois anos sem ler, ouvir e pensar em guerra ou em política. A cabeça rejeitava tudo. Apenas mantinha alguma ligação ao desporto.
Afinal a desejada “ilha” existia mesmo! E os coqueiros também! Passava o tempo livre junto do mar e sempre com a cana de pesca.
Criámos o clube da Câmara, promovemos o desporto e desenvolvemos boas amizades.
Pratiquei futebol de salão e fui Campeão na Pesca. Fomos disputar o título de Angola, num concurso na praia da Caotinha, entre Lobito e Benguela. Fui “pescado” para a delegação da Direcção Geral dos Desportos, onde também colaborei nas suas organizações.
Como amante da Sétima Arte, ia quase diariamente ao cinema. E, quando frequentei uma acção de formação de Cinema Amador, fui convidado a integrar a equipa de Cinema do Rádio Clube de Cabinda. Como seu representante, participei no Congresso/Festival do Cinema, realizado em Moçâmedes (1972).
Os anfitriões de Moçâmedes levaram-nos ao Deserto do Kalahri
Quanto mais tempo passava, mais feliz me sentia em Cabinda. E nós íamos vivendo melhor e mais folgadamente.
Meu cunhado Eugénio (militante de esquerda) foi preso para Caxias. Meus sogros, que já nos haviam visitado, viviam isolados e tristes. Foi nessa altura que pensámos na alegria que eles sentiriam se voltassem a ver o neto Zé Tó, com 9 meses (nosso filho).
E a verdade é que essa alegria resultou. E como a criança ainda não fora baptizada, toca de organizar esse evento com o padre de Espinho, nosso amigo.
Porém, à medida que íamos passando o tempo sem ele, fomos sentindo uma angústia crescente, que culminou com a sua vinda, mais de 3 meses depois. Os reflexos emocionais sentidos, ainda hoje se manifestam, sempre que pensamos na “inconsciência daquela aventura”.
Quando o Zé Tó chegou não aceitou o colo dos pais.
Continuaram aqueles anos espectaculares. Basta referir que eu não sentia necessidades de gozar férias. Cheguei ao ponto de confessar, tal como dizia o amigo empreiteiro, Sr. Claudino:
- Ah, não! Não preciso de ir lá, ao puto (Portugal), porque não me esqueci de nada.
José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor
Último poste da série de 2 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20932: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (9): “Operação Confinamento II"