sexta-feira, 15 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20975: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (2): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
O fundibulário escreve uma primeira carta de agradecimento àquela intérprete que aceitou, com a maior das naturalidades, ser co-participante numa tentativa de romance, estavam distanciados, e ele escrevia-lhe para lhe contar a sua vida passada, durante o primeiro encontro ela manifestou a maior das surpresas quando ele lhe disse que tinha combatido na Guiné.
Como tudo isto é ficção, e porque se trata de um arremedo de romance, nada de significativo ficará de pé, houve que recuperar imagens do blogue, e importa confessar que se deu estremecimento ao visualizá-las, aconteceu qualquer coisa de tremendo na viagem pelo tempo, houve mesmo ressurreição de mortos e quem está vivo permanece mais vivo no meu coração, pois aquele tempo e aquele lugar tornaram-se indefetíveis de quem sou hoje.
E vamos continuar este arremedo, se me permitem.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (2): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, não tenho palavras para lhe agradecer a sua disponibilidade em ajudar-me a preparar um arremedo de romance, algo que não tenho perfeitamente definido no espírito, como lhe disse no almoço, supus que teria interesse, passadas estas décadas, contar as memórias de uma vivência na guerra da Guiné. A sua disponibilidade tocou-me ainda mais quando se prontificou a ler as minhas recordações, no tal contexto forjado de que éramos duas pessoas que mantinham uma relação apaixonada mas estavam forçados à distância, com encontros presenciais esporádicos, nessa ficção. Ela por ser intérprete, a saltitar por vários países, ele obrigado a ganhar a vida e a dar apoio a três filhos já crescidos, dois com rendimentos precários e um ainda a estudar; foi ela, de nacionalidade belga, que instou ao amoroso português detalhes da sua vida, em encontros anteriores, e revelou o seu assombro quando ele lhe disse que era um antigo combatente numa guerra colonial; e ficou de pé o compromisso de ele lhe dar os tópicos, e se possível as imagens dessa guerra, ela limitara-se a ler, muitos anos antes, uma obra sobre Amílcar Cabral, e ficara impressionada com o vigor do seu pensamento, acrescido o facto de ele ter sido o construtor de uma nação… Annette, volto a Bruxelas no fim deste mês, até perto do Natal haverá reuniões sobre o impacto do euro, sabe melhor do que eu que a partir de 1 de janeiro de 2002 viveremos com a moeda única, a Comissão Europeia pretende que ao longo dos dois próximos anos se delineie uma estratégia de comunicação. Encontrei algumas imagens avulsas que lhe envio, mas começo por lhe dar o pano de fundo desta guerra, que teve condições singulares distintas das guerras que travámos em Angola e Moçambique.

A presença portuguesa neste local da Costa Ocidental de África foi episódica entre os séculos XV e XIX, havia umas praças, uns fortins, uns presídios, comércio de escravos numa base de grande concorrência com espanhóis, franceses, ingleses e holandeses. Chamava-se a esta área a Senegâmbia, que se foi reduzindo até que, depois da Conferência de Berlim, finalizada em fevereiro de 1885, começou uma certa ocupação num espaço muito parecido àquele que negociámos com os franceses em 1886, entregou-se uma região do Norte, que deixou muita mágoa, o Casamansa, e definiram-se fronteiras com as quais se descobriu que afinal tínhamos andado na orla, nalguns pontos dos rios mais propícios ao comércio, e recebíamos um interior completamente desconhecido. A reação dos autóctones foi em muitos casos violenta, já tinha sido antes na definição das fronteiras com os franceses, esta região da Guiné era administrada por Cabo Verde, houve nos anos 1870 um verdadeiro desastre, um massacre numa localidade chamada Bolor, num território (chamado “chão”) de uma etnia, os Felupes. Um dos aspetos mais aliciantes desta colónia é o mosaico étnico, nos dias de hoje conheceu fortes mudanças mas mantém os seus aspetos essenciais desde as grandes alterações demográficas do século XIX, depois das guerras entre as etnias Fula e Beafada. O território está encravado entre duas antigas colónias francesas, uma independente em 1958 e outra dois anos depois, a Guiné Conacri e o Senegal. Amílcar Cabral preparou jovens quadros que tinham feito formação sobretudo na China, isto a partir de 1961, a subversão foi desencadeada no segundo semestre de 1962, e a guerra propriamente dita iniciou-se em janeiro de 1963. A visão de Amílcar Cabral colheu de surpresa os meios militares portugueses, esperavam algo parecido ao que se tinha passado em Angola, nada disso aconteceu. A superfície da colónia era de pouco mais de 36 mil quilómetros quadrados, eu depois mostro à Annette o mapa para ver os aspetos peculiares da região, tropical e húmida, com inúmeros braços de mar, com marés aparatosas, há momentos, na baixa-mar, em que a Guiné cresce, na preia-mar mingua, passa de 36 mil para 28 mil quilómetros. Há a tal diversidade de etnias, muitas delas são animistas, as restantes são predominantemente islamizadas, o cristianismo só recentemente é que passou de um dígito para dois. Logo em 1963, a guerrilha começou a estabelecer-se em pontos nevrálgicos do Sul, acoitava-se em matas densas, mesmo a aviação não era capaz de distinguir os santuários da guerrilha, do ar só se viam os trilhos, muitas vezes a fazer uma teia impressionante; estendeu-se ao Centro-Norte e criou sérios sobressaltos na região Leste. E nunca mais parou de crescer, depois de, em 1964, ter havido uma pronunciada demarcação entre todos aqueles que preferiram passar para a guerrilha ou ficar sobre a proteção portuguesa, isto tudo a par de um drama que eu também vivi, as populações sobre duplo controlo.

Cheguei à Guiné em finais de julho de 1968, dois meses antes houvera substituição de Governador e Comandante-Chefe, quem chegara, de nome Spínola, já Oficial-General, era tratado como o homem providencial, preocupava-se muito com os problemas dos soldados, visitava diariamente de manhã os aquartelamentos, descia em locais onde se estava a combater, recebia as tropas recém-chegadas à Guiné com discursos calorosos, afastava oficiais superiores com o pretexto de que eram incompetentes. E prometia profundas alterações no posicionamento no terreno. Desembarco com dois baús carregados de livros, discos e gira-discos, uma mala e dois sacos com outros haveres. Fui em rendição individual. Mais tarde explicarei a Annette o que sucedera antes, eu tinha regressado de Ponta Delgada, Açores, para formar batalhão numa localidade perto de Lisboa, Amadora, houve um sério conflito com o meu comandante de companhia, era um homem que dizia abertamente que um preto aguenta perfeitamente um interrogatório com trezentas agulhas no corpo e então dá-nos as informações de que precisamos, contestei as práticas, foi uma escalada que levou ao meu afastamento, fui apurado de “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Aguardei a minha sorte, o meu destino, foi-me ditado poucos dias depois de eu ter chegado, ia para o Cuor, um regulado frente a Bambadinca, portanto já no Leste, teria a responsabilidade de um Pelotão de Caçadores Nativos e dois Pelotões de Milícias, em duas localidades, Missirá e Finete, ambas com população civil, não sabiam dizer-me ao certo mas tudo somado andaria pelas 400 pessoas, ou talvez menos.

É essa a narrativa que eu vou contar a Annette, com todos os pormenores de que me lembro, guardei uma boa parte da correspondência que recebi, a então minha namorada conservou centenas de aerogramas, outros familiares, sobretudo a minha mãe e a minha irmã, ofereceram-me o correio que lhes enviei, inclusivamente as imagens. Perdeu-se uma boa parte do espólio, houve uma potente flagelação em Missirá, na noite de 19 de março de 1969, arderam dois terços das habitações, iria então começar aquele que ainda hoje considero que foi o maior desafio da minha vida, voltar a pôr Missirá de pé. Hoje não a canso mais, mostro-lhe só algumas imagens, depois conto-lhe quando voltarmos a conversar, se acaso for possível já no fim de outubro, dar-lhe-ei mais detalhes quanto aos preparativos da minha ida para a Guiné, falaremos os dois com estas fotografias na mão. Não tenho palavras pelo que está a fazer por mim, alguém que lhe bateu à porta da cabine de interpretação e que lhe pediu para almoçarem juntos e que lhe contou uma história de um possível romance que só seria escrito com a imprescindível colaboração de alguém com o seu perfil. E parece que acertei em cheio. Receba toda a gratidão e o reconhecimento do Paulo Guilherme Morais Ferreira.


Annette, eu vivia nesta casa (diz-se morança), não dá para perceber a vastidão do desastre que ocorreu em 19 de março de 1969, felizmente, pode ver do lado esquerdo, ficou de pé o edifício dos nossos abastecimentos, ao fundo vê também uma cozinha que ardeu e mais longe o abrigo onde estavam as nossas guarnições. Estou a escrever este comentário, caminho para os 55 anos, e parece que foi ontem que tudo isto aconteceu.


Algures, em meados de 1969, tive que ir a Bissau depor num julgamento de um soldado de milícia que deixara fugir um prisioneiro. Dois dos meus camaradas de Missirá estavam de férias, alguém nos tirou a fotografia, a Annette não vai acreditar na história que lhe irei contar acerca do 1.º Cabo Barbosa, à esquerda, lamentavelmente esqueci o nome de quem está vestido à civil, porventura amigo de um deles, à minha esquerda está o António Fernando Ribeiro Teixeira, o 1.º Cabo de Transmissões, tenho por ele uma gratidão desmedida. Neste tempo, estava em plena forma, rodado de uma viagem diária de 25 quilómetros, entre Missirá e Mato de Cão, depois explico-lhe o porquê destas viagens diárias, como elas eram cruciais para o abastecimento das tropas da chamada Região Leste.


Cedo, o meu relacionamento com a população civil ganhou intimidades. Arranjou-se professor para além do padre que tinha a sua escola corânica, de nome Lânsana Soncó, adorava convites que lhe fazia para bebermos chá Príncipe com pãozinho quente e cubos de marmelada. Uma destas crianças, o segundo menino a partir da direita, é tratado como meu irmão, é já sexagenário, vive em Portugal, daqui não pode sair, depois de dois enfartes do miocárdio. É o filho mais novo do régulo Malam Soncó. O mais crescido da foto, acocorado, é Tumblo, vive em Bissau, teve um AVC, recuperou ligeiramente, estou neste momento a vê-lo, tal como se vê na fotografia, a caminhar a meu lado, a caminho de Finete, com uma espingarda Mauser a tiracolo. Eu depois falo à Annette destas crianças, há muito para contar.



Quebá Sissé, conhecido por “Doutor”, o cozinheiro de Missirá. Fotografia do início do março de 1969, todo aquele fundo irá desaparecer, dias depois, como lhe disse. Ao fundo, do lado direito, pode ver o nosso balneário, uma estrutura indescritível, aquelas chapas rasgavam a carne a qualquer descuidado. Do lado esquerdo, vemos crianças que ajudavam na confeção das refeições, assistia-lhes o tal direito de ficarem com as sobras. Um dia, vi uma criança a esfregar as mãos no interior de uma panela e a levar ao nariz. Achei aquilo insólito e perguntei o que é que havia de especial, respondeu-me que havia ali restos do esparguete da refeição, nunca tinha comido esparguete e achava aquele cheiro muito bom.


A Mesquita de Missirá, onde fui várias vezes rezar. O local é o mesmo, a estrutura é nova, do meu tempo, e obra nossa, é a construção ao lado, a escola, não estava fechada, as crianças precisavam de luz, com a independência ter-lhe-ão dado outro aproveitamento. Envio esta fotografia à Annette para dar conta do profundo respeito com que tratávamos os muçulmanos, neste Cuor, fundamentalmente em Missirá, eram todos muçulmanos.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20953: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (1): A funda que arremessa para o fundo da memória

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