domingo, 10 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20960: Blogues da nossa blogosfera (131): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (46): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.

AntiDeuteronómio II

ADÃO CRUZ

© ADÃO CRUZ


No tempo em que as sardinheiras das varandas dos pobres
faziam parte dos nossos sonhos
florindo em poemas de sol e de cor
no tempo em que as andorinhas
teciam grinaldas de vida nos beirais
no tempo em que os rios bordavam a terra de areia branca
no tempo em que a brisa sussurrava
por entre as flores
e as fontes murmuravam seus amores
a aurora da nossa inquietação tinha o cheiro a maçãs
e o pulsar das coisa vivas
e o levíssimo sorriso dos jardins do paraíso.
Tudo amávamos em nobre sentimento de exaltação
o mundo era transparente e fácil de amar
e cheirava a feno
a razão ondulava a frágil seara
em suave alento na quietude universal da liberdade
como harmoniosa mulher suspirando ao vento.
Tão inocente amor
tanta alegria
quem pensaria que os rios de pranto
haveriam de chegar um dia
em negra nuvem de calado voo.
Não podemos deixar que a nuvem negra
se abata sobre nós e o pensamento…
e o pensamento nos agarre no desértico silêncio
sentados ao vento
no falso sol da varanda da ilusão
e da erosão da consciência adormecida.
Não podemos deixar que a todos nos transforme
em filhos da morte
filhos de nenhum lugar e de toda a parte
figuras do vale das sombras
esgueirando-se nas sombras de outras sombras
sonâmbulos fantasmas
sem gestos de vida que nos façam acordar.
E quando for dia de sol bem alto
porque haverá sempre um dia
a rasgar a deuteronómica nuvem negra
que ameaça os campos do futuro
e o sereno assombro das pedras
e os peixes verdes dos poemas
e os rubros sorrisos que cheiram a mar
e os passos dos que aprendem a andar
e os rios que correm nos olhos de uma criança
e a memória sem tempo
jamais a exaltação da santidade
estará na morte e nas cinzas da cidade.
E não haverá espinhos nos olhos
e aguilhões nos flancos da vida…
e não haverá armas de destruição maciça
no coração das mães dos filhos exterminados.
Na diáfana manhã de um novo dia
apenas a plangente harmonia de um Stabat Mater.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20937: Blogues da nossa blogosfera (129): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (45): Palavras e poesia

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