1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano Fradique Augusto Morujão, da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Aldeia Formosa, 1969/71, com data de 11 de Fevereiro de 2011:
Caro editor:
Como está expresso na página da Tabanca Grande, a porta está sempre aberta, mas é sinal de boa educação pedir licença. Nessa conformidade, peço licença para entrar.
Agradeço que corrija possíveis erros ou elimine situações, que firam os princípios deontológicos a que se propuseram e muito bem.
Embarque em Janeiro de 1970.
Nomeado em reforço à guarnição normal para a Guiné.
Integrado num dos grupos de combate da CCAÇ 2615 em Aldeia Formosa.
Mais tarde deslocado com a Companhia para Nhala.
Comissão nos anos de 1970 e 1971
Introdução:
Quando se assinala meio século do início da guerra colonial e decorridos 40 anos da comissão militar na Guiné, é a primeira que abro o meu livro de memórias da guerra.
Quais folhas amarelecidas e bolorentas pelo decorrer corrosivo dos anos, assim estão as minhas lembranças.
A experiência militar resultou negativa, na medida em que, ou por auto-defesa, ou por maneira de ser, baralhei e esqueci completamente nomes e datas.
Lembro-me de:
Operações de reconhecimento; saídas para fazer picagem; segurança a colunas; colunas; emboscadas com mortos e feridos; patrulhamentos vários, mas de nomes dos camaradas, (nicles batatoide), nada!
Neste deserto de lembranças, vem à memória os nomes de Guiomar e Leandro, os dois mortos em combate na zona de Sare Amadi, com quem falei momentos antes da emboscada. Pela alegria de viver, se me fosse permitido um epitáfio seria:
Oh! Morte, por tão tarde te querer, tão cedo me levaste.
Aos dois, presto a minha humilde homenagem.
Também me lembro que nesse dia, foi a primeira e única vez na minha vida, que a boca me soube a sangue, sem estar ferido.
Tenho comigo alguns slides desse tempo, que ajudarão a reconstituir a memória colectiva da Companhia.
São fotos dos 3 Grupos de Combate da CCAÇ 2615, sem legendas.
Cada um saberá quem é!
No estandarte: a velhice dos loucos; regressa ao manicómio; Comp. Circo CCAÇ 2615
Como é da praxe vou contar uma das minhas memórias.
Aldeia Formosa-Buba
As colunas
As colunas de Aldeia Formosa para Buba fazem parte do meu imaginário, uma vez que participei em várias.
Lembro-me de um dia em que fomos escalados para uma coluna a Buba, com a finalidade de reabastecer Aldeia Formosa. Formou-se a coluna com as velhinhas GMC para a carga e os Unimog para o apoio. Entretanto, já estavam a fazer segurança ao percurso, pelotões de Aldeia, Nhala e Buba, que faziam a detecção de minas pelo método de picagem.
Depois de tudo organizado foi dado o sinal de partida e lá iniciámos a marcha, para mais uma viagem de desfecho incerto.
Ainda a coluna não tinha feito o segundo quilómetro, já Aldeia Formosa estava a ser atacada com morteiros e RPG e ouvia-se ao longe o alvoroço próprio destas ocasiões.
Todos os que seguiam na coluna se viraram para Aldeia com alguma apreensão, mas depressa a apreensão foi substituída por um certo alívio, como quem diz «desta já nos safámos».
Aumentámos o alerta nas proximidades do trilho que cruzava a estrada na direcção de Salancaur, nome muito respeitado por ser uma base importante do IN, quando avistámos um grupo de macacos cães. Seriam 30 ou 40 de várias idades e tamanhos. Alguns apresentavam uma compleição física notável. Foram seguindo a coluna por entre as árvores. Nós começámos a ficar inquietos, porque à medida que saltavam de galho em galho, produziam algum ruído. Então, alguém se lembrou de afugentá-los e arremessou um pau na direcção dos macacos. Amigos! Nem vos digo, nem vos conto, os bichos ficaram enraivecidos, fazendo uma chinfrineira dos diabos, com aqueles latidos irritantes e as beiçolas escancaradas, mandavam murros no peito e saltitavam, para meterem respeito. Ao mesmo tempo começaram a bombardear-nos com tudo o que tinham a jeito e sempre a aproximarem-se dos carros. Parecia uma batalha campal, já que alguns dos nossos se tinham apeado, para melhor se munirem e treinarem na arte do arremesso, enquanto um operacional que estava num dos carros e parecendo achar piada à coisa, virou-se para os macacos que estavam mais perto e lembrou-se de cantar uma canção muito em voga do Nilton César “receba as flores que lhe dou” e continuou.
Vai daí, um ou mais macacos, ou porque já não tinham mais munições, ou por malandrice, colocaram as manápulas debaixo do ânus e puxaram pelo intestino grosso, arremessando o mais perigoso de todos os projécteis. O que ainda estava a cantar nem teve tempo de se abrigar, porque as granadas de fragmentação, desfizeram-se na lona da GMC e o cantor apanhou com os estilhaços e levado de 30 mil raios, explodiu dizendo:
- Os desgraçados atingiram-me com merda. Ai! Que dou cabo deles - e fez o gesto de empunhar a G3 para matá-los de rajada, mas logo outros o avisaram para se acalmar, porque a zona era perigosa. Como não pôde disparar, desfolhou o dicionário do português mais vernáculo e brejeiro e atirou aos macacos todos os palavrões que lhe vieram à cabeça.
Os bichos bateram em retirada e, eu, fiquei com a nítida sensação, que os macacos eram a favor da auto-determinação. No resto do percurso a coluna evoluiu sem grandes incidentes.
Chegados a Buba, lugar aprazível com rio como pano de fundo, atravessamos o aldeamento militar e fomos directos ao armazém de abastecimento, que ficava junto ao rio e muito perto do cais de atracagem das LDG e LDM e entrámos com as GMC no dito armazém, depois dos procedimentos burocráticos.
Escalados os militares para o serviço de trasfega e concluído o carregamento, cada um ficou livre de fazer o que bem lhe aprouvesse.
Penso que me dirigi a um pavilhão que ficava perto e funcionava ou como comando ou secretaria, talvez para assinar as guias de abastecimento e a seguir saí para um varandim que ficava na entrada. Fiquei algum tempo absorto a apreciar a paisagem melancólica, que se me oferecia e a observar a bifurcação que o rio Buba fazia com o cais em frente, de onde tantas vezes tinha mergulhado e nadado, quando se acercou de mim um oficial de quem não me lembra, nem o nome, nem a patente e com modos gentis, iniciou um diálogo. Ficámos algum tempo a conversar acerca do evoluir da situação militar em Aldeia Formosa e, eu, aproveitei para lhe contar que Aldeia tinha sido atacada nessa manhã e de como nos achávamos uns sortudos por termos escapado ao ataque, por a coluna se encontrar a distância considerável, quando se ouviram vários: Pum, Pum, Pum, abafados pela distância, mas suficientemente audíveis para se aquilatar da gravidade dum ataque eminente.
Todos os que por ali se encontravam se apressaram a refugiar-se, num abrigo que se encontrava perto.
Também eu fazia o gesto de me apressar, quando o oficial e cavalheiro me disse:
- Não se apresse que dá tempo de nos abrigarmos com calma. Ofereceu-me a dianteira e quando estávamos a ultrapassar a porta do abrigo, já os morteiros faziam aquele silvo entrecortado e arrepiante da descida e o subsequente estrondo da explosão com tudo estilhaçado e coisas pelo ar.
Senti um grande respeito por aquele oficial que controlava as emoções, fruto de muita experiência, com grande calculismo, predicado que, eu, não tinha. Ao outro dia falando com um fuzileiro, acerca do oficial com quem tinha dialogado no fim da tarde anterior e me tinha intrigado, informou-me que tinha sido deslocado para Buba em fim de comissão, porque segundo o fuzileiro, tinha comandado uma grande operação a um reduto inimigo altamente patrulhado e com grande poder de fogo. Como a operação se estava a revelar difícil e tendo sofrido algumas baixas o Oficial analisou a situação e verificou que se continuasse ainda sofreria mais baixas, pelo que preferiu sofrer as consequências duma retirada reprovada pelo alto comando, do que pôr em causa a vida dos operacionais que comandava.” Grande Homem”!
Afinal, julgando que nos tínhamos safado do ataque a Aldeia Formosa, acabamos por ser atacados de forma vexame pelos macacos e atingidos com canhões em Buba.
Há dias de sorte!
Hino às colunas
Autor da letra: Soldado desconhecido
Música: adaptação do fado “Bairro Alto”
Aldeia e as colunas a seguir
Para Buba com a malta
Obrigados e sujeitos a não vir
Com aquilo que nos falta
São colunas bem penosas
Que nada têm de airosas
Sempre metidas no perigo
Sujeitas a emboscadas
Nestas tão reles estradas
Para nós é um castigo
Viaturas velhas
Tudo a cair
E memo assim
A malta tem que seguir
São tristes chaços
Em procissão
Andam mecânicos
Com chaves de mão em mão
Quero aproveitar para agradecer a todos os operacionais com quem tive a honra de conviver: Pela compreensão; entreajuda e camaradagem que sempre revelaram pela minha pessoa.
Em jeito de despedida, um aviso à navegação. Não consto em nenhuma das fotografias e se alguém perguntar:
Afinal, quem és tu?
Responderei:
Ninguém.
Um abraço solidário
Fmorujão
2. Comentário de CV:
Caro camarada Fradique Morujão. Obrigado pelo contacto e pela adesão à Tabanca Grande onde espero te venhas a sentir bem pois estás entre camaradas e amigos.
Ao iniciar esta conversa contigo, na qualidade
Public Relations (uma espécie de mordomo que abre a porta, que não existe, a quem quer entrar), quero dizer-te que mal comecei a preparar a publicação do teu texto e das tuas fotos, tive um sobressalto quando li que tinha morrido em combate um camarada da tua Companhia chamado Guinapo. É que esteve comigo em Vendas Novas um camarada, alentejano, com o mesmo apelido. Mas, sendo ele da arma de Artilharia e sendo a tua Companhia de Caçadores, tendo nós terminado o curso em fins de Setembro de 1969 e o teu Batalhão deslocado para a Guiné em Outubro, é improvável tratar-se do mesmo Guinapo. Será algum familiar?
Outra observação que quero fazer é em relação à tua última afirmação de que responderás "ninguém" à pergunta "quem és tu?"
Falarás em sentido figurado, mas o certo que querem fazer de nós, ex-combatentes, "ninguém".
O Estado não reconhece o acesso a tempo e horas ao tratamento das mazelas provocadas pela guerra; às autarquias custa o reconhecimento ao nosso esforço em África, lembrado por Memoriais, nomes de ruas, etc, antes que morramos todos e passemos "à história", leia-se, esquecimento.
Falando agora de nós e da nossa Tabanca à qual pertences por teres palmilhado a mesma terra vermelha e as mesmas bolanhas.
Como deves ter lido no lado esquerdo da nossa página, é nossa missão recolher fotografias e histórias contadas na primeira pessoa e preservá-las neste Blogue para memória futura. Não é nossa intenção fazer história, mas deixar elementos para que outros o possam fazer desapaixonadamente.
Já temos sido contactados por alunos e professores universitários que depois de consultarem as nossas páginas nos pedem autorização para se servirem de elementos nelas contidas. É para nós um motivo de orgulho poder colaborar com estas pessoas ligadas de alguma maneira à História Contemporânea.
Posto isto, caro camarada, podes e deves ajudar-nos a aumentar o nosso espólio. Já fizeste o mais difícil, começar.
Queria que me confirmasses a data em que embarcaste para a Guiné, porque se foste com o teu Batalhão, terás ido em Outubro de 1969 e regressado em Setembro de 1971. Se te lembrares, diz-nos também qual foi o teu posto e a tua Especialidade.
Termino, mandando um abraço em nome da tertúlia.
O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 12 de Fevereiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7770: Tabanca Grande (267): Os 4 magníficos da CART 1690: Alfredo Reis, António Moreira, Domingos Maçarico e A. Marques Lopes