segunda-feira, 29 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6065: Não-estórias de guerra (5): O Furriel Dog e o cão Furriel (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971), com data de 17 de Março de 2010:

Caros Editores,
Terminado o período de rigorosa invernia. Agora que regressaram os dias de sol, aqui vai mais uma Não-estória de guerra.

Um Abraço
Manuel Amaro



Não-estórias de guerra – 5

O Furriel “Dog” e o cão “furriel”

O Furriel Dog não se chamava Dog, mas sim Orlando Nunes.


Era Furriel Miliciano Atirador de Infantaria, da CCAÇ 2615. Aliás ele afirmava que os serviços de psicologia do Exército funcionavam na perfeição, pois com a formação obtida na escola comercial do Barreiro, ele só poderia ser atirador de infantaria.

O Dog fez quase toda a comissão com o braço esquerdo engessado, devido a uma fractura (ou luxação?) do escafoide. E aquele gesso, que lhe pesava e lhe reduzia o volume da massa muscular, também lhe era de uma grande utilidade, pois libertava-o da maior parte da actividade operacional.

No entanto, por mero acaso, não o libertou no dia 20 de Março de 1970, em que numa emboscada o seu grupo de combate teve um morto (milícia) e alguns feridos ligeiros.

Nesse dia o Dog disse ter descoberto que, debaixo de fogo, um simples pé de capim, parece ter a dimensão de um imbondeiro e a consistência de um baga-baga.

Mas, à conta do gesso no braço, ainda foi durante largos meses, delegado do Batalhão, em Bissau. E à noite, quase todas as noites, como bom conversador e contador de estórias, era um dos principais protagonistas da famosa 5.ª REP.

Um dia adoptou um cão. Um cão que de imediato baptizou de Furriel. E acertou na escolha do nome, porque agradou a toda a gente. Os furriéis não se incomodaram e chamar furriel a um cão, era um motivo de orgulho dos Primeiros Sargentos e até de alguns Praças.

O Furriel não era propriamente um cão artista, mas conseguia comer à mesa, na Messe de Sargentos e beber cerveja e whisky, este com muita água. E com estas qualidades, tinha algum protagonismo.

Além de ser amigo dos cães e de todos os animais, o Furriel Dog era um exímio cantor. Antes do serviço militar tinha feito parte de um conjunto de música de baile, onde se divertia e ainda conseguia arranjar algum dinheiro de bolso.

Mas era essencialmente um baladeiro.

E possuía uma sólida formação política, a maior parte feita na clandestinidade.

Cantava todo o reportório do Zeca Afonso, do Adriano e de outros cantores aventureiros dos anos sessenta.

Normalmente terminava as suas intervenções, cantado Catarina Eufémia… Por vezes, quase sempre, com as lágrimas a correrem-lhe pela face, o queixo a tremer, mas a voz não vacilava… “ quem viu morrer Catarina, não perdoa a quem matou….”

Um grupo de quatro ou cinco camaradas faziam coro.

Quando ele se entusiasmava e gritava “hip… hip… URSS”, uns acompanhavam-no, outros encolhiam-se.

Depois do regresso, o nosso grupo ainda fez umas noitadas nos restaurantes, bares e discotecas de Lisboa, mas a rotina, as exigências profissionais e também os divórcios, foram reduzindo os contactos.

Até que surgiu a fase da organização de convívios dos ex-combatentes.

E aí estávamos de novo juntos. Mais velhos, mais maduros, mas sempre com a boa disposição que nos levou a apelidar, quase em segredo, a CCAÇ 2615, a nossa Companhia, como a “Companhia de Circo”.

Creio que o último convívio em que participou, foi em 2000, em Campo Maior.

Pouco tempo depois, quando cuidava do pequeno barco de recreio que tinha ancorado no Tejo, o coração traiu-o. Não resistiu.

Nem imbondeiro, nem baga-baga, nem ao menos um simples pé de capim...

Hoje, a propósito de “qualquer coisa”, pareceu-me ouvir aquela frase, que lhe ouvi, tantas vezes, desde o RAL3, em Évora, até aos locais de convívio dos veteranos.

Fazia-se anunciar sempre com a frase “…Aqui o Dog chega sempre cedo”.

Não vai chegar mais... Porque já partiu.

E o Dog partiu cedo, muito cedo.

Manuel Amaro

O Furriel Dog dá de beber ao cão furriel

O cão furriel, à mesa...

Manuel Amaro e Orlando Nunes, a bordo do Uíge
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5462: Não-estórias de guerra (4): O Parto, essa grande (a)ventura (Manuel Amaro)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro Manuel Amaro

Com este teu relato fica-se (eu fiquei) com um sentimento misto: tristeza, por saber da 'partida' de mais um companheiro de aventura e uma alegre sensação pelo gozo que se adivinha nos actos praticados pelo "Dog".

E quanto à descoberta que naquelas circunstâncias se pode ter a sensação que um simples e frágil junco pode ter a espessura dum imbondeiro e a consistência dum bagabaga, compreendo perfeitamente.
Eu próprio, em algumas largadas de toiros, em Vila Franca, também cheguei a ter sensações dessas, em que um poste dum sinal de trânsito parecia ter um diâmetro talvez dum metro ou que eu era mesmo invisível...

Um abraço
Hélder S.