1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 30 de Março de 2010, que nos vai contar tudo sobre a sua recente viagem à Guiné-Bissau:
Caro Carlos:
Tardo em mandar o relato do Dia Um do Diário da Ida à Guiné, pois ando deveras atrapalhado, com a passagem das gravações da câmara de filmar para o PC, a qual comprei dois dias antes de ir e ainda não estou senhor de todo o seu software.
Para já, vou ilustrando as estórias com fotos só da máquina fotográfica.
O primeiro episódio de “NA KONTRA KA KONTRA” está quase a rebentar. (A primeira cena é mesmo uma explosão).
Um abraço.
Fernando Gouveia
A GUERRA VISTA DE BÁFATA - 24
Diário da ida à Guiné - Dia um (04-03-2010)
Cerca das duas menos um quarto da manhã: - “Senhores passageiros mantenham os cintos apertados até o avião se encontrar imobilizado e os motores estarem parados”.
Começa a saída do avião. Estava ansioso por passar a porta da cabine e sentir o cheiro que quarenta e dois anos antes me impressionara, quando do atracar do “Ana Mafalda” na Ponte Cais da Amura.
Para ser sincero, não senti esse odor inebriante a África. Mentalmente procurei explicações e a mais provável poderia ser a de agora se estar em avançada época seca e em Julho de 68 se estar em plena época das chuvas.
Desci as escadas do avião e às duas da manhã o calor parecia o mesmo de há quarenta anos, incomodativo. Já na plataforma reparei que o asfalto, pelas dimensões das fissuras, qual lamaçal seco, poderia ser o mesmo. O autocarro que nos levou à gare, distante 50 metros, também poderia ser o mesmo. Depois notei que os carrinhos de transporte das bagagens pareciam os mesmos, mas não eram, ou seriam, apesar de agora se estar na gare do Aeroporto Osvaldo Vieira e não na antiga gare de há quarenta anos.
Já dentro do edifício tive que ir para a fila dos estrangeiros mostrar o passaporte. De novo o choque, agora já menor. Coisa estranha, os africanos foram todos também para a mesma fila, dos estrangeiros… Deviam ter todos passaporte português.
Quando já estava a pisar o risco amarelo que precedia a mostra do passaporte, já estava completamente distraído a rever todo aquele ambiente, já sentido por mais de dez vezes há quarenta anos. O funcionário deve ter chamado por mim. Estava completamente absorto. Foi preciso todas as outras pessoas chamarem-me à atenção, com sorrisos à mistura. A minha euforia ia ter uma pausa.
Na sala a seguir “pesquei” o saco que veio no porão. Estava um pouco preocupado pois trazia lá algo passível de confisco. Um funcionário remexeu tudo mas não deu com nada. Como havia um saco plástico fechado pediram para eu o abrir. Era um bolo-rei que levava para os amigos. Perguntaram o que era aquilo. Quando lhes estava a explicar, o melhor que podia o que era um bolo-rei, o funcionário avançou com o dedo indicador para o espetar no bolo, mas fosse pelo meu olhar cáustico, fosse por ele próprio ter medo de meter o dedo em algo que podia ser perigoso, ordenou-me que fosse eu a meter o dedo. Enterrei o dedo no bolo e como não explodiu e o dedo não veio cheio de pó branco, aproveitei e parti o bolo ao meio mostrando que era apenas bolo. Perante esta atitude libertaram-me de mais formalidades.
As minhas dúvidas quanto ao ir do Aeroporto para qualquer hotel desvaneceram-se. O Chico Allen, o Pimentel, o Mesquita, o Pires e o filho estavam à minha espera. Estes dois últimos, sabendo do estado da minha coluna, carregaram as minhas bagagens (ficando muito grato por isso), sobretudo o saco mais pesado onde levava as prendas para os companheiros e para distribuir pelos africanos.
O Chico depressa fez o percurso de uns 30 quilómetroa para Norte, em direcção ao empreendimento meio abandonado, que ele próprio está a “gerir”: o Anura Club, a 6 quilómetros de Bula na estrada para o Ingoré e perto da tabanca balanta de Bofo. Pelo caminho, a polícia, numa das muitas caricatas barreiras que noutro dia descreverei, quis ver as minhas bagagens. Na expectativa da cena do bolo-rei se repetir, o Chico, já com alguma experiência dessas situações, levou-os na conversa e lá seguimos mas ainda tivemos de parar em mais quatro ou cinco barreiras policiais, ou do exército.
Deitámo-nos às quatro da manhã e acabei por dormir só duas horas. A excitação era muita.
Levantei-me cedo e, como algumas mulheres e bajudas que moravam nuns armazéns do empreendimento, estavam junto do poço a tirar água, aproveitei para tirar as primeiras fotos e fazer as primeiras cenas em filme.
Junto ao poço, um grupo de bajudas e o Nelson, em baixo à direita.
A bajuda Elisa, de 14 anos.
A bajuda manjaca Missinda, de 14 anos.
Tomado o pequeno almoço, confeccionado por nós, aliás como todas as refeições que fazíamos no Anura Club, fomos a Bissau pois era urgente trocar dinheiro e comprar um cartão de telemóvel para uma rede local. Aconselharam-me a MTN. A compra de francos cfa foi feita numa loja de materiais de construção onde o cambista (dono da loja), sentado atrás duma secretária que se confundia com a anarquia dos materiais expostos e lixo à mistura, não era mais do que um irmão do Major Valentão! Noutra loja ali perto comprou-se o cartão para o telemóvel, embora rodeando as pessoas andassem sempre muitos miúdos a tentar vendê-los.
A manhã estava no fim e decidimos almoçar em Bissau. O Chico escolheu o restaurante “A Senegalesa” e encomendou-se um chabéu de peixe. Aí, vi a bajuda mais espectacularmente bela, em termos estéticos, de todas as que vim a ver. Parecia vestida para uma passagem de modelos africana. Tinha um vestido até aos pés de cores muito sóbrias, um lenço branco à “Benasir Butto” e, a envolver-lhe os ombros, um lenço grande amarelo, todo bordado, estabelecendo uma ligação estética perfeita entre o lenço da cabeça e o vestido. A rematar tudo isso ela estava a pilar quiabo de um verde tal que estabelecia um contraste ideal com as suas vestes. Perguntei-lhe se a podia fotografar (como faço sempre) mas disse que não pois era muçulmana. Teria cometido uma heresia se não estivéssemos com pressa. Utilizaria o zoom do outro lado da rua.
Fomos fazer horas e passámos pelo ponto de encontro dos europeus, principalmente cooperantes: O restaurante “O Porto”. Como aí o prato do dia era feijoada à transmontana, rapidamente se mudou de ideias e lá foi o Chico desmarcar o chabéu. Foi das melhores feijoadas que comi (estaria já a ser apanhado pelo clima?). Sopa, prato, cerveja e café, sete mil francos cfa.
O Pimentel e outros elementos do grupo na esplanada do “O Porto”.
O Pavimento da rua em frente ao restaurante “O Porto”.
Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2010). Direitos reservados.
A tarde foi passada na agradável esplanada do “O Porto”, pertinho do antigo Grande Hotel, agora totalmente degradado e a cair aos bocados. Conversou-se com imensa gente que ia aparecendo, elementos do grupo que foi por terra, cooperantes portugueses e doutros países, (até o nosso Presidente da Associação de Municípios lá apareceu) e residentes. De um destes, e por intermédio do Pimentel, tive uma proposta de trabalho, que se se vier a concretizar, levar-me-á à Guiné com frequência. Mas o segredo é a alma do negócio…
Regressámos ao Anura, comemos uma sopa que o Chico já tinha feita, ligámos o gerador, vimos o Noticiário da RTP-1 na TV África e, como fazíamos todas as noites, dissemos aos guardas (que não recebendo nada há cinco ou seis anos se mantêm fiéis no seu posto…) para desligarem o gerador passada meia hora de termos ido para vale de lençol (e não de lençóis, pois lá sempre fez muito calor).
Até amanhã camaradas.
Fernando Gouveia
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 25 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6048: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (23): Diário da ida à Guiné - 03/03/2010 - dia zero
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Meu Caro Fernando,
Boa nota, boa descrição e muito boa fidelidade. No entanto, se como tu não revivi o cheiro da terra, ao contrário, não me dei conta da roupa colada ao corpo por força do calor húmido, como sentia nos idos de setenta.
Já estou à espera do próximo episódio.
Abraço fraterno
JDinis
Caro Fernando Gouveia
Como te prometi, sou um acompanhante atento dos teus relatos e das tuas histórias.
No que diz respeito a este primeiro dia, se assim se pode chamar, nem demasiados encantos, nem grandes desencantos, excepto a tal modelo não fotografada que, pela tua descrição devia ser bastante interessante, quer fisionomicamente quer pelo conjunto de cores com que se decorava.
Aguardamos os desenvolvimentos.
Um abraço
Hélder S.
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