sexta-feira, 2 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6091: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (27): Teixeira Pinto - o dia-a-dia

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 26 de Março de 2010:

Amigo Vinhal
Mais uns apontamentos de “Viagem …” que se calhar te vai dar um pouquito de trabalho, ajudando-te na saúde, que espero esteja bem.

Um abraço extensivo a todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (27)

Teixeira Pinto – o dia a dia


A actividade operacional da “FORÇA” em Teixeira Pinto foi tão intensa ou mais do que em Bula, mas tivemos na verdade outras condições dadas pelo comando do CAOP 1

Ao que me disseram, parece que fomos destacados para lá por a nossa operacionalidade no sector de Bula ter sido considerada eficiente. É verdade que tínhamos sido a Companhia do Batalhão que mais combates travou nas matas de Bula e ao que sei, mais estragos causou ao IN, que nos teria “um certo respeito”.

Talvez por essas razões, ficamos à ordem não do BCAÇ 2905 mas do comando do CAOP 1, que nos utilizou em “rotação” com os Fuzos, Páras e Comandos lá estacionados, como se fôssemos também Tropa Especial. Só não fizemos saídas de heli!

Assim sendo, a breve trecho e após provas dadas(?!) recebemos certas contrapartidas de maneira a minimamente satisfazer o “para trabalho igual, salário igual “ do pós 25 Abril, digo eu (!!!), sendo que neste caso o salário era a alimentação e o armamento. O trabalho era o que todos sabemos!

Talvez para que mantivéssemos a dinâmica e a boa operacionalidade no ”trabalho”, passamos a ter rancho melhorado, suplemento e ração de combate especial, ao que recordo idêntica à dos Fuzileiros. Quanto ao armamento, para além da nossa dotação normal, acumulamos mais duas MG, um (dois ?) morteiro 60 e creio que mais um lança-granadas, ao que recordo por GCOMB. Estas armas eram-nos também dispensadas pelos Fuzileiros que, sem desprimor para as outras tropas Especiais, era um Pessoal diferente, impecável, de fácil convivência sempre prontos a nos apoiar e ajudar no que pudessem.

Claro que estas “benesses” nos ajudavam à auto-confiança e moralizavam o Pessoal nas constantes acções a desenvolver naquelas matas belicosas. Dava-me gozo e confiança olhar para a Rapaziada do bi-grupo (por norma reduzido) formada na parada antes das saídas e vê-los com aquela disciplina, aquele “porte” e aquele armamento!

Na verdade sinto orgulho e emoção por ter ajudado a comandar e ter feito parte integrante daquele grupo de Rapaziada que, como tantos e tantos milhares de outros, a troco de nada se sacrificaram e deram o seu melhor incluindo sangue e vida, na defesa da que sentiam sua Pátria e do seu símbolo maior a Bandeira, também naquelas latitudes flamejante e que nos tempos actuais são tão pouco ou nada reconhecidos, esquecidos e maltratados em nome(?) de uma vergonha (?!) absurda, que nos querem fazer sentir, mas que eu não sinto nem aceito! Como tantos milhares, cumpri o meu dever o melhor que soube e pude e volto a afirmar que me sinto orgulhoso por o ter conseguido, com a ajuda de Deus e dos meus Camaradas de armas.

Foto 1 > O meu 2.º GCOMB completo

Foto 2 > Elementos 4.º GCOMB

Recebidas todas estas “cerejas”, faltava o “bolo” propriamente dito que não tardou a ser servido ! Foi um grande e pesado bolo com doses de veneno que foi sendo cortado em fatias que pareciam não acabar, sobrando sempre mais uma !!!! Íamos comê-las lá para o Balanguerês e Burné, por norma a todas as trinta e seis horas durante cinco meses até primeiros de Dezembro, com interregno de Agosto em que fomos para o AGREBIS. O pior é que algumas dessas fatias nos “caíam” pior por ficarem estragadas, afectando-nos o corpo e a Alma!

Para de certo modo “desenjoar” deste bolo e para fugir um tanto ao ambiente e disciplina castrenses, alguma da Furrielada (creio que só?) alugamos uma vivenda situada numa perpendicular à Av. Principal e próxima do quartel, que usávamos parcialmente nas nossas trinta e seis horas de descanso.

Aberta a todos os que quisessem confraternizar de mente aberta e sem hierarquias, por lá passou quem quis e continuou a lá ir quem se sentia bem naquele ambiente de sinceridade e espontaneidade. Eram momentos de recuperação psicológica em que nos permitíamos quase tudo, inclusive… sonhar!

Era uma vivenda simpática, com o seu belo alpendre onde não faltavam a cadeira de baloiço que nos embalava numa leve modorra e os sempre presentes (julgo que em toda a Guiné) “bancos –caixote” a par de umas cadeiras. Já se dizia “o seguro morreu... de velho” e assim também não faltava nunca pelo menos uma ou mais G3 à mão, já que na segurança “mais valia prevenir que remediar” e elas podiam vir a fazer a diferença, mesmo considerando Teixeira Pinto um “oásis de paz”!

Por lá passávamos bons momentos em amenas cavaqueiras por norma “des-intelectuais” e pseudo-filosóficas que não nos levavam a lado algum a não ser a umas gargalhadas e a uns “arriões” vocabulares susceptíveis de fazer corar um “militar de carreira” e o meu amigo Portuense “Teixeira Malcriado”!!!…
As escritas mais ou menos comentadas, as “confidências – disseminadas” de amores e desamores temporários, os comentários e as criticas jocosas normalmente com base no feminino… iam-nos escorrendo as horas. O importante era não ter tempo para pensar muito nas incertezas do amanhã!

A entremear, também lá aconteciam as “cerimónias” de fazer inveja a qualquer batucada, em que o whisky, as Casal Garcia e as “bazucas” fresquinhas, acompanhadas ou não por petisco eram quem comandava, nos punham a desopilar com cantorias infernais ao desafio, sincopadas ou não por viola e “batuque” na meia cabaça ou na mesa e nos podiam levar a fazer as ditas e consideradas “figuras tristes”!!! Eram espectaculares estas cerimónias e aconteciam quase sempre que chegávamos da mata.

Foto 3 > "Cerimónia” – Urbano de pé eu à viola

Foto 4 > "Cerimónia" com a G3 à mão

Claro que muito do tempo também se passava no “lar doce lar” do quartel, por onde cirandavam a “Belinha” e a "Sheilinha”, duas canídeos rafeiras que me adoptaram e de quem gostava muito. Por onde andasse no quartel, elas seguiam-me e já crescidotas, quando saíamos nos “Unimog” elas seguiam-no até à saída da povoação, até que um dia um “inteligente” lhes mandou um tiro. Nunca mais as vi!

Foto 5 > A Bélinha e a Sheilinha

O nosso BAR (Furriéis) era o dos Comandos. Por lá se bebiam uns valentes copos e se passavam tempos agradáveis em conversas talvez meio “sérias da treta”, já não recordo e em que algumas vezes no final, o caminho mais curto entre dois pontos deixava de ser a linha recta para ser a sinusoidal!!!

Havia também por lá a “mota da Companhia”, isto é, a motorizada do Alferes Barros (guineense) em que dávamos umas voltitas e fazíamos umas “habilidadezitas”. Esta motorizada era o transporte que o Barros usava para se “desenfiar” com o pretexto de visitar a família (dizia), deixando-me e ao Castro “órfãos” do comando do 2.º GCOMB e até bi- grupo em algumas das saídas para o mato.

- Oh Alferes… outra vez? Foda–se… a família é grande com'ó caralho…!!! - Dizíamos-lhe (bocas no género) rindo!

- Sabes onde está o Barros? Sei lá…, deve-se ter “posto nas putas”… e a gente que se “foda”…!!! - Dizíamos bem dispostos.

Ele era (é) um “gajo porreiro”, valente e que confiava em nós. Por isso é que de quando em vez “abusava” sem dizer népia! Na verdade formávamos uma boa equipa.

Foto 6 > “Mota da Companhia”- a minha “habilidade” com o descanso no chão !!!

Foto 7 > “Clientes da mota da Companhia”, montada pelo dono. Da esquerda: Alf Mil Freitas Pereira; Fur Mil Fontinha; eu; Alf Mil Barros e Alf Mil Gaspar

O rio, onde se davam umas braçadas e uns mergulhos para refrescar e desanuviar, mesmo com o risco de “ganhar elefantíase”, pródiga naquelas paragens como tive ocasião de constatar, era também um local que de quando em vez visitava e apreciava, que me transmitia uma certa paz de espírito e me ajudava a “reformatar” para a próxima saída.

Enfim, todos os pretextos eram bons e úteis para gastar o tempo, evitando questionar-me sobre o futuro! Vivia o dia a dia e… era só!

Foto 8 > Bolanha - rio

Foto 9 > Banho retemperador com faca no cinto por causa dos “elefantes”!!!

Foto 10 > À procura do Mundo - bolanha ao fundo
Fotos: © Luís Faria (2010). Direitos reservados


Luís Faria
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5984: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (26): Teixeira Pinto, Julho de 1971, no pico da época das chuvas

9 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Luís Faria

Achei bastante curioso, interessante, a frase em que dizes: "enfim, todos os pretextos eram bons e úteis para gastar o tempo, evitando questionar-me sobre o futuro! Vivia o dia a dia e… era só!".
Digo isto porque eu também algumas vezes 'sacudia os pensamentos' perante o que se via e se sabia e 'evitava questionar-me sobre o futuro' já que tinha o hábito de 'antecipar' acontecimentos.

Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Caro Luís Faria.

Acho que era a norma, Comp. operacional com bom desempenho operacional, era promovida a sítio pior.

Aconteceu-nos o mesmo, a 1ª Comp.(dois GrComb.) deixou Nema / Farim e fomos para Binta que ficou sob o comando do Cop. 3 quando dos problemas em Guidaje.

Também fomos contemplados com mais armamento, e uma das aquisições foi o LGF- 37mm.-utilizado pelos “Paras”.

Partilho o teu orgulho, fizemos o que tinha de ser feito, não me canso de o dizer, quanto mais não seja, para homenagear todos os nossos que tombaram, só assim somos capazes de manter viva uma parte da história que não pode ficar esquecida.

Um abraço

Manuel Marinho

MANUELMAIA disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
MANUELMAIA disse...

CARO LUIS,

OBRIGADO PELAS PALAVRAS SENTIDAS,TESTEMUNHO DESSA REVOLTA QUE EXPERIMENTAMOS QUANDO ASSISTIMOS À PROCURA SISTEMÁTICA DOS BADAMECOS POLÍTICOS A TENTAREM TAPAR O SOL COM A PENEIRA E CULPABILIZAR-NOS DE TERMOS SIDO GERAÇÃO DE GUERRA...

NÃO SINTAMOS VERGONHA DE TERMOS DADO O NOSSO MELHOR.

VERGONHA DEVERIAM SENTIR OS ALEGRES E OS PACHECOS PEREIRAS,PELOS SEUS COMPORTAMENTOS ABJECTOS PERANTE A GUERRA QUE O PAÍS ATRAVESSOU, E QUE HOJE DESPUDORADAMENTE O SUGAM ATÉ À MEDULA.

OBRIGADO LUIS.

ABRAÇO
MANUELMAIA

MANUELMAIA disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Carlos Vinhal disse...

Para evitar mal-entendidos, foram removidos dois comentários do camarada Manuel Maia que estavam em triplicado

Carlos Vinhal
Co-editor

Anónimo disse...

Caro Luís Faria,

Com que então a eficiência da vossa acção em Bula foi premiada com ume estada em Hotel de 3 Estrelas em Teixeira Pinto (Ingratos. Bem podia ter oferecido um de 5 estrelas como mais tarde tivestes a oportunidade em Capó).

Naquele hotel que ficava na Avenida Principal, e a dois passos do teu trabalho,tinhas varanda onde te era possível, confortávelmente, dormires a sexta, piscina à beira rio, e bar onde as ordens eram feitas por "comandos". Já naquele tempo tinhas descoberto as novas tecnologias.

Para tão mísero hotel, mesmo assim podias contar com uma pista para motociclos de alta velocidade, a avaliar pelas curvas que o Alferes Barros dava.

Tinhas ajudantes para te ajudarem a passear os amorzinhos que eram os cachorrinhos.

E para que não te aborrecesses muito com vida tão choruda, ainda te preparavam os itinerários cénicos das matas do Balenguerez de Bourné. O teu amor pelos estados ecológicos é, deveras, impressionante.

Com a ajuda preciosa dos amigos das àguas e barquinhos de borracha lá conseguistes transformar-te num Rambo do tempo, que o Silvestre Stalone acabou por copiar. Eu vi o primeiro mas já não gostei do segundo(quer dizer que não vi o do Capó).

Comoos humanos têm o defeito de nunca estarem bem onte estão, resolvestes ir à vila que eu tão bem conheci. Quando de apercebestes do engano voltastes para o campo. Sim porque ao menos ali o ar era puro. E poucos salamaleques.

Puro para poderes gritar bem alto e sem vergonha: gente minha, minha Pátria amada.

Sim, porque ninguém pode ter vergonha de servir com Honra e Dignidade a Pátria, independentemente das circunstâncias.

Uma feliz Páscoa,
José Câmara

Jorge Fontinha disse...

Teixeira Pinto foi o meu cenário predilecto de toda a campanha na Guiné.O meu Grupo de Combate passou o ano de 1971 praticamente todo lá.Tudo o que contaste me passou como que um filme montado de propósito para esta época Pascal.Como tu, sinto o mesmo orgulho de ter pertencido a esta Companhia e contigo e restantes graduados a honra de ter ajudado a comandar aquela rapaziada, que continua a ficar no meu coração.Com eles passamos maus bocados mas em Teixeira Pinto também com eles passei os melhores anos da minha vida.A vivenda, o Restaurante do Viriato, as minhas idas aos correios...As minhas escapadelas com o Chefe de Posto Júlio e suas "professorinhas" de Posto!...

Aquele abraço

JORGE FONTINHA

Anónimo disse...

Caro Luís Faria

Mais um pedaço das tuas memórias, como sempre bem documentadas e para futura compreensão de certos excessos vividos, nos curtos periodos de pausa da guerra, em que algumas Forças estavam consecutivamente empenhadas e, que mais não era do que o despojamento do mais pequeno acto cerebral dum ser Humano. Pensar o mínimo que fosse na realidade.
Esquecer, esquecer, esquecer, seria a forma de aguentar o presente.
Quem nem "cheirou" essas realidades, não compreende esses comportamentos nos intervalos ou tempos de ócio.
Abraço
Jorge Picado