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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27460: Notas de leitura (1867): "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)"; edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses; 2000 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2025:

Queridos amigos,
A então Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses convidou três estudiosos a fazer uma apreciação do quadro ideológico entre os inícios da Regeneração e o último ano do Estado Novo em que passámos de ter um império colonial e passámos a ter um Ultramar. O trauma da independência do Brasil acompanhado dos gravíssimos conflitos para a implantação do liberalismo levaram só num período de acalmia que foi o da Regeneração a que tenha sido criado um novo contexto ideológico em torno do passado marítimo dos portugueses; no campo educativo, tomaram-se medidas para a formação da juventude. Para além da educação formal, impõe-se observar a não formal, é o caso da Cruzada Nacional D. Nuno Álvares Pereira ou da Mocidade Portuguesa, e de uma catadupa de eventos com caráter imperial, caso do tricentenário da morte de Camões, o quinto centenário do nascimento do Infante D. Henrique, o quarto centenário do descobrimento da caminho marítimo para a Índia, a Primeira Exposição Colonial Portuguesa, a Exposição do Mundo Português, etc., etc. Estamos a falar de um livro incrivelmente esquecido.

Um abraço do
Mário



Não fomos combater na Guiné pela integridade de Portugal de Minho a Timor?
(Uma abordagem dos valores educativos entre o liberalismo e o Estado Novo) – 1


Mário Beja Santos

Parece-me útil, ao iniciar a apreciação dos ensaios com o título "Os Descobrimentos no Imaginário Juvenil (1850-1950)", edição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, trazer à consideração do leitor este parágrafo de mestre Paulo Pinto publicado pela Associação Portuguesa de História, na Circular Informação n.º 93, com o título “2015, Descobrimentos e Memória”:
“A época vulgarmente chamada ‘dos Descobrimentos’ (grosso modo, os séculos XV e XVI) é uma espécie de baú sagrado, de relicário da memória onde o etos nacional compila e guarda sigilosamente um rosário de grandezas de um tempo marcado por feitos de armas, bravura e espírito aventureiro e que permanece incrustada no imaginário coletivo como uma espécie de ‘Idade do Ouro’ de Portugal. A evocação de figuras e datas dessa época excede a dimensão de outros momentos-chave (como a fundação da nacionalidade, os momentos de recuperação de crise ou de ameaça à independência nacional) no sentido em que envolve a relação pioneira que Portugal estabeleceu com outras partes do mundo, outros povos e culturas; não apenas a relação em si própria, mas também no impacto global que teve no contexto da História Universal.”

Os autores desta obra, que vamos analisar, pretendem apreciar o quadro ideológico em que num século se fomentou um discurso pedagógico não só na escola bem como na literatura e associações juvenis, sendo de incluir o contexto familiar e a difusão dada pelos meios de comunicação social aos feitos e heróis dos Descobrimentos. Não obstante, a ideologia imperial tem antecedentes, alguns deles bem marcantes. Mas foi a partir da década de 1850 que se deu a organização do sistema de ensino e emergiram constantemente, obsidiantemente, os ideais da exaltação das virtudes da raça através do enaltecimento dos seus heróis e de regeneração da Pátria através do Império. É esta a viagem em que nos vamos envolver.

O título do ensaio de Maria Cândida Proença é a escola e os Descobrimentos, e cita Eduardo Lourenço recordando-nos que nenhum povo pode viver sem uma imagem ideal de si próprio; a ideia de Pátria indissoluvelmente ligada ao mito da posse do império ultramarino ganhou profundas raízes entre o século XIX e o século XX. A estruturação do sistema educativo foi determinante. A historiadora disserta sobre a evolução do ensino primário, a preponderância do analfabetismo e da iliteracia, como a nossa alfabetização foi tardia e no fundo aparece associada ao período da Regeneração; dá-nos uma apreciação também do que se pretendeu fazer na I República, logo a partir da reforma de 1911, a natureza dos programas escolares, caracterizadamente os de História, Português e Geografia.

Desde o início da segunda metade do século XIX que assistimos a uma gradual melhoria dos manuais, dando realce às conquistas em Marrocos, à figura do Infante D. Henrique, às navegações e descobertas ultramarinas, a Índia e o Brasil, por exemplo. Só na reforma de Jaime Moniz (1894/95) é que a disciplina de História passou a ter um lugar de destaque, lecionada em todos os anos do ensino secundário. Ao tempo, continuava a privilegiar-se uma história factual e eurocêntrica em que os Descobrimentos portugueses mereciam destaque no conjunto da história europeia, as figuras com maior relevo eram o Infante D. Henrique, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. Fala-se muito no papel civilizador, mas há referências específicas ao comércio e ao papel das especiarias e do ouro. Nessa reforma de Jaime Moniz procurou-se estabelecer uma visão interdisciplinar da História com a Geografia e a Língua e Literatura Portuguesa. Poder-se-á dizer que o nacionalismo republicano não postulava o isolacionismo e chauvinismo que irão ser mais tarde defendidos pela ditadura.

É com a chegada a chegada da Ditadura Nacional, e a partir das reformas de Gustavo Cordeiro Ramos que se vão lançar as bases de uma nova escola em que o ensino assenta numa inculcação de valores e endoutrinamento propagandístico. O leque de heróis alarga-se, o mártir Infante D. Fernando ou D. João de Castro e o célebre episódio do cerco de Diu passam a heróis no primeiro plano. A verdade científica era bastante duvidosa, como no caso da mítica Escola de Sagres. É com Carneiro Pacheco que se dá a primeira e importante reforma do ensino com o regime de Salazar e chega às escolas a missão providencial da nação portuguesa no quadro da história mundial. Com as sucessivas reformas, ganham importância outras abordagens, estudam-se trechos de Fernão Lopes, aparecem as narrativas de viagens, as aventuras do século XVI, a história trágico-marítima; e os Lusíadas é a epopeia que assegura a consagração de que os portugueses se tinham tornado um povo criador de novos povos.

Mas tem interesse voltar a Gustavo Cordeiro Ramos e citar a autora: “a obrigatoriedade de inserir nos livros de leitura adotados oficialmente um conjunto de 113 frases de autores nacionais e estrangeiros que contribuíssem para inculcar nos alunos um corpo de valores subordinados a princípios como a obediência, respeito e amor ao chefe incontestado, amor à pátria e defesa intransigente da unidade da família como célula primária do corporativismo. As 113 frases deveriam ser distribuídas pelos compêndios da 4.ª classe do ensino elementar, das cinco primeiras classes dos liceus, para a 6.ª e 7.ª classes da secção de Letras e para as escolas do ensino técnico e profissional. Tratava-se de frases que enalteciam o patriotismo, a obediência e os valores morais. Entre os autores nacionais encontravam-se Salazar, Sidónio Pais, Alfredo Pimenta, António Sardinha, Camões, Gil Vicente, António Correia de Oliveira e, entre os estrangeiros, Mussolini, Comte, Goethe, Bossuet.”

Em 1936 aparece o livro único, as tendências nacionalistas e apologéticas do regime vão encontrar o seu expoente máximo nos compêndios escolares de António Mattoso. Está montado o cenário para que Pátria e Império sejam a mesma coisa. Vitorino Magalhães Godinho dirá mais tarde:
“Império! Mas não houve um império português. É um dos maiores erros do nosso tempo o esquecermo-nos de que, desde o século XV, atravessamos sucessivas fases de expansão e, por outro lado, de descolonização. Descolonizámos, a meio do século XVI, em Marrocos, no Norte de África. Descolonizámos, nos anos de 1570 e 1680, no Extremo Oriente, em Java e nas outras ilhas da Insulíndia, onde tínhamos estabelecido um império poderoso, com base marítima. Descolonizámos, quando o Brasil conquistou a sua independência e, também aí, tanto se discutiu se a unidade na formação teria ou não uma solução melhor do que a simples independência e rutura. Portanto, um império, mas curiosamente, através da História, são poucos os portugueses que vão para esse império. Algumas centenas ao acabar do século XIX, são 500 a 600 que daqui partem para o Ultramar, ao passo que para o Brasil vão, por ano nessa altura, cerca de 30 mil.”

A equação Pátria e Império envolve o espírito de cruzada e a missionação, há uma declarada omissão de objetivos económicos ou estratégicos, a conquista de Ceuta é apresentada como fazendo parte de um movimento ibérico da reconquista cristã, António Mattoso dirá que os Descobrimentos portugueses eram uma obra de apostolado cristão. “Se, posteriormente, surgiram motivos económicos e políticos, estes traduzem apenas a necessidade de os fazer manter e progredir. O que distingue o império português de quantos o procederam é isto: - Ele não é senão, na sua essência, um instrumento de evangelização do mundo.” Daí o papel fundamental que se vai atribuir ao Infante D. Henrique, ele passa a ser a figura mítica da história da expansão.

Vamos ver seguidamente como a historiografia e a propaganda política irão tratar o Infante de Sagres, a mítica Escola de Sagres. Concluída esta viagem proporcionada por Maria Cândida Proença vamos ver como se processou a expansão contada às crianças.

D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, conjunto azulejar de Jorge Colaço na então Escola Primária de Rodrigues de Faria, em Forjães. O mito do milagre de Ourique, que teria conduzido a uma grandiosa vitória de D. Afonso Henriques sobre cinco exércitos mouros era um dos mais divulgados na historiografia escolar. Através dele, desde muito cedo, se interiorizava nos jovens alunos o caráter da eleição do povo português, protegido por Cristo desde a fundação da nacionalidade

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 21 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27449: Notas de leitura (1866): Uma publicação guineense de consulta obrigatória: O Boletim da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26455: Notas de leitura (1769): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
Um belo texto, uma visão singular numa síntese da história da expansão portuguesa e o que nela houve de peculiar e marcante para a nossa identidade. Dir-se-á que são observações consabidas pelas razões da expansão: quando, em tempos medievais, a Europa se guerreava e nós com as fronteiras definidas e ambições no Norte de África, aquela dinastia de Aviz possuía uma nova nobreza de origem burguesa-popular, aberta à inovação e à curiosidade, nascia um projeto nacional entre o Meditterãneo e o Atlântico, as expedições henriquinas foram o gatilho para se desencravar o mundo; a importância de Lisboa e a carreira da Índia, o desabrochar de um pensamento científico e as expedições à procura de mais mundo, daí Garcia da Orta, Fernão Mendes Pinto, os negócios no Extremo Oriente; e depois a exaustão, a inversão do Índico para o Atlântico, o Brasil do açúcar, do ouro e das pedras preciosas, a consolidação do Antigo Regime e a recusa da modernidade; com a independência do Brasil, a "África", ou o Terceiro Império, exaltado por sucessivas gerações, teimosamente alheado às mudanças de rumo, cuja expressão máxima foi o antigo colonialismo. Este belo texto intitulado Políptico, escrito em janeiro de 1975, tece considerações, hoje compreensivelmente extemporâneas, mas este professor que foi exemplar não prescindiu de nos convocar para um esforço enorme no campo da educação para que o país se transformasse numa escola de trabalho, de iniciativa inteligente e responsável, de efetivo amor ao próximo, não ao nível da palavra, mas da mão fraternalmente estendida. Meio século depois, a convocatória está de pé.

Um abraço do
Mário



A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4)

Mário Beja Santos

Iniciativas Editoriais foi uma editora altamente conceituada, dirigida por José Rodrigues Fafe, os temas sociopolíticos foram o seu polo atrativo. Lançou um projeto aliciante, o de juntar um conjunto de profundos conhecedores da historiografia da expansão/colonização portuguesa e pedir-lhes uma apreciação em jeito de balanço, estávamos no ano de 1975.

Responderam ao pedido vários historiadores e investigadores, já aqui se falou dos textos de Banha de Andrade, Frédéric Mauro e Charles Ralph Boxer, damos hoje a palavra a Joel Serrão, o seu texto é singularíssimo, intitula-se Políptico, subdividido em cinco capítulos. O 1.º intitula-se A Alba, e escreve assim:

“Era uma vez um pequeno povo de camponeses, pescadores, mesteirais modestos, e negociantes, fixado no extremo ocidental da Europa, onde a terra se acaba e o mar começa… País-finisterra, o seu litoral condicionava-o, direta ou indiretamente, impelia-o para os rumos históricos que viriam a ser os seus. O vai-e-vem das primeiras cruzadas dinamiza os pequenos portos e permite a criação de um modo de vida nacional, centrado no litoral, que será um poderoso fator de consciência coletiva, desejosa de talhar um espaço de viável para a nacionalidade que assim se esboçava.”

E lá se foi definindo o espaço de Portugal, ganha importância o mediterrâneo e por aqui os portos algarvios e os de Lisboa e Porto, assim nascia, talvez modestamente uma placa giratória entre gente das repúblicas italianas, Biscaia e até à Flandres, a seu tempo os nossos barcos irão até à Inglaterra e mesmo às águas frias do Labrador. A Europa vive tensões sociais agudíssimas, não só a guerra do Cem Anos, rivalidades e conflitos entre as cidades italianas e há mesmo guerras entre os povos eslavos. 1383-85 trouxe a redefinição de Portugal no seu estatuto de Estado independente, surgiu uma nova nobreza de origem burguesa-popular, e com ela a avidez de ocupar posições no mediterrâneo. Assim se chegou a Ceuta e logo a seguir a Madeira. Abria-se assim, com conhecimentos de ciência náutica, a aventura de nos embrenharmos no Atlântico.

Novo capítulo, intitulado Meio-dia, enceta-se neste lento e cuidadoso apalpar do terreno a procura do encontro e do achamento que culminará com a viagem de Vasco da Gama e a sua chegada a Calecute. Portugal está na vanguarda do domínio das rotas atlânticas, aqui circulam ouro, escravos, açúcar, malagueta, os veleiros portugueses devassam as paragens do Índico e dos mares da China e do Japão, a chamada carreira da Índia atrai os negociantes a Lisboa. 

Mas que lição tirar desta gesta tão aventureira? 

“Nem Portugal enriqueceu com o monopólio da rota do Cabo nem os povos e as civilizações orientais beneficiaram coisa que se visse com a presença ali quer de portugueses, quer de holandeses e ingleses.“ 

Joel Serrão cita O Soldado Prático de Diogo Couto e mesmo Garcia da Orta, questiona as razões porque abortou a originalidade do renascimento português, esse começo sem conclusão, é um Portugal que vai à frente da expansão europeia, rapidamente fica exaurido, mas ainda não é o fim da história.

E estamos no 3.º capítulo, intitulado Tarde. Pequeno país, população rara, máquina comercial primitiva. E em meados do século XVI assiste-se a uma viragem estrutural, uma translação do centro de gravidade do império português para o Atlântico, polarizado pelas terras brasileiras.

“Enquanto o Império Oriental desfalece, a colonização do Brasil inicia-se e prossegue: em 1536, as capitanias de terra, e em 1549 a criação do Governo geral, com sede na Baía de Todos os Santos, é a mudança.” 

E sem esta mudança, que futuro poderia ter tido Portugal com a desanexação de Espanha, em 1640? O Brasil vai desempenhar um papel fundamentalíssimo: o grande comércio internacional português de então principia na colónia; e a indústria, especialmente na segunda metade do século XVIII, são os horizontes coloniais que ou a estimulam ou a limitam. E geram-se sentimentos-forças com marca indelével: saudade do passado de glórias orientais, a eficácia da Contrarreforma, as frotas de açúcar e de ouro sulcam o Atlântico, a recusa portuguesa da modernidade, é por arrastamento que o país segue para a contemporaneidade, mas o pensamento liberal é o ar do tempo: os EUA libertam-se do jogo colonial em 1776 e as certezas de estabilidade serão abaladas pela Revolução Francesa.

Novo capítulo, Sol poente, a Corte no Brasil em 1807 irá acelerar o processo de autonomia da colónia, o Reino fica colocado numa mais serrada dependência inglesa. E quando chega a independência do Brasil, homens como Mouzinho da Silveira entendem que a única opção que restava era a de revolver de alto a baixo a estrutura do Antigo Regime. O império português não ficara ainda completamente liquidado. Restava-lhe, além da presença mais ou menos simbólica no Índico, a “África”, até então pouco mais que manancial de escravatura. A primeira metade do século XIX será dramática para o nosso desenvolvimento socioeconómico; então o país é empurrado para a “África”, sucedem-se viagens de exploração, campanhas de ocupação militar, entraremos na Primeira Guerra Mundial com vista a conservar o património histórico africano. E a dependência da economia metropolitana, relativamente ao capitalismo estrangeiro, repercutiu-se na exploração de Angola e Moçambique; e vieram os ventos da história, Portugal fechava-se ao mundo, e assim aconteceu o termo do longo dia que, nos entrecruzados rumos das civilizações, coube a Portugal assumir.

Derradeiro capítulo, na noite, esperando, e Joel Serrão cita o poema “Prece” do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, que assim começa:

“Senhor, a noite veio e a alma é vil./Tanta foi a tormenta e a vontade!/Restam-nos hoje, no silêncio hostil,/o mar universal e a saudade”

Depois de se viajar há cinco séculos pelas sete partidas do mundo, regressava-se a casa, acabavam-se os Brasis e as Áfricas. E Joel Serrão volta a questionar:

“Valeu a pena ter esse povo partido, há séculos, para as terras de além-mar? Em boa verdade, não há resposta pertinente para tal pergunta, destituída de sentido em termos de compreensão histórica. O que importa, isso sim é desmontar, criticamente, os mecanismos de toda a ordem – desde os socioeconómicos aos mentais e culturais – que condicionaram dado trajeto histórico. É que só é possível enterrar o passado compreendendo-o e explicando-o; e tal tarefa, em grande parte ainda por levar a efeito, se exigem árduo trabalho e adequada preparação científica, não dependerá menos do projeto de futuro que, desde já, sejamos capazes de ir formulando, assumindo-o.”

E Joel Serrão tece considerações para as prioridades que entrevia, tem pouco sentido aqui as enunciar, passado meio século, ele põe como imperativo o desafio permanente na educação para termos um país de iniciativa inteligente e responsável, de efetivo amor ao próximo, não ao nível da palavra, mas da mão fraternalmente estendida. E cita em jeito de despedida os dois últimos versos do poema “Prece”:

“E outra vez conquistemos a Distância -
Do mar ou de outra, mas que seja nossa”


Falta-nos, por último, uma referência ao historiador Hermann Kellenbenz e ao seu artigo intitulado “Aspetos histórico-económicos da expansão ultramarina portuguesa”.

Joel Serrão (ao centro) no quadro de Nikias Skapinakis, Tertúlia, 1960
Vasco da Gama perante o Samorim de Calecute, por Veloso Salgado, pode ser visto no átrio da Sociedade de Geografia de Lisboa
Terreiro do Paço e a Ribeira das Naus, imagem anterior ao terramoto
Barra de ouro com origem no Brasil, século XVIII
Prisioneiros de guerra portugueses, Primeira Guerra Mundial, imagem dos arquivos alemães

(continua)
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Notas do editor:

Vd. post de 27 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26432: Notas de leitura (1767): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 31 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26445: Notas de leitura (1768): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26104: Notas de leitura (1739): João Barreto, o que ainda falta saber da sua vida intelectual e científica (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Nunca imaginei que me iria dar a esta investigação sobre a vida e obra de João Barreto. O Dr. Google, sempre tão prazenteiro, fechou-me todas as portas, mas foi ali, depois de muita divagação, que cheguei ao Arquivo Histórico da Presidência da República onde, pasme-se, estava o nome de João Vicente Sant'Ana Barreto, que tivera uma proposta de condecoração para Cavaleiro da Ordem de Avis. Felizmente que havia um dossiê e nele fiz a primeira descoberta de que João Barreto fora promovido a tenente-médico em 1916 e enviado para Cabo Verde. Depois houve que folhear o Boletim Oficial da Colónia e descobrir a sua chegada, o seu estágio na cidade da Praia e os anos que passou na ilha do Fogo.Há ainda que vasculhar na imprensa cabo-verdiana da época se escreveu textos sobre a sua arte, a epidemiologia. No início de 1919 chega à Guiné, percorrerá vários lugares e localidades até assentar em Bolama e dirigir o laboratório central de análises do Hospital Civil e Militar, foi aí que começou a sua vida de autor, um cientista muito comunicativo, capaz de escrever artigos de divulgação, de comprovado rigor. Reformou-se por razões de saúde em outubro de 1931, vou agora começar à procura do que é que ele fez de 1932 a 1940, ano em que faleceu, com 52 anos.

Um abraço do
Mário



João Barreto, o que ainda falta saber da sua vida intelectual e científica

Mário Beja Santos

Quando apresentei na Sociedade de Geografia de Lisboa, no passado dia 10 de outubro, o meu estudo sobre João Barreto adverti quem me escutava que já sabia um pouco mais sobre a sua vida e obra, mas persistiam lacunas e um ambiente de nevoeiro à volta dos seus últimos anos de vida.

Permitam-me que vos conte os primórdios desta investigação. O editor e nosso confrade Daniel Gouveia telefonou-me um dia a perguntar se eu ia ao lançamento de um estudo sobre a História da Guiné de João Barreto, respondi que nada sabia, senti a curiosidade acicatada, perguntei-lhe a quem me devia dirigir, que eu contatasse a Casa de Goa, local do lançamento do trabalho. Dado o consentimento, lá fui para os lados de Alcântara, nem pressentia que iria conhecer um edifício em vias de demolição devido às obras do metro. Tocou-me a explanação do neto de João Barreto que só soubera da existência da História da Guiné há muito pouco tempo, adquirira um dos exemplares num alfarrabista que mandara fazer uma edição fac-similada para distribuir por familiares e amigos. Vi-me de repente instigado a perorar sobre o conteúdo da História da Guiné, aliás a única História até hoje existente, edição de 1938, obviamente a sofrer as rugas do tempo, poucos anos depois da edição de autor começavam os trabalhos de Vitorino Magalhães Godinho, Duarte Leite, Fontoura da Costa, Teixeira da Mota e Damião Peres, entre outros, que alteraram profundamente os conhecimentos sobre a nossa presença, o acervo literário, mexeram-se nos arquivos, sabe-se hoje muito mais, embora quem quer que se venha a acometer ao estudo da História da Guiné deverá futuramente que fazê-lo em equipa multidisciplinar envolvendo a Guiné-Bissau, Cabo Verde, Portugal, Senegal, Guiné Conacri, todos estes países deixaram rasto na chamada Senegâmbia.

Foi então que o neto de João Barreto, Aires Barreto me perguntou se eu tinha disponibilidade para investigar o que este médico epidemiologista, licenciado em 1913 na Escola Médico-Cirúrgica de Nova Goa, com altíssima classificação, fizera na Guiné e, se possível, qual a sua atividade em Portugal, depois de reformado. Aceitei o desafio e estou agora em condições de dizer que este médico nascido em Margão foi professor universitário em Nova Goa, aí apresentou, com recurso a moderníssimas técnicas de investigação, um estudo sobre a peste na Índia Portuguesa, fez estudos complementares em Lisboa, onde obteve boa classificação (área em que ainda há lacunas), foi nomeado tenente-médico para o Quadro de Saúde de Cabo Verde em Guiné, em junho de 1916, trabalhou em Cabo Verde de 1916 a início de 1919, na cidade da Praia e na ilha do Fogo, não se lhe conhece obra científica, a não ser os relatos mensais exigidos por lei sobre o estado da saúde pública na ilha onde passou tanto tempo. Na Guiné exerceu vários mistérios, em Bafatá, Cacheu, Farim, Bissau e Bolama. Enquanto delegado de saúde em Cacheu, foi louvado por ter coordenado com êxito uma campanha contra a peste. Dirigiu o laboratório central de análises de Bolama, encontram-se as suas apreciações em vários Boletins Oficiais da província da Guiné. Por volta de 1926 começa a publicar relatórios e artigos, é submetido a uma Junta de Saúde em 1931, e reformado.

Há passos da sua vida que me parecem inexplicáveis. O antigo governador da Guiné, Leite Magalhães, a quem prefacia a sua história e refere somente 12 anos de Guiné; em vários currículos também só se fala da sua presença na Guiné, parece que o autor pretendeu um manto de silencia sobre a sua estadia em Cabo Verde. Só conhecia uma fotografia dele, já na maturidade, era então para os seus familiares a única fotografia conhecida, veio publicada num conceituado jornal goês, Diário da Noite, no início de 1941, o seu falecimento (faleceu em Lisboa em 1 de dezembro de 1940, com 52 anos).

Há tempos, a bibliotecária da Biblioteca da Sociedade de Geografia trouxe uma história da Escola Médico-Cirúrgica de Goa sobre os seus vultos mais relevantes. Foi com enorme satisfação que encontrei um jovem médico, indumentado com bata profissional, já a enviei ao neto, que rejubilou. Prometo dar mais informações sobre o que se vier a descobrir quer quanto ao que se escreveu e não vier mencionado, e sobretudo, saber se este médico e investigador amador, difundiu nos anos que viveu em Lisboa entre 1932 a 1940, mais informações sobre a Guiné que seguramente muito amou – 12 anos ali não é amor impune.

A cidade de Bolama dos tempos de João Barreto
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Nota do editor

Último post da série de 28 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26088: Notas de leitura (1738): Quando se ensinava a literatura da Guiné-Bissau nas escolas portuguesas (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24512: Notas de leitura (1601): "Palavras e Silêncios – Memórias Femininas da Presença Militar no Ultramar", por Ana Maria Taveira, Maria Armanda Taveira e Maria de Fátima Pina; Âncora Editora, 2020 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
O assunto está longe de ser inédito, mas tanto quanto me é dado saber a metodologia é original para abarcar diferentes gerações, posturas que gradualmente se irão demarcando ao longo de sucessivas décadas, este precioso alfobre de mentalidades ajudará seguramente o historiador a olhar de maneira diferente o papel da mulher dos militares que trilharam o Império. São narrativas acaloradas, a organização da obra exemplar, é tónico estimulante para debates e conferências, abre janelas para novos trabalhos, é talvez este o não menos despiciendo préstimo de "Palavras e Silêncios", uma verdadeira surpresa no panorama editorial e acertadamente no programa Fim do Império, a que estão associadas a Câmara Municipal de Oeiras, a Liga dos Combatentes e a Comissão Portuguesa de História Militar.

Um abraço do
Mário


Aquelas mulheres de militares portugueses que percorreram o Império e a História esquece

Mário Beja Santos

A iniciativa tem o seu travo de originalidade: três mulheres decidiram reunir 32 outras de militares portugueses que serviram na Índia, em África, em Macau e Timor, e pedir-lhes testemunhos de vida desses anos. Respeitando a ordem cronológica, vamos ouvi-las desde a Maria de Lourdes, nascida em Bragança em 1924 a Patrícia, nascida em Lourenço Marques em 1975. É um abrangente retábulo de mentalidades, do modo de encarar o seu ligar de mulher, mãe e colaboradora nesta ou naquela parcela do Império, sentir-lhes nostalgia ou melancolia, aprazimento ou mortificação nesta ou naquela experiência, mas o resultado é deveras aliciante, de questionamento obrigatório, com estas memórias femininas não há nenhuma dificuldade em perceber como se praticou uma omissão indesculpável silenciando na historiografia o papel exercido pelas mulheres dos militares, na frente ou na retaguarda. É este o valor documental de "Palavras e Silêncios – Memórias Femininas da Presença Militar no Ultramar", organizado por Ana Maria Taveira, Maria Armanda Taveira e Maria de Fátima Pina, Âncora Editora, 2020.

Mulheres cujos maridos cumpriram cinco comissões, viveram doze anos em África, viveram no Estado da Índia e dali saíram precipitadamente em 18 de dezembro de 1961, mulheres que partiram para a guerra casadas de fresco, viram partir o noivo ainda em tempo de paz que os acompanharam em tempo de guerra, mulheres de oficiais das Armas, mas também de médicos e de engenheiros. Mulheres que nasceram em Goa e que ainda hoje lutam pelos seus direitos de propriedade. Mulheres que dizem abertamente que a sua identidade foi moldada dentro dos princípios da moral cristã e dos valores da ética, transmitidos pelo meio castrense. Mulheres que ensinaram em liceus e escolas, que ajudaram nos hospitais, e mesmo depois da descolonização deram apoio a quem regressou em estado de grande aflição. Mulheres que falam num estado de grande felicidade pela experiência que tiveram ao lado do seu marido. Mulheres que conheceram a permanente itinerância, a fazer e a desfazer malas, a percorrer espaços imensos, a ter que pôr os filhos nos colégios.

E vamos, no afã da leitura, apercebendo-nos de que estas mulheres não só aprenderam línguas ou a bordar ou a cozinhar, foram ampliando o seu modo de olhar as missões dos seus maridos e a própria evolução da guerra, houve aquele moroso processo de perceber e sentir a pouca ligação entre as frentes de combate e a grande indiferença na retaguarda. Em dado momento, neste sortilégio de testemunhos, alguns deles de leitura compulsiva, há que ouvir o que Maria da Graça, nascida em Luanda em 1943, diz quanto à motivação que a levou a escrever sobre a sua vida passada:
“Em primeiro lugar, porque há muita informação sobre o que foram aqueles anos no nosso antigo Ultramar, sobre a guerra, os militares, sobre a descolonização, sobre o que foi feito ou devia ter sido feito, mas tudo numa perspetiva, não só predominantemente masculina, mas também política e documental. Ficou, nalgum esquecimento, o facto de que todos os envolvidos nos processos destes anos tinham famílias, mães, mulheres, filhas que, ou os acompanharam, ou ficaram sozinhas, tendo de gerir todas as situações que lhes surgiram. Em segundo lugar, porque, passados tantos anos, as gerações dos nossos dias têm pouca noção da dor e dos problemas que passaram os que viveram aquela época. Toda essa realidade já está muito distante, faço-o para que não fique no esquecimento. Porque tenho netos adolescentes e outros ainda mais pequenos, para quem, cada vez mais, a nossa História recente será um episódio longínquo, resolvi deixar o meu testemunho. Para que compreendam por que andámos sempre com a casa às costas, porque só acabei o meu curso 20 anos depois de o começar e, acima de tudo, para que fiquem com um olhar mais verdadeiro sobre aquela vida, a minha e a de tantas outras mulheres daquela época”.

Maria Beatriz, nascida em Setúbal em 1945, conta a sua experiência na Guiné entre 1966 e 1968. Casou, e quinze dias depois o marido partia para Farim. Quatro meses depois veio buscá-la. Viveu em Farim e lembra-se do choro das hienas como lembra o fantástico pôr-do-sol. Ouviu um ataque ao K3. O marido recebeu ordem para ir para Barro com a companhia, ela ficou em Farim, só mais tarde foi para Barro, surpreendeu-se que havia muita gente que parecia nunca ter visto uma mulher branca.
“Quando me levantei e cheguei cá fora, estavam muitas mulheres e crianças para me verem, todas me tocavam e riam. Eu levava as unhas pintadas, o que foi motivo de um grande espanto. A tropa construiu uma escola. As paredes eram de uma palha entrelaçada, o teto de zinco e as carteiras foram feitas no quartel. Veio de Bissau um quadro, e o armário da escola era um barril com uma porta, onde se guardavam os livrinhos e as lousas. Eu dava aulas na escola, às meninas, da parte da manhã, de tarde os rapazes tinham aulas dadas por um rapaz guineense, que foi educado numa Missão. Normalmente, as meninas vinham-me buscar à porta do quartel para irmos para a escola. Todas queriam ir de mão dada comigo, pelo que dava um dedo a cada uma, mas empurravam-se e zangavam-se porque eu só tinha dez dedos. Passado um tempo, houve uma operação, e eu fui. Caminhámos 50 quilómetros a pé, 25 para lá, até Canja, e 25 no regresso. Na primeira vez em que saí, quando fomos inspecionar as armadilhas, ainda levei a minha pistola à cintura, para fingir que poderia fazer qualquer coisa. Fomos a Canja, não se encontrou o acampamento inimigo que se estava à espera que existisse. O regresso é que foi uma tragédia, as pernas não queriam andar”.

Não sei se outra mulher de capitão teve experiência idêntica a esta, ela descreve com a maior das naturalidades operações e patrulhamentos, conta a história de um alferes de uma outra companhia que no início da operação disse “se a senhora vai, eu não vou”. A notícia chegou a Bissau e o Quartel-General mandou uma mensagem a perguntar se havia uma senhora branca que ia às operações. Trocaram-se mensagem em tom azedo, Bissau exigia que a senhora branca saísse dali e o capitão de Barro retorquiu: “Bem, então temos um problema. As mulheres dos meus soldados (era uma companhia de caçadores nativos) são senhoras guineenses e estão com os maridos. Se as senhoras não podem estar, o que eu vou fazer com elas?”. A resposta veio seca e terminante: “Não levanta problemas que isso não é nada consigo”.

No entretanto, o quartel foi flagelado e um outro capitão foi render o marido de Maria Beatriz. “Eu estava de camuflado, e o senhor viu-me de costas. Bateu-me no ombro e, quando me virei, ia caindo ao chão. Estava para me dizer: ‘É pá, estás com o cabelo muito grande, corta-o!’”. Depois da Guiné foi a Moçambique, mas não foi a mesma coisa. “A Guiné era como se fosse minha, criei uma forte relação afetiva com a terra e com as pessoas. Tenho muitas saudades do que lá vivi, e tive muita sorte, de ter um marido que apoiava as minhas loucuras”.

Depoimentos sumarentos, documentos de valor irrefragável, conhecíamos bem o papel das enfermeiras-paraquedistas, mas nunca se entrara nos bastidores com esta grande angular cronológica, mesmo sendo justo referir que nos últimos anos têm surgido diferentes trabalhos acerca da mulher de militares nas diferentes parcelas do Império.


Palavras e Silêncios é um trabalho inexcedível, será referência obrigatória, digo-o sem hesitar.
Investigação de Sara Primo Roque, Edições Pasárgada
As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial, por Margarida Calafate Ribeiro, Edições Afrontamento
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Nota do editor

Último poste da série de 24 de Julho de 2023 > Guiné 61/74 - P24501: Notas de leitura (1600): A Guiné pós-colonial e o funcionamento de um Estado “suave”: Um importante artigo de Joshua B. Forrest sobre a Guiné a caminho do multipartidarismo (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24425: Notas de leitura (1591): "Negreiros Portugueses na Rota das Índias de Castela (1541 - 1556)", por Maria da Graça A. Mateus Ventura; Edições Colibri, 1999 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
A dissertação de Mestrado de Maria da Graça Alvares Mateus Ventura contribui para contextualizar o comércio negreiro feito por mercadores portugueses tanto ao serviço dos reis da Casa de Avis como dos Áustrias, fazia-se na circulação entre Sevilha, Rios da Guiné, Santiago e as Índias Ocidentais, aquele vasto e indefinido território da Senegâmbia deu muitos ancestrais a quem vive nas Antilhas, na América Central e na América do Sul. A autora veio mesmo aos arquivos e dá-nos um quadro surpreendente sobre a participação de portugueses no tráfico negreiro na hispano-américa no período compreendido entre 1492 e 1557 e mais, ficamos a conhecer o universo de todos estes agentes que permitiu aos portugueses lançarem-se nas rotas indianas movidos por um comércio lucrativo. Uma investigação que não pode ser descurada para quem estuda o tráfico negreiro e mesmo a história da Guiné e de Cabo Verde no século XVI.

Um abraço do
Mário



Sevilha, Costa da Guiné, Cabo Verde, Índias Ocidentais, Negreiros Portugueses no século XVI

Mário Beja Santos

A dissertação de Mestrado da Maria da Graça A. Mateus Ventura teve exatamente o título da presente obra, Edições Colibri, 1999. Como escreve no prefácio o professor António Borges Coelho:
“Os navios negreiros de que se fala neste texto não vinham ainda de Angola, mas do Cacheu, da Mina, do Rio dos Escravos, do Níger e principalmente do grande entreposto e armazém que era Cabo Verde. No novo continente, os escravos negros afeiçoaram a terra e seguiram nela o preceito bíblico: crescei e multiplicai-vos. Mas os seus filhos já nasciam escravos. Na América Espanhola esperava-os o trabalho brutal nas minas de ouro e de prata. Os grandes financeiros, genoveses e principalmente portugueses, estiveram envolvidos no negócio, mas eram os portugueses que dominavam as fontes de abastecimento e rapidamente o principal do trato firmou-se nas suas mãos. O contrato renderia à Coroa grossas somas e constituiria um dos mais lucrativos negócios privados desde o tempo do infante D. Henrique. A autora do presente trabalho identificou e acompanhou a trajetória de alguns destes negreiros portugueses como Gaspar de Torres e principalmente Manuel Caldeira, argentário cristão-novo que se tornou fidalgo da casa del-rei. O próprio Fernando de Noronha, cidadão de Lisboa no tempo de D. João II, cristão-novo, contratador do pau do brasil em 1502, aparece ligado ao trato dos escravos na costa da Guiné. Aliás, o contrato com o rei D. Manuel concedia-lhe não só o exclusivo da importação do pau do brasil como o autorizava a exportar índios escravos”.

A autora vasculhou na Casa da Contratação de Sevilha importante documentação destes contratos e licenças onde sobressaem negreiros portugueses, como ela escreve, “É um mundo onde pululam agentes, feitores, onde se constituem companhias efémeras, se retêm ou desembargam avultadas quantias, onde, em última instância, se digladiam ou complementar interesses públicos ou interesses privados”.

Os denominados Arquivo-Geral de Simancas e o Arquivo-Geral das Índias conservam documentação referente a Manuel Caldeira, os irmãos Torres têm contratos assinados em Antuérpia, e há no Arquivo Nacional Torre do Tombo alguns documentos complementares dos processos em Simancas. A autora dá-nos um quadro da organização do trato ao regime do comércio e ganha destaque o natural domínio dos portugueses como fornecedores ou contratantes, um universo onde se arriscavam pequenas fortunas num negócio de humana mercadoria, lida-se com o dinheiro dos outros, apura-se a presença de muitos judaizantes e cristãos-novos. Os memoriais permitem saber quais as áreas de exploração em África. No memorial que o mercador Jerónimo de Herrera apresentou à Coroa espanhola sobre a compra de escravos, em 1568, esclarece-se quais as principais regiões abastecedoras e fala concretamente em Brames, Beafadas, Nalus, Berberes, Cassangas e Jalofos. André Alvares de Almada no "Tratado Breve dos Rios da Guiné e Cabo Verde" descreve em 1594 as regiões onde se encontram estes povos.

Recorde-se que durante todo o século XVI, Cabo Verde, por Santiago, foi a feitoria mais importante a nível do fornecimento de contingentes de escravos, só virá a ser superada por S. Tomé. Enquanto Cabo Verde controlava os rios da Guiné, São Tomé iria absorver os escravos dos reinos que povoavam a região do Níger. Angola só no século XVII se tornaria o principal centro negreiro. Convém também não esquecer o arrendamento do trato da Guiné a Fernão Gomes que ficou obrigado a explorar a costa ocidental africana. Os contratos de arrendamento dependiam da Casa da Índia, mas havia quem contratasse diretamente com Castela, caso de Manuel Caldeira. Comércio lucrativo, mas com todos os riscos inerentes à pirataria, ao corso e aos naufrágios, isto para já não falar no contrabando e nos negócios particulares dos feitores. A autora descreve os negócios dos irmãos Torres, influentes negreiros portugueses durante a União Ibérica, foram os principais fornecedores da província de Honduras.

A autora dá-nos o quadro das viagens, a natureza das cargas, as operações da compra e do transporte, as fortunas destes mercadores, o português Gaspar de Torres era de longe o mais poderoso. E dá-nos o estudo de Manuel Caldeira, sobre o qual há imensa documentação, foi-lhe possível compor a biografia, os parentescos, por onde andou, o que contratou, até o seu testamento é altamente esclarecedor. Manuel Caldeira não foi um mercador sedentário, viajou de Lisboa à Serra Leoa, a Azamor, à Flandres, e andou por terras de Castela. Caldeira integrava em 1556 a lista de banqueiros credores de Filipe II, era cavaleiro da Casa Real, e cavaleiro e comendador da Ordem de Cristo. Seria cristão-novo, a autora classifica-o assim: “Homem de muito comércio e negócio, abonado para todas as finanças, envolto em numerosos pleitos, autor de grandes embaraços, traficante de coisas indevidas, eis um retrato possível deste negreiro português, de cujo percurso nos aproximámos, afigura-se mercador rico e caudaloso além de excelente gestor de influências nas esferas de poder das cortes ibéricas. O seu testamento dá exatamente conta das quantias que ele deixa para descanso da sua alma".

E cuidadoso no estabelecimento de redes sociais:
“Interioriza os valores do seu tempo, orientado pelo valor do dinheiro. Casa o primogénito com a filha de um embaixador castelhano e institui um morgado. Garante a continuidade do seu nome e a inalienabilidade de parte significativa dos seus bens. Insiste no casamento como forma de consolidar laços de poder. Casara com Guiomar, filha de um sócio, ligou os Roiz aos Caldeira. Casa André com Catarina, ligando os Caldeira também aos Hurtado de Mendonça. Duas alianças, dois poderes – o dinheiro e a influência política. Para Beatriz, filha mais velha, quer casamento rico. Di-lo no testamento. Parece tê-lo conseguido, se foi ela a esposa de Luís Mendes de Vasconcelos, célebre pelos cargos na Índia e pelos textos que deixou. Enfureceu-se com os filhos desobedientes pelo facto de não lhe terem dado ouvidos sobre o seu matrimónio. Só lhes perdoa se forem pobres, agora que não sabe deles lá pela Índia.
O comércio da pimenta levou-o à Índia, o trato de escravos levá-lo-ia à América. Com a pimenta e a armação de navios, ligou-se aos mercadores e banqueiros portugueses e estrangeiros que prosperavam em Portugal. Com os escravos negros de Cabo Verde e São Tomé, gozando já dos favores de D. João III, liga-se a Castela. Feitor do rei de Portugal, tesoureiro da Sereníssima Princesa de Portugal, Manuel Caldeira sintetiza a atitude dos mercadores portugueses que, alheios a questões de nacionalidade, viam nos negócios com Castela e as suas Índias um prometedor espaço de prosperidade”
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A autora anexa documentos importantes, caso da relação da partida de escravos. Obra com muito significado para quem estuda o tráfico negreiro, particularmente o que se exerceu na região da Guiné e Cabo Verde, no século XVI.


Maqueta alusiva ao transporte de escravos e mercadorias rentáveis no comércio negreiro, modelo do Museu Nacional da História Americana, Smithsonian Institution
Imagem de tráfico negreiro
Pintura maneirista dos finais do século XVI, Igreja de São Sebastião de Lagos, vejam-se as embarcações de um porto algarvio que esteve ligado ao tráfico negreiro
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24423: Notas de leitura (1592 ): "Uma ilha no nome: pequena crónica dos dias líquidos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário do meu querido e saudoso amigo, o arquiteto José António Boia Paradela, 1937-2023) (Luís Graça)

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24415: Notas de leitura (1591): "História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva; Temas e Debates, 2020 - Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Neste novo olhar da História Global, entendeu-se que este caso de exploração económica pluricontinental que se encetou com o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes, iria marcar um comportamento do poder régio durante séculos. Mesmo desconhecendo-se o teor do contrato, Fernão Gomes ficou com uma enorme responsabilidade, que terá cumprido, explorou cerca de 3 mil quilómetros de costa, chegou até ao atual Gabão. Contrato que enfatiza para além das iniciativas da Coroa a iniciativa privada nunca foi arredada a participar na exploração económica do Império, era tudo uma questão de oportunidade, a monarquia tanto podia explorá-los diretamente por meio de oficiais régios, como cedê-los a privados por meio de contratos de arrendamento. E o de Fernão Gomes foi o primeiro de uma longa série, expediente jurídico que se revelou essencial não só na captação de rendimentos para a monarquia mas também para que esta se alinhasse, ao longo de séculos com os particulares.

Um abraço do
Mário



Monopólio da Guiné: Exploração económica pluricontinental, 1468

Mário Beja Santos

"História Global de Portugal", com direção de Carlos Fiolhais, José Eduardo Franco e José Pedro Paiva, Temas e Debates, 2020, é seguramente um dos acontecimentos editoriais do ano transato, na medida em que rompe com o velho paradigma da escala local e nacional e tece uma abordagem inovadora do que se pode entender por História Global de Portugal, as permanentes interações que conduziram à identidade que temos e à globalização em que nos inserimos. Como os diretores nos explicam:
“Anteriormente, através dos velhos manuais escolares, que refletiam o que se produzia nas academias, aprendia-se a conhecer a história de um país. Adotava-se uma perspetiva iminentemente nacional, centrada no Estado-nação. Cada nação era o umbigo do mundo, sendo o resto uma paisagem necessariamente secundária e ignorada, ou um campo de projeção das vanglórias nacionais. Além da Pátria, existia um conjunto de países com os quais se estabeleciam relações de cooperação, transação, influência, domínio, conflito, separação, negação ou, nalguns casos, acolhimento. A história era conhecida de forma bipolar, dualista: existíamos nós e os outros (…) À luz das tendências da história global, os países, as regiões, as cidades e as aldeias já não são considerados espaços fechados nas suas fronteiras, antes devem ser perspetivados como plataformas territoriais tomadas na extensíssima duração do processo de humanização”.

E ao longo de largas dezenas de textos vários especialistas ocupam-se de longos períodos da Pré-História e História de Portugal tomando conta desse trânsito de trocas bem anteriores à chamada Era dos Descobrimentos, o povoamento das nossas regiões atlânticas, a passagem do Bojador e o que significou em termos de globalização o monopólio da Guiné. Como escreve a autora do referido trabalho, D. Afonso V concedeu, em novembro de 1469, por um período de cinco anos, o exclusivo do comércio da costa da Guiné a Fernão Gomes. O monopólio excluía o comércio da feitoria de Arguim (em território da atual Mauritânia). O monarca terá exigido a Fernão Gomes que explorasse anualmente cem léguas do litoral africano para lá da Serra Leoa, limite meridional das navegações henriquinas. Conhecemos esses aspetos através do historiador João de Barros, cerca de 80 anos depois, o texto do acordo não chegou aos nossos dias. A data atribuída do contrato será junho de 1468. O arrendamento terminou em 1474, depois de ter sido prorrogado por um ano. Enquanto vigorou, caravelas armadas por Fernão Gomes exploraram cerca de 3000 quilómetros da costa, tendo descoberto todo o litoral setentrional do golfo da Guiné, até ao atual Gabão.

Este contrato de arrendamento do comércio da costa da Guiné obviamente que suscitou debates em torno do papel da monarquia nas navegações do Atlântico Sul. Houve quem o visse como expressão do desinteresse do monarca, seria um contrato monopolista que permitiria à Coroa concentrar recursos financeiros na persecução das conquistas em Marrocos, deixando à iniciativa privada as navegações e a atividade mercantil na costa da Guiné. Mas há outras leituras que lembram o facto de a monarquia não ter voltado a doar o exclusivo da navegação do comércio da Guiné que integrara a casa do Infante D. Henrique. D. Afonso V foi o responsável pela constituição da Casa da Guiné, em Lisboa, no ano de 1463. Para uma certa historiografia, Fernão Gomes seria o exemplo paradigmático de interesses mercantis pela costa ocidental africana, por oposição às conquistas militares de Marrocos. Era como se a atenção da nobreza estivesse polarizada em Marrocos e outros setores da sociedade portuguesa se tivesse mobilizado na abertura de novas rotas e na comercialização de novos produtos. Mas há mais dados que contribuem para um novo olhar. Fernão Gomes exerceu o cargo de recebedor dos escravos da Guiné, para o qual fora nomeado em 1455, ofício que não só lhe deu acesso privilegiado à informação sobre o comércio da região como terá permitido a sua inserção em redes de negócio. Como não se conhece o contrato, ignora-se se a iniciativa se deveu à monarquia ou ao próprio Fernão Gomes. Para além do exclusivo, Fernão Gomes recebeu ainda o privilégio de isenção de pagamento de direitos alfandegários de todos os bens que os seus navios trouxessem da Guiné, com exceção da malagueta, monopólio régio, mas que mais tarde acabaria por ser cedido a Fernão Gomes, por 100 mil reis anuais.

Se se pensar que o Papado, através da bula Romanus Pontifex, de 8 de janeiro de 1455, excluía toda e qualquer navegação na Guiné sem licença expressa do rei de Portugal, pode compreender-se que a Coroa via este regime como o mar que lhe pertencia exclusivamente, fundado na prioridade da descoberta, na evangelização dos gentios e na Guerra Santa movida contra os infiéis. Só que este privilégio foi contestado por outras potências e rapidamente todo o Litoral desta vasta Senegâmbia de então passou a ser percorrido por uma forte concorrência. A despeito desta, manteve-se formalmente o exclusivo da navegação e do comércio nos senhorios ultramarinos – Índia, Brasil, Guiné, Costa da Malagueta, Mina, Angola, Ilhas de Cabo Verde e de São Tomé, a Coroa cedia aos vassalos este exclusivo consoante as áreas geográficas do Império.

Neste exclusivo imperial, como igualmente observa a autora, a monarquia reservou para si a distribuição de certos bens. Foram os casos da malagueta africana, do ouro da Mina e do pau-brasil no Atlântico. Também o comércio dos escravos foi exclusivo da monarquia até 1659. Mas o que fica também esclarecido é que a iniciativa privada nunca esteve arredada da possibilidade de participar na exploração económica do Império, tanto na navegação e no comércio como na distribuição de bens monopolizados. E a autora conclui que o acordo estabelecido com Fernão Gomes foi tão-só o primeiro de uma longa série de arrendamentos contratados com particulares. No quadro da exploração do Império, este expediente jurídico mostrou-se crucial, não só na captação de rendimentos para a monarquia, mas também no alinhamento de interesses com os particulares.

Carta Corográfica da Guiné Portuguesa, 1862, Biblioteca Nacional, com a devida vénia
Retirado do trabalho Tecnologias geoespaciais na demarcação da fronteira da Guiné-Bissau, por Maria do Carmo Nunes, Fernando Lagos Costa, Ana Raquel Melo e Ana Maria Morgado, publicado nas Atas das I Jornadas Lusófonas de Ciências e Tecnologias de Informação Geográfica, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, com a devida vénia
Pormenor do Monumento ao Esforço da Raça, Praça dos Heróis Nacionais, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24403: Notas de leitura (1590): "O Cântico das Costureiras - Crónicas D'Uma Vida Adiada - Guiné 1964 - 1965", por Gonçalo Inocentes; Modocromia Edições, 2020 - As Peregrinações de Gonçalo Inocentes, zombeteiras e resilientes (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24263: Notas de leitura (1576): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
Em nova incursão sobre essa área tão sensível que são as conexões entre o Império Português, o ideário imperial e as relações raciais, optaram-se por dois estudiosos com créditos firmados, e a verdade fica dita de que relações raciais sempre as houve, com diferentes cambiantes entre o Oriente, África e o Brasil. E não se pode responder ou iludir uma escrita ao longo de séculos, invocando a inferioridade da raça negra, a indispensabilidade da tutela da raça branca, por um lado, e a tese de superioridade da civilização ocidental, muito utilizada no decorrer da guerra, não só por Salazar, toda a política externa estava para aí virada, com o seu rol de alianças que iam de Israel à África do Sul. Com a distância do fim do Império, há que meditar no legado, e ele é muito válido, temos a língua e a disponibilidade para cooperar sem tentações neo-colonialistas, são argumentos de grande peso.

Um abraço do
Mário



Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (2)

Mário Beja Santos

É nítido o constrangimento que se verifica nos estudos sobre o Império Colonial Português quando se aflora à matéria das relações raciais. É inviável, ninguém o ignora, querer estudar a essência do Império Colonial Português sem abordar pontos sensíveis: a verdadeira ideologia do projeto henriquino, o ideal imperial instituído por D. Manuel I, como era percecionado o tráfico de escravos até na ótica religiosa, como evoluíram as relações raciais em mundos tão distintos como o Oriente, África e o Brasil. Dada a vastidão do questionamento, cingimo-nos a esta escolha de dois autores, Charles Ralph Boxer e Valentim Alexandre, historiadores credenciados. Em "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967, aquele que terá sido o mais influente historiador estrangeiro do Império Marítimo Português abordou as relações raciais num conjunto de conferências que proferiu em Virgínia. O professor Boxer estendeu o seu olhar a três áreas distintas: o início do Império em África e como se desenrolou a sua presença na costa ocidental africana: em Moçambique e na Índia; e no Brasil e Maranhão. Obviamente que nos cingimos à natureza das relações raciais na costa ocidental africana, demonstradamente elas existiram e manifestaram-se em muitíssimos preconceitos, até à independência das colónias.

O trabalho de Valentim Alexandre, "Velho Brasil, Novas Áfricas", Edições Afrontamento, 2000, é um volume onde se coligem textos de estudos sobre a História Colonial Portuguesa dos séculos XIX e XX, desde a desagregação do sistema luso-brasileiro à formação e desenvolvimento do último império em África, que desapareceu em 1975. São estudos do maior interesse que vão desde o nacionalismo vintista, a independência do Brasil, passando pelo Império Colonial do século XX até uma visão geral de Portugal em África entre 1825 e 1974. Atenda-se ao que ele escreve sobre o Estado Novo e o mito do Império e algumas conclusões que extrai no final dos seus trabalhos.

Recorde-se o artigo segundo o Ato Colonial de 1930: “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendem”. O conceito não era original, vinha na tradição imperial, a expansão ultramarina era encarada como a sobrevivência da nação. Apetite para apanhar tais territórios coloniais não faltava sobretudo à Alemanha e à Itália, mas o Império sobreviveu, montou-se uma mística, incentivou-se o amor quase incondicional dos domínios coloniais e tentou-se educar as elites para que se pudesse viver indiferentemente na Metrópole e no Ultramar. Momento alto desta mística foi aquele esforço mobilizador que desaguou em 1940 na Exposição do Mundo Português.

Atenda-se ao que Valentim Alexandre escreve mais adiante: “Iniciada logo nos começos da Ditadura Militar, em 1926, e completada depois com o Ato Colonial, a política de centralização traduz-se no cerceamento das autonomias dos territórios coloniais no domínio financeiro (…) A política de reforço do regime de pacto colonial tinha em vista relançar o velho projeto de fazer das colónias um mercado reservado para a produção da metrópole e um fornecedor de matérias-primas para a indústria portuguesa. Como mecanismos de proteção aos artigos nacionais, utilizam-se agora não apenas os diferenciais nas pautas alfandegárias, mas também o controlo de divisas e os contingentamentos. Embora o leque de produtos remetidos para os territórios de África se alargue (incluindo nomeadamente os cimentos), o núcleo fundamental das exportações continua a ser constituído pelos tecidos de algodão e pelo vinho”. E o historiador observa que em meados do século a intensidade das relações entre a metrópole e os territórios da África negra atingiram um nível até então inigualado.

Mas havia muito grão de areia que impedia que o projeto imperial do Estado Novo granjeasse uma força integradora – a própria população africana. E aqui vem uma observação sobre as relações raciais que é importante não descurar:
“Pode dizer-se que durante o regime salazarista coexistem duas correntes principais na forma de ver os ‘nativos’ das colónias de África, ambas com raízes no século XIX. Uma delas tributária das teses do ‘darwinismo social’, parte do postulado da inferioridade da raça negra, a qual, insuscetível de civilização, estaria condenada a viver sob a tutela da raça branca. É esta teoria dominante até meados da década de 40: estava-se na época da afirmação dos valores de raça a impor às etnias bantas; repudiava-se a mestiçagem e falava-se muito de colonização étnica, ou seja, do povoamento das colónias africanas por uma população branca numerosa, de ambos os sexos, de modo a evitar as misturas raciais.
A segunda corrente é mais etnocêntrica do que propriamente racista: proclama-se a superioridade, não da raça branca, mas da civilização ocidental, imbuída de valores cristãos, de validade universal, a que os povos negros podem aceder, quando devidamente educados – cabendo a Portugal essa tarefa missionária. Marginal até ao conflito de 1939-1945, esta doutrina assume depois foros de teoria oficial, em resposta às tendências descolonizadoras no concerto das nações. Mas, para além das justificações ideológicas, a realidade mantinha-se inalterada, no essencial, traduzindo-se pelo que foi referido como ‘assimilação seletiva’. Poucos preenchiam os requisitos exigidos: em 1961 (data da abolição do estatuto dos indígenas), menos de 1% do total da população africana de Angola e Moçambique. Manifestamente, o regime via-se incapaz de formar e captar as novas elites; quanto às tradicionais, procurava minar-lhes o poder, reduzindo-as, na melhor das hipóteses, a meros auxiliares da administração. Nestas condições, é muito estreita a margem de manobra do Estado Português, quando o movimento de descolonização de África se acelera. Prisioneiro dos seus próprios mitos, cego em relação aos nacionalismos africanos, cuja autenticidade nega, resta ao regime a via da resistência militar por tempo indefinido, via que conduz ao colapso de 1974”
.

Em jeito de conclusão, Valentim Alexandre é explícito quanto às relações com as populações africanas, marcadas por um etnocentrismo rígido, quando não por formas mais extremas de racismo. E conclui: “A análise histórica mostra que o modo de estar do português em África varia também com o tempo e o lugar, dependendo sobretudo da específica relação de forças existente entre as duas comunidades: com o aumento da emigração para Angola e Moçambique cresce igualmente o racismo nos dois territórios, em formas mais ou menos abertas”. Resta-nos a confiança de que há uma força histórica, uma parte significativa da população portuguesa passou pelas antigas colónias, conhecem-se gente de todas as cores, como muito próximos, ligados por um património comum, e o desmembramento do Império deixou a comunidade da língua, para Valentim Alexandre temos bem vincadas as bases para o relançamento do ‘africanismo’ em Portugal.

Historiador Valentim Alexandre
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24248: Notas de leitura (1575): Atitudes e comportamentos raciais no Império Colonial Português (1): "Relações Raciais no Império Colonial Português", por Charles Ralph Boxer, Tempo Brasileiro, 1967 (Mário Beja Santos)

domingo, 13 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23075: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXIX: Ìndia, Cochim, novembro de 2016




Índia >  Cochim > 17 de novembro de 2016 >  O autor e a esposa. junto à catedral-basílica de Santa Cruz

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2016) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Cochim, União Indiana, novembro de 2016

por António Graça de Abreu

[Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de três centenas de referências no blogue; texto enviado em 10 do corrente]


Na boca deste rio tem el-rei nosso senhor uma fortaleza mui formosa, 
derredor da qual está uma grande povoação de portugueses 
e de cristãos naturais da terra 
que se fizeram cristãos 
depois de assentada a nossa fortaleza.

Duarte Barbosa, O Livro de Duarte Barbosa, em 1516



Pois, os façanhudos portugueses de antanho, pouco ajuizados, indomáveis, valentes lusitanos da era de quinhentos, Cabral, Gama, Albuquerque. Hoje, na velha Cochim um cemitério holandês e uma imensidão de túmulos vazios. Da fortaleza do tempo de Afonso de Albuquerque resta um pequeno troço da muralha debruçado sobre o mar.

Entro na igreja de S. Francisco, o primeiro templo católico europeu a ser construído pelos portugueses na Índia, em 1503. Lá dentro, lápides e sepulturas de gente da nossa pequena nobreza e a tumba vazia onde esteve Vasco da Gama falecido em Cochim em 1524. O corpo aqui permaneceu até 1539 quando foi transladado para Portugal, pelo seu filho Estevão da Gama. 

Recentemente, uns brasileiros amantes do futebol passaram por esta igreja e tiveram a original ideia de deixar num expositor ao lado do túmulo uma bandeirinha do Club de Regatas Vasco da Gama, homenagem ao nosso navegador. Algum orgulho num não esquecido, ainda faiscante nome português que até deu o nome a um grande clube de futebol do Rio de Janeiro.

Entro numa escola primária, católica, dirigida por freiras. As salas de aula têm as portas abertas para os miúdos verem os turistas estrangeiros, e vice-versa. Rapazes bem dispostos vestem todos umas camisas com quadrados vermelhos, brancos e pretos e saúdam-nos alegremente num inglês macarrónico.

Adiante, fica a catedral-basílica de Santa Cruz. Edificada por portugueses em 1550, foi reconstruída de raiz em 1888. É por isso, um templo mais moderno, imponente, com mil histórias para contar. Um altar com a Senhora de Fátima.

Avanço para o outro lado da antiga de Cochim, com a sinagoga e o quarteirão judaico. Ainda cruzes de David na fachada de seculares habitações e lojas. Existem judeus em Cochim desde o século XI, e a sinagoga, sóbria, com um conjunto notável de candelabros de vidro e o chão revestido com azulejos chineses, foi construída em 1568. A cidade albergou durante centenas de anos franjas de judeus que fugiam das perseguições na Europa, chegados da Holanda, de Espanha, de Portugal, condenados a um distante exílio definitivo. 

Recordo o nosso médico Garcia da Orta (1501-1568) judeu de Castelo de Vide, que por aqui andou e faleceu em Goa. Dizem-me que com a fundação do estado hebraico, em 1948, a maioria dos judeus de Cochim partiu para Israel e hoje apenas meia dúzia de crentes na religião do ramo plural de Abraão e Isaac vivem neste bairro judaico.

Há uma cidade nova de Cochim do outro lado do braço de mar, que não visitei. É nos quarteirões antigos deste burgo que o meu coração melhor pulsa e o sangue melhor circula.

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