segunda-feira, 24 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24501: Notas de leitura (1600): A Guiné pós-colonial e o funcionamento de um Estado “suave”: Um importante artigo de Joshua B. Forrest sobre a Guiné a caminho do multipartidarismo (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Continua em debate a tipificação do Estado da Guiné-Bissau, se é frágil, suave, ou pária. O politólogo Joshua Forrest, refletindo sobre década e meia do Estado independente classifica-o como suave, uma cúpula dirigente que se revelou incapaz de uma verdadeira aproximação ao povo, como sonhava o fundador do PAIGC, engendrou uma administração pantagruélica, esmagadoramente centrada em Bissau, viveu sem contabilidade pública, sem uma boa definição de critérios de taxação, e devido à inexperiência dos seus quadros os projetos trazidos da luta armada foram-se reduzindo a pó. A população sobreviveu furtando-se aos esquemas e ao controlo do Estado, falharam os preços à produção, falhou o funcionamento da Socomin e dos Armazéns do Povo. No virar da década de 1990, sentindo-se completamente desacreditado, falido, incapaz de sobreviver dos expedientes da ajuda internacional, bateu-se à porta do FMI e do Banco Mundial. Mas os tempos também eram outros, a URSS desagregava-se, a abertura ao multipartidarismo ganhou apetência. É um lugar-comum dizer-se que só se podem compreender as elites atuais percebendo como sucumbiu o sonho revolucionário de Cabral e como as impacientes novas gerações se confrontam entre o modelo de justiça e participação, de que um bom número de organizações governamentais é a expressão mais evidente, e a anomia de um Estado que aumenta as pistas alcatroadas para que a cocaína entre em maiores quantidades na Guiné-Bissau, com irrecusáveis cumplicidades dos radicais islâmicos que também vivem do narcotráfico.

Um abraço do
Mário



A Guiné pós-colonial e o funcionamento de um Estado “suave”:
Um importante artigo de Joshua B. Forrest sobre a Guiné a caminho do multipartidarismo


Mário Beja Santos

A revista Soronda, no seu nº 15, publicado em janeiro de 1993, incluía um importante artigo de um investigador emblemático, Joshua B. Forrest, alusivo ao significado da autonomia burocrática, política e económica num Estado “suave”: o caso da Guiné-Bissau pós-colonial.

O investigador explica-se: “Sustento que, durante a primeira década e meia a seguir à independência, o Estado guineense conseguiu atingir um grau significativo de autonomia institucional, mas permaneceu ‘suave’, devido a uma capacidade de implementar políticas diferentes e ineficazes”. O fim almejado pelos dirigentes do PAIGC era a segurança burocrática, e de algum modo conseguiram-na. Mas a pressão externa no virar para a década de 1990 obrigou os dirigentes guineenses a lançar uma restruturação das relações Estado-sociedade, era imperativo, pelo menos formalmente, dar passos em direção ao pluralismo político.

Um Estado “suave” carateriza-se por dispor de instituições que são fundamentalmente incapazes de traduzir objetivos políticos em ações políticas; é um Estado incapaz de consolidar um sistema político-administrativo nacionalmente eficaz; e é um Estado que tenta, mas não consegue impor a nível nacional um sistema de extração económica sobre o seu setor económico mais produtivo. Daí resulta o afastamento entre o conjunto dos cidadãos e a liderança do Estado. Então como se atinge a autonomia estatal? Através da expansão burocrática os dirigentes tornam-se inacessíveis ao povo em geral, crescem as dificuldades para ganhar o controlo ou mesmo o acesso às fontes confiáveis da riqueza produzida internamente. A experiência do Estado pós-colonial da Guiné-Bissau sugere que é possível alcançar a autonomia institucional sem diminuir o caráter essencialmente ‘suave’ do Estado. Estamos perante uma aparente contradição entre a autonomia e suavidade, ela torna-se evidente pelas manifestas tensões internas, temos o bom exemplo com o golpe de novembro de 1980 que abriu as portas às relações Estado-sociedade. O que nos obriga a refletir sobre a construção do Estado na Guiné-Bissau.

Os novos dirigentes não possuíam a experiência em gestão administrativa nem tinham preparação técnica para assumir as responsabilidades do edifício burocrático. Recorde-se que no passado colonial, o Exército era a base para aplicação dos decretos oficiais. O que ficou do Estado centralizado após a independência foi uma coleção de ministérios com sede em Bissau e um pessoal constituído por vários milhares de funcionários que estavam vagamente ligados às regiões locais. Foi este o contexto em que se gerou a autonomização burocrática. A principal prioridade dos novos dirigentes era consolidar e reforçar o poder da burocracia estatal de maneira a que esta pudesse servir os seus interesses específicos. Foram recrutadas centenas de novos funcionários, deu-se uma expansão de comissariados e subcomissariados entre 1974 e 1977. O funcionalismo cresceu: eram cerca de 19500 em 1979. A par desta expansão de funcionários, houve a tendência cada vez maior para a centralização burocrática, cada departamento procurava a sua própria base administrativa de poder e uma fonte de financiamento que pudesse controlar sozinho. Isto deu-se com enviesamentos gritantes: ausência de contabilidade pública; investimento orientado para Bissau e para os ministérios estatais em particular; 83% da administração concentrava-se em Bissau.

O modelo industrial que se intentava prosseguir era megalómano. Entre 1976 e 1981, a ênfase que foi colocada em projetos macroindustriais e capital-intensos, caso do Complexo Agroindustrial do Cumeré, de uma refinaria de açúcar, de uma fábrica de montagem de automóveis Citroën, de uma fábrica de sumos e compotas, de outra de acetileno, uma de cerveja e sumos e a reconstrução da estrada de Bissalanca. Desvalorizou-se o investimento agrícola e não se instituiu um sistema de crédito agrícola. Os projetos lançados revelaram-se um insucesso – o projeto de produção de arroz de Bafatá, envolvendo 57 famílias e o programa de desenvolvimento rural integrado de Cacheu, Biombo e Oio. No caso do projeto de Bafatá, as famílias mais abastadas acabaram por receber a maioria dos benefícios. No caso do programa abarcando Cacheu, Biombo e Oio, foi grandemente prejudicado por parte dos gestores estatais em querer controlar a sua implementação desprezando a iniciativa dos camponeses locais.

Em fins do ano de 1980, o Estado, em crise financeira e sobre intensa pressão da ajuda internacional, concordou em reduzir o seu pessoal administrativo. A taxação também se revelou um insucesso. Para abolir os impostos coloniais, criou-se o Imposto de Reconstrução Nacional, com resultados verdadeiramente ineficazes. Em 1983, aproximadamente 85% dos habitantes de Bissau recusaram-se a pagar o imposto, tal como no arquipélago dos Bijagós. A burocracia estatal não insistiu com a taxação, aliás estava mal equipada para recolher impostos. Onde a taxação é satisfeita é no controlo governamental do comércio de importação e exportação, através dos funcionários alfandegários.

Joshua Forrest passa igualmente em revista os sonhos que vinham dos tempos da luta armada e que pouco duraram. Logo o falhanço dos comités de tabanca, depois o desastre dos Armazéns do Povo, como diz o investigador o seu funcionamento refletia a suavidade das estruturas organizativas do Estado. “As lojas foram bloqueadas pelo baixo financiamento no governo, o insuficiente número de veículos e gestores mal preparados. Estes problemas, aliados aos baixos preços de compra e aos fracos incentivos da troca, levaram os camponeses a reduzirem a quantidade das suas colheitas vendida aos Armazéns do Povo no fim dos anos 70. Como resultado disso, o setor comercial controlado pelo Estado chegou a uma virtual paralisação. As lojas encerravam frequentemente e cada vez por vários meses. Na capital, deixou-se de contar com as lojas controladas pelo governo como fonte de abastecimento alimentar”. As estruturas governamentais mostraram-se igualmente capazes de controlar o comércio urbano. A partir de 1984, entrou-se num programa de ajustamento estrutural, com maior liberdade do comércio e com desvalorizações monetárias. Em 1986 os armazéns do povo passaram a funcionar como uma empresa privada e a Socomin foi extinta e absorvida pelos Armazéns do Povo. O governo reconheceu que o comércio privado legalizado devia ser expandido.

A liberalização permitiu ver chegar aos mercados de todo o país alimentos básicos e produtos manufaturados. “O Estado guineense procurou um grau de domínio económico totalmente inadequado a Estados ‘suaves’ com fraca capacidade de implementação de políticas. Apoiando-se mais fortemente nas agências económicas internacionais, o Estado guineense conseguiu assegurar a sua própria viabilidade institucional”. O autor dá-nos uma síntese das relações entre o Estado guineense, o FMI e o Banco Mundial e o papel desempenhado pelo setor das pescas. Em jeito de conclusão, Joshua Forrest recorda que o fator fundamental que levou o Estado a aproximar-se da comunidade internacional foi a sua deficiência e ineficácia no processo de elaboração de políticas: na recolha de impostos, no incremento do desenvolvimento rural, nos investimentos estapafúrdios na indústria, na incapacidade de gerir o comércio. Percebendo que estavam dependentes da ligação com as forças internacionais, o Estado mudou a sua orientação face à sociedade, mesmo ao princípio com enormes reticências e grande oposição interna, o PAIGC anunciou que estava aberta a via multipartidária.

Recorda-se ao leitor que estamos a sintetizar a argumentação de um investigador que terá escrito o seu estudo entre 1992 e 1993, o seu mérito indiscutível é que nos ajuda a perceber de algum modo o comportamento das elites atuais num Estado “suave” onde circula a cocaína e se insinua um radicalismo islâmico que não tem suporte no povo.


Luís Cabral
Complexo agroindustrial do Cumeré, fotografia de Virgílio Teixeira, publicada no nosso blogue, com a devida vénia
Busto evocativo de Amílcar Cabral, Guiné-Bissau
O deslumbrante colorido do folclore bijagó
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24494: Notas de leitura (1599): A propósito de dois relevantes trabalhos do historiador guineense Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Beja Santos traz esta gente estranha ao passado da Guiné Bissau e notamos que muitos defeitos são atribuidos à governação desta terra africana recém independente como todos os paises africanos sub-saarianos.

Se formos ver nunca nenhum jornalista diz algo de novo, pois que a Guiné tal como em geral todos os outros paises independentes há 5o anos, poucas coisas correram de maneira óptima.

E a Guiné Bissau, se não fosse um crime cometido nos primeiros anos da sua independência, seria dos paises bem tranquilos tal como foi Caboverde ou São Tomé e Principe.

Esse crime todos aqui sabemos que essa asneira foi denuncida pelo Nino, as valas comuns dos comandos e muitos civis pró Spínola.

E essa mancha nem pode ser atribuida à governação do humilde povo da Guiné, pois que nesse tempo o governo era o PAIGC dominado pelos caboverdeanos com a cobertura de cubanos e soviéticos, com a colaboração incondicional sueca.

Ninguém sabia nada?

O povo é que não riscava nada.

Não fora esta nódoa, e a Guiné era um país bem governado, comparado com a maioria da maioria dos outros vizinhos.

E quando hoje se fala em narcotráfico na Guiné, o que é isso comparado com os yates que aparecem constantemente na costa portuguesa.

Ou em corrupções anunciadas. Lusa: Angola apreendeu e arrestou bens de luxo como aviões, edifícios em Wall Street e Dubai e um Lamborghini...!

Mas quem pensaria que tudo podia ter corrido melhor que isto?