domingo, 23 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24499: (In)citações (257): Não basta sermos velhos (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)


NÃO BASTA SERMOS VELHOS

adão cruz

Esta reflexão não é só em relação ao SNS que existe, mas também ao SNS que poderia vir a existir se houvesse vontade política. Ao que o SNS poderia vir a ser, se houvesse uma vontade séria de eliminar os defeitos, as imperfeições e as carências, no sentido de o amparar no seu tão ansiado e promissor caminho de um futuro indispensável à saúde de um povo.

Hoje, o conhecimento e a experiência médica são muito grandes. A investigação científica atingiu uma dimensão incalculável e a sua aplicação prática trouxe avanços inimagináveis na assistência aos doentes. Existem muitíssimos profissionais idóneos, com excelente formação técnica e humana e com grande vontade de colaborar no radioso futuro de um SNS de alto nível, mas também se verifica o contrário, nesta furiosa corrida ao desumano negócio da saúde. Apesar de estarmos num bom lugar a nível mundial, não podemos escamotear os defeitos, grandes imperfeições e carências em toda a assistência médica em Portugal, sobretudo na incapacidade de atendimento atempado e na ausência de um exercício clínico profundo e correcto, A substituição da sábia observação clínica de um doente por um computador e por uma fábrica de exames, a avaliação clínica atamancada e a abordagem vulgarmente negligente e irresponsável da situação do paciente, pode redundar em diagnósticos errados, prescrições inadequadas e exames dispendiosos, muitas vezes nefastos e até mortais.

Vem tudo isto a respeito do doente idoso, isto é, aquele doente da chamada terceira idade. Este doente é muito diferente do indivíduo jovem. É mais atingido por doenças, especialmente doenças crónicas e tem muitas comorbilidades. Além disso, as alterações fisiológicas próprias da idade são comuns, levando a problemas de absorção, de metabolismo e de excreção de substâncias.

Chegado ao ponto intencional deste pequeno texto, eu queria dizer que quando há necessidade de prescrever um medicamento a uma pessoa idosa, os principais problemas prendem-se com as patologias não tratadas ou patologias mal tratadas, com a indicação de tratamentos e fármacos inadequados, com a polimedicação, com o baixo nível de instrução, com as fracas condições sociais e económicas, e, sobretudo, com as reacções adversas aos medicamentos e as interacções medicamentosas. O idoso tem duas a três vezes mais probabilidades de sofrer uma reacção adversa do que um jovem. Um idoso a tomar vários medicamentos tem grandes probabilidades de interacções e reacções mais graves e de mortalidade duplamente mais elevada do que as pessoas mais novas.

Neste drama da terceira idade, porque de um drama se trata, essencialmente por passar à margem da responsabilidade e do bom senso, centra-se um dos maiores defeitos e um dos mais graves problemas da assistência médica, pública e privada. Não a que é praticada por profissionais conscientes, responsáveis e competentes, mas a que se faz em muitas dessas clínicas, por vezes quase de vão de escada, que por aí proliferam. A ignorância, a incompetência e a falta de juízo crítico e clínico estão na base de boa parte da morbilidade e mortalidade desta faixa etária.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24480: (In)citações (256): Sigamos a andorinha de Candoz (Luís Graça)

4 comentários:

Eduardo Estrela disse...

Bonito texto escrito por quem está por dentro das questões da saúde.
A sua parte final é um abanão relativamente a atitudes menos dignas de quem exerce a prática da medicina. Felizmente que a maioria é composta por profissionais competentes e sérios.
Quanto ao SNS, há poucos dias o presidente da república teve uma grande oportunidade de também ele dar um abanão quando comentou a qualidade do serviço que lhe foi prestado, após o episódio de indisposição que teve.
Em vez de ter dito que o SNS é de excelência, deveria ter dito:
Espero que todos os portugueses sejam tratados no SNS como eu fui, quando recorrem ao mesmo.
Enfim!!!
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Hélder Valério disse...

Meu caro amigo Adão Cruz

Um texto necessário para colocar "os pingos nos iii".
Acompanho com gosto o que o amigo aqui regularmente oferece para publicação.
As pinturas. Os poemas. Os textos.
Raramente, muito raramente, me tenho pronunciado. Não é sinal de desinteresse.
É, muitas vezes, "deixar para depois" o comentário e já sabemos, duma canção que há por aí, que o "depois é sempre longe demais".
Mas hoje tinha que manifestar a minha concordância.
Abraço
Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meu caro Adão Cruz: eu faria uma pequeníssima correcção ao titulo do teu texto: "Já não basta sermos velhos"... São os velhos e os pobres (incluindo muitos fos antigos combatentes) as principais vítimas das desigualdades sociais em saúde... A classe média e média alta tira partido do melhor de dois mundos: tem o SNS e os subsistemas (seguros de saúde,públicos e privados)...

Que a saúde é um negócio altamente rentável, sabemos que é...
Mas e igual para todos.... Eu diri antrs, a "indústria da doença"...

Por outro lado, todos sabemos que, apesar da dedicação e competência de muitos profissionais de saúde, do SNS, não podemos continuar a contar só com o "amor à camisola"...

Os mais novos querem ter bons salários e boas condições de trabalho que o SNS (ou a economia do país) ainda não lhes pode dar (dizem, pelo menos, economistas)... Mas também é verdade que a saúde não é só a medicina: podemos ter a melhor medicina do mundo e ter um mau sistema de saúde como nos EUA...

No nosso SNS, a progressão nas carreiras é burocrática e lenta... O lado perverso de tudo isto: andamos a perder alguns dos melhores e a pagar a formação dos médicos e outros técnicos de saúde que trabalham no privado ou no estrangeiro...

Como é sabido, os gestores dos serviços públicos não tem verdadeira autonomia na gestão dos recursos humanos... O SNS (tal como a Universidade) tem de poder pagar melhor aos melhores... Mas não há, Feliz ou infelizmente, "receitas de cozinha"... Por isso é que as nossas decisões têm de ser políticas... E a política, em democracia, tem de ser cada vez mais (re)valorizada...

Um alfabravo, Luis Graça.

Valdemar Silva disse...

Adão Cruz tem-nos habituado a pequenos grandes textos.
Eu, com o minha DPOC a ser tratada, desde 2010, no Hospital Dr. Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) não me queixo do nosso SNS, antes pelo contrário traço um grande elogio a todo pessoal da Pneumologia nos quatro internamentos.
O PR bem podia, em vez de um 'eu sei..eu sei..', ter feito publicidade geral ao SNS e de se ficar por um moscatel quente com um fortimel.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz