Meus queridos camaradas e amigos:
"Quem é vivo sempre aparece", não é?
Justifico-me:
Forcei-me a uma espécie de licença sabática na minha colaboração neste blogue. Aconteceu-me o que não previa quando decidi mergulhar na leitura das cartas que suportaram a minha série "Cartas de amor e guerra". Stressei-me!
Esse mergulho começou a incomodar-me psiquicamente. Era a primeira vez que relia essas cartas, mais de 40 anos após terem sido escritas. E o incómodo sentido não era provocado pelas lembranças de guerra mas pela tomada de consciência de que muito pouco se cumpriu do que, naquela altura, eu imaginava poder vir a acontecer na vida futura deste país.
Começava a sentir-me derrotado, a ter pena do jovem que fui nos tempos de Guiné, um jovem esperançoso e lutador por um futuro mais próspero, mais culto e mais feliz para o povo português. Via a minha vida como se a maioria dos meus sacrifícios pessoais tivessem sido em vão. Era como que uma sessão de masoquismo psíquico. De cada vez que me debruçava na leitura das cartas de guerra para delas retirar o que entendesse como interessante para publicação, começava a sofrer. Mas não foi o publicado que me "stressou".
Precisei de me afastar durante uns tempos, cortando mesmo com alguns trabalhitos já iniciados para publicação no blogue. Olhem, o convívio com os camaradas da Guiné ajudou e continua a ajudar a me sentir melhor.
Retomei agora esse trabalho e o que me apareceu mais fácil e rápido de completar foi o subordinado à série sobre "o que a malta lia, nas horas vagas". Aqui vai ele. Outros se seguirão, que a vontade me não falte.
Acho que a série teria muito interesse sociológico se mais pessoas colaborassem dizendo o que liam ou se não liam (alguns de nós eram analfabetos!), mesmo que só lessem o boletim do padre da sua paróquia. Por falar nisto e pelo que vi então, não ficaria surpreendido se os boletins paroquiais tivessem sido os campeões como sujeitos de leitura
Penso que não viria a ser insignificante o que resultasse de um maior conhecimento sobre este tema. Temos de deixar sinais para os investigadores futuros. Lembro o que agora, 100 anos depois, se tem andado a publicar sobre a 1.ª Guerra Mundial.
Em anexos, vão o texto e as suas fotos.
Um abraço amigo para cada um de vós.
Manuel Joaquim
O que é que a malta lia, nas horas vagas
O que é que eu lia durante a guerra? Para além de livros, lia os jornais O Eco de Pombal e A Região de Leiria e a revista Seara Nova que, mensalmente, me era enviada pela namorada. Mas não só.
“Tudo o que vinha à rede era peixe”, fossem revistas e jornais avulsos, fossem boletins da minha paróquia natal ou de qualquer outra totalmente desconhecida, tudo estava sujeito a leitura. Até noveletas delicodoces, a que não chamo livros, feitas para "fazer chorar as pedrinhas da calçada" e/ou "partir corações apaixonados". À época, era frequente vê-las nas mãos de adolescentes (e não só), naquelas idades em que o romantismo e o sonho facilmente enfunam as asas do desejo. "Mastigava" um ou outro desses livrinhos que porventura encontrasse nas mãos de alguns camaradas. Divertia-me com o enredo, mesmo sentindo o ressoar de gargalhadas nos meus ouvidos, vindas de alguém que eu tinha "gozado" anteriormente por vê-lo consumir tal "literatura".
Apesar do meu grande gosto pela leitura, nunca esta teve prioridade na ocupação dos meus tempos livres na Guiné. As "primeiras" prioridades, seguidas por vezes a contragosto, foram a actividade escolar e a escrita. Dei aulas de instrução primária a soldados e crianças e também tive muita actividade epistolar pois, para além da regular correspondência postal com os meus entes queridos e amigos mais chegados, tinha um grupo alargado de pessoas com as quais me correspondia pontualmente. As "segundas" prioridades estavam nas petiscadas, nas “copofonias”, nos jogos de cartas, na música, nas passeatas pela tabanca e seus arredores. A leitura viria depois, sempre se arranjava algum tempo para o efeito.
Revista Seara Nova, número de Novembro/1965.
Revista política mensal, de caráter oposicionista ao regime do Estado Novo.
Princípios Elementares de Filosofia de Georges Politzer.
O autor, intelectual comunista francês, foi fuzilado pelos nazis.
O livro ainda hoje tem grande circulação na área ideológica marxista-leninista.
Na viagem para a Guiné foram comigo alguns livros. Lembro Os Bichos e Diário VIII de Miguel Torga, Diário de Édipo de Alberto Ferreira, A Cidade das Flores de Augusto Abelaira, Guillaume Apollinaire de George Vendrès, Poèmes de Paul Éluard, Dialogues com Maurice Duverger, La Guerre Revolucionaire de Mao Zedong, Mao Tsé Tung como então se dizia. E, como jovem muito interessado nas doutrinas marxistas, levei comigo o meu primeiro “livro de estudo” desta área, Principes élémentaires de philosophie de Georges Politzer.
Esta última obra é uma espécie de primeiro "catecismo" do marxismo-leninismo onde, numa linguagem acessível, se expõem os seus princípios básicos, filosóficos e doutrinários. E lá andei eu a tentar aplicar-me na aprendizagem do seu conteúdo, às "cabeçadas" com o materialismo dialéctico. Mas a doutrina não me cativou por muito tempo. Naquele ambiente, ela não conseguia dar-me a luz que me pudesse orientar nem a “enxada” para trabalhar a minha terra "ideológica“.
A Cidade das Flores de Augusto Abelaira.
O seu enredo gira à volta de um grupo de jovens de Florença, em luta pelos seus ideais perante a repressão imposta pelo fascismo de Benito Mussolini. A razão da acção se passar em Itália pode ter sido um subterfúgio para escapar à comissão de censura do regime salazarista pois, da leitura do livro, percebe-se bem a denúncia das estruturas sociais e políticas do Portugal de então. Comprei A Cidade das Flores em Lisboa, no final de agosto/64, num intervalo da viagem de comboio para Pombal após terminar o CSM em Mafra. Não era meu hábito escrever nos livros mas aconteceu naquela altura. E, de sopetão, escrevi na 1ª página (ainda me lembro desse momento):
Na satisfação duma etapa cumprida, sacrificada, do final do meu curso de sargentos milicianos de infantaria, volto-me para a cidade das flores, imagem feliz dum meio social. Antes de ler o livro viro-me para o título e só ele já me satisfaz, tal é a frescura e liberdade que ele me faz respirar.
A horrível vida militar não me embota, com certeza. Quero paz e não guerra. Quero a felicidade do meu povo e não a sua destruição moral e material. Não posso tolerar as doutrinas que me apregoam. Não posso ser militar.
"Não posso ser militar" mas fui-o, muito contrariado com certeza. E cerca de um ano depois estava a desembarcar na Guiné.
Chegado a Bissau, logo na minha primeira visita ao café Bento, observei um pequeno escaparate com umas dezenas de livros e fiquei com vontade de ler alguns deles. A disponibilidade monetária era pouca mas, durante os quase três meses de estada em Bissau, comprei estes (na altura anotei a data da sua compra):
Mar Morto de Jorge Amado; A Barca dos Sete Lemes de Alves Redol; Rum de Blaise Cendrars; A Noite Roxa, As Máscaras Finais, Terra Ocupada, Exílio Perturbado, os quatro de Urbano Tavares Rodrigues; Gorky por ele próprio de Nina Gourfinkel; Greco de Simon Vesiduk; Goya de Eric Porter; Pieter Bruegel de Felix Timmermans.
Foto 3.
"Terra Ocupada" de Urbano Tavares Rodrigues e cinco dos 21 "blocos" de um famosíssimo poema de Paul Éluard, "Liberté".
No início do livro Terra Ocupada, pag. 7, o autor cita cinco dos 21 "blocos" de "Liberté", um famoso poema de Paul Éluard. Traduzindo à minha maneira:
No patamar da minha porta / nos objectos familiares / sobre as chamas do fogo bento / eu escrevi teu nome
Em toda a carne concedida / na fronte dos meus amigos / em cada mão estendida / eu escrevi teu nome
............
Nos meus refúgios destruídos / nos meus guias desconjuntados / nas paredes do meu tédio / eu escrevi teu nome
Sobre a ausência sem desejos / sobre a nua solidão / sobre os degraus da morte / eu escrevi teu nome.
............
E pelo poder duma palavra / recomeço minha vida / eu nasci para te conhecer / para te chamar Liberdade
Entretanto, de Lisboa, a minha querida namorada começou a enviar-me um livro de vez em quando. Como neles não há referências a datas, não me lembro de todos mas estes ficaram-me na memória de os ter recebido:
"A Memória das Palavras" de José Gomes Ferreira; "Capitães da Areia" e "D. Flor e Seus Dois Maridos", de Jorge Amado; "O Passo da Serpente" de Batista Bastos; "As Boas Intenções" de Augusto Abelaira; "Malthus e os Dois Marx" de Alfred Sauvy; "Paroles" e "Histoires" de Jacques Prévert.
De referir ainda que, no meu tempo de Bissau, me veio parar às mãos um dos livros que mais me ficou na lembrança, "Trópico de Capricórnio" de Henry Miller. Li-o com muito prazer e entusiasmo. Algumas das suas páginas mais socialmente panfletárias, especialmente as de cariz erótico, chegaram a ser lidas em voz alta, o que proporcionava divertidas gargalhadas no dormitório de Sta. Luzia a que se seguia normalmente alguma discussão sobre o tema lido. Uma expressão francesa marcou um desses momentos, para mim inesquecível. O casual leitor do momento e que lia o livro em silêncio, solta em voz grossa, bem alta e firme: pourri avant d'être mûri !!! ( apodrecido antes de estar maduro).
Ainda me lembro da figura do dono daquela voz potente mas não do seu nome. Tinha chegado há alguns dias, vindo lá do sul e já bem batido no mato. Ninguém terá percebido o porquê e o sentido da frase. Nem um ou outro com conhecimentos de francês lá chegou. Apodrecido antes de estar maduro ?! Mas o "velho" furriel miliciano de Cabedu, com certeza compreendendo isso, falou mais ou menos assim:
- Rapazes, um conselho: vocês estão verdes, vê-se e vocês sabem-no. Basta ouvir-vos a falar sobre umas coisitas de merda e que tanto medo causa a alguns. Cuidado, ninguém se pode permitir estar verde e apodrecer, percebem? E muito cuidado também para não apodrecerem quando estiverem maduros!
Não imagino quantos o "ouviram". Talvez poucos tivessem percebido a charada, que havia uma personagem-mistério no seu sintético aviso. Eu sei que havia, era a "senhora morte".
O livro foi-me emprestado por um camarada amigo, de serviço no QG, mas não estava à espera do que me aconteceu e que não me permitiu devolver-lho. Tendo saído de barco para Farim, em escolta, regressei a Bissau uns bons dias depois, já noite. Quando cheguei ao quartel recebi uma "bela" notícia, nem mais nem menos do que a saída para Bissorã logo na manhã seguinte. E, para cúmulo, durante esta viagem foi-me roubado um pequeno saco onde ia o livro junto a todos os meus documentos e outras coisas mais pessoais, de caráter afectivo. E também "voaram" as poucas notas que tinha poupado até então. Cheguei a Bissorã teso que nem um carapau!
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Nota do editor
Último poste da série de 3 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12927: O que é que a malta lia, nas horas vagas (28): Fotonovelas não temos, mas arranja-se Sigmund Freud (José Manuel Matos Dinis)