segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12494: O que é que a malta lia, nas horas vagas (22): Autores como: Jorge Amado, Ernest Hemingway, Aquilino Ribeiro, André Maurois, Urbano Tavares Rodrigues, Marguerite Duras, James Hilton e outros (Armor Pires Mota)

1. Mensagem do nosso camarada  Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65), ele próprio escritor e autor do livro de crónicas o "Tarrafo", entre outros, com data de 14 de Dezembro de 2013, com a sua colaboração para a série "O que é que a malta lia nas horas vagas":


Livros, bons companheiros

Se perdia algum tempo a escrever, para além das crónicas de guerra, eram aerogramas, sobretudo para a Lili, mas, de quando em vez, também para uma segunda madrinha, da Luz de Tavira, a Celita (Maria do Céu Batalha), que me foi proposta pelo bem alegre furriel algarvio, Júlio Santos, mas também dedicava algum tempo à leitura dos livros que tinha levado (poucos) ou era possível comprar em Bissau. Não havia qualquer espécie de biblioteca na companhia. Claro, na questão da troca de correspondência, não esquecia a famíla e alguns amigos.

Em Dezembro de 1963, em Bissorã, além de sair para o mato, nervos tensos e alma arrepanhada, embora até ao fim desse mês, ou melhor, até à véspera de Natal, a metralha não me tivesse mordido o ouvido e os nervos, lia “Os velhos marinheiros”, de um dos meus escritores de referência, o brasileiro Jorge Amado, autor de obras eternas, como “Gabriela, Cravo e Canela”.

Um que não me sai da lembrança era um que estendia o sangue, o suor e as lágrimas dos americanos na guerra do Vietnam, cujo terreno pantanoso se assemelhava muito com o da Guiné, que no tempo das cheias reduzia o território a 2/3. O título era exactamente “Pântano ao amanhecer”. O nome de autor não o fixei. Era o seu terrível tarrafe.

Quem era meu fornecedor de livros, por empréstimo, era o médico, Dr. Hipólito de Sousa Franco, de Lisboa, bom homem e pacifista, filho único, que os ia recebendo de casa, bem como revistas e jornais. Era por assim dizer, o médico que nos colocava a par do que ia acontecendo no país ou no mundo. Ainda que com algum atraso. Também nos chegavam revistas através do Movimento Nacional Feminino, mas contavam-se pelos dedos.

Apetrechei-me também com alguns livros (monografias) sobre a Guiné, com informações de carácter histórico e outras, que adquiri no Centro Cultural de Bissau. Sempre que ia à capital da província, não deixava de passar por ali. Era quase obrigatório para quem tinha outros horizontess para além da guerra e do sangue. Para quem uma asa de luz é um voo além do transitório e indescoberto tempo.

No final de 1964, o romance “Adeus às Armas”, de Ernest Hemingway, que considero um mestre na arte do romance. O tema é a II Grande Guerra. A par de “Por quem os sinos dobram”, romance vivenciado na guerra de Espanha, e do sempre inesquecível “O Velho e o Mar”, é uma das suas obras primas.

No dia 27 de Janeiro (domingo) de 1965 lia, de fio a pavio, o pequeno romance “Beijo ao Leproso”, de que também não recordo o autor que mostrava o fracasso de um casamento, arranjado por um padre, que era um grande saieiro. O rapaz era um mentecapto, um pobre diabo enfezado; a rapariga era demasiado tímida e não sabia nada do que era a vida.

Aroveitei a minha passagem pelo Hospital Militar de Bissau e li (Março de 1965), com muito interesse, o comovente “Diário”, de Anne Frank, que o foi escrevendo entre os 13 e os 15 anos, refugiada numa casa antiga, tentando escapar à perseguição dos judeus, movida pelos alemães na II Guerra Mundial, bem como, no meado desse mesmo mês, devorei o romance “A rebelião dos perdidos”, de que não lembro o autor.

Todavia, nos dias que antecederam o regresso à pátria, matei, de alguma forma, a fome de leitura. No primeiro caso (Março de 1965), está o romance de Aquilino Ribeiro, proibido, “Quando os Lobos Uivam”, publicado no Brasil pela Editora Anhambi Sa; no segundo caso, estão os romance “As Rosas de Setembro” (Julho/1965), de André Maurois, autor de uma vasta obra de repercussão universal, uma das glórias da literatura francesa e “Uma pedrada no charco”, (5/8/1965), de Urbano Tavares Rodrigues, autor que marca grande presença nas minhas estantes. E ainda “À Margem do Tempo” (era a nossa situação), de Michel Siffre, (Julho/1965), um pouco diferente. Já não se tratava de ficção, mas de relatos de viagens ao interior da terra.

Outros livros que li foram recolhidos nos acampamentos, atacados ou incendiados. Foram os casos de “Hiroxima, meu amor”, de Marguerite Duras, Publicações Europa-América, de 1963; “E agora, Adeus”, de James Hilton, Livros do Brasil, Limitada, com a assinatura de posse de Maria Fernanda da Costa Pinheiro, datado de Farim, 15 da Abril de 1959; e, já noutra área, da formação e enriquecimento humano, o livro “Nós e os nossos filhos”, Publicadora Atlântico, Ld.ª, da autoria de W. Raymond Beach, com a indicação na primeira página: “da Biblioteca dos Turras, Canjambari, 23 Março” e com uma simpática nota de oferta: “Para o Mota com um grande abraço do amigo Varajão”. [Alberto Varajão Gonçalves, alferes da CCS e comandante do pelotão de Sapadores do Batalhão de Cavalaria 490, também nortenho, julgo que do Porto].

Guardo estes três exemplares como os melhores despojos de guerra. Hoje, sei que poderia ter lido bem mais, ainda que ficasse a léguas do escritor e camarada de guerra, na região do Cuor, Beja Santos, que trazia atrás de si um malão, como se fosse caixa de remédios, e era-o em certa medida. Era o alimento espiritual de que tanto gostava para recarregar baterias. A terapia necessária para afrontar os difíceis e loucos dias.

Num cômputo geral, os soldados liam bem os rótulos das cervejas ou da Laranjina C, também as marcas do tabaco, as cartas da família e dos amigos, das madrinhas de guerra e namoradas. Isso lhes bastava. Já na classe dos sargentos, havia um ou outro interessado em ler, debicavam este ou aquele livro, mas não muitos.
Mas também estoirados, quem tinha força para essa suave e pacífica missão? Descansar era preciso.
E era mais ou menos isto que sucedia também com os alferes.
Quem mais dava alimento dava ao espírito era, efectivamente, o médico da companhia.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12473: O que é que a malta lia, nas horas vagas (21): Valentim Oliveira: a Plateia, livros e a correspondência; João Rebola: corridas de burros, futebol, fados, bailes com lindas "bajudas", andar de mota, saborear uns franguitos, etc.

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro camarada Armor

Vi com atenção e interesse a listagem de livros que foram lidos.
Não foram assim tão poucos...

É bem verdade que as condições do dia-a-dia não permitiriam grandes 'disposições' para a leitura, para essa "suave e pacífica missão", por parte de quem tivesse que 'alinhar' constantemente mas o principal óbice, quanto a mim, era (e ainda o é hoje) a falta de incentivo à leitura.

Nessa época havia o preconceito que a leitura podia levar ao 'conhecimento' e o conhecimento tornava o Homem infeliz e então havia que protegê-lo da infelicidade....
Hoje, a diferença não é muita, por isso, como o acesso ao livro foi facilitado, teve-se que criar novas formas de imbecilizar, principalmente através da televisão, o que, na prática, vai produzindo o mesmo efeito de 'protecção da infelicidade'.

Referiste o proibido "Quando os lobos uivam" do Aquilino mas também o li, apesar disso. O velho Jorge Amado também teve alguns livros que não eram 'bem vistos', esse "Os velhos marinheiros" mas também "Os capitães da areia".

Acho que esta série "O que é que a malta lia..." foi uma feliz iniciativa.
Por esta pequena amostra (e pequena porque apesar do Blogue ter bastante gente é uma amostra imensamente inferior ao universo de todos os que passaram pelos TOs e mesmo assim as contribuições são também, ainda, limitadas) pode-se contudo verificar que foram muitos os que não se deixaram estupidificar completamente pelo ambiente que os cercava, que procuravam ser "pessoas".

Abraços

Hélder S.