Caros Camaradas,
Tantas vezes prometido, aí vai o material para o Poste sobre A Cantora Careca, estreado em Bissau em 05ABR70.
Como expliquei trata-se de um trabalho conjunto, meu, do Mário Cláudio e do João Barge. Já têm foto minha e do Mário Cláudio, usadas do antecedente, noutros Postes.
O Barge remeteu-me a sua, agora, com idêntico objectivo. Enviar-vos-ei o email que recebi dele. Poder-se-á, certamente, encontrar forma de colocar as três no início do Poste. Há outras que não possuo e que seria interessante incluir. De Otto de Habsburo, de Carlos de Áustria (seu pai), talvez de Aristides de Sousa Mendes. E, por fim, dos três majores assassinados. Enfim, vocês verão se isso é possível.
Dia 4, sábado, vamo-nos encontrar os três, no Porto. Direi que desde 1970 que tal encontro não tem sido possível.
Teria graça se o Poste estivesse pronto, nessa data... Vocês verâo se isso é possível.
Tentarei fazer fotos do encontro e, se houver matéria de interesse, tentarei fazer um Poste sobre esse reencontro.
Um abraço forte,
Carlos Nery
“A Cantora Careca”, Bissau, Abril de 1970 (Maria Guilhermina, Rui Barbot e João Barge)
Verbete
A empresa de levar à cena nas adjacências do Quartel-General de Bissau A Cantora Careca, de Ionescu, produzida pelo então capitão miliciano Carlos Nery Gomes de Araújo, ainda hoje retém, quando lembrada, uma intocada luz de audácia juvenil, e de discreta rebeldia. Tratava-se de descerrar uma certa janela, propiciadora de mais funda respiração, no quadro constritor da guerra, e com tal gesto propunha-se o grupo de gente moça, mobilizado por Carlos Nery, prestar serviço aos camaradas que, interessados em pensar para além daquilo que constituía motivo de colectiva apreensão, poderiam ver no teatro moldura adequada ao exercício da sua inteligência, e da sua fantasia.
Entre as recordações da pequena aventura, documentada por textos e fotografias, uma muito especial ficaria, exclusivamente guardada na memória, e que oferece agora, quatro décadas passadas, algum pretexto de reflexão.
Um jornalista estrangeiro, afecto ao regime português da altura, e que viajava em reportagem pelas três frentes de combate, tendo assistido a uma das récitas daquele espectáculo vanguardista, levantado na maior economia de meios, viria felicitar-nos efusivamente, a nós, artistas mais ou menos improvisados, com palavras que não se esqueceriam. Chamava-se o senhor Otto de Habsburgo, e representava tão-só a última candidatura ao trono imperial austro-húngaro, esse mesmo que com Carlos V, rei de Espanha, se arrogara um domínio de além-mar que apenas com Manuel I, rei de Portugal, por algumas décadas partilharia.
Relata-se isto para que conste, e para que se reabram os compêndios de História.
Que importam ao fraterno convívio as opções ideológicas, navegantes como somos, todos nós, na nau de velas pandas da relatividade do Tempo?
Mário Cláudio
(alferes Barbot)
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1 – Prontidão de Embarque
Carlos Nery - No início de Novembro de 1969, vinda de Buba, a CCAÇ 2382 chegava a Bissau, ficando adida ao BART 2866, em Brá.
Tinha terminado a parte mais dura da nossa comissão. Somos declarados com prontidão de embarque a partir de 10JAN70. Porém, até Março, iríamos, ainda, colaborar na segurança da cidade, de algumas das suas instalações militares e de destacamentos próximos.
João Barge - Anos 70 do século passado, ou, para ser mais exacto, na transição de Dezembro de 1969 para Janeiro de 1970!
Carlos Nery - Bissau era cheia de vida, de movimento, de civis e de militares. As viaturas corriam por toda a cidade. Esta ocupava uma vasta área, as distâncias eram grandes. Não raro, viam-se oficiais pedindo boleia a viaturas militares que passavam a grande velocidadade fingindo não os ver.
João Barge - Estava eu então, pela cidade, um pouco órfão, uma vez que a Companhia que me tinha acolhido, ainda em 1968, em rendição individual, a CCaç 2317, regressara a Portugal, pouco antes, acabada a comissão de serviço.
Carlos Nery - Era ao fim da tarde e à noite que a cidade se tornava mais atractiva. Tomado um duche e mudada a roupa, saíamos de Brá, da sede do Batalhão, em grupo, num velho jipe, para a Messe de Oficiais. Aí jogava-se bridge, conversava-se, tomavam-se bebidas. O uísque, livre de taxas ou de impostos, era mais barato do que a água Perrier que se usava para beber com ele.
João Barge: Talvez porque amargara (e amargurara)...
João Barge - Talvez porque eu amargara (e amargurara) Gandembel e Ponte Balana, e logo a seguir, para não me desabituar, também amargara (e amargurara) Buba, resolveram poupar-me a maiores infortúnios bélicos e colocaram-me no Quartel General, na Secção de Transportes Marítimos. Daí as idas frequentes, de dia e tantas vezes de noite, ao cais do Pidjiguiti. Ficou-me, nos olhos e talvez na alma, a marginal, com suas palmeiras, com seu cheiro a mar e a gente, com aquela brisa que chegava ao fim da tarde e me reconciliava um pouco com tudo e com todos.
Carlos Nery - Em certas noites da semana, junto da piscina onde se improvisara um recinto de cinema ao ar livre, eram projectados filmes recebidos dos distribuidores de Lisboa.
João Barge - Não era muito o tempo livre mas, ao fim do dia, normalmente rumava ao Clube Militar, para mastigar qualquer coisa, bebericar um qualquer álcool e trocar dois ou três dedos de conversa. O Clube Militar era basicamente a Messe de Oficias, a piscina e um cinema ao ar livre. Havia quem não se encolhesse muito a afogar as mágoas, havia quem se desse mais ao jogo.
Carlos Nery - Uma bela noite fez a sua irrupção uma novidade, o Bingo! Na época era desconhecido, mesmo em Portugal. Em sessões cada vez mais concorridas, por fim ao ar livre nas belas noites de Bissau, compravam-se cartões e ouviam-se anunciar os números saídos. Por último, havia já grandes painéis iluminados onde os mesmos eram exibidos. Os prémios eram aliciantes, objectos caros adquiridos nas lojas que proliferavam na baixa da cidade.
João Barge - A minha “praia” era outra, cinema sim, o resto nem por isso.
Carlos Nery – Já me ocorreu se todo aquele aparato não se destinaria a permitir, sem chamar a atenção, a compra de idênticos artigos a ser oferecidos, pelos Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório, aos seus interlocutores, durante as negociações que estabeleciam, nessa altura, com quadros intermédios do PAIGC. Sabendo-se que quem os assassinou foi quem com eles dialogou, em encontros sucessivos, pergunto-me se não contribuíu para a sua eliminação o receio de que, se tivessem sido feito prisioneiros, pudessem vir a revelar pormenores comprometedores para os seus captores.
2 – Dar a Outra Face
Arménio Vicente e duas amiguinhas nossas que preferiam os ensaios a outras brincadeiras e que já sabiam de cor toda a peça... Onde estão hoje vocês, queridas amigas?
João Barge - Ora como o mundo é pequeno e a Guiné não é grande, por esse tempo, entre tanta e desvairada gente que no Clube Militar desaguava, quem haveria de por ali também aparecer? O Cap. Mil. Gomes de Araújo, comandante da CCaç 2382, companhia que estava em Buba, quando a minha, a CCaç 2317, também ali esteve, nos meses de Fevereiro a Maio de 1969.
Carlos Nery – Não me recordo como mas, em dada altura, passaste a fazer parte do nosso grupo, que não jogava, era pouco dado à bebida e não apreciava o Bingo por aí além.
João Barge – Saíamos para o recinto da piscina, deserto à noite, e conversávamos.
Junto à piscina (Rui Barbot, Maia Alexandre e Maria Guilhermina)
Rui Barbot - Maio de 68 tinha sido há menos de dois anos, de Portugal vinham notícias de confrontos entre estudantes e o poder, havia notícias de Associações encerradas, os “gorilas” tinham feito a sua aparição nas Faculdades. No ano anterior haviam-se realizado eleições em Portugal. Não faltavam motivos de conversa que, claro, incidia também nas peripécias da guerra da Guiné.
Carlos Nery - Lembram-se de que o Tenente-Coronel Saraiva, homem culto que havia sido amigo de José Régio, responsável pelo Clube, nos pediu para o ajudar a seleccionar os filmes a exibir? Engraçado, tendo nós feito uma escolha baseada na qualidade, logo os distribuidores avisaram que, para poder alugar esses, teriam que ser aceites outros filmes, digamos, de qualidade inferior... Aliás, isso veio ao encontro das reclamações de alguns oficiais que se queixavam, afirmando querer distrair-se e não ter de pensar nos problemas propostos pelos realizadores de maior nomeada de então, os Bergman, os Antonioni, os Fellini, os Rosselini, os Claude Chabrol...
João Barge - Ora um belo dia, tu, o Cap. Gomes de Araújo, cristianissimamente e sem que tivesse havido qualquer ofensa prévia, presumo eu, resolveste dar a outra face, a tua outra face: e surge o encenador Carlos Nery mais o projecto de criar de raiz um grupo de teatro.
Analisando o texto (Arménio Vicente e Maria Guilhermina)
Carlos Nery – Das conversas sobre Cinema passou-se ao Teatro... E em fazer-se Teatro... E em breve tínhamos uma bela PEDRA para fazermos uma bela SOPA: uma IDÉIA! Mas como conseguir os legumes, o sal e mais temperos, as ervas aromáticas? Não tínhamos, nem texto, nem palco, nem actores, nem técnicos, mas... começámos o trabalho!
3 – Onde se fala em “Audácia”, “Rebeldia”, “Ousadia” e até em “Coragem”...
Bombeiro (Maia Alexandre)
Rui Barbot - “A empresa de levar à cena A Cantora Careca, de Ionesco, ainda hoje retém, quando lembrada, uma intocada luz de audácia juvenil, e de discreta rebeldia”, escrevi lá em cima, no textinho a que pus o título de Verbete...
João Barge – O Luís Graça, aqui do blogue, já deu uma opinião semelhante...
“Parabéns pela ousadia e até coragem de levar à cena a peça do Ionesco”, disse num comentário ao P6183...
Maria Guilhermina, Rui Barbot e João Barge
Carlos Nery – Tem graça nunca pensei nesses termos. E quando fui o “motor” do empreendimento
admiti tudo menos ser necessário coragem para tomar tal iniciativa... Nunca senti a coisa assim... Mas, passados estes quarenta anos, pode ser... É que a obra de arte ultrapassa, muitas vezes, a intenção do artista, como sabemos.... Na altura, pensei que a nossa coragem residia unicamente em preferirmos aquele nosso convívio a eventuais “copofonia” ou “batota”, lá dentro, na messe...
4 – Traz Outro Amigo Também
Conversa com o público (João Manuel, Rui Barbot, Ana Maria, Carlos Nery, Maria Guilhermina, João Barge, Lisa Nunes, Maia Alexandre e Arménio Vicente). Notem-se os elementos de cena muito simples, as mesas de refeitório proporcionando o tablado e o conjunto de improvisados projectores.
João Barge – Do nada, na base de um amigo que traz outro amigo também, o grupo foi nascendo e fazendo o seu caminho, descobrindo e formando actores, inventando técnicos, confiando o guarda-roupa a senhoras sábias e generosas (1), improvisando palco e materiais de cena, propondo, discutindo, até se chegar à primeira peça (afastados o Auto da Índia e a Gota de Mel para evitar melindres maiores) - um texto de Eugène Ionesco - La Cantatrice chauve (A Cantora careca), publicado em 1950, um clássico do chamado Teatro do Absurdo.
Casal Martin e Mary (João Barge, Maria Guilhermina e Lisa Nunes)
Carlos Nery – Sugeri, efectivamente, esses dois textos: “A Gota de Mel” de Léon Chancerel (2) e o “Auto da Índia” de Gil Vicente. O primeiro é um poema lindíssimo que crítica o absurdo da guerra. O segundo, todos sabemos, evoca alguns aspectos negativos da nossa expansão marítima. Fidelidades e infidelidades de um casal separado pela ausência do marido na India, marido esse que, no regresso, se assume sem rebuços como um émulo, no sec. XVI, do já célebre Capitão Garcez... Pois bem, pediram-nos que fizéssemos outra coisa...
“Ah, grande Gil Vicente!”, lembro-me de ter exclamado...
5 – Dialogar no Caos
Mr. Martin (João Barge)
Mr. Smith (Rui Barbot)
Rui Barbot – E foi aí que irrompeu “A Cantora Careca”, de Eugene Ionesco. Teatro de Absurdo no teatro de Guerra? Tinha algum sentido...
Carlos Nery - “A peça que seleccionamos serve, porém,inteiramente a nossa finalidade: propor uma saída para eventuais conversações labirínticas ou marcar uma pausa na eternidade de certos jogos.
Que uma dúzia de pessoas haja decidido pôr em comum os seus esforços e tentar esta prova, pode ser em absoluto indiferente; pode causar surpresa, admiração e mesmo um certo alarme. Qualquer reação se justificará, se a não justificar o espectáculo que ides ver.
Gostaríamos, porém - e só formulamos este voto - que nos pudesse aproveitar a lição das personagens de Ionesco: - a lição de que, apesar de tudo, é possível dialogar no caos. E talvez nem seja preciso gritar muito alto."
Rui Barbot – Escrevi isso, em 1970, para o programa, não foi?
Mrs. Smith (Ana Maria)
Carlos Nery – Barbot, essa de que “ apesar de tudo, é possível dialogar no caos” era bastante ousada, naquele contexto... Não nos esqueçamos de que eram tempos em que se não dialogava com “terroristas”...
Rui Barbot - “E talvez nem fosse preciso gritar muito alto”, apetece insistir.
Carlos Nery – Valeu-nos a Comissão de Censura não ter alçada ali no Clube Militar...
6 - Un son mon ka ta toka palmu
Durante o ensaio (Ana Maria e Carlos Nery)
João Barge - Bem, mas escolhido o texto, mãos à obra. Ensaios diários, perceber o espectáculo no seu conjunto, cada um a aprender o seu papel, a trabalhar a voz, a decorar as marcações, a ganhar ritmo, a dar e receber as deixas tantas vezes até que a naturalidade apareça. E tu, agora Carlos Nery, metidos na gaveta os galões de capitão, a explicar, a corrigir, a incentivar, a acreditar e a fazer-nos acreditar. Um grupo unido na certeza de que todos juntos haveríamos de conseguir. Un son mon ka ta toka palmu (provérbio Bissau-guineense: uma só mão não chega para bater palmas).
Carlos Nery - Todas as portas se nos abriam. O tablado? Mesas de refeitório, presas solidamente, de topo para o público, ligeiramente inclinadas para permitir uma melhor perspectiva. Iluminação? Explica-se a um electricista militar, o soldado António Esteves, de pronto conquistado pelo nosso projecto, como se improvisa um orgão de luzes. E para projectores de cena, os usados, nas unidades de mato, para iluminar o terreno para lá do arame farpado.
João Barge – Lembram-se do Zé Camacho, o actor já falecido? Aquele dos “Malucos do Riso”... Também nos apoiou muito... Era cabo, julgo, no PIFAS... .
Carlos Nery – Talvez tenha nascido ali o seu gosto pelo teatro, quem sabe?
Seja como for conseguiu-se apoio para o som. Sonoplasta, o João Manuel, também soldado no PIFAS. O ecrã usado nas sessões de cinema é agora, para nós, um ciclorama onde é possível a projecção de tonalidades e sombras, numa feérie de cor e movimento. A imaginação, ali, anda à solta sem aceitar qualquer baia ou constrangimento...
7 – Um Anjo de Motorizada
Mrs. Martin (Maria Guilhermina)
João Barge - Claro que também houve alguns sustos. Uma das actrizes, por vontade própria ou alheia, resolveu renunciar e nós íamos ficando descalços ou, mais tropicalmente falando, perdidos no mato sem cachorro.
Carlos Nery – Vamos a sua casa, no recinto do Clube de Oficiais. Sou persuasivo, sou agressivo, sou convincente, sou duro. Nada a demove. É casada com um médico de nome, mobilizado para o serviço do Hospital Militar. Talvez o marido não ache graça ver a mulher metida em “teatrices”... A má fama dos “cómicos” vem de longe...
João Barge - Sentimo-nos derrotados...“Inventar” uma mulher capaz de representar o papel subitamente em falta não é fácil...
Carlos Nery – E é nesse ambiente de derrota que, subitamente, se ouve uma voz: “Tenho de ir ao Aeroporto”... É o Joaquim Fidalgo, um dos elementos do nosso grupo. Comprou uma motorizada, desloca-se facilmente. “Ao Aeroporto?” pergunto. “Sim, casei por procuração, vou buscar a minha mulher que deve estar a chegar, ainda passo por cá com ela... Até já”...
Instantaneamente todas as antenas se eriçam...
João Barge - E foi buscar a sua alma gémea, de motorizada...
Quando chegaram ao QG foram ambos devidamente emboscados, por quem de direito, e a actriz que faltava deixou de faltar.
Uma bem sucedida operação-relâmpago (sem baixas e que nos deixou em alta).
Carlos Nery – Quando os noivos chegam, vindos do aeroporto, vêem a sua lua-de-mel comprometida ou, pelo menos, adiada um bom par de horas. Eis-me, imparável, “vendendo”o que pretendemos fazer, aliciando a noiva para o nosso projecto... Acaba por aceitar e logo ali, naquela noite, se retomam os ensaios com a nóvel “actriz”...
João Barge - Foi a primeira e se calhar a última vez na minha vida que vi chegar um anjo salvador de motorizada...
Carlos Nery - Horas mais tarde, Maria Guilhermina, finalmente a caminho de casa, comenta não ter gostado de ser convencida tão facilmente...
João Barge – Tão facilmente, é força de expressão... Ela deu muita luta, se estou bem lembrado...
Carlos Nery - A “sopa de pedra” rescende sobre o lume forte que a aquece...
8 – Otto de Habsburgo e as Palavras que se não Esquecem
Otto de Habsburgo
Carlos Nery - Na noite da estreia, depois do espectáculo, escondidos entre o ecrã e a parte posterior das mesas, cujos tampos foram chão de um palco, recebemos os abraços e as felicitações dos amigos e de muita gente que mal conhecíamos. Também a “actriz” desistente nos vem abraçar entusiasmada.
Rui Barbot - “Um jornalista estrangeiro, afecto ao regime português da altura, e que viajava em reportagem pelas três frentes de combate, tendo assistido a uma das récitas daquele espectáculo vanguardista, levantado na maior economia de meios, viria felicitar-nos efusivamente, a nós, artistas mais ou menos improvisados, com palavras que não se esqueceriam. Chamava-se o senhor Otto de Habsburgo, e representava tão-só a última candidatura ao trono imperial austro-húngaro, esse mesmo que com Carlos V, rei de Espanha, se arrogara um domínio de além-mar que apenas com Manuel I, rei de Portugal, por algumas décadas partilharia.”
João Barge – Otto de Habsburgo garantiu-nos conhecer bem o teatro de Ionesco, ter assistido já a várias versões de A Cantora Careca e nunca ter visto uma encenação da peça tão de seu agrado e tão bem representada...
Carlos Nery – Talvez estivesse a ser sincero, não sei...
Rui Barbot – Parecia sincero...
João Barge – Sei lá...
9 – Aristides de Sousa Mendes
Carlos de Áustria
Carlos Nery - Era o filho mais velho de Carlos de Áustria, último soberano do Império Austro-Hungaro que, tendo sido forçado a abdicar durante a Guerra de 1914/18, se fixou na Ilha da Madeira tendo vindo a falecer aí, em 01 de Abril de 1922. Está sepultado na Igreja de Nossa Senhora do Monte, sendo alvo de grande devoção popular. Foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 03 de Outubro de 2004.
Rui Barbot – Otto de Habsburgo foi uma das primeiras pessoas a quem Aristides de Sousa Mendes, contrariando ordens expressas de Salazar, passou o visto necessário para poder passar a fronteira Franco-Espanhola a caminho de Portugal. Sendo pretendente ao trono do Império Austro-Hungaro tinha a cabeça posta a prémio por Hitler. De Portugal passou aos Estados Unidos da América.
João Barge – Na altura Aristides de Sousa Mendes acabou por conceder vistos a cerca de 30000 pessoas, entre elas 10000 judeus. Além dos vistos passados a Otto de Habsburgo e às pessoas que com ele fugiam, fê-lo também a membros do governo belga e luxemburguês, à Grã-Duquesa Charlotte do Luxemburgo, ao Rabino de Antuérpia e, uma coisa que pouca gente sabe, a Salvador Dali.
Rui Barbot – Mas que fazia em Bissau, em Abril de 1970, Otto de Habsburgo? Apresentava-se como jornalista, segundo julgo. Para que jornal escrevia?
10 – Le Pinay Circle, António de Spínola e Otto de Habsburo
Carlos Nery – Na Net há imensas referências acerca da sociedade secreta Le Circle (ou The Cercle) que dizem ter sido criada pela CIA. Veio a ser designada como Pinay Circle, antes de 1990. O Pinay Circle teria sido criado em 1969 por Antoine Pinay, Jean Violet e Otto de Habsburgo. O seu objectivo seria, na época, o combate ao comunismo. Pertenceriam ao Pinay Circle políticos, banqueiros e intelectuais europeus e americanos.
João Barge - A novidade é que, em vários sites sobre o assunto, se afirma que António de Spínola pertencia, ele próprio, ao Pinay Circle.
Carlos Nery - Nuno Barbieri, outro amigo que fiz em Buba, rejeita esta hipótese. Segundo ele, Spínola pertenceria sim à Maçonaria nunca podendo, por isso, estar ligado a uma Sociedade Secreta com ligações à Oppus Dei, como seria o caso da Pinay Circle.
11- Questões de Segurança, disseram-nos...
João Barge – Estreámos no primeiro fim-de-semana de Abril, à noite e ao ar livre, e foi um êxito. Um êxito tão grande que logo nos pediram para o repetir. Se a memória não me falha, acabámos por fazer, naquela primeira quinzena de Abril, uma série de quatro espectáculos.
Carlos Nery – No primeiro fim-de-semana para oficiais e suas famílias, no fim-de-semana seguinte para os sargentos. Ainda pensámos trazer também algumas unidades da guarnição de Bissau ao Clube Militar. Não foi considerado possível.
Quisemos, ainda, montar o dispositivo cénico no Pilão para a população africana.
João Barge - Não tenho dúvidas que teria sido um êxito. Mas... Nem pensar nisso! Os problemas de segurança seriam muitos, disseram-nos.
Rui Barbot - Descobrimos na cidade uma colectividade que tinha um pequeno palco numa sala de festas. As responsáveis pelo espaço, se estou bem lembrado, religiosas católicas, tinham-no reservado para outros eventos. Não se mostraram interessadas na nossa iniciativa nem disponibilizaram datas..
Carlos Nery - Aliás a Ccaç 2382, que eu comandara, regressara já a Portugal, em Março. Tinha-me oferecido para substituir o Alferes mais antigo, que deveria ter ficado com o Sargento que respondia pela companhia, a ultimar burocracias, entregas de material e contabilidades. Mas o meu objectivo era, principalmente, terminar o trabalho teatral a que me dedicara. Não podia, porém, prolongar por mais tempo a minha comissão na Guiné...
12 – Uma Ponta de Orgulho, Estamos Vivos...
Casal Martin (João Barge e Maria Guilhermina)
João Barge - Ionesco considerava que o seu teatro era sobretudo insólito, em vez de absurdo.
Acho que tinha razão, o que nós fizemos foi algo de insólito, naquele tempo e naquele lugar.
Que ninguém me leve a mal mas, olhando para trás, não posso deixar de sentir uma ponta de orgulho, por mim e por todos os companheiros de viagem.
Carlos Nery - Para nós, expressarmo-nos em termos de arte, era pôr de lado a guerra e libertar a imaginação soltando-a rumo ao céu pleno de estrelas da Guiné! Uma criação artística tem sempre um alvo... Mas, desta vez, julgo que, no fundo, o alvo éramos nós próprios...
Mário Cláudio – Insisto: “Tratava-se de descerrar uma certa janela, propiciadora de mais funda respiração, no quadro constritor da guerra, e com tal gesto propunhamo-nos prestar serviço aos camaradas que, interessados em pensar para além daquilo que constituía motivo de colectiva apreensão, poderiam ver no teatro moldura adequada ao exercício da sua inteligência, e da sua fantasia”.
João Barge - Creio, a esta distância, que o entusiasmo posto por todos, foi uma forma de derrotarmos aquela guerra que nos consumia. De nos dizermos: estamos vivos, somos capazes de pensar, de sentir e de transmitir emoções.
A capa (autoria de Ruy Lobato) e as duas primeiras páginas do programa
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13 – O Drama de Jolmete
Carlos Nery - Cerca de uma semana depois do nosso último espectáculo, deu-se o drama de Jolmete, junto ao Rio Cacheu. O assassinato dos Majores Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório, do Alferes Palmeiro Mosca e dos Militares que os acompanhavam, emocionou toda a gente. Nunca mais se jogou o Bingo e julgo que, a ter acontecido algum tempo antes, ter-nos-ia levado a desistir da apresentação da “Cantora Careca” em Bissau.
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(1) – Sobras do fabrico de tecidos em fábricas texteis portuguesas eram postas à venda no comércio da Baixa de Bissau, muito baratas. Foram comprados retalhos diversos e com eles se costurou o guarda-roupa do nosso espectáculo.
(2) - “A Gota de Mel” foi um dos textos utilizados por António Pedro, em 1953, quando começou a trabalhar com os amadores do Teatro Experimental do Porto. Assisti ao espectáculo de que o poema fazia parte. Fiz parte do TEP, por essa altura, participando nas peças Antígona, na versão do António Pedro, e Macbeth, também traduzida por António Pedro e ambas encenadas por ele em 1956. Quando a Companhia se profissionalizou passei a trabalhar integrado no grupo dos alunos. Contudo, assistia avidamente aos ensaios dos profissionais até que fui chamado para o COM em Vendas Novas em 1957. No início dos anos 60, em Coimbra, integrei o CITAC participando em vários espectáculos, dirigidos por Luís de Lima, entre eles o Tartufo, de Moliére.
Já em Lisboa, na Guilherme Cossul, participei na primeira apresentação de Harold Pinter em Portugal, em 1963, O Monta Cargas, tradução de Sttau Monteiro, encenação de Jacinto Ramos, cenários de João Vieira. Actores, Filipe Ferrer e Carlos Nery. (Ver minha entrevista a Jorge Silva Melo na revista dos Artistas Unidos, n.º 8 de Julho de 2003. Consultar também http://www.haroldpinter.org/plays/frn_dumbwaiter_po63.shtml
Regressado da Guiné, em Maio de 1970, fiz parte da Direcção do 1º.Acto Clube de Teatro, até 1973. Voltei a encenar aí A Cantora Careca e, em seguida o Woyseck,de Büchner (espectáculo que não chegou a ser levado ao público por ter sido alvo de cortes substanciais no ensaio de censura).
Depois do 25 de Abril, em 1976, encenei no Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, em Lisboa, A Excepção e a Regra de Bertold Brecht.
Trabalhei, a seguir, em 1977 e 78, no Teatro da Cornucópia, como actor. (http://www.teatro-cornucopia.pt/htmls/conteudos/EElVkyZApAoiXxluKM.shtml)
Actualmente pertenço à Companhia Maior do CCB.(http://www.ccb.pt/sites/ccb/pt-PT/Programacao/Teatro/Pages/BELA%20ADORMECIDA%2028%20A%2031%20DE%20OUT%20DE%202010.aspx).
Fotos dos ensaios e do espectáculo: © Carlos Nery (2010). Direitos Reservados
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 20 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6876: (Ex)citações (94): A maioria silenciosa do nosso blogue (Carlos Nery)
Vd. também postes de:
3 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6670: V Convívio da Tabanca Grande (12): Caras novas (Parte III): O João Barge, da CCAÇ 2317, que foi meu actor em A Cantora Careca, com o Rui Barbot/Mário Claúdio... (Carlos Nery)
e
24 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6781: Controvérsias (98): Quem não se sente... não é filho de boa gente (Carlos Nery)