Queridos amigos,
Foram de facto férias acaloradas, com lazeres saborosos e o repouso indispensável. Aqui ponho o término às leituras que fiz. À hora que escrevo, já posso juntar um conjunto de recensões de mais livros sobre a nossa Guiné.
Esperem pela pancada, um abraço do
Mário
Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (9)
Um valioso acervo de reportagens sobre as últimas décadas de África
por Beja Santos
Chegou a hora de arrumar a bagagem do viajante. Talvez seja verdade que a viagem nunca acabe mas os artefactos comuns e incomuns têm a sua hora de chegada e de partida, quando se escolhe novo itinerário. A biblioteca está arrumada de acordo com a lógica do seu frequentador, há ali processos de arrumação que qualquer bibliotecário contestaria: discos de vinil ao lado de catálogos, revistas a ombrear com documentos metidos em micas, etc. Mas essa é a lógica do frequentador, ele pode abrir a porta da antiga casa da carroça e entende-se, quase de olhos fechados, com aquela floresta de papel e outros haveres.
Chegou a vez de meter na pasta os livros para ler na próxima semana. E despedir-se daquela atmosfera onde vai ficar durante muito tempo a impressão indelével deixada pela leitura de “Ébano, Febre Africana”, de Ryszard Kapuscinski (Campo das Letras, 2002). São reportagens iniciadas no Gana, em 1958, o talentoso jornalista polaco andou por golpes de Estado, atravessou desertos, acompanhou a chacina de Ruanda, estamos agora nos anos 90 na parte ocidental da Etiópia, perto da fronteira com o Sudão. Existe ali um campo de refugiados onde as pessoas vegetam, sempre a meio caminho entre a vida e a morte. Kapuscinski pretende visitar este campo onde estão 150 000 membros da tribo nuer, refugiados da guerra no Sudão. Se tudo quanto se leu até agora de “Ébano” ultrapassa o delírio e o inferno, esta descrição de um Sudão cujo norte é árabe e o sul cristão é o pico do surrealismo e da violência gratuita as diferentes guerras sudanesas afundaram o Sudão. Aliás o país vive a guerra mais longa e de maior dimensão na história de África. Os seus trágicos campos de morte são praticamente inacessíveis aos meios de comunicação social. O norte é populoso, o sul não tanto. No mar de tribos do sul temos com maior importância os dinka e os nuer, facilmente identificáveis: são enormes com quase dois metros de altura e têm uma cor de pele muito escura. Alimentam-se praticamente só de leite, e às vezes, do sangue das vacas. Quem desencadeou esta guerra? Ao que parece, ninguém sabe. Em África, uma guerra, mesmo a mais sangrenta, cai depressa no esquecimento, os documentos são praticamente inexistentes e não há coleccionadores, museólogos ou arquivistas. É por isso que ninguém tem uma chave explicativa para estes saques e pilhagens, estes exércitos com diferentes chefes. Quando o regime de Cartum se apercebe que tem que dar um sinal de brutalidade, utiliza a fome como arma, um pouco à semelhança do que Estaline fez em 1932 com os ucranianos. O campo de refugiados apresenta-se vazio. Para onde foram? Para o Sudão. Por quê? Os chefes mandaram. E quem quer sobreviver obedece.
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Delirante e acima de qualquer adjectivo é o que o jornalista vê em Monróvia, uma cidadã totalmente depredada num país paradoxal: “A Libéria é uma perpetuação da escravatura por vontade dos próprios escravos, que não querem derrubar esse sistema injusto – mas, pelo contrário, querem mantê-lo, desenvolvê-lo e aproveitá-lo na defesa dos seus próprios interesses”. Os chamados afro-americanos vieram da América até África e passaram a escravizar os autóctones. Se alguém quiser conhecer o racismo negro visite a Libéria. Os tiranos têm um partido único, são cruéis e cada vez que um se autoproclama presidente manda executar os ministros do governo anterior. Kapuscinski assiste à execução do tirano Samuel Doe, desfeito, esquartejado em público e depois lançado aos cães.
E depois de muitas peripécias, chegamos à Eritreia, o mais jovem país de África, um Estado pequeno. A Eritreia começou por ser uma colónia da Turquia, depois do Egipto e, no século XX, passou sucessivamente pelas mãos da Itália, da Inglaterra e da Etiópia. Com Mengistu, os soviéticos apoiaram a repressão do movimento de libertação. Kapuscinski visita o museu militar da Eritreia, uma planície a perder de vista com quilómetros e quilómetros de material de guerra, tanques médios e pesados, uma infinidade de canhões aéreos e morteiros, centenas de carros blindados, veículos camuflados, anfíbios, centenas de milhares de metralhadoras, obuses e helicópteros de guerra. Só com aqueles tanques seria possível conquistar todo o continente africano. Como foi possível este temível exército ter sido derrotado pelos Eritreus? Uma boa questão que nos pode remeter para os problemas da Guiné-Bissau. A Eritreia é um país que não tem indústria e a agricultura é praticamente anacrónica. 100 000 soldados acordam diariamente sem ter que fazer e, sobretudo, sem ter que comer. E assim chegamos às cenas de pirataria e da miséria mais constrangedora, em que as cidades estão pejadas de enormes tanques que ninguém pode retirar porque não há gruas.
E no final das férias chego ao final da viagem por uma África de belos planaltos e savanas, de desertos, rios gloriosos, desertos temíveis, chuvas torrenciais, calores tórridos, amanheceres deslumbrantes. O colonialismo juntou à força pequenos estados, reinos, associações étnicas. A descolonização não pôde conter a diversidade do mosaico, ninguém sabe quantas gerações vão ser precisas para a nova África estabilizar, aceitando a sua versatilidade, o seu multicolorido. E a descobrir a democracia e a partilha das riquezas.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6894: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (8): Ébano Febre Africana, de Ryszard Kapuscinski (Mário Beja Santos)
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