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segunda-feira, 27 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23388: Notas de leitura (1459): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Não conheço relato mais impressivo, rigoroso, construído com grande respeito e genuína curiosidade sobre a África da descolonização até aos conflitos de hoje como "Ébano", daquele que é tido como figura de topo do jornalismo mundial, Ryszard Kapuscinski. Ele aterra no Gana no período em que Kwame Nkrumah é olhado como um semideus, um líder libertador, nele estavam centradas as esperanças de quem acreditava que chegara a hora da prosperidade, fechando assim as portas ao jugo colonial. Assistiremos a golpes de Estado, a coisas tão incompreensíveis como o drama da Libéria, o inenarrável conflito entre tuaregues e agricultores sedentários, em diversos países, o jornalista dá-nos uma chave explicativa para compreender um monstro que se chamou Idi Amin, e em dado momento, a poucos quilómetros de Adis Abeba ele percorrerá quilómetros de material de guerra inerte oferecido pelos soviéticos aos etíopes para destruir os eritreus, que a tudo resistiram, e alcançaram a sua independência. É um livro indispensável para compreender a história africana do último meio século, é de leitura obrigatória.

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (3)

Beja Santos

“Ébano, febre africana”, por Ryszard Kapuscinski, Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, abarca reportagens concatenadas de um dos maiores jornalistas do mundo que chegou a África em 1957 e passou a acompanhar regularmente acontecimentos relacionados com o fim da descolonização, golpes de Estado, lideranças ditatoriais, tudo alicerçado numa observação de estudo cuidado e de um grande respeito e genuína curiosidade. É uma longa viagem, caminhamos para o terminal, tudo começou no Gana, eram tempos de muita inocência, acreditava-se que numa braçada se atingia a civilização, o desenvolvimento, o fim do obscurantismo.

O repórter percorre o Tanganica, o Uganda, o Quénia, cai a pique num golpe de Estado em Zanzibar, acompanha um golpe de Estado na Nigéria, tudo truculento e bizarro, sobe à Etiópia, descreve um ditador patológico chamado Idi Amin, explica-nos o genocídio de Ruanda. É uma África caleidoscópica, onde há pores de sol deslumbrantes e feiticeiros sanguinários. É cuidadoso no enunciado, possui uma comunicação incisiva, vê-se que tudo estudou sobre aquele dossiê, quer fazer-nos compreender, não nos obriga a tomar qualquer partido.

Veja-se a forma primorosa como descreve os conflitos inenarráveis do Sudão, com o seu norte árabe e islâmico e o sul negrilho, cristão, duas sociedades com antagonismo fortemente enraizado. A primeira guerra sudanesa durou dez anos, até 1972, seguiu-se uma década de paz frágil e instável, até que em 1983 o governo islâmico de Cartum tentou impor a lei islâmica, iniciou-se uma desastrosa fase de guerra, que se mostra interminável. É porventura a guerra mais longa e de maior dimensão da História de África e provavelmente a de maior dimensão no mundo, como não ameaça diretamente a Europa e os Estados Unidos, os media não falam dela. No norte do Sudão há predominantemente areia e pedras, pelo meio temos um cordão verde largo e intenso de campos e plantações, nas margens do Nilo; o sul é marcado pelo verde-esmeralda dos campos. Os campos ao longo do rio serviram de sustento a milhões de felás árabes e tribos nómadas.

O poder em Cartum expulsou os felás, estes apropriaram-se dos solos férteis do Nilo, desencadeou-se uma guerra contra o Sul, são tratados como uma colónia. Veja-se um exemplo do prodígio narrativo de Kapuscinski:

“Os habitantes do norte são cerca de vinte milhões, os do sul apenas seis milhões. Os habitantes do sul repartem-se por dezenas de tribos com numerosas línguas, religiões e cultos. Nesse mar de tribos do sul, há duas, porém, que emergem mais claramente, dois povos que juntos representam metade da população desta parte do país. São os dinkas e os nuers. É fácil identificá-los à distância: são enormes, dois metros de altura, magros e têm uma cor de pele muito escura. Uma raça bonita, atlética, digna, talvez até um pouco arrogante. Alimentam-se praticamente só de leite e, às vezes, do sangue das vacas, que criam e idolatram”.~

São nómadas, precisam de espaço, responderam de armas na mão às humilhações de Cartum. E gente inocente morre de fome, vive em acampamentos. Continuam à espera de voltar à sua terra, acreditam que um dia chegará a paz.

O repórter segue para a Somália, outra descrição incomparável. E partimos para Bamako, a capital do Mali:

“Eu estava em Bamako porque esperava encontrar ali a guerra contra os tuaregues. Os tuaregues são eternos vagabundos. Será que poderemos chamar-lhes assim? Um vagabundo é alguém que percorre o mundo à procura de um lugar para si, uma casa, uma pátria. O tuaregue tem uma casa, uma pátria, onde vive há milhares de anos – o interior do Saara. A sua casa é diferente das nossas. Não tem paredes nem telhado, portas ou janelas. O tuaregue despreza tudo o que lhe restringe os movimentos. A sua pátria não tem limites, abrange milhares de quilómetros de areia e rochas, um mundo imenso, enganador e infértil, que todos os outros homens temem e evitam. As fronteiras desta pátria do deserto são onde terminam o Saara e o Sahel e começam os campos verdes e as aldeias das tribos suas inimigas. Há séculos que se trava uma guerra entre estas duas partes. Muitas vezes a seca no Saara é tal que se esgotam todas as fontes e os tuaregues são forçados a deixar o deserto, com os seus camelos, e a mudar-se para as regiões verdes, na direção do Níger e do lago do Chade. Os camponeses africanos sedentários consideram estas visitas uma espécie de invasão. O ódio entre eles e os tuaregues é visceral e eterno, porque estes não só lhes incendeiam as aldeias e lhes roubam o gado, como também transformam os camponeses em escravos seus. Os tuaregues são berberes de pele clara e consideram os africanos negros uma raça desprezível de seres inferiores”.

E, mais adiante:

“Os tuaregues estão em vias de extinção, a sua existência tende para o fim. São expulsos do Saara pelas terríveis e intermináveis secas. Além disso, antigamente, uma boa parte dos tuaregues ganhava o seu sustento assaltando caravanas que hoje já praticamente não existem ou então vão bem armadas. Assim, têm que se mudar para regiões melhores, onde haja água, mas essas já estão ocupadas. Há tuaregues no Mali, na Argélia, na Líbia, no Níger, no Chade e na Nigéria, mas há-os também noutros países do Saara. Não se consideram cidadãos de nenhum país nem querem ter de se submeter a nenhum governo, nem a nenhum poder estatal”. 

Haverá descrições de horrores, ninguém pode ficar insensível ao drama da Libéria, ao mais insólito dos racismos, como ninguém pode ficar insensível àquela guerra sangrenta que dilacerou a Eritreia e a Etiópia.

É estonteante a visita que Kapuscinski faz a Debre Zeyit, a alguns quilómetros de Adis Abeba:

“Uma planície a perder de vista, sem uma única árvore até à linha do horizonte que aparece envolta numa nebulosidade ténue. Toda esta superfície está coberta com material de guerra.
Quilómetros e quilómetros de material de campanha de diferente tipo, filas intermináveis de tanques médios e pesados, florestas de canhões antiaéreos e morteiros, centenas de carros blindados, veículos camuflados, postos móveis de rádio e veículos anfíbios. E, do outro lado da colina, há gigantescos hangares e paióis – os hangares albergam componentes de metralhadoras por montar, e os paióis estão cheios de munições e minas. Aquilo que mais nos surpreende e perturba são as quantidades inimagináveis de material bélico, este amontoado incrível de centenas de milhares de metralhadoras, obuses e helicópteros de guerra. Todo este equipamento foi oferecido ao longo de muitos anos por Brejnev a Mengistu e enviado da União Soviética para a Etiópia. Mas na Etiópia não havia pessoas suficientes para utilizar nem sequer 10% destas armas. Estes tanques serviam para conquistar todo o continente africano; a força destes canhões e ‘katiushas’ reduziria toda a África a pó e cinza. Ao passear pelas ruas desertas desta cidade de aço imóvel, onde em cada esquina espreitava a mira de um canhão e onde as filas de tanques arreganhavam os dentes, pensei no homem que sonhou subjugar todo o continente africano”
.

E despede-se com uma advertência:

“Quando um europeu viaja por África, vê apenas uma parte do continente – geralmente a parte exterior, que não tem grande interesse e é a menos importante. O seu olhar percorre a superfície sem penetrar mais fundo, como se não pudesse acreditar que por detrás de cada coisa há um segredo escondido e esse segredo está no centro das próprias coisas. Mas a cultura europeia não nos preparou para estas expedições à profundidade, às origens de outros mundos e culturas. O drama de algumas culturas – entre as quais a europeia – foi devido ao facto de, no passado, os seus primeiros contatos com outras culturas terem sido estabelecidos por pessoas da mais estranha espécie – mercenários, aventureiros, criminosos, traficantes de escravos, etc. Havia também outros, mas em menor número – missionários honestos, viajantes e exploradores entusiasmados”.

Foi uma questão de contabilidade, prevaleceu o maior número, a pilhar, saquear e matar. E as culturas, em vez de se conhecerem, se aproximarem e se misturarem, confrontaram-se ou ficaram indiferentes entre si. E as relações entre as pessoas foram determinadas pelo mais primitivo dos critérios, a cor da pele. O racismo tornou-se a ideologia em função da qual as pessoas ocupavam o seu lugar na ordem do mundo. Enfim, é necessário possuir muita humildade para compreender a História africana do último meio século e dos desafios que hoje se põem. Esta obra-prima do jornalismo é uma chave como não há outra, no panorama literário.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23382: Notas de leitura (1458): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23370: Notas de leitura (1457): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Quando surgiu este livro em 1998, foi um murro no estômago para muita gente. Uma das figuras gradas do jornalismo mundial que acompanhara sistematicamente os eventos do continente africano durante mais de quatro décadas, punha a nu novas e velhas tiranias de regimes exclusivamente africanos, com a sua encenação de massacres, genocídios, lideres paranoicos e corruptos. É impossível não sentir um calafrio a ver quilómetros de sucata soviética posta ao serviço de um terrível conflito no Corno de África. Como ele escreve: "Não é um livro sobre África, mas sim sobre algumas pessoas de lá. É um continente demasiado grande para poder ser descrito. É um verdadeiro oceano, um planeta independente, um cosmos variado e rico. É apenas por uma questão de simplicidade e de comodidade que falamos de 'África'. De facto, essa África não existe sequer, a não ser como conceito geográfico".

Um abraço do
Mário



Ébano, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (1)

Beja Santos

Ryszard Kapuscinski é reconhecido como um dos nomes maiores do jornalismo moderno, um repórter inigualável na cena mundial. Foi um observador direto do início do fim da era da colonização e nos quarenta anos seguintes aqui voltou, deixando testemunhos marcantes de golpes de Estado, massacres hediondos, desvelamento de estranhíssimas guerras tribais e a emergência do racismo. Para quem quer saber o que se tem passado nessa África independente é fundamental conhecer esta obra-prima do jornalismo: “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski, Livros do Brasil/ Porto Editora, 2018.

Tudo começa no Gana, em 1958, tempo impulsivo e de inocência, Kwame Nkrumah ainda é tratado como um semideus. E vai anotando, para que o leitor europeu saiba diferenciar em vez de minimizar ou ridicularizar:
“Os europeus e os africanos têm noções de tempo completamente distintas. A perceção que têm do tempo é diferente, como é diferente a relação que com ele mantêm. O europeu está convencido de que o tempo tem uma existência exterior a ele próprio, uma existência objetiva e com uma natureza mensurável e linear. O europeu vê-se a si próprio como um escravo do tempo, está dependente dele, é-lhe submisso. Para poder existir e funcionar tem de respeitar as suas leis férreas e imutáveis, as suas regras e princípios inflexíveis. Os africanos vêem o tempo de modo diferente. O tempo é para eles uma categoria bastante ligeira, elástica, subjetiva. O homem influencia a configuração do tempo, o modo como ele decorre e o ritmo (obviamente só o homem que vive em boas relações com os seus antepassados e com os deuses o consegue). Uma inversão completa do pensamento europeu. Daí que um africano, depois de entrar num autocarro, nunca pergunte quando vai partir; entra, senta-se no lugar livre e passa imediatamente a um estado no qual passa uma grande parte da sua vida – à espera”.

E segue-se outra observação, que se deve atrelar à anterior: “O problema de África é a contradição entre o homem e o ambiente, entre a imensidão africana e o homem indefeso, descalço e pobre que é o seu habitante. Para onde quer que nos voltemos, a paisagem é sempre imensa, tudo está vazio, sem ninguém a perder de vista. Antigamente tinham de se percorrer centenas, até milhares de quilómetros para se encontrar outras pessoas. Não havia informação, saber, progresso técnico, riqueza, mercadorias, experiências diferentes – tudo isto se mantinha longe, não chegava até ali, porque não encontrava o caminho”.

O jornalista viaja, está agora em Kampala, o Uganda dentro de dias será independente. E ele comenta:
“A política interna africana e a dos seus estados é complicada e difícil de perceber. Tal situação deve-se, sobretudo, ao facto de, aquando da partilha de África entre eles, os colonizadores europeus terem reduzido a pouco mais de quarenta colónias os cerca de dez mil pequenos reinados, federações e associações de tribos não estatais, mas independentes, que existiam neste continente na segunda metade do século XIX. Muitos desses reinos e associações tinham um longo historial de conflitos e guerras entre si. E, de repente, viram-se forçados, sem que ninguém lhes pedisse a sua opinião, a integrar a mesma colónia, sendo regidos pela mesma potência (estrangeira) e pelas mesmas leis. Mas tinha começado a era da descolonização. As antigas relações interétnicas, que tinham sido congeladas ou pura e simplesmente ignoradas pelas potências estrangeiras, ressuscitavam, tornando-se de novo ativas. Surgia a oportunidade de libertação, mas uma libertação sob a condição de que os inimigos de outrora formassem agora um estado comum, ao qual servissem em conjunto, económica, patriótica e militarmente”.

Um grande repórter é forçosamente um observador subtil, de cultura aprimorada e dotado para a escrita como escritor maior. Veja-se como Kapuscinski nos apresenta a Etiópia:
“A Etiópia Central é um planalto vasto e grandioso, atravessado por numerosos vales e desfiladeiros. Na época das chuvas, surgem imensos rios no fundo destes enormes despenhadeiros. Nos meses de verão, a maioria seca e desaparece, deixando à mostra o solo seco e gretado e fazendo com que o vento levante nuvens negras de lama, transformada em cinza pelo sol. Ao longo deste planalto, existem montes com três mil metros de altura, que em nada fazem lembrar os graníticos Alpes cobertos de neve, os Andes ou os Cárpatos. Estes são compostos por rocha cor de cobre e bronze, exposta à erosão com os cumes achatados e tão planos que poderiam até servir de aeroportos naturais”.

Apresentada a geografia, informa-nos sobre uma situação bélica descomunal:
“Estamos em meados dos anos setenta. África encontra-se no limiar de duas décadas de maior seca da sua história. Guerras civis, golpes de Estado, massacres e ainda a fome que passavam milhões de pessoas na zona do Sahel (África Ocidental) e na África Oriental (sobretudo no Sudão, no Chade, na Etiópia e na Somália) – eram algumas das facetas da crise. A maioria dos países do continente tinha sacudido o colonialismo e iniciado a sua existência de Estados independentes. Nas ciências políticas e económicas prevalecia naquela altura a convicção de que a liberdade trazia o bem-estar, de que a liberdade iria transformar, da noite para o dia, regiões miseráveis num mundo onde corressem, com abundância, leite e mel. Mas a realidade provou ser muito diferente. Nos novos países africanos, estalaram lutas pelo poder, em que ninguém olhava a meios: conflitos tribais e tensões étnicas, o poder do Exército, as tentações de corrupção, ameaças de morte. Simultaneamente, os Estados davam provas de fraqueza e incapacidade de cumprir as suas principais funções. E tudo isto numa época em que o mundo estava sob o domínio da Guerra Fria, transportada para África tanto pelo Ocidente como pelo Leste. Uma caraterística marcante da Guerra Fria consistia em ignorar pura e simplesmente os problemas e interesses dos Estados fracos e dependentes, encarando os seus dramas e acontecimentos apenas na perspetiva dos interesses próprios, sem lhes atribuir uma importância específica”.

E assim chegamos a Idi Amin, o ditador mais conhecido em toda a história da África Moderna e um dos mais execráveis do século XX em todo o mundo.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23359: Notas de leitura (1456): Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso (Mário Beja Santos)