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sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24797: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte III: Tem calma, és novo e o tempo há-de passar"


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadina > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Cartaz humorístico pregado numa árvore nas imediações do "campo fortificado de Mansambo", como lhe chamava a "Maria Turra": "Bem vindo, welcome, bienvenu, bienvenidos. willkommem"

Foto (e legenda): © Torcato Mendonça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Jerónimo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74). O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. Na tropa e na guerra era mais conhecido por Jerónimo. 

Criou o blogue Molianos, viajando no tempo, em data difícil de precisar (c. 2013/2014). Aí esreceveu ("Quem sou eu"):

(...) Nasci a quinze de maio de mil novecentos e cinquenta, até aos cinquenta e três anos tive como companheira inseparável, a pressa.  Um dia, a doença bateu-me à porta de forma violenta, foi então que reparei que por onde tinha passado não era muito o que tinha visto, do que tinha ouvido, talvez não tenha dado a atenção que devia. 

A partir daí o meu modo de encarar a vida passou a ser diferente, passei a valorizar coisas que antes não dava importância e, outras que considerava  interessantes, afinal não tinham o interesse que eu supunha. Hoje, sei o que quero,  por isso penso assim e digo aquilo que penso, talvez  por isso tenha construído este blogue, que me permite falar para todos e  para ninguém ao mesmo tempo. (...)


II. Em Mansambo, de fevereiro de 1972 a março de 1973: "tem calma, ainda és novo e o tempo há de passar" (*)

(...) Os primeiros dias   [em  Mansambo, onde cheguei em fevereiro de 1972, e onde já estava instalada a minha CART 3493]  foram de uma tristeza enorme e difícil de explicar; recordo-me de um dos primeiros serviços que fiz, foi segurança à fonte, onde íamos buscar a água com que abastecíamos o aquartelamento para uso diário, que ficava a cerca de duzentos metros do arame farpado que circundava as nossas instalações, mas para fazer esse trajecto era necessário proceder à picagem do caminho todos os dias pela manhã, tendo em vista detectar alguma mina que a coberto da noite o IN lá pudesse ter colocado.

Ao chegar junto da fonte, cinco ou seis homens ficavam por ali a fazer segurança enquanto outros dois andavam com um unimog, o famoso "burrinho",  a transportar água para o aquartelamento. 

Eu estava triste pensando em quase tudo... e não encontrava nada que me levantasse o ânimo, por momentos ocorreu-me a ideia de escrever qualquer coisa… escrevi a seguinte frase: tem calma, ainda és novo e o tempo há -de passar; frase que sempre me acompanhou, e que eu li vezes sem fim durante o tempo que estive na Guiné.

Na minha especialidade de condutor, tinha como função principal o transporte de pessoal, as viagens maiores eram as que fazíamos em coluna a Bafatá, onde íamos com regularidade uma vez por semana, normalmente buscar, entre outras coisas, duas vacas que eram consumidas pelo pessoal da Companhia , eram animais de pouco peso, e outra coisa para nós não menos importante, que era o correio, naquele tempo, a única forma de ter noticias da terra, da família e dos amigos. Eu era um dos que recebia muita correspondência. 

Recebi cartas e aerogramas escritos todos os dias em que estive na Guiné, ainda que muitos chegassem no mesmo dia; também eu, durante o tempo que lá estive escrevi todos os dias para a minha esposa, quando recebia correspondência, respondia com uma carta, os outros dias escrevia aerogramas. Para outras pessoas de família e para alguns amigos também escrevia mas só aerogramas. 

Havia também quem ao longo do tempo de permanência em África raramente recebesse correspondência, quando chegava o momento da distribuição todos se aproximavam, mas para alguns, em vez de alegria, era um momento de acrescida tristeza, pois correspondência para eles não havia.

As viagens de transporte de pessoal aconteciam também quando elementos nossos iam participar em operações fora da nossa zona, assim como fazer segurança aos que passavam na picada na zona de Mansambo, em especial às colunas de abastecimento que iam de Bambadinca ao Xitole, e regressavam ao fim do dia, enquanto não regressassem tínhamos de estar algures na picada na missão de segurança que nos era destinada.

 (...) 
Quando saíamos de Mansambo, durante cinco ou seis quilómetros na frente do pessoal que seguia a pé e das viaturas, iam três ou quatro picadores tentando descobrir alguma mina que pudesse existir na picada, o que nem sempre conseguiam, eram momentos de grande tensão em particular para os condutores, durante esse tempo de picagem, só o condutor seguia na viatura, porque tinha que ser, senão nem ele lá ia… as minas anti-carro eram demolidoras, pobre daquele que tinha o azar de conduzir o veiculo que as accionasse, principalmente se ela rebentasse do lado do motorista.

O aquartelamento de Mansambo, naquele tempo em que a nossa Companhia lá esteve, de fevereiro de 1972 a fins de março de 1973, não era considerado muito mau, atendendo ao que acontecia em quase todo o território da Guiné.

Certamente não pensam assim… o furriel Ferreira, que seguia numa viatura na picada de Candamã que accionou uma mina e ele ficou sem um pé, ou o Silva do 2.º Pelotão que estava para vir de férias dentro poucos dias, e mais outro de quem já me não lembro o nome, que ficaram cada um sem um pé ao accionarem minas anti-pessoal. 

Durante o tempo em que lá estive, só uma vez fomos flagelados à distancia, onde o IN utilizou o morteiro 82, eu e mais cinco condutores estávamos nesse momento com o carro dentro dum grande buraco, que terá sido feito a quando da construção dos abrigos pelas companhias que nos antecederam, a carregar terra para levarmos para a oficina, estávamos a fazer uma pausa e todos a beber uma cerveja, a popular bazuca que era uma cerveja grande, creio ser de seis decilitros, quando ouvimos o som de disparo de um morteiro, uma saída. 

 (...) Antes no verão de 1972 vim de férias à Metrópole. A viagem de Mansambo até Bissau foi demorada, de coluna até Bambadinca onde estive três dias à espera de transporte, até que tive boleia numa avioneta que me levou até Bissau, de todas as viagens que fiz por via aérea foi a que menos gostei, onde estive mais três dias à espera do voo TAP que me trouxe até à Metrópole, onde passei um mês de férias. Férias… não sei se será a definição correcta, pois mesmo estando cá, o pensamento estava sempre no dia do regresso, que em breve aconteceria a terras de África.

No abrigo dos condutores tínhamos um faxina, era um miúdo da tabanca, que a troco de uns pesos nos ia buscar a comida à cozinha,  lavava a loiça e varria o abrigo, a quem eu prometi levar uns sapatos quando fosse de férias; durante o tempo em que estive na Metrópole, os meus camaradas mandaram o Sherifo embora, para ele a chatice maior não era ir embora, o pior é que o Fireira, como ele me chamava, provavelmente já não lhe dava os sapatos; mas não, assim que cheguei, mandei-o chamar à tabanca e dei-lhe os sapatos novos, coisa que ele com treze ou catorze anos de idade nunca tinha tido.

No dia seguinte, o Sherifo na companhia de mais três meninos da tabanca, com alegria e a felicidade estampada no rosto, vieram levar-me uma galinha, momento que jamais esquecerei, e certamente o Sherifo também não, dentro do possível sempre procurei respeitar os nativos como pessoas iguais a todos os demais. 

Recordo-me de certo dia um grupo de condutores ter tirado um cabrito, que era de alguém de uma tabanca por onde passaram. Fui convidado para ajudar a comer o petisco mas recusei-me a participar. Era para mim uma forma de protestar ainda que em silencio contra um acto com que eu não concordava. Passados alguns dias, o dono do animal queixou-se ao Comandante da Companhia, tendo este ordenado o pagamento do valor do animal a quantos o tinham comido.

Em Mansambo todos os militares tinham uma lavadeira, que a troco de alguns pesos, moeda da Guiné, lavavam-nos a roupa e passavam-na a ferro. A Califa era a menina que me lavava a roupa, tinha só catorze anos, mas já estava vendida a um homem com cerca de quarenta. (...) (**)

(Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos  / Parêntes retos: LG)

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24785: Excertos dos melhores escritos de António Eduardo Ferreira (1950-2023), ex-1º cabo cond auto, CART 3493 / BART 3873 (Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74) - Parte I: A porta estreita da vida


Coimbra > IPO - Instituto de Oncologia > Abril de 2015 > O "paciente" António Eduardo Ferreira na sua 5ª sessão de quimioterapia. Foi-lhe diagnosticado um cancro em 2004. E lutou contra ele quase 20 anos, com tenacidade, coragem e dignidade. Era natural de Moleanos, concelho de Alcobaça.


1. Série com pequenos excertos dos melhores postes do António Eduardo Ferreira (1950-2023) (ex-1.º Cabo Condutor Auto da CART 3493 / BART 3873, Mansambo, Cobumba e Bissau, 1972/74). O nosso camarada era natural de Moleanos, Alcobaça. (*)


I. A porta estreita da vida (**)
António Eduardo
Jerónimo Ferreira (1950-2023)


(...)  Como encarar a vida quando confrontados com um doença como o cancro?

Primeiro,  “descer à terra” e pensar que,  apesar de não parecer, estamos a ser confrontados com algo cada vez mais normal. Por vezes somos levados a perguntar, mas porquê a mim? Pergunta que só tem razão de ser pelo desnorte que naquele momento estamos a viver. Quantos, antes de nós não passaram pelo mesmo? Uns mais velhos, outros mais novos, algumas ainda crianças.

(...) A minha doença foi diagnosticada nos últimos meses do ano de dois mil e quatro, seguiram-se cinco meses de espera e a cirurgia em fevereiro do ano seguinte, hoje talvez esperasse menos tempo, passados cerca de dois meses, fui sujeito a trinta e cinco tratamentos de radioterapia, reagi sempre bem, os efeitos secundários foram quase inexistentes. 

Ao longo destes anos continuei sempre a ser seguido no IPO de Coimbra.

No início do ano de 2015, os valores tumorais estavam demasiado altos, foi então que foi decidido que tinha de fazer quimioterapia,  o que aconteceu a partir do início do mês de abril, seguiram-se dez tratamentos com intervalos de três semanas. 

No início fiquei um pouco assustado, atendendo ao que ouvia falar acerca dos possíveis efeitos secundários, no primeiro dia fui acompanhado por uma pessoa de família ao tratamento, a viagem é de aproximadamente cem quilómetros de minha casa até ao hospital, nas restantes nove sessões a que fui sujeito entendi que não era necessário ir alguém comigo.

Tudo foi menos complicado que eu imaginava, o mais aborrecido era a deslocação, mas também se tornou fácil a partir do momento em que decidi utilizar o transporte facultado pelo hospital em viaturas dos bombeiros (...).

Terminadas as dez sessões, fim do tratamento, senti um alívio enorme próprio de quem passou por mais uma porta estreita da vida, daquelas que nunca se sabe se conseguimos passar, os efeitos secundários comparando com o que acontece a algumas pessoas foram poucos,  o que me permitiu continuar a fazer uma vida quase normal, com exceção do dia do tratamento, todos os outros continuei a fazer a caminhada como antes fazia, de aproximadamente uma hora.

Para que tudo decorresse tão bem há que realçar o trabalho desenvolvido por um grupo de pessoas que tudo faz para que os doentes se sintam o melhor possível, desde o pessoal médico, as enfermeiras/os, os técnicos, pessoal administrativo, e outros, não esquecendo os voluntários sempre prontos a ajudar sem receber nada em troca.(...)

(...) Cada caso é um caso, o meu tratamento tinha uma duração de aproximadamente duas horas, outros demoravam o dobro e alguns ainda mais, os efeitos secundários podem ser muito diferentes de pessoa para pessoa, pois o tratamento administrado não é igual para todos e a reação de cada um também pode ser diferente. (...)

António Eduardo Ferreira (2016) (Excertos) (**)

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24467: Direito à indignação (16): Senhores da RTP, retirem dos arquivos aquelas provocatórias, hipócritas e desajustadas imagens da visita de 'Nino' Vieira ao marechal António de Spínola, no Hospital Militar Principal (António Ramalho, ex-fur mil at cav, CCAV 2639, Binar, Bula e Capunga, 1969/71)


RTP Arquivos : Vídeo (1' 28'') > 1996-08-13 > Evocação da visita de Nino Vieira a António de Spínola > RTP 1 > Telejornal > 'Nino' Vieira, Presidente da Guiné Bissau, visita o Marechal Spínola, Primeiro Presidente da República pós-25 de Abril, internado no Hospital Militar Prinicipal. 'Nino' Vieira na qualidade de Presidente da Guiné-Bissau estava a fazer uma visita de Estado a Portugal (que decorreu entre 1 a 4 de julho de 1996. Spíbola, já muito debilitado, viria a morrer, em Lisboa, um mês depois, em 13 de agosto de 1996, aos 86 anos.

Resumo analítico do vídeo: "Imagens de arquivo; Spínola, entubado, a conversar com Nino Vieira e a dar-lhe a mão; imagens a preto e branco, militares a consultar um mapa; Spínola a caminhar no mato; Spínola, vestido à civil, a visitar aldeias guineenses na qualidade de Governador da Guiné; 00H19M41, Nino Vieira conta como a sua mãe admirava Spínola; Spínola e Nino Vieira a dar as mãos."

Imagem, legenda e resumo analítico: RTP Arquivos 

Fotograma do vídeo (com a devida vénia...) | Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Mensagem de António Ramalho  [natural da Vila de Fernando, Elvas, a viver em Vila Franca de Xira, foi fur mil at da CCAV 2639 (Binar, Bula e Capunga, 1969/71), membro da Tabanca Grande, com o nº 757: tem 36 referências no nosso blogue]

Data - sábado, 8/07/2023, 15:53 

Assunto - Programa - Sociedade Civil, RTP2,  semana de 3 a 7/6/2023

Exmo. Senhor Luís Castro.

Apresento-lhe os meus mais respeitosos cumprimentos.

Atento aos seus programas, elegendo aqueles que me parecem ter interesse para a minha pessoa, por força das circunstâncias elegi os da semana que termina hoje, sobre as figuras em apreço: António de Spínola, Álvaro Cunhal, Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral.

António de Spínola: retirem dos arquivos da RTP aquelas provocatórias, hipócritas e desajustadas imagens da visita de 'Nino' Vieira a Spínola, no HMP (Hospital Militar Principal), destruam-nas ou no mínimo retirem-lhe o áudio!

Respeitem a memória das famílias daqueles que tombaram às suas mãos, onde inclúo e não esqueço os nossos queridos três majores e um alferes, nas célebres tréguas fingidas, em Abril de 1970.

Veja-se o triste final de Nino Vieira, assassinado pelos seus...

Também consta dos vossos arquivos, o célebre Capitão Peralta, um cubano, ferido e capturado numa operação que visava capturar 'Nino' Vieira, em 1969, fazendo a mesma farsa, procedam da mesma maneira!

Faltou um apontamento da Operação Mar Verde, em 1970, onde foram libertados alguns camaradas das prisões, na Guiné Conacri, de Sékou Touré.

Sobre Sá Carneiro e seus acompanhantes, continuo a crer que se tratou de um acidente, pela descrição feita por um investigador, em quem acredito: arranjar à pressa como co-piloto um Controlador Aéreo que estava de folga, num avião que aguardava reparação, não me parece uma solução acertada, muito menos segura. Além do famoso Cozido que todos apreciamos, mais uma solução à Portuguesa, esta com sabor bastante amargo!

Passei por uma situação parecida, na Guiné, mais propriamente em Teixeira Pinto, que se ajusta e me ajuda a acreditar na tese de acidente.

Às outras personalidades não me refiro por só as conhecer pelo seu percurso político e por aquilo que os historiadores nos relatam, tendo simpatia e respeito por todos, pelo seu passado.
Renovo mais uma vez os meus respeitosos cumprimentos.

António Ramalho
__________

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24379 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (1): À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas...


Foto: © Luís  Graça (2011). 

Contos com mural 
ao fundo (1) >
À porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas 


por Luís Graça




1. O que é que um gajo faz, das oito às nove, junto à entrada de um hospital, para mais oncológico ?


Aqui, esperas, desesperas, esperas. Que a esperança é a última coisa a morrer, diziam-te na tropa os gajos mais otimistas, os safados dos instrutores, sobretudo dos coirões, velhos, dos cabos RD, readmitidos, que sabiam que já não iam à guerra, nem nunca morreriam docemente pela Pátria.

Joga-se com a teoria das probabilidades: daqui a cinco a anos, terás cinco por cento de hipóteses de estar vivo, se te diagnosticarem um cancro no pâncreas, diz o teu amigo que está lá dentro a esta hora… Pálido como a cal da parede, sentado na sala de espera, esperando o pior, imaginas tu... Como o réu que aguarda a sentença de morte do coletivo de juizes...

Também ele espera, desespera, espera. Imaginas tu, que nunca entraste no IPO, por medo, por superstição, ou muito simplesmente porque nunca até agora precisaste de lá ir.  (Cruzes, canhoto!)... 

Enganas-te, já não se pintam paredes com cal, que era antigamente um bom desinfetante. Nem se cobrem os mortos com cal, hoje são cremados, sobretudo se morrerem de cancro. Dantes, no tempo em que morreu a tua mãe, não se pronunciava sequer a palavra cancro, escrevia-se nos jornais, na notícia necrológica, que o fulano ou fulana de tal morrera de doença de evolução prolongada. Ou grave e incurável. De doença maligna. Um eufemismo. Um pudor hipocrático. Uma hipocrisia social. Como se houvesse doenças benignas!...E uma boa morte! (É verdade, evitamos pronunciar palavras como cancro ou morte.)

Esperas dentro do carro, mal estacionado, em segunda fila. E, talvez para não desesperares, jogas o jogo do “voyeurista”. Não, não espreitas o mundo pelo buraco da fechadura, mas estás meio escondido, na semiobscuridade do interior do teu carro, a ver o que se passa lá fora, à tua volta… Simplesmente, para passar o tempo, fazer horas... Não sejas cínico. muito menos medricas: estás apenas a tentar a disfarçar o nervoso miudinho, a tentar esquecer ao que vieste, acompanhar um amigo em sofrimento, com uma espada de Dâmocles em cima da cabeça...

Do teu posto de observação, vê-se num raio de noventa graus. Aqui o teu olhar, mesmo distraído, é seletivo. O olho de periscópio do camaleão podia ter-te dado jeito lá na guerra, quando atravessavas a bolanha ou cambavas o rio, mas não aqui, que tens para ver apenas o que se passa entre o nº 15 e o nº 19 do prédio ou prédios, à tua frente, no início da Av Madame Curie.

Por uma questão, digamos, de eficiência oftalmológica, tens de estreitar o teu campo de visão. Tens duas palas nos olhos, com o o burro. É um ângulo de noventa graus, abarcando sensivelmente um quarto do pequeno, pequeníssimo, mundo que te circunda  e estrangula. Há gente que vive assim e morre na cama, feliz. Não acreditas, mas o que é que te contam: "felizardo, teve uma morte santa, não sofreu nada, foi um ar que lhe deu!|"...

Uma nesga do planeta que nada tem de deslumbrante, empolgante ou minimamente interessante . O que tu vês é o pequeno mundo do formigueiro humano, mesmo que seja gigante aos olhos da formiga: a saída de casa para a rua, o metro, o trabalho, o café, a creche, a escola, o hospital, ou o simples passeio higiénico com o cão pela trela… Nem sequer vês quem entra e quem sai do IPO, estás de costas. Uns com cancro,  outros sem cancro, e os outros  que cuidam de quem está doente, ou vai visitar um doente... Mas era talvez o único sítio que te deveria prender a atenção: daqui a um bocado o teu amigo (e antigo camarada de armas) sai, cabisbaixo ou de cabeça erguida…

Estás inclinado a apostar que ele sairá de cabeça erguida, mesmo com um prognóstico reservado: era, tanto quanto te lembras dele na Guiné, à distância de meio século,  um dos gajos tesos, que mostravam grande lucidez, dignidade, calculismo, sangue-frio  e coragem na adversidade. Qualidades, de resto, que lhe valeram um louvor, e que faltavam a outros tantos, com mais divisas ou galões do que ele.

Nunca tiveste grandes amigos na vida. Se é que tiveste amigos... E muito menos daqueles do peito, como se costuma dizer. Este é um deles, dos muito poucos que te ficaram para a vida.  Estiveram, ambos, na guerra, tu e ele. Sempre te tratou por "mano". Ele, o Zé Conde,  era um exímio caçador, e tu um reles fotógrafo amador, nas horas vagas. 

Ele sempre foi muito mais corajoso e determinado do que tu: como  caçador saía ao lusco-fusco, sempre convicto de que ia caçar alguma coisa de jeito, na orla da bolanha, no charco onde a bicharada ia dessedentar-se  ou, à noite, no fim da pista de aviação, onde crescia a erva que fazia as delícias de alguns animais.  Quem espera, sempre alcança. E ele apanhava lebres,  galinhas de mato, rolas, raramente caça grossa, quando muito uma gazela ou um javali. Qualquer coisa, enfim, com que a malta pudesse matar a malvada nos dias seguintes, lá na messe. 

Tu eras como o fotojornalista do quotidiano: punhas a tua máquina a tiracolo, uma Minolta (se bem te lembras) e ias dar um giro domingueiro pelas tabancas. Nunca foste capaz de levar a máquina para o mato, para uma operação. Aliás, nunca foste sequer um fotógrafo de jeito. E  perdeste tantos momentos de tirar fotos com sangue, suor e lágrimas,  ou seja com emoção, que é afinal o "spice of life", o sal da vida!

Há tempos ele pediu-te para o acompanhares até ao IPO. "Alguma coisa de grave?", pergunta, estúpida, da tua parte. "Eh!, pá, porra, ainda não sei bem...,  parece que estou com um cancro", respondeu-te ele... Ele não disse logo cancro, disse carcinoma, neoplasia, linfoma, ou outra merda qualquer,  enfim, um vocábulo mais técnico, mais neutro, mais enganador... "Mas hoje não há nada que não tenha remédio, até o sacana do cancro", arrematou depois, com ironia. "Parece que estou  com um carcinoma na próstata, estou o PSA alto como o caraças... O urologista fez o toque recta e mandou-me fazer uma biópsia, nal sinal... Vou lá saber o veredicto".

Ficaste sem pinga de sangue, sem jeito para lhe responder, assim apanhado de chofre. Balbuciaste umas palavras, secas,  de circunstància, com mais compaixão do que de solidariedade. Tentaste gracejar, aliviar a tensão: "Não há de ser nada... Os amigos são para as ocasiões... Vou contigo ao IPO, nunca lá entrei, nem sei bem o caminho... mas a gente desenrasca-se".

Em Lisboa não tem ninguém. E dos dois filhos, o que está mais perto é em Angola, de quem, aliás,  és padrinho de casamento. Tem um outro na Austrália. Somos um raio de um povo repartido pelos cinco continentes, com os filhos, os sobrinhos  e os netos separados, por mares e oceanos, dos pais, dos tios e dos avós.  

E quem vem da província, não está habituado ao trânsito de Lisboa. Foste buscá-lo ontem a Sete Rios, que é ali perto do IPO. Desta vez, veio no "Expresso",    de vespera.  Ficou na tua "morança", agora demasiado grande para um homem que vive só. Ofereceste-te para ir buscá-lo a casa. Recusou, polidamente. Se tivesses insistido, teria aceite. Quando vier aos tratamentos, se vier (mas é o mais provável(, virá de ambulância. É sócio dos bombeiros da terra, não longe da capital, em Samora Correia. Trabalhou como técnico agrícola lá nas Lezírias. Acabara de se reformar há pouco tempo. ("Um gajo reeforma-se e, zás!, cai-lhe tudo em cima, mano!... Parece que alguém nos quer  cobrar a fatura por, continuando vivos, sermos um peso morto para os ativos"...)

2. Farmácia Curie, nº 15A. Frente à entrada principal do IPO. Grande cartaz publicitário, que cobre a montra. Faz propaganda a um “medicamento” que, depois, vai-se a saber, é apenas uma “vitamina”… Uma "mesinha", como se dizia na Guiné. Um placebo, uma droga para enganar doentes e sãos. Do Laboratório Militar, que dava para tudo, até para a tusa, o paludismo, a dor de corno, a blenorragia, a saudade, a neuratesnia, o medo... Tomavam-se com uísque, as "pastilhas LM"...

Mas qual a diferença entre uma coisa e outra, numa botica onde é pressuposto vender-se tudo o que te faz bem à saúde e até o que te envenena e te mata?!... E ainda por cima tem o nome de alguém, uma mulher, que nunca foi boticária, a Madame Curie, a avaliar pelo que tu sabes das palavras cruzadas. Prémio Nobel de qualquer coisa, física ou química, sabes lá. Que a tua incultura geral é do tipo Reader's Digest.

"Absorvit – don't worry, be happy!”: em inglês, em letras garrafais, para consumo do turista estrangeiro que, por engano, se aventurar por estas bandas da cidade onde o trânsito é caótico, por causa das obras na Praça de Espanha.

E, logo a seguir, em letras mais pequenas, tipo legenda de filme, para o indígena lusitano, tratado por você, por deferência ou cinismo: “Sente-se em baixo? Viva o seu lado positivo da vida”. (Eh!, pá, o gajo que traduziu a frase, devia ter apanhado um monumental chumbo no exame em inglês!).

Mas adiante: ficas a saber que o “Absorvit é muita vitamina”… E registas no teu bloco de notas: “A vida tem dois lados, ou dois polos: um positivo, outro negativo. E às vezes funde-se como as lâmpadas”. Já lá vai o tempo em que se fabricavam lâmpadas elétricas e fusíveis para toda a vida... Que bom, quando na vida não havia curto-circuitos ! (... Idiota, quem te meteu essa cabeça?!)

Fazes coleção de frases feitas, expressões lapidares, lugares comuns, grafitos, provérbios excêntricos, anexins, citações famosas... É um dos teus passatempos, além da sopa de letras, no café do teu bairro, com a bica depois do almoço. Disseram-te que era bom para prevenir o Alzheimer, ou pelo menos adiá-lo. És um hipocondríco de merda, tens um medo das doenças que te pelas. De resto, quem não tem? Até os médicos e os padres... 

Espantosamente os muros do IPO parecem estar livres dessa peste dos grafiteiros. Talvez os gajos  sejam supersticiosos e lá, no mais recôndito do seu íntimo, tenham um medo do caraças do deus do cancro que os vigia, qual big brother. Não acreditas em deus, mas começas a suspeitar que há um deus do cancro. Ou até que há um deus para tudo. 

E vem-te à cabeça, uma frase cruel que te impressionou, do Camilo Castelo Branco, nas "Memórias do Cárcere": 

"Ignoro (...) se Deus deixou remédio para os defeitos das suas obras; confesso só que é um blasfemo atrevimento querer-lhas corrigir"... 

Conhecias outra, um provérbio, que é ainda mais devastador para um crente: 

"Se Deus o marcou, é porque algum defeito lhe achou". 

De que vale, afinal, um gajo, lutar contra o destino, se o teu corpo já traz, logo à nascença, as marcas dos "defeitos de fabrico"?!... E as taras todas dos teus antepassados até à cagagésima geração!...

Mesmo assim, não te deixas intimidar: aqui estás, à porta do IPO, à espera de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas

Enfim, ficas pelo menos a saber que há um lado da vida que se trata com antibiótico, outro com vitamina. Antibiótico, faca, bisturi, laser, radioterapia, isótopos,  quimioterapia, penicilina, morfina, etc., vem tudo a dar no mesmo. O que será o que esconde aquela fachada do IPO onde nunca entraste? Daqui a uns anoos nem batas brancas haverá, serás tratado por robôs, muito mais inteligentes do que tu...

Não disfarças a tua ansiedade, confessa. Nunca lidaste bem com as doenças, sobretudo a dos outros. E muito menos com a morte dos que te eram queridos: a tua primeira mulher, ainda tão jovem, os teus pais, já velhotes... Estás a escrever furiosamente como se fumasses cigarros uns atrás dos outros. Já não fumas há muito. Desde os anos 80, quando apanhaste aquela maldita  pneumonia, a seguir a uma  vulgar gripe sazonal. Ou crise palúdica, febrões, sezões de África?! ... 

Chegaste a temer tratar-se da doença nova que então espalhava o terror entre a malta que estivera em África, o HIV-Sida. No teu caso, na Guiné e depois em Angola. Lembras-te do médico que não conseguiu escondeu o nervosismo: depois de te apalpar o baixo ventre, foi logo direitinho ao lavatório do cubículo para lavar as mãos... O que estranhaste: os médicos que tu conhecias, até então não lavavam as mãos à frente do doente... Afinal, o ato médico sempre foi revestido de uma certa sacralidade...

Deixaste de fumar por conselho médico, mas sobretudo por medo do cancro do pulmão. “O medo tem muita força, meu amigo”, diz-te o Zé Conde que está lá dentro à espera do veredicto dos médicos. Como se os médicos tivessem o poder da vida ou da morte. Ou não têm mesmo?!


3. Há mais carros em segunda fila. Estás no teu carro, no lugar do condutor, enquanto aguardas o regresso do teu amigo, teu "mano"  e teu compadre que vieste acompanhar.  Estás impaciente, vê-se que não gostas de esperar, muito menos à porta de um hospital, para mais oncológico. Até na barriga da tua mãe, não gostaste de esperar. Com medo do escuro, com  medo de ficar sufocado. Ficaste com a fobia do ventre materno. Acabaste por nascer prematuro.

Estás no lugar do condutor. O do morto é ao lado. Lembras-te das colunas logísticas que fazias na Guiné. Ias na GMC do tempo da guerra da Coreia. Sentado ao lado do condutor. No lugar do morto. Com os pés virados para a mata, sempre pronto a voares  ao primeiro tiro ou explosão...

Continuas mal estacionado, agora no lugar reservado às cargas e descargas da farmácia e estabelecimentos contíguos. A esta hora da manhã já não há lugares livres para estacionar. Aqui e no quarteirão à volta, delimitado pelos muros do IPO, a Av Madame Curie e a Rua Professor Lima Basto. Tiveste que fixar os nomes das ruas e chegar  ao IPO pelo GPS... Estás em Lisboa há uma porrada de anos, e ainda há sítios que tu mal conheces: ruas, becos, praças, calçadas, escadinhas, miradouros, vilas e até bairros...

Nem a pagantes, lá dentro ou cá fora, há lugares de estacionamento. O lisboeta não gosta de pagar o estacionamento do carro. Daqui um bocado o gajo da EMEL ou o polícia municipal vai chatear-te. Mas ainda é cedo. Não te enerves. 

À tua frente, ao lado da Farmácia, na esquina da Avenida Madame Curie, fica a tabacaria e papelaria Polana… Nº 17A, se bem descortinas o número de polícia. Deve ser de alguém que retornou de África, de Moçambique, uma das joias da coroa do nosso império colonial. Tens uma vaga ideia de ouvir falar do Hotel Polana, havia um dos gajos da companhia na Guiné que era moçambicano. Nunca fostes para esses lados do Índico. Trabalhaste em Angola. Há anos que não voltas lá, a última vez foi para estar  com
 o teu filho e o teu afilhado. E agora tens lá netos que ainda não conheces. Nem sabes se ainda vais ter tempo de os conhecer.

Há um corropio de gente que vai comprar tabaco ou cartões da raspadinha. E mais raramente o jornal... Acabam de entrar e sair dois jogadores compulsivos, com o ar de quem não acordou em dia de sorte. Para tudo é preciso sorte. No amor, no jogo, na caça, na política, na guerra. Mas tentam,  uma e outra vez. Contaste até seis, as raspadinhas que eles deitaram fora. Depois desistiram e perderam-se no meio da  multidão, ao dobrar da esquina. Irritados, chateados... Amanhã talvez tenham mais sorte. Afinal, só calha a quem joga. Também devem acreditar que há um deus da sorte, como há um deus do cancro, e do amor, e do jogo, e da caça, e do poder, e da guerra. 

As mães levam as criancinhas para a escola, logo de manhã. Vão com ar ensonado, as criancinhas, ainda a comer o resto do papo-seco. Por que é que, meu Deus,  dão pão de plástico às criancinhas?!... Passeiam os vizinhos os cãezinhos. Um pai, com ar apressado, leva um carrinho de bebé, com duas crianças, a mais velha dependurada no estribo, em posição instável. Já vão atrasados para a escolinha.

Os velhos, como tu, já apareceram nas esplanadas, a seguir à Tabacaria e Papelaria Polana, no nº 17A, se não erras.  Não perdem pitada dos primeiros raios de sol. E que raio de nome é o do restaurante, no nº 19? “Bogani Desperta Caxito”, lê-se no toldo. Café, pastelaria, take away, restaurante Caxito. Outro topónimo de ressonância africanista, neste caso uma cidade de Angola, a norte de Luanda, mas onde tu nunca foste quando lá  estiveste. 
Quanto a Bogani, é marca de café, deduzes tu. Bogani Desperta. Enquanto há gente que espera, desespera, espera, à porta do IPO..., ficas a saber que o Bogani Desperta, diz a publicidade no toldo.

Não é mal pensado, um  comes & bebes aqui à beira de um hospital, para mais oncológico, por onde passam centenas, milhares de pessoas, todos os dias. Um gajo pode estar a morrer de cancro, mas continua a comer todos os dias, nem que sejam bifanas, pizas ou hambúrgueres (se é assim que se escreve). 

E no nº 17 o restaurante Quinta Avenida. Que nome pomposo! Faltam-te os arranha-céus, para te sentires em Nova Iorque. O edifício mais alto, por aqui, ainda é o velhinho, quase centenário,  IPO, que não terá mais do que seis ou sete andares, se bem os contaste, por deformação profissional. Em Angola, eras o "senhor engenheiro pela Universidade Técnica de Lisboa". Cá, dizias, com graça, no tempo da Expo 98, que eras um "trolha da construção civil com diploma de engenheiro". 

Se o polícia te aparecer a chatear-te, dizes que estás à espera de um doente. O que é  verdade,  mas não adianta. Ele põe-te a mexer. E, se refilares, ameaça-te com  "o papelinho da multa", a arma dos pequenos poderes. Dantes, na tropa, embrulhavam-te em papel selado. Ainda és desse tempo, vê como estás velho. Agora acabaram com o papel selado. Azul. Vinte e cinco linhas. E margens regulamentares. Proibido escrever nas entrelinhas, muito menos nas margens.

Mas ainda é cedo para te preocupares com o polícia ou o fiscal da EMEL. A esta hora estão a fazer a barba para pegar ao serviço. Depois vão tomar a bica, dar uma olhadela pelo jornal "A Bola", no quiosque da esquina e, pelo meio da manhã, talvez venham para a rua exercer a função. 

4. Já função do pâncreas, náo sabes qual é!... Mas deve ser um órgão fodido... Devias saber mais da anatomia e fisiologia do corpo humano. E a função do fígado? E do baço? E da tripa? E do rim, e da bexiga ?... E até do raio da próstata!... Nunca deste conta da tua... Até um dia em que começares a mijar sangue e a levantares-te de noite, diversas vezes, para aliviar a bexiga...

"Don't worry, be happy": é a melhor frase do dia, regista-a aí, no teu caderninho. Se tu a repetires muitas vezes ao longo do dia, talvez resulte e tu consigas chegar à tua casa, vazia, onde ninguém te espera, nem um cão nem um gato, no Bairro de Santos, com o ar de quem ainda pode vir a esperar algumas coisas boas da vida, e até dar-se ao luxo de aspirar a ser feliz. Põe a felicidade na tua lista de desejos a pedir ao Pai Natal, se ainda acreditas nalguma coisa.

Segue as instruções do teu psicoterapeuta: "Relaxe, respire fundo, peito aberto, coração ao alto!"... Ou "ao largo? "... Há uns que são mais aviadores, e ordenam-te" "coração ao alto!". Outros são mais marinheiros, e berram "coração ao largo!". 

Mas, não, não tens psicoterapeuta, se calhar até gostavas de ter, a tua ex, a segunda, também tinha, as amigas dela também tinham... Os psis faziam parte da herança de família mas tu é que pagavas a conta... Nunca deu certo um gajo ir para África trabalhar que nem um mouro e deixar cá as gajas, o cão e o gato. Hoje não tens mulheres, nem cães, nem gatos.

"Don't worry, be happy!"... É bom saber que alguém te ajuda (ou pode vir a ajudar) quando estás na merda. Um condutor de ambulância do Alentejo profundo (Mértola, se bem consegues ver pelo retrovisor o que está escrito na frente da viatura...) veio para aqui, à esquina da farmácia, fumar um cigarro eletrónico. Agora também está na moda, o raio do cigarro eletrónico. 

Mas reparaste, logo à entrada do IPO, num cartaz de 2 por 2 metros com os dizeres: "IPO sem tabaco"... Ao fim destes anos todos?... Afinal, tu estás muito à frente do IPO... Tu conseguiste deixar de fumar, depois de apanhares um cagaço... O cagaço faz bem à saúde. Os fumadores deviam apanhar um cagaço. Um pequeno cagaço não lhes faria mal.

Uma jovem sai do nº 15 para o trabalho com a lancheira na mão. Também está na moda, a lancheira na mão, de casa  para o trabalho... O que fará ela?... "Call centre", adivinhas tu!... Bingo!... Mais uma aventura no país dos "call centers".

Há mais carros estacionados em segunda fila, com os condutores lá dentro e os piscas ligados, à espera de alguém que foi ao IPO. É um corropio de carros e ambulâncias a entrar e a sair do IPO, olhas tu pelo retrovisor do esquerdo.

Um assistente operacional (é assim que  se diz  agora?!, dantes dizia-se operário, houve uma "upgrade" da nomenclatura ...), com a bata do IPO, vem também à Tabacaria. Na esplanada há já quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a fumar. Um condutor de ambulância da Cruz Vermelha Portuguesa compra o "Record". A menina do Restaurante Quinta Avenida monta o resto das mesas e cadeiras da esplanada que ocupa parte do passeio. O segurança do IPO também vem comprar raspadinhas. Há duas jovens a tomar café. Uma, mais gordinha, fuma. A outra, mais magrinha, também fuma e está ao telemóvel. Devia ser proibido fumar num raio de cem metros do IPO, apontas tu no teu bloco de notas. E agora até dizem que os telemóveis também fazem mal à saúde. Por causa das radiações. És um trolha da construção civil, não sabes nada de (ir)radiações, ionisantes ou não-ionisantes. 

Porra, afinal o que faz mal à saúde, é um gajo estar vivo!... A vida é que faz mal ao cancro!... O cancro da mama, do esófago, da próstata, do pâncreas, da pele, do fígado, dos pulmões...

Uma mulher de meia idade veio cá fora raspar um cartão. Raspa com raiva. Ou é fé e determinação? Não lhe saiu nada. A Santa Casa da Misericórida de Lisboa (SCML) tem um móvel, à porta das papelarias, com um caixote do lixo só para os restos da raspadinha. Ecológica, a Santa Casa, amiga do ambiente. Há de comemorar os mil anos daqui a quinhentos, a Santa Casa.

Tens um marco do correio, vermelho, mesmo à tua frente. Um senhor, já mais velho do que tu, muito para cima dos 80, mas ainda com farta cabeleira branca, com ar de ter sido inglês e diplomata no Extremo Oriente, na outra incarnação, vem pôr uma carta no marco do correio... Já não vias este gesto, civilizado, urbano, romântico, e sobretudo  tão terno,  pòr uma carta de amor no marco do correio,  há muitos anos. Quem será a felizarda da destinária? Afinal, nunca é tarde para amar... (Se bem te recordas, era uma canção italiana do teu tempo de Guiné.)

Um casal (ele, mestiço, não digas mulato que é racista) entra na papelaria. Mulatas são as mulas. Ela acaba de fumar e mandar a beata para o chão. Há gente sem educação cívica. Ou és tu que estás hoje mais sensível e intolerante?!... Em Luanda, fazias o mesmo... Mas Luanda tinha metros e metros cúbicos de lixo a cada esquina.

Mais uma mãe com a criancinha pela mão. Saem batas brancas, de vez em quando, do IPO. Vêm aqui tomar qualquer coisa na Pastelaria. Não dá para ver o que consomem nem muito menos para ouvir as conversas lá dentro. Uma bata branca sentou-se cá fora, puxa de um cigarro. O café puxa o cigarro, ainda te lembras do teu vício quando fumavas nos anos 80?... Grande camelo!... Gostavas do "Camel"!...

Uma jovem mãe também se senta, com um carrinho de bebé. Fuma e fala ao telemóvel. Desalmadamente. E é feliz ou parece sê-lo. A maternidade torna as mulheres felizes, aponta aí no teu caderninho.

A Farmácia Curie não tem mãos  a medir, tem muita clientela, velhos que vêm aviar receitas. É uma mina, a velhice, para os boticários, os médicos, os fisioterapeutas, os nutricionistas, os ginásios, os hospitais, os cafés, os centros de dia,  e até as juntas de freguesia. "Teme a velhice, que ela nunca vem só", apontaste há dias este provérbio dito popular, no teu caderninho. "Badameco" (do latim,  "vade mecum", vai contigo), também lhe chamas, quando estás irritado contigo e com o mundo.

Os estabelecimentos estão todos bem situados, só o nº 15 é que te parece ser uma entrada de um prédio de habitação, com porteira. Se contaste bem, o prédio tem quatro andares e, pelo estilo e estado de conservação, deve ser dos anos 30.  Disso percebes tu, que foste encarregado de obras, ganhaste bom patacão no tempo da Expo... ("Patacão", graveto, cacau... em crioulo da Guiné.)

A menina do restaurante Quinta Avenida veio, agora, fardada a rigor, de preto,  e com um guardanapo branco no braço, fumar cá fora um cigarro eletrónico. Adoras as mulheres fardadas, ficam com um ar sexy, quando combinam bem o preto e o branco. Um adolescente de origem africana, auscultadores nos ouvidos, passa a falar alto ao telemóvel, e a gesticular, com ar gingão de rapper angolano. Parece feliz. A vida é bela quando um gajo está na casa dos verdes anos e não tem que ir para a puta da guerra, como tu foste na idade dele. Ou não está à espera de um amigo, à porta do IPO. Nem de Deus e de remédio para as suas obras imperfeitas.

Mais um estúpido de um gajo a fumar à porta do Bolgani Desperta Caxito. Deve ter 60 anos. Sabes lá se tem 60 anos, nunca foste bom a tirar idades... Nem pintas.  Se tivesses tirado a pinta à tua, nunca te terias casado com ela, nem ela te deixaria viúvo aos 40 e picos anos. Porra, mal tiveste tempo de a amar!

Mais um jovem e uma velha a fumar na esplanada. Na papelaria, o negócio do tabaco e da raspadinha continua em alta, e ainda o dia é uma criança. Estás visivelmente irritado com a demora do teu amigo... E o IPO ali ao lado, a mexer-te com os nervos.

5. Desistes aqui do teu jogo, desistes de continuar a observar e a registar o formigueiro humano. Fechas o vidro do carrro mas ainda dá para ver a mulher da limpeza da farmácia a apanhar as beatas que formam  uns montinhos à porta. Tudo por causa da merda da raspadinha. Deviam depositar o lixo à porta da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a tal fábrica de fazer milionários excêntricos.

Pelo retrovisor do lado direito, apercebes-te que o teu amigo, camarada e compadre está de volta, o rosto inexpressivo, impávido e sereno, como nos dias, de manhã muito cedo, em que iam, os dois, de Unimog, cada um a comandar a sua secção, encher os bidões de água na "Fonte das Bajudas" (ou das "beijudas", dizia ele, sempre maroto, brincalhão, gaiato, que nada tinha de marialvo, mesmo crescido na campina ribatejana).

– Está no ir, mano: começo para a semana a quimeoterapia, daqui a umas semanas a radioterapia!... Não vou morrer desta merda, e até pode ser que me safe, diz-me  o urologista...

Ligas o carro, fazes inversão de marcha, lês pela última vez o idiota do anúncio do Absorvit: "Don't worry, be happy!"... Que é como quem diz: "Foda-se, sê feliz!"

Não falaram mais  pelo caminho, foste levá-o a casa, a  40 e tal quilómetros de Lisboa. Mas reviste, nessa manhã, na viagem de regresso, todo o filme da morte do "Campino", alcunha de filho e neto de campinos, que era o condutor da GMC que transportava os bidões da água. Era um filme com cinquenta anos, a preto e a branco, com duas testemunhas,  mudas e impotentes, tu e o Zé Conde, o teu doente do IPO... 

Mas um gajo, por muito que queira, não esquece o que viu e sofreu. Há meses que não havia sinais de atividade do IN (abreviatura de Inimigo, o turra), nas imediações do quartel, a menos de dois ou três quilómetros.  Era uma operação de rotina, duas ou três vezes por semana. A água era racionada. Deixou de se picar o caminho quando se ia à água da "Fonte das Bajudas", de resto frequentada pela população local, maioritariamente fula... Os gajos nunca punham minas antipessoais naquele troço. Até esse dia fatídico em que o "Campino", que ia à frente,  acionou uma mina anticarro  reforçada, já no início da época das chuvas.  

Restos do seu corpo e da pesada viatura foram encontrados num raio de cento e tal metros. Era um puto porreiro, deixou viúva e uma filha que nunca chegou a conhecer. Falava muito com o furriel Zé Conde, eram os dois ribatejanos, e trabalhavam  antes da tropa na Quinta do Infantado, na Companhia das Lezírias,  ele na coudelaria. Adorava touros e cavalos.  Lembraste-te sempre dele, quando passas por aqui, por Porto Alto. 

Ao chegar a Samora Correia, à porta do restaurante, já conhecido,  onde almoçariam enguias fritas e umas sandochas de codorniz desossada, no Tretas & Olés, o Zé Conde, a partir de agora "o teu doente do IPO", só te disse, com um sorriso amarelo:

– Lembras-te?... Há cinquenta anos,  a gente costumava dizer um para o outro: não te chateies, mano, a vida continua... dentro de momentos!

– "Don't worry, be happy!" – martelaste tu, três vezes, com a cabeça no espelho retrovisor do lado do condutor...

© Luís Graça (202o). Última revisão: 8 de junho de 2023. (*)
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Nota do editor:

(*) Originalmente publicado em 13 de outubro de  2020 > Guiné 61/74 - P21447: A galeria dos meus heróis (38): Don't worry, be happy! / Não te chateies, sê feliz (Luís Graça)

sábado, 20 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras


A representação do nu na arte ocidental > Detalhe > "The Expulsion of Adam and Eve from the Garden of Paradise (Paradise Lost)" (c. 1867), de Alexandre Cabanet (1823- 889). Pintura a óleo. Coleção Musée d'Orsay, Paris. Imagem do domínio público. Cortesia de: Wikimedia Commons.


1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado,  uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades quando, sendo maios novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19, eis-nos  agora a fazer o luto pela perda recentes de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade  da publicação  deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos... Ou terão,dependerá das "leituras" e dos "leitores"...

São textos que  com mais de 20 anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacència (sobretudo com a cumplicidade) dos nossos leitores,  esperamos, ao menos, que a sua leitura possa ter algum proveito. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que çhe estão próximas.  

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": fez 19 anos em 23 de abril p.p.  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos  três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG


Curiosamente, não há provérbios na língua portuguesa que tenham como objecto explícito a parteira ou a comadre, uma figura que durante séculos foi rival do padre e do médico, e cujo poder assentava na proibição, imposta aos homens, de assistir aos partos.

Os que chegaram até nós, vindos dos tempos medievos, têm mais a ver com o parto e têm a conotação bíblica da maldição divina, lançada sobre a mulher que se deixou seduzir pela serpente, comendo a maçã da árvore do paraíso e dando-a a seguir a comer ao homem: "Multiplicarei os sofrimentos do teu parto, darás à luz com dores" (Géneses, 3:16). Talvez por que este é um campo cheio de interditos ao homem ou por que os construtores de provérbios sejam misóginos e sexistas (Quadro XIII).

Gomes (1974. 10) chama, aliás, a atenção para "as correlações e assimilações tantas vezes existentes entre a mulher e o animal - a mulher, base da pirâmide na sociedade sacra-feudal, o animal enquanto utensílio rural e objecto agrícola".

Por outro lado, e como muito bem sublinha Joaquim (1983. 84), no seu ensaio sobre as práticas e crenças da gravidez, parto e pós-parto em Portugal, "o saber médico, científico, não pode perceber (...) a função que do ponto de vista individual, social, essas mulheres [ as parteiras ou aparadeiras ] tinham - elas rodeavam, permitiam o grito das mulheres como uma das maneiras da mulher poder ‘viajar’ no seu imaginário, nesse corpo-a-corpo, como momento de renascimento que é [ para ela ] deitar ao mundo, dar à luz".

Na sua História do pudor, Bologne (1996. 94) interroga-se sobre a aparentemente estranha razão de ser da ocultação do corpo, a qual irá abrir, na Idade Média, "um parêntesis de mil anos" (sic) na evolução do conhecimento e das técnicas terapêuticas.

Contrariando o provérbio Naturalia non turpa ("O que é natural não envergonha"), há um pudor médico que atravessa todo este período até ao Século XIX, o século burguês por excelência. De facto, entre as classes altas oitocentistas não só não é de bom tom como é socialmente reprovável uma mulher ir sozinha à consulta médica, devendo para tal fazer-se acompanhar do marido, promovido à condição de zeloso guardião das virtudes domésticas e intrépido defensor da moral pública e dos bons costumes.

Ironicamente, o mesmo século que interdita às mulheres o exercício da medicina ("não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"), é também aquele que se deleita com o nu artístico romântico de um Delacroix ou a sensualidade requintada de um Ingrès mas não tolera o realismo de um Courbet (As banhistas, 1853) ou o impressionismo de um Manet (O almoço na relva, 1863, Olímpia, 1865).

A história das mentalidades ajuda-nos, por isso, a perceber melhor a divisão sexual (e sobretudo social) que ainda hoje atravessa o campo da prestação de cuidados médicos.

Reportando-nos à Idade Média, sabe-se que muitos dos primeiros físicos e cirurgiões estavam ligados ao clero regular. O ensino e a prática médicas, no Ocidente cristão medieval, é inseparável do desenvolvimento do monaquismo, tal como o hospital.

Mas o advento da universidade irá criar uma clivagem entre médicos e cirurgiões e, no caso destes últimos, entre cirurgiões religiosos e laicos. O próprio vestuário serve para acentuar as diferenças de estatuto, ontem como hoje: enquanto o cirurgião já trajava fato comprido, o barbeiro vestia um simples fato curto; ambos eram, todavia, a par do físico e dos restantes praticantes da arte médica classificados como oficiais mecânicos.

Muitos dos físicos e cirurgiões, na Península Ibérica, são judeus, e o seu número tende a aumentar à medida que a Igreja, através dos Concílios de Clermont (1130) e de Latrão (1179), interdita ao clero o direito de derramar sangue, o mesmo é dizer:

 (i) participar em actividades bélicas:
 (ii) praticar a cirurgia;
(iii) exercer a medicina;
(iv) em última análise, ver e tocar o corpo.

A cirurgia laiciza-se, ao mesmo tempo o cirurgião que se vê confinada a um estatuto social inferior ao do médico. 

"Tocar o corpo humano será até ao Renascimento um domínio reservado ao cirurgião, que lhe deve o nome. Só no Século XVI os professores de anatomia porão a mão no cadáver nos anfiteatros universitários: até aí, comentavam de cátedra as dissecações praticadas por um auxiliar..." (Bologne, 1996.94. Itálicos meus).

A medicina continuará a ser, por mais uns séculos, uma profissão sábia (savante, como dirão os franceses): historicamente, até finais do Século XIX. Mas já nos finais do Século XVII e princípios do Século XVIII, as coisas começam a mudar. A pouco e pouco, torna-se também uma profissão consultante.

A partir de Boherhaven (mestre do nosso Ribeiro Sanches) e da sua abordagem clínica do corpo, em Leiden, na Holanda (veja-se o seu fabuloso museu da ciência e da medicina), começamos a ver o médico sentado à cabeceira do (ou debruçado sobre o) doente. Por outro lado, o hospital continuará a ser até tarde (até à II Guerra Mundial, pelo menos) um lugar de passagem para o médico.

Já na antiguidade clássica, o estatuto social do médico não era elevado; entre os cidadãos romanos, a arte de curar estava longe de ser considerada uma profissão digna, sendo muitas vezes exercida por escravos ou por pessoal doméstico;

Só por volta do Século II a. C. é que os médicos, sobretudo os de origem grega (os asclepíades), se tornam populares, famosos e até ricos: foi o caso do já citado Galeno (200-130 a.C.), natural da Ásia Menor, que obteve a cidadania romana e foi médico da corte imperial, constituindo com Hipócrates a grande referência médica da Antiguidade Clássica ("Hipócrates diz que sim, Galeno diz que não");

O estatuto do cirurgião, esse, continuará a ser ainda mais baixo do que o do médico, mesmo entre os árabes. O único árabe que, de resto, deixou um volumoso tratado sobre cirurgia foi Albucassis (936-1013), do califado de Córdova.

A proibição da dissecação de cadáveres, tanto entre os judeus como entre os cristãos e os muçulmanos (os crentes das três principais religiões monoteístas), não permitiu o desenvolvimento dos conhecimentos e técnicas cirúrgicas que, durante muitos séculos, se circunscreveram aos ensinamentos greco-romanos.

Com os romanos, a cirurgia militar tinha feito alguns notáveis progressos, que serão depois retomados no Renascimento. No Séc. XVI, o francês A. Paré (1510-1590) vem melhorar os bárbaros métodos de amputação até então utilizados, ao inventar o penso e idealizar a laqueação vascular, em substituição da cauterização das feridas com óleo a ferver ou ferro em brasa em caso de amputação (Sournia, 1995. 164-167).

Mas a própria cirurgia ressentia-se da proibição, mais acentuada depois do Século XIV, de dissecar cadáveres, "uma outra forma de pudor", segundo Bologne (1996. 95), o qual, no entanto, relativiza essa proibição, dizendo que se trataria mais de um respeito (primordialmente cristão) pela dignidade do ser humano do que uma interdição, propriamente dita, imposta por Roma, apesar da força que tinha então um édito papal (o de Bonifácio I).

Como sucedâneo dos estudos de anatomia humana, passa-se a recorrer à autópsia, ao embalsamamento e à vivissecção de animais ou até mesmo à dissecação de cadáveres, furtivamente exumados e roubados nos cemitérios ou simplesmente descidos do cadafalso.

Será preciso, todavia, esperar pelo Renascimento para que a paixão pelo estudo anatómico do corpo humano se sobreponha ao pudor imposto pela religião. A medicina alia-se então à arte. Cite-se o exemplo, por demais conhecido, da intensa colaboração entre Leornardo Da Vinci e o anatomista Marco Antonio della Torre. Outros grandes artistas, como Miguel Ângelo, Dürer ou até Veronese dedicaram-se ao estudo da anatomia. A arte acaba por influenciar o próprio nu médico.



Página 178 do livro de Andres Vesalius (1514-1564), completado em 1543, "De Humani Corporis Fabrica" (em português, Sobre a Organização do Corpo Humano), um verdadeiro atlas da anatomia do corpo humano, dividido em sete capítulos, baseado no conhecimento da dissecação de cadáveres e fabulosamente ilustrado. (Não parece ter hoje fundamento a sua alegada condenação à morte pela Santa Inquisição.) Imagem do domíniuo público. Cortesia de Wilimeda Commons.


Em jeito de síntese, pode dizer-se no Século XVI assistiu-se a uma verdadeira explosão do nu representado, logo seguida de reacções de pudor na época da Contra-Reforma:

  • Sinal dos tempos, na segunda edição (1555) da magnífica obra de Vesálio De humani corporis fabrica [ Tratado sobre o funcionamento do corpo humano], o seu célebre frontispício foi censurado;
  • No espaço de doze anos (a primeira edição é de 1543), o pudor voltou a ditar as regras: era intolerável que num livro de medicina aparecesse um jovem efebo despido;
  • Em suma, "o anatomista deu ao pintor a sua visão dessexualizada da nudez" mas a sociedade apressou-se a dizer ao médico "que o nu não era inocente", contrariando o provérbio Naturalia non turpa (Bologne, 1966. 97).

O pudor vai então entrar nos livros de medicina, a partir do Século XVII. Para ilustrar a anatomia do homem e da mulher, escolhe-se o Adão, com a sua parra, e a Eva com a sua delicada mão sobre o púbis. Em muitas gravuras de anatomia, o véu volta a cobrir o sexo do cadáver em cima da mesa de dissecação. Noutros casos, ainda mais ridículos, o cadáver está de ceroulas ou crescem-lhe flores à volta do sexo!

É uma situação tanto mais paradoxal - comenta Bologne (1996. 99), "quanto a época clássica, que voltou a vestir as pranchas anatómicas, vulgarizou o estudo da anatomia, multiplicando as aulas públicas". A anatomia torna-se um assunto mundano: "Nos salões, é de bom tom apadrinhar sociedades eruditas em que as damas seguem cursos de anatomia. Mas é altura de lhe vigiar a linguagem e a matéria".

Este paradoxo terá o seu triunfo no Século XIX: 

"O século que admite - com um sorriso cúmplice - que uma mulher pose nua para um pintor tolera mal que ela se dispa perante o seu médico". 

É também o século que, como já o dissemos, interdita às mulheres a prática da medicina.

Ao longo da Idade Média e, depois no Antigo Regime, a prática da medicina não estava teoricamente interdita às mulheres. Mas a partir do momento em que o diploma universitário passou a ser obrigatório para o exercício da profissão, o número de mulheres médicas (que nunca fora grande) tenderá a diminuir.

Quanto à cirurgia, há um decreto de Luís XV, de 19 de Abril de 1755, que em nome do pudor masculino vem proibir às mulheres "a qualidade de endireitas ou dentistas e de qualquer outra parte da cirurgia, excepto a relativa aos partos" (cit. por Bologne, 1966. 100. Itálico meu).

É também a partir do Século XVII que o médico se começa a intrometer na esfera da moral e dos costumes, tendência mais generalizada no Séc. XVIII, tanto antes como depois da Revolução Francesa. Em nome das Luzes, ele acaba por dar caução aos discursos moralizadores da sua época ou por impor um discurso normativo, seja a propósito da histeria feminina, do onanismo, das doenças venéreas, das relações sexuais durante a gravidez, dos caprichos da moda como o uso do espartilho de barbas de baleia, da limpeza do corpo e da casa, da alimentação, do crime e da loucura, ou simplesmente da querela entre parteiros e parteiras (Barbaut, 1991).

O poder societal do médico vai-se alargando, e curiosamente a partir duma questão-tabu que era então a indissolubilidade do casamento

Para os teólogos da Igreja, nada podia separar um homem e uma mulher que Deus unira para sempre. Havia apenas uma excepção: a partir do Século XII, a impotência e a frigidez passam a ser reconhecida como "impedimento dirimente do casamento". Mas a obtenção da prova não era fácil...

No Séc. XVI surge a famosa "prova do congresso" (Belogne, 1996. 103): O Parlamento de Paris irá considerá-la "inútil e infamante" em 1677:

  • O termo designava "as juntas públicas, em que um marido suspeito de impotência tem de provar perante médicos e comadres que a acusação é caluniosa";
  • A "prova do congresso" é então abolida em nome dos bons costumes, da religião e da natureza, e sobretudo devido aos abusos a que até então se prestava;
  • Acabou por ser substituída por outras provas, não menos arbitrárias e humilhantes, como a da "erecção", da "tensão elástica", da "ejaculação", etc.

O que importa sublinhar é o papel que as comadres e os médicos desempenham na "prova do congresso":

  • a pedido da justiça, o médico limitava-se a um exame pericial dos órgãos genitais do marido da queixosa;
  • cabia depois à comadre ("sage-femme") preparar as condições e o clima propício para a consumação do acto sexual, em geral na alcova conjugal ou num estabelecimento de banhos;
  • a comadre funcionava sobretudo como testemunha presencial; por respeito ao pudor feminino, o médico ficava à porta da alcova ou por detrás de um biombo; no fim, a comadre relatava ao médico as suas observações;
  • com base no seu exame pericial prévio e sobretudo do testemunho presencial da comadre, o médico fazia o seu relatório e entregava-o depois aos tribunais; 
  • é possível que comece aqui a história da medicina forense ou, pelo menos, do recurso à autoridade do médico como perito legal;
  • e julgamos que é também a patir daqui que se grafa a palavra "congresso" (por exemplo, médico) para designar uma reunião de peritos numa dada matéria (por exmplo, "congresso médeico")...

A partir de 1677, as parteiras deixam de ser admitidas em peritagens exclusivamente masculinas, desta vez em nome do pudor masculino mas sobretudo porque o seu papel passava então a ser completamente inútil. O médico acabava assim de liquidar um dos seus mais poderosos adversários: a comadre, parteira ou sage femme (Barbaut, 1991).

Em que é que se fundava o poder da comadre ?

  • "A meio caminho entre a mulher ‘modesta’ e o homem sem pudor, aquela a quem a Idade Média chama eloquentemente ventrire parece um ser assexuado, dispensado do pudor natural do seu sexo;
  • "Nem o médico nem o cirurgião nem o padre sonham contestar-lhe um poder que muitas vezes invade as suas atribuições; com efeito, se a ventrire testemunha nos congressos, tem também uma palavra a dizer em casos de violação, de ruptura dos votos monásticos, assiste aos partos, baptiza as crianças em risco de morrerem à nascença, etc.". (Bologne, 1996. 107).

Médicos e cirurgiões começam a retirar clientela à sage femme que, por outro lado, se vê ameaçada com o aparecimento dos primeiros parteiros no reinado de Luís XIV. O povo, galhofeiro, chamava-os então "as comadres de ceroulas".

O greco-romano Sorano (98 a.C.-77) é considerado o "pai da obstetrícia e da ginecologia", com o seu tratado sobre as Doenças das Mulheres. É preciso esperar, no entanto, pelo Séc. XVII, para que estes dois domínios especializados da medicina conheçam alguns progressos assinaláveis (Lyons e Petrucelli, 1991):

  • O francês F. Mauriceau (1637-1704) escreve em 1668 o Tratado das doenças das mulheres grávidas; será com o holandês H. van Deveter (1651-1724) o fundador da moderna ginecologia, graças ao seu estudo da anatomia pélvica feminina;
  • Outro holandês R. de Graaf (1641-1673) descobre em 1673 o folículo do ovário; até então supunha-se, de acordo com Aristóteles, que o óvulo se formava no útero;
  • No campo da obstetrícia, há uma importante descoberta na última parte do Séc. XVI: o fórceps, utilizado pela família inglesa Chamberlain que o mantém, no entanto, em segredo durante gerações até ser objecto de vulgarização médica; a descoberta deve-se a P. Chamberlain, o Velho (1560-1631);
  • Entretanto, em 1752 o inglês W. Smellie (1697-1763) funda a obstetrícia moderna com Treatise on midwifery, descrevendo o trabalho de parto e de assistência ao parto.

Até ao Séc. XVII, era relativamente raro (e sobretudo perigoso) um homem assistir a um parto. Cita-se o caso de um cirurgião de Hamburgo, o Dr. Wert, que foi condenado à morte por satanismo (!) e executado em 1522 por ter tido a ousadia de assistir a um parto, disfarçado de parteira (Barbaut, 1991. 142). Mas os tempos vão mudar: eram frequentes os acidentes em partos difíceis, o que inquietava os médicos, já desde os tempos dos greco-romanos e, depois, dos árabes.

Até então a experiência da sage femme era mais relevante do que os conhecimentos na matéria, para além dos preconceitos morais e religiosos que afastavam o homem do leito da parturiente. Mas, no caso dos partos difíceis, era importante a força muscular. A solução deste velho problema irá ser um trunfo para o médico e o cirurgião, independentemente do estado da arte no domínio da ginecologia e da obstetrícia.

A morte, em consequência de parto, da duquesa de Orleães, em 1627, irá pôr em causa a reputação das parteiras da corte e alimentar durante mais de um século uma querela com os cirurgiões. Em 1633, é já um parteiro (o primeiro que se conhece em França) a assistir ao parto de um dos filhos bastardos de Luís XIV. 

Será, pois, pela "via uterina", a das amantes reais, que os cirurgiões passam a ter acesso à corte.

  • Mas nesta querela os médico irão, curiosamente, tomar o partido das parteiras contra os cirurgiões, por razões que estão longe de ser inocentes:

  • Em 1708, Philipe Hecquet publica um tratado que irá provocar celeuma: De l’indécence aux hommes d’accoucher les femmes;

O seu argumento linear contra os cirurgiões pode ser resumido nesta frase lapidar do preâmbulo do seu livro: "Esta profissão repugna à própria natureza, pois é contrária ao pudor que é natural nas mulheres " (cit. por Bologne, 1996. 111).

Parece então haver um recuo táctico. Ao parteiro ensina-se-lhe a tocar sem olhar. surgem os tratados obstétricos a recomendar o lençol estendido entre o pescoço do parteiro e a cintura da parturiente (1681) ou os tratados de ginecologia a ensinar como se deve proceder a uma exame completo debaixo do vestido da mulher (1822).

Dos maléficos ou estranhos poderes das mulher prenhada ainda chegarão ecos até ao nosso Séc. XX, obrigando o médico a relembrar o velho ditado latino Naturalia non turpia e a refrasear o velho juramento de Hipócrates que interditava ao praticante da arte de curar a sedução ou outras formas de envolvimento pessoal com os doentes, de ambos os sexos. 

Neste caso, efebos aparte (aa pederastia era aceite ou tolerada na antiguidade clássica, e nomeadamemte entre os gregos), "as mulheres que não julguem decente mostrar um pudor temeroso... Para um médico, por mais bem parecido que ele seja, a cliente é apenas uma ficha e uma ocasião de fazer bem. Ela que não espere outra coisa", escrevia em 1930 um ilustre médico francês (cit. por Bologne, 1996. 111).

Em conclusão: se, até ao Século XIX, repugnava à mulher confiar-se à mão do macho (o que para o sociobiólogo será devido a um qualquer determinismo genético), "o desaparecimento das comadres e a raridade das médicas acabou por impor a regra inversa: o obstétrico continua a ser o domínio onde [ ainda hoje ] a mulher é mais dificilmente aceite" (Bologne, 1996. 111).

Mas não terá sido tanto o pudor feminino como sobretudo a religião que impôs à medicina a ocultação do corpo. Só na época de Luís XIV é que o médico marca pontos em matéria de liberdade face ao corpo. É a época em que aparecem os parteiros mas também aquela que viu nascer o "pudor masculino" e em que as doenças venéreas se tornam "vergonhosas".

Por outro lado, a unificação da profissão médica ainda está muito longe de se realizar. Oficiais do mesmo ofício, médicos e cirurgiões vão continuar a digladiar-se até praticamente ao Séc. XX.

Quando comparados com os médicos, os cirurgiões no Antigo Regime continuam, todavia, a ser em menor número, com menos instrução, com menos rendimentos e sobretduo "menos apreciados pela sociedade", mas mesmo assim indispensáveis, tanto mais quanto os homens da arte (os médicos) detêm o savoir mas não o savoir-faire;

De facto, o médico do Século das Luzes continua a "não saber colocar uma ligadura, reduzir uma luxação, fazer a incisão de um abcesso, imobilizar uma fractura ou extirpar um tumor" (Sournia, 1995. 217), tarefas menos nobres da arte de curar que são relegadas para o barbeiro e o cirurgião.


Quadro XIII - Provérbios e outros lugares comuns 
da língua portuguesa sobre a gravidez e o parto

    Objecto

    Provérbio

    Gravidez Maternidade Parto Puerpério

     

    • "A dor ensina a parir"
    • "À mulher parida e à teia urdida não lhe falta guarida"
    • "À mulher prenha só lhe vem doença e manha"
    • "As cadelas apressadas parem cães tortos"
    • "Casei, matei, pari, pulei"
    • "Em casa de paridas ou doentes, o assento não esquentes"
    • "Filho do meirinho com parteira"
    • "Filho sem dor, mãe sem amor"
    • "Mal casada é a mulher que não pare"
    • "Mau parto, filho ao cabo"
    • "Mulher parida, nem farta nem limpa"
    • "Mulher que se casa em dia de Sant'Ana morre de parto"
    • "Não há madre como a que pare"
    • "Não há parto sem dor"
    • "Não me pesa de meu filho enfermar senão pelo costume que lhe há-de ficar"
    • "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"
    • "Parir é dor e criar é amor"
    • "Parir sem dor, criar sem amor"
    • "Pariu aqui a galega ?"
    • "Parto inchado, parto abençoado"
    • "Parto ruim, filha no fim"
    • "Pesar de quem me pariu" (Séc. XVI)
    • "Quinze dias na cama e quinze no lar - depois, mulher, vai trabalhar"

Em termos de estatuto, os médicos continuam a estar, apesar de tudo, abaixo dos juristas e do alto funcionalismo do Estado absolutista ou da sociedade senhorial do Ancien Régime, embora já pertençam ao mesmo grupo social em ascensão (que são os letrados, os clercs, em francês):

  • Contudo, em França, os cirurgiões irão dar um passo importante no sentido do seu reconhecimento, ao ser criada a Academia Real de Cirurgia (em 1737);
  • E, não obstante a feroz oposição da conservadora Faculdade de Medicina de Paris, passam inclusivamente a ter assento na Société Royale de Médecine, criada em 1778;
  • Aliás, já em 1723, por decreto real de 23 de Abril, era reconhecida em França a profissão de cirurgia.

Na Grã-Bretanha, o escocês J. Hunter (1728-1793) funda a anatomia comparada; em Observations on certain parts of the animal oeconomy (1786) estudou a anatomia do corpo humano, comparando-a com a de outras espécies animais;
  • Além disso, coleccionou ao longo da vida mais de 10 mil espécies anatómicas, muitas delas tecidos macios conservados em álcool;
  • Deu igualmente um importante contributo para a cirurgia militar com Treatise on the blood: Inflammation and gunshot wounds (1794);
  • No último quartel do Séc. XVII tinham, entretanto, surgido os primeiros jornais médicos, em França (1679) e na Inglaterra (1684).

No nosso caso, sabe-se que às parteiras já lhes também exigido carta ou registo de actividade (pelo menos no caso da cidade de Lisboa). Todavia, o exame obrigatório perante o cirurgião-mor só será exigido às parteiras no Século XVII, de acordo com o estipulado no respectivo Regimento de 12 de Dezembro de 1631 (Lemos, 1881, cit. por Joaquim, 1983. 84-85).

Esse exame passaria a ser extensiva também aos sangradores, algebristas e dentistas, em como a outros indivíduos com conhecimentos particulares (endireitas, etc.). "É evidente que estas parteiras tinham um papel diminuto e actuavam somente nas cidades; nos campos continuavam a assistir aos partos as aparadeiras" (Joaquim, 1983. 85).

É também nesta época que aparecem os primeiros esboços de tratados ginecológicos, obstétricos e pediátricos, entre nós, geralmente sob a forma de capítulos de livros dedicados à vulgarização da medicina:

  • "Tratado único das doenças particulares das mulheres"; "Do regimento que devem guardar as prenhadas para bem parir", in Luz da Medicina Pratica, Racional e Methodica, Guia de Enfermeiros Dividia em Tres Partes (...) de F. Morato Roma (Lisboa, 1664);
  • "Tratado da feliz parida", in Arte com Vida, ou Vida com Arte, Muy Curiosa e Proveitosa não só a Medicos, e Cirugioens, mas ainda a Toda a Pessoa de Qualquer Estado, ou Condição, Que Seja, principalmente dos Casados (...), de Manuel da Silva Leitão (Lisboa, 1738);
  • Atalaya da Vida contra as Hostilidades da Morte, de João Curvo Semedo (Lisboa, 1720).

Segundo Joaquim (1983. 85), o aparecimento destas obras seria um sintoma de "uma preocupação que começa a existir [ no Antigo Regime ] pelo modo como o parto se desenrola e pelas práticas que são utilizadas". Mas, ao mesmo tempo, este interesse seria também revelador da preocupação e intenção de as "submeter a um certo controlo médico":

O autor do Tratado da Feliz Parida é explícito na sua intenção de levar as luzes do conhecimento médico à população rural: 
  • "Não he mais que acodir [...] aos desamparados dos Médicos, aos quais vivem fora das povoações para que possam acodir à sua necessiade, & não morrerem à míngoa, não sabendo o que devem fazer, nem terem ordem para o consultar" (Roma, 1664. 317, cit. por Joaquim, 1983. 85);
  • De F. Mourato Roma (1588-1668), sabe-se que foi médico da câmara de D.João IV e de D.Afonso VI;
  • Da sua Luz da Medicina diz Lemos (1991, Vol. II. 35-36) que "se destinava a indivíduos de poucos conhecimentos médicos", que se limitava a "um resumo das doutrinas de Hipócrates, Galeno, etc., sobre os diversos capítulos da patologia", e que continha "raríssimas notas pessoais", de interesse clínico;
  • Por sua vez, M. Silva Leitão (1682-1757), médico do Hospital Real de Todos os Santos, também não se afastaria muito da vulgata galénica; o seu livro não passa de "um tratado de Higiene, aplicável sobretudo às mulheres paridas", que não contem "novidades dignas de apreço", para além de "alguns preceitos aproveitáveis" (Lemos (1991, Vol. II. 145).

Por fim, o terceiro autor referido por Joaquim (1983), J. Curvo Semedo (1635-1719), não passaria hoje de um simples caso de charlatanismo; na conceituada opinião de Lemos (1991, Vol. II. 129): o seu Atalaya da Vida seria "um livro deplorável", onde se apregoam a cada passo "medicamentos asquerosos", verdadeiras panaceias que eram vendidos pelo autor "por bom dinheiro"; curiosamente, Semedo era um dos médicos mais reputados do seu tempo, tendo sido médico da Casa Real.

(Bibliografia a apresentar no final da série)

(Continua)
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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:

20 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras

4 de maio de  2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

 3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > 
Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"