É uma hora da manhã, escrevo sereno, lúcido, sem paixão, tudo de enfiada.
Ver viver, ver morrer, três homens mortos, sete feridos graves, quatro ligeiros. A causa próxima foi um desafio de futebol, a causa remota foi o destino e o facto de estarmos numa guerra.
Esta tarde houve um jogo de futebol entre o pessoal branco do Batalhão 3863 e a tropa branca e negra do aquartelamento do Bachile [, CCAÇ 16, constituida sobretudo por militares manjacos, do recrutamento local9. Não sei se por culpa dos brancos ou dos negros, decerto por culpa de ambos, o jogo descambou em grossa pancadaria o que levou o coronel [, pára, Rafael Durão, comandante do CAOP1,] a intervir, a assestar uns tantos socos em não sei quem e a dar voz de prisão a dois negros.
Cerca das oito da noite, foi recebida aqui uma comunicação rádio do capitão branco do Bachile, a braços com uma insubordinação dos militares negros. Quarenta africanos armados haviam saído do aquartelamento e marchavam a pé para Canchungo, a fim de tirarem da prisão os seus dois camaradas detidos. Aprontaram-se imediatamente cerca de cinquenta comandos da 38ª. Companhia e o coronel seguiu com eles.
Na ponte Alferes Nunes, já próximo do Bachile, os Comandos ficaram e o coronel avançou sozinho, no jipe, ao encontro dos soldados africanos. Graças à sua coragem, ao respeito que impõe a toda a gente - é o “homem grande” branco -, à promessa de libertar os presos, os soldados negros regressaram pacatamente ao Bachile.
Aqui em Teixeira Pinto estávamos na expectativa, não sabíamos o que ia acontecer. Em frente do edifício do CAOP, eu conversava com o major Malaquias, com um alferes da 38ª [CCmds] e outro do Batalhão quando ouvimos um grande rebentamento muito próximo. Que será? Um minuto depois chegou a informação, via rádio. Era preciso preparar imediatamente o hospital, havia mortos e feridos.
No regresso dos comandos, à entrada da vila, rebentara uma caixa cheia de dilagramas – granadas disparadas pelas G 3 com um dispositivo especial – em cima de um Unimog onde vinham catorze homens. Dois mortos de imediato, os restantes feridos vinham a caminho. Corremos para o hospital. Os comandos chegaram.
Como vinham, meu Deus! Um furriel morria na sala de operações. As suas últimas palavras para o Pio [de Abreu], o médico, foram: “Doutor, cuide dos outros, eu estou bem.”
Nas macas, no chão de pedra do hospital jaziam feridos graves, corpos semi-desfeitos, barrigas, intestinos de fora e quatro rapazes só com alguns estilhaços. Não ouvi um queixume, mas havia muitos homens a chorar.
Era preciso evacuar os feridos para o hospital de Bissau. Onze horas da noite, iluminámos a pista com os faróis das viaturas e com as mechas acesas em muitas garrafas de cerveja cheias com petróleo, distribuídas aí de dez em dez metros ao longo do campo de aviação. Aterraram quatro DO. Ajudei a transportar feridos entre o hospital e as avionetas, num dos nossos Unimog. Dois deles iam muito mal, cravados de estilhaços, em estado de choque ou coma, não sei se escaparão.
O condutor do Unimog em cima do qual as granadas rebentaram é um dos meus soldados, do CAOP 1, Loureiro de seu nome, com apenas oito dias de Guiné. Ia a conduzir, não sofreu uma beliscadura. Trouxeram-no cambaleando, o espanto, incapaz de falar. Evacuados os feridos, fui buscá-lo, abracei-o, sentei-o na minha cadeira na secretaria, animei-o, bebemos quatro águas Castelo.
Foi um acidente de guerra. Corpos ensanguentados, dilacerados, muitos homens destruídos, não apenas os mortos e os feridos.
Reacções de alguns dos nossos soldados. “Tudo por culpa dos cabrões dos negros, filhos da puta, só fuzilados!”...
Quem resiste aos corpos esventrados dos companheiros de armas?!...As razões sem razão porque se avivam ódios, porque se morre!
Não sei que horas são, deve ser tarde, não tenho ponta de sono. Já ouço os galos cantar. Um novo dia nasce.
Guiné > Teixeira Pinto (ou Canchungo) > CAOP 1 > Uma das raras fotos (e de fraca resolução) que temos, no nosso blogue, do Cor Pára Rafael Ferreira Durão, comandante do CAOP1, ao tempo do António Graça de Abreu. "A caminho do almoço de Natal de 1971. Da esquerda para a direita respectivamente, Cmdt do BCaç 3863 (?), Cmdt do CAOP Cor Pára Rafael Durão e Ten Pára da CCP 122".
Foto e legenda: © Jorge Picado (2008). Todos os direitos reservados
2. Comentário, posterior, do nosso camarada Bernardino Parreira [, foto atual, à direita]:
Caros camaradas e amigos, tendo acabado de ler, pela primeira vez, este excerto do livro do nosso camarada Graça Abreu não posso deixar de referir que fui um dos jogadores da CCaç 16, do Bachile, nesse jogo de futebol, e que os incidentes desencadeados pelos camaradas africanos tiveram origem na anulação de um golo nosso...
Daquilo que tenho conhecimento, corroboro o testemunho do nosso camarada Graça Abreu. Informo ainda que um dos militares detidos, da CCaç 16, foi o meu companheiro africano Policarpo Gomes, que ainda fui visitar à prisão.
Gostaria de saber como posso adquirir o livro do nosso camarada Graça Abreu.
Um abraço a todos. Bernardino Parreira .
3. Comentário do editor:
É algarvio de Portimão, a residir em Faro. Tal como ele nos contou na sua apresentação à Tabanca Grande, em 20 de agosto de 2010, a sua integração na CCAÇ 16 "foi fácil, ao fim de pouco tempo conhecia todos os camaradas africanos e metropolitanos, e parecia ter sido adoptado por uma nova família. O ambiente entre os militares era bom, tal como o que havia deixado em S. Domingos. Nos tempos livres, o que eu mais gostava de fazer era jogar à bola e depressa me integrei numa equipa de futebol, de maioria africana. Disputámos o torneio de futebol entre companhias militares pertencentes ao CAOP 1, entre 1972/1973".
_______________
Nota do editor:
Último poste da série > 24 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9943: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (17): Guidage (com g) foi há 39 anos...