Caro Luís,
Tenho mais um texto a partilhar contigo, e que poderás publicar no teu blogue se quiseres, relativo a um aspirante que conheci em Angola e que era doente mental. O texto não faz parte do meu livro, porque eu não tenho qualquer intervenção na história. O meu estatuto foi unicamente de observador. Posso, contudo, assegurar-te que os casos narrados no texto se passaram tal como os descrevo, nomeadamente o incidente com a granada de mão. A versão do incidente que o próprio agressor pessoalmente me contou é coincidente, quase palavra por palavra, com a versão que a vítima me tinha contado antes. Garanto, por isso, que o incidente se passou tal como o descrevo.
Eu não tenho em minha posse qualquer fotografia do aspirante, nem sei onde poderei encontrar uma. Nesta situação, só posso descrever-to, dizendo que ele era um indivíduo relativamente baixo e entroncado e que usava óculos, uns óculos bastante redondos, que apropriadamente lhe davam um aspeto um tanto ou quanto alucinado.
Um abraço
Fernando de Sousa Ribeiro,
ex-alferes miliciano,
CCaç. 3535 / BCaç 3880, Angola 1972-74
2. Estórias avulsas > O Aspirane
No meu tempo de tropa, os muitos capitães milicianos que tiveram a responsabilidade de comandar
companhias operacionais na guerra colonial eram habitualmente selecionados para esse posto em
função da idade. Seguia para capitão, e não apenas para alferes, quem estivesse indicado para vir a
ser oficial miliciano com uma especialidade operacional e tivesse uma idade superior a um
determinado limite. Não me lembro ao certo de qual era esse limite, mas julgo que devia ser à volta
de 23 ou 24 anos. Olhe-se para os jovens que agora têm 23 ou 24 anos, repare-se nas criançolas que
quase todos eles ainda são e compare-se com as brutais responsabilidades que foram exigidas aos
capitães milicianos na guerra.
Depois de frequentarem o COM (Curso de Oficiais Milicianos) em Mafra, tal e qual como
acontecia com os militares que iriam ser alferes milicianos de Infantaria, os futuros capitães
milicianos frequentavam o chamado CCC (Curso de Comandantes de Companhia).
Eu não estou em condições de descrever em que é que consistia o CCC mas calculo que os
futuros capitães teriam que aprender a lidar com as diversas questões relacionadas com o comando
de uma companhia, nas quais se incluiam as questões operacionais, administrativas, contabilísticas,
logísticas, disciplinares, etc.
No âmbito do CCC e em jeito de estágio, já com o posto de alferes, os futuros capitães milicianos
eram enviados para África por cerca de quatro meses, para que, integrados numa companhia real,
pudessem aprender como é que as coisas se faziam na prática. Na minha própria companhia, a
Companhia de Caçadores 3535, em Zemba, esteve durante algum tempo um destes alferes, que
tinha ido para lá estagiar junto do capitão Lamas da Silva, que era então o comandante da mesma. O
próprio Lamas da Silva já tinha tido um estágio deste tipo, antes de se tornar capitão miliciano. O
estágio do Lamas deve ter acontecido no ano de 1971 e ocorreu na cidade do Luso (agora chamada
Luena), no leste de Angola.
Quando o Lamas da Silva (Foto n.º 1, acima) chegou ao Luso para o seu estágio, estava lá colocado um aspirante a
oficial miliciano que sofria de sérias perturbações mentais. Era o aspirante Carvalho. Nalgumas
unidades chamavam-lhe Meireles, mas Carvalho é que era o seu último apelido. Este aspirante,
porém, nunca assinava Carvalho com todas as letras; sempre e sistematicamente assinava Carvalho
sem V! Até no bilhete de identidade ele tinha assinado Carvalho sem V…
Enquanto esteve no Luso, este aspirante fez diversas tropelias, algumas inocentes, mas outras
perigosas. Por exemplo, uma noite ele foi visto a correr completamente nu pelas ruas da cidade,
com a malta atrás dele para o agarrar!
Este indivíduo mantinha-se no posto de aspirante sem ser promovido a alferes, por causa das
asneiras que ia fazendo e das sucessivas punições que estas lhe iam valendo. Ele não tinha um
comportamento que lhe permitisse ser promovido. Na verdade, ele nem aspirante deveria ser. A sua
doença mental era tal, que ele deveria ter sido isentado de todo o serviço militar e submetido a um
tratamento psiquiátrico em condições. Mas não foi isso o que lhe fizeram. Limitaram-se a passá-lo
aos auxiliares.
De vez em quando, ele era enviado para o Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Luanda,
onde ficava internado. O Serviço de Psiquiatria era uma coisa verdadeiramente tenebrosa. Nem os
campos de concentração nazis conseguiam ser piores do que aquilo. O Serviço ficava numas
instalações situadas na zona da Samba, longe do centro da cidade. Estas instalações eram
constituidas por alguns pavilhões muito próximos uns dos outros e estavam rodeadas por muros altíssimos e coroados de arame farpado. Lá dentro, era impossível estabelecer todo e qualquer
contacto com o mundo exterior, a não ser que alguém abrisse o portão, a única ocasião em que os
doentes lá internados poderiam ver uma nesga do largo fronteiro às instalações. De resto, o
isolamento do mundo para quem estava internado era total. Lá dentro, não se via outra coisa que
não fossem muros e paredes, nas quais se roçavam os doentes de olhar perdido, encharcados em
drogas. Estar internado em tais condições implicava ficar doido varrido para o resto da vida.
No entanto, o aspirante Carvalho não se deixava amarfanhar por aquilo e, por mais sedativos que
lhe dessem e por mais tratamentos que lhe fizessem, ele conseguia sempre fugir dali para fora.
Como fugia só com a roupa que trazia no corpo e sem dinheiro, acabava depois por ser encontrado a
dormir na rua...
O incidente mais grave que o aspirante protagonizou no Luso envolveu o então alferes Lamas da
Silva. Por razões que desconheço ou sem razão alguma, o aspirante ganhou um ódio de morte a um
certo sargento que estava lá no Luso. Uma noite, depois de jantar, enquanto o resto do pessoal que
estava na messe de oficiais ia conversando e bebendo as suas cervejas e os seus whiskies, o
aspirante levantou-se de repente e afirmou:
— Vou matar o filho da puta do sargento Fulano.
Foi ao seu quarto, saiu de lá com uma G3 nas mãos e dirigiu-se à messe de sargentos. Logo se gerou
uma enorme confusão, com o pessoal a procurar demovê-lo dos seus intentos, mas a medo, porque
aquele maluco estava armado. No meio da confusão, o Lamas da Silva conseguiu arrancar a arma
das mãos dele.
O incidente parecia ter terminado desta forma, mas não terminou. Quando foi para a cama, o Lamas
levou consigo a espingarda do aspirante, colocou-a debaixo do travesseiro e deitou-se.
A dado
momento, o aspirante apareceu à porta do quarto do Lamas com uma granada na mão, dizendo:
— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada.
— Não dou — respondeu o Lamas da Silva.
— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada — repetiu o aspirante.
— Não dou.
— Dá-me a espingarda ou atiro-te a granada.
— Já disse que não dou!...
O aspirante lançou a granada para dentro do quarto do Lamas da Silva. Este só teve tempo de saltar
para debaixo da cama e proteger-se o melhor possível, antes de a granada explodir.
Se a granada fosse defensiva, daquelas que espalham estilhaços de ferro quando rebentam, o Lamas
não teria saído dali com vida.
Mas a granada era ofensiva. Não espalhava estilhaços de ferro, mas
tinha um grande poder explosivo. Ao rebentar, a granada destruiu o recheio do quarto e o Lamas da
Silva ficou ferido por estilhaços. Foi evacuado e ficou internado no hospital. Mesmo quando, mais
tarde, comandou a companhia 3535, o Lamas ainda tinha no corpo alguns estilhaços, que os médicos não tinham podido tirar-lhe. Ele valeu-se disso para conseguir sair definitivamente de
Zemba e abandonar o comando da companhia.
Um dia, quando o capitão Lamas da Silva ainda estava em Zemba, quem foi que desembarcou lá,
chegado numa coluna vinda de Santa Eulália, a fim de cumprir uma pena de prisão de um mês? O
aspirante Carvalho!
Quando o viu, o Lamas da Silva ficou branco como a cal da parede.
— Tu aqui?... — balbuciou o Lamas, espantado.
— É a vida! — respondeu o aspirante, encolhendo os ombros.
E nunca mais se falaram. Mais do que isso, até. Não só não se falaram, como nem sequer se
cruzaram mais. Se o Lamas da Silva ia para um lado, o aspirante ia para outro e vice-versa.
O aspirante tinha ido para Zemba cumprir uma pena de um mês de prisão por causa de um incidente
que ele tinha provocado em Santa Eulália, onde estivera colocado ultimamente.
Uma noite,
encontrando-se ele de serviço como oficial de dia ao Comando de Agrupamento 3952, a que então
pertencia, o aspirante abandonou o seu posto e foi para a sanzala, onde andou aos tiros com a pistola
de serviço. Felizmente não acertou em ninguém.
O coronel de Infantaria Carlos Lacerda, que com o posto de major foi segundo-comandante do Batalhão de Caçadores
3880. Como não podia deixar de ser, quando chegou a Zemba, o aspirante foi apresentar-se ao
comandante da unidade, que naquele momento era o major Carlos Lacerda, porque o tenente-coronel estava de férias. O major, ao observar os papéis que o aspirante tinha trazido, comentou:
— Você tem aqui um currículo impressionante! São porradas e mais porradas... E agora vem aqui
cumprir mais um mês de prisão... Pois olhe, a única prisão que temos aqui em Zemba é uma coisa
que há ali num torreão. Mas aquilo não tem condições nenhumas, não é prisão nem é nada. Este
quartel aqui em Zemba é que é todo ele uma prisão, isso sim! Isto é um autêntico campo de
concentração. Até eu, que não cometi crime nenhum, estou aqui preso. Se eu quiser sair daqui, só
posso ir com uma escolta. Portanto, considere-se preso e ande por aí... Mas veja lá como é que se
comporta! Ao mais pequeno incidente, eu abato-o, ouviu? Abato-o!
— O meu major abate-me?! — admirou-se o aspirante.
— Abato-o, já disse!
— Ó meu major, se isto aqui em Zemba é assim à Texas, então o melhor é irmos os dois ali para o
meio da parada, para ver quem é que dispara primeiro...
— O quê? Você não se assustou com o que eu lhe disse? — perguntou o major, surpreendido com a
reação do aspirante.
— Eu não — respondeu este.
— Não teve medo? A sério?
— A sério.
— Eh, pá! — exclamou o major. — Você é dos meus! É de gajos assim que eu gosto! Gajos de
tomates, sem medo... Acho que nos vamos dar bem. Venha daí beber um whisky.
E assim nasceu uma grande amizade entre o major Lacerda e o aspirante Carvalho.
Como poderão confirmar todos quantos estiveram em Zemba nessa altura, o aspirante nunca causou
qualquer problema, fosse de que ordem fosse, enquanto lá esteve. Quem o visse em Zemba, diria
que ele era um indivíduo perfeitamente normal, alegre e bem disposto e que se dava bem com toda
a gente (menos com o Lamas, claro). Fartou-se de jogar matraquilhos com a malta.
— Aqui em Zemba é que me sinto bem — confessou ele uma vez. — Sinto-me tão bem, que até já
deixei de tomar os medicamentos para a cachimónia. Não sinto falta nenhuma deles.
Quando terminou a pena de prisão, o aspirante, em vez de voltar para Santa Eulália, foi transferido
para o Batalhão de Artilharia 3860, sediado na Damba, a cerca de 100 km a sul de Maquela do
Zombo. Foi a sorte dele, e já vamos ver porquê.
Na Damba, as condições mentais do aspirante voltaram a deteriorar-se. Os incidentes que ele
provocava eram cada mais frequentes e cada vez mais graves. O comandante do batalhão da Damba
já estava pelos cabelos, já não podia aturá-lo mais. O aspirante arriscava-se a apanhar mais uma
punição de um momento para o outro.
Um dia, chegou à Damba a notícia de que tinha mudado para Maquela do Zombo um tal Batalhão
de Caçadores 3880... Logo o aspirante pediu licença ao comandante para integrar a próxima coluna
que se deslocasse a Maquela, para fazer uma visita ao seu amigalhaço Lacerda. Talvez para se ver
livre dele por umas horas, o comandante deu-lhe autorização e o aspirante lá foi.
Quando voltou à Damba, o aspirante vinha mais bem disposto e passou a comportar-se melhor. A
visita ao major Lacerda tinha-lhe feito bem.
Então o comandante da Damba passou a ter o seguinte procedimento para com o aspirante: sempre
que este começasse a fazer muitas asneiras, era metido numa viatura e levado para Maquela. Mais tarde, quando ficasse mais calmo, voltava para a Damba.
E assim se passaram alguns meses, sem
que o aspirante voltasse a sofrer qualquer punição.
Por volta de janeiro de 1974, o batalhão da Damba chegou ao fim da sua comissão militar e o
aspirante Carvalho (ou Meireles, como era chamado na Damba) regressou finalmente à Metrópole,
juntamente com o batalhão.
Ao todo, o aspirante fez cerca de quatro anos de comissão. E nunca foi
promovido a alferes; ficou aspirante até ao fim. (**)
[Tíitulo do poste, da resposnsabilidade do editor: LG ]
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