sexta-feira, 4 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22252: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (55): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Trata-se de um período que deixou recordações muito desagradáveis, estamos a falar da quadra natalícia e tudo vai culminar com o amanhecer de 1 de janeiro de 1970 em que me caiu redondo nos braços Uam Sambu atingido por três tiros que o deixaram na agonia, um estúpido acidente. Aqui se fala de andanças mil, um pelotão retalhado em trabalhos de recoveiro, de entregas ao domicílio, patrulhamentos aberrantes e operações com guia perdido que pôs um forte contingente a percorrer as matas, por caminhos incertos, longe do objetivo escolhido. Annette tudo quer saber, é muito questionadora, e a memória, meu Deus, registou muita coisa, e parece estar dotada daquela rara felicidade que permite remeter para o esquecimento absoluto as coisas mais amargas. Adiante!

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (55): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, ma femme extraordinaire, femme unique, mon avenir, perdoa-me o laconismo dos últimos dias, breves telefonemas, estou a ver pontos, a preparar exames, o Concurso Europeu do Jovem Consumidor é uma consumição de tempo e energia, há depois os artigos das minhas colaborações, o dilúvio de correspondência da Françoise Mandroux, a nossa excelente secretária de apoio, é o expediente que tem a ver com a Associação Europeia dos Consumidores, e não se pode demorar a resposta, reencaminhar pedidos de informação para uma série de organizações em diferentes países. Suspiro por estar ao pé de ti, e não escondo a felicidade de te ver cada vez mais exigente com o pedido de elementos sobre este fim de ano de 1969. Estou dominado por sentimentos contraditórios, foram tempos que vivi com insatisfação, estou exausto, deprimo, encolerizo-me, é insuportável a variedade de tarefas, a generalidade delas tem pouco risco, há que confessar, nesse tempo ainda não há minas nas estradas dos Nhabijões, estacionar na ponte do rio Undunduma, é um tremendo desconforto, colaborámos nas melhorias, e suspirávamos quando amanhecia, mais uma noite sem o pesadelo de uma flagelação. Tens aí os papéis com o rol das diferentes nomadizações. Um tanto esporadicamente, é certo, participámos em operações, agora não estou a falar de colunas de abastecimento ao Xitole ou acompanhamento de materiais provindos ou destinados ao porto do Xime. Confesso-te que são muitas as saudades do Cuor, mas com aquelas andanças já quase esqueci que ao anoitecer fazíamos a lista dos que permaneciam em vigilância, com os petromaxes ao fundo, as rondas de madrugada, as conversas com Lânsana Soncó, o gralhar das crianças, as conversas avulsas com homens e mulheres que vão para as tarefas agrícolas. Gosto dos meus dois camaradas com quem vivo num quarto de quatro camas, há sempre uma cama disponível para quem chega de surpresa ou aqui pernoita para no dia seguinte apanhar um avião em Bafatá. Registei numa carta que tens aí os comentários desses dois camaradas, de nome Magalhães Moreira e Abel Rodrigues, o Magalhães foi direito ao assunto quando eu ligava o gira-discos para ouvirem trechos de óperas: “Pá, aquela gaja que canta italiano e que parece que está a desfalecer, ainda podes ouvir um bocadinho alto, não sei o que ela canta, mas acho bonito. Mas aquela outra gaja está mais de 20 minutos aos berros e que até consegue cantar mais alto do que a música, por favor, ouve-a quando estiveres aqui sozinho, aquilo arrepia e até tira o sono”. O meu estimado Magalhães Moreira, dito por outras palavras, gostava daquele trecho de La Bohème, de Puccini, na voz do soprano Renata Scotto, e abominava o final da ópera Salomé, de Richard Strauss, cantada pela prodigiosa Inga Borkh. Faço amizades, aprecio imenso o novo médico, Vidal Saraiva. Tive há dias a alegria de ser visitado por um civil do Cuor, Braima Mané. Quando cheguei a Missirá dei com um homem com um braço tolhido, explicaram-me que na grande flagelação de 1966, um estilhaço mobilizara-lhe aquele braço direito, o David Payne foi impecável, enviou ao Hospital de Bissau uma carta onde ao pormenor explicava o sucedido. E tudo correu bem, o braço ganhou vida, ali estava ele diante de mim a gesticular com os dois braços, a pedir-me cinco escudos para comprar arroz, apareceu-me todo sujo e barrento, anda a fazer uma morança no Bambadincazinho, não quer viver em Finete onde o irmão mais velho lhe engravidou a mulher e depois escorraçou-o. Prometi ao Braima que nos tempos mortos alguns dos nossos homens seguramente o irão ajudar.

Annette adorée, sei que tu queres saber muito mais sobre as chamadas atividades operacionais, aquelas que podem meter tiroteio, a explosão de granadas, sinistros. Num desses dias de dezembro, não sei precisar qual, o nosso pelotão com o outro está acantonado em Fá fizemos um patrulhamento ao nascer do dia àquela bolanha de Mero, nós patrulhando Santa Helena, Fá de Baixo e entrando, quase com intimidação na tabanca de Mero, onde claramente não somos bem-vindos, no outro lado do rio Geba está o Alves Correia, de Missirá, na expetativa de apanhar gente que queria escapar devido à nossa presença, entretanto o pelotão de Fá avança para o outro lado da bolanha de Mero, resultado zero, se tinha lá estado gente afeta ao PAIGC ou se dissimulara ou escondera ou já tinha partido. Recordo com dificuldade que quando regressei a Bambadinca, com as marcas das lamas e dos mosquitos da região de Fá, fui chamado ao oficial de operações, tratava-se da operação que enviei o relatório, intitulava-se Punhal Resistente, eu sei que tu te sentes confusa com esta terminologia, não podes imaginar os nomes que considerarás inacreditáveis e que tinham estas operações. Segundo este major de operações, eu iria integrado numa operação que visava chegar a uma base de guerrilha numa região não muito longe do Xime chamada Burontoni, ali perto, em Baio, talvez houvesse uma outra barraca com população. Resumidamente, saímos do Xime com os primeiros alvores do dia, sempre fora da estrada Xime – Ponta do Inglês, iríamos encontrar outra força amiga num local chamado Gundaguê Futa-Fula, seria deste ponto que nos encaminharíamos para Baio e Burontoni. O guia mostrou-se perdido, há gente entre nós que se apercebe que estamos a caminhar não para o Burontoni, mas para a Ponta do Inglês, a avioneta lá do alto ou não nos vê ou não nos pode dar indicações, mas segue-nos com insistência, é o suficiente para começarmos a ouvir fogo de morteiro, caminhamos horas a fio, e quando anoitece o guia confessa que está completamente desorientado, justifica-se com o capim alto. E ali ficamos de noite, a enregelar e a ser perturbados pelas formigas. A via-sacra recomeçou ao amanhecer, havia já quem ameaçasse de morte o guia, pela hora do almoço quem ia na avioneta compadeceu-se do nosso vaivém atormentado, mandou retirar, regressamos entorpecidos depois daquela andança sem parar, umas vezes perto do Geba outras vezes perto do Corubal, seguramente que aquela avioneta ajudou à festa com tanta insistência, quem estava no Baio e Burontoni não se poupou a expelir morteiradas pelas proximidades, felizmente sem qualquer consequência para nós. Os meus soldados detestam esta região, na forçada paragem noturna, enquanto repartia a minha ração de combate com o bazuqueiro Mamadu Djau, natural de Amedalai, ele falou-me da morte de Mário Adulai Camará, um bazuqueiro que em 1977 andou ali a combater lançando fogo da bolanha para dentro da mata, foi combate encarniçado, do lado do Burontoni respondiam com fogo de morteiro 82, ele foi mortalmente atingido.

E para tua surpresa, meu adorado amor, começaram os preparativos do Natal, vamos passar o dia de Natal e os dias seguintes na ponte de Undunduma, quem veio de férias até 15 de dezembro obriguei a trazer-me iguarias natalícias, é certo que em pequenas quantidades, mas iremos ter na ponte de Undunduma bolo rei, broas castelares e de milho, coscorões e rabanadas. Depois vou contar-te o que se passou nesse Natal, que não se pôde igualar ao Natal mágico de 1968, que me continua a inebriar até aos dias de hoje.

(continua)
25 de dezembro de 1969, Ponte do rio Undunduma, entre Bambadinca e Amedalai, o nosso dia de Natal feito de comunhão de amizade, mas as memórias do ano anterior revelaram-se inesquecíveis
Pormenor de abrigo na ponte do Rio Undunduma, uma imagem vale por mil palavras, imagem do nosso blogue, não foram poucos os sacrificados que aqui viveram em ligeiro purgatório
Fachada de Notre-Dame de la Chapelle, entre o Grand e o Petit Sablon
A opulenta nave central, carregada de elementos barrocos, a sobrepor-se ao gótico
Pormenor do interior de Notre-Dame de la Chapelle
Uma imagem do interior da Galeria Bortier, perto da Gare Central, Bruxelas
É inevitável, uma visita à Feira da Ladra de Bruxelas, há sempre o sonho de encontrar uma preciosidade, um livro que se procura há muito e que se compra por 1€, é frequente ver-se aqui à venda porcelana da Vista Alegre ou Cerâmica de Alcobaça, alguém que regressou e entregou a um feirante árabe um recheio que não quer levar para Portugal.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22231: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (54): A funda que arremessa para o fundo da memória

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