sexta-feira, 28 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22231: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (54): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Chegaram novos intérpretes a Bruxelas, a União Europeia cresceu, vêm do Mar Báltico e também do Mediterrâneo e dos Balcãs. O coordenador destes intérpretes organizou um itinerário turístico no Monte das Artes, o ponto de ligação entre a parte alta e a Baixa de Bruxelas. E Annette conta a Paulo o que visitaram, sabendo que ele conhece todos estes lugares mas que os revisitará de bom grado, seja em que ocasião for. Annette está feliz, Paulo virá duas vezes em junho, num caso será visita de médico, foi convidado a fazer uma comunicação sobre a presença portuguesa na Bélgica, desde a Borgonha em Portugal, inevitavelmente que os Saxe-Coburgo-Gota serão referenciados, até vai aparecer Almeida Garrett na corte do primeiro rei da Bélgica; e depois partirão, o pretexto é visitar cemitérios na Bélgica e em França, para referenciar campas, a pedido de um amigo de Paulo. Há quatro anos, praticamente, que este relacionamento amadureceu, sente-se que ambos procuram renovar os muitos anos que faltam para poderem viver permanentemente juntos, felizmente que Paulo tem condições para por ali andarilhar, Annette aceita de bom grado viver em Lisboa aquele mês em que também há férias nas instituições europeias.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (54): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo, infiniment adoré, agora é a minha vez de te surpreender com o relato de um passeio que dei num lugar do centro de Bruxelas que tu tanto aprecias, o Monte das Artes, como tu dizes a Albertina. Vai para duas semanas, o nosso coordenador de interpretação informou-nos que iria preparar uma visita turística com as intérpretes que vêm de alguns dos novos países que entrarão na União Europeia em 2004, concretamente alguns dos colegas de Malta, Croácia, Roménia, Bulgária e Países Bálticos. O senhor Patrick de Rynck confessou que tivera instintos megalómanos, queria que o passeio começasse junto da estátua do Rei Alberto I, houvesse uma visita muito sumária Biblioteca Real, subíssemos até junto do Hotel Ravenstein, aqui haveria uma apresentação do Monte das Artes e a sua história, seguiríamos para a Praça Real, outra visita sumária ao Museu de Belas-Artes, far-se-ia uma pausa para uma refeição ligeira, depois o Palácio das Belas-Artes, o Palácio de Carlos de Lorena e desceríamos pela Galeria Ravenstein até ao centro, acabando o passeio na Grand-Place com a apresentação de todos os belos edifícios que a constituem. Descobriu que iria empanturrar as pessoas de referências, ao fim da tarde estariam todos com os pés a ferver. E moderou-se, abreviou o passeio, encontrou dois bons guias que prometeram um programa conciso entre as nove e a uma da tarde, com um café de premeio.

Foi um sábado maravilhoso, uma temperatura amena, uma manhã cheia de sol. O primeiro guia, Thierry Timmerans, mesmo junto à estátua de Alberto I, e sem referir o historial deste rei-soldado, descreveu que lá em baixo corria o rio Senne, hoje escondido do público, está perfeitamente abobadado, custou a destruição da área medieval para dar lugar aos grandes boulevards que correm ali ao pé da Grand Place. Falou dos sonhos régios de fazer desta região que ascende até à Praça Real um lugar de Artes. Um tanto a despropósito disse que Bruxelas estava intimamente ligada à sua posição de zona de contato estratégico decorrente do desmantelamento do império de Carlos Magno. Há pouco mais de mil anos, e sublinhou que era segundo a tradição, o Duque da Baixa Lotaríngia escolhera Bruxelas como centro dos seus Estados. Depois falou do crescimento económico e demográfico que se deu na região a partir do século XIV e das trocas comerciais com a Inglaterra. As famílias prósperas começaram a viver neste local do Brabante que iria ganhar preponderância a Lovaina e concorrer com Bruges e Gand. É uma época de grandes construções como o edifício da Câmara, a Igreja do Sablon, a Igreja de Santa Gudula e também a Igreja de Nossa Senhora da Capela. Num ponto ali próximo situava-se o palácio ducal de Coudenberg. O esplendor de Bruxelas será atingido no reinado de D. Carlos V, segue-se um período de revoltas contra Filipe II, que termina com execuções. Vieram depois os arquiduques Alberto e Isabel, Bruxelas é então a capital dos Países Baixos meridionais católicos. Tudo mudará no fim do século XVII, Luís XIV manda bombardear Bruxelas. E mais disse que o governador Carlos de Lorena, em 1776, mandou desenhar a Praça Real. Continuou a sua breve narrativa falando das tropas revolucionárias francesas em Bruxelas, as consequências da batalha de Waterloo, a independência da Bélgica e como Bruxelas se afirmou como uma terra de acolhimento aos olhos dos refugiados. Com a independência, e tendo o rei meios, Leopoldo II aspirou e conseguiu dar a Bruxelas as dimensões de capital. Passou em revista as urbanizações deste rei e período áureo da Bélgica industrial, estamos no início do século XX. E acabou a sua apresentação falando de Arte Nova, dos grandes boulevards, das construções megalómanas como o Palácio da Justiça, e como todo este centro histórico iria ser profundamente abalado pela criação da Comunidade Económica Europeia, chegando-se à desertificação do centro ocupado pelos estabelecimentos comerciais, escritórios e zonas habitacionais de imigrantes, sobretudo. Fomos subindo para os belos jardins do Monte das Artes, referenciada a Biblioteca Real de um lado e o Palácio dos Congressos do outro. Monte das Artes por ser o sonho de Leopoldo II de aqui postar academias, que efetivamente não aconteceu, aqui se implantou a maior biblioteca do país, o Museu de Instrumentos Musicais e bem perto está o Museu do Cinema e a pintura e a escultura também estão perto do Museu de Belas-Artes e num museu que será dedicado a Magritte.

Meu adorado Paulo, nada do que podes agora ver nas imagens tem algo de novo, sei muito bem que percorreste todos estes lugares ao milímetro, que conheces tanto a Biblioteca Municipal como o Museu do Cinema, que percorres as livrarias e as discotecas, que visitaste amiudadas vezes a Galeria Tempera, de Chantal Elsouth, onde compraste várias obras, vi em tua casa.

A visita terminou com uma passagem rápida pelo palácio de Carlos de Lorena, que governou os Países Baixos em meados do século XVIII, a decoração interior é riquíssima, sumptuosa, regista a história das Artes e das Ciências na Idade das Luzes nos Países Baixos Austríacos.

Os dois guias deploraram que não se continuasse a visita pelos vários museus, lembrou a arte flamenga esplendorosa dos Museus Reais das Belas-Artes, o Museu dos Instrumentos de Música, o interior do Palácio das Belas-Artes, mas era nítido que os novos intérpretes estavam mais do que exaustos, a informação tinha sido muita. Para consolar todos, prometi a guias e visitantes que uns meses adiante iríamos continuar a nossa itinerância turística, por exemplo visitando o Sablon, o Conservatório, a Sinagoga, o Palácio da Justiça. Se se der a felicidade de tu cá estares, está prometido que desceremos Marolles, até à Feira da Ladra…

Estou ansiosa que tu venhas, há pouco sentido na minha vida sem a tua presença, faço jus ao teu acompanhamento quase diário, e jamais saberás o que representa para mim chegar à Rua do Eclipse e ter as tuas cartas, os documentos da guerra da Guiné, as tuas lembranças. Que bom vires em junho duas vezes. Consola-te com estas imagens da cidade que tanto amas e abraça-me e beija-me muito. Gostei que me pedisses para ter queijos genuinamente belgas à tua chegada, nós temos muito orgulho na nossa queijaria, mas como sabes o gosto pelos queijos franceses é incontestável no nosso mercado. Lembranças aos teus filhos. Nunca escreverei a palavra adeus, é muito dura e amargurante. Até breve, até sempre, milliers de bisous, Annette

(continua)
O início do Monte das Artes, ao fundo a agulha do Hôtel de Ville, em frente a estátua do rei Alberto I, à esquerda a Biblioteca Real Alberto I e à direita o Palácio dos Congressos, que tem levado uma vida acidentada
No edifício à direita funcionou durante largo tempo o Comité Económico e Social Europeu, que já mudou de paragem, está hoje na Rue Belliard, em pleno Bairro Leopoldo, esta escultura móvel é muito graciosa, e o espaço está perfeitamente articulado com a Rue Ravenstein, onde se situa o Palácio das Belas-Artes, onde têm lugar exposições de renome, a Cinemateca Nacional e uma sala de concertos famosíssima, ali se realizam os concertos dos laureados do concurso Rainha Elizabeth e atuam artistas consagrados, como é o caso de Maria João Pires
Grande plano da estátua de Godofredo de Bouillon
Esta é a Praça Real, no centro a estátua de Godofredo de Bouillon, um épico da 1.ª Cruzada, em frente a Capela Real, diga-se em abono da verdade tem um interior paupérrimo numa atmosfera quase lúgubre. Bem perto desta praça existiu o Palácio de Carlos V, descendo o Monte das Artes do lado direito está o Museu dos Instrumentos Musicais que funciona no belo edifício onde existiu o Old England. Atravessando a praça e à nossa direita estão dois dos mais famosos museus belgas, e descendo o Boulevard de l’Empereur temos o muito bem tratado jardim do Sablon, com a fonte dedicada a Egmont e Hornes, tratados como mártires.
Estátua de Egmont e Hornes, jardim do Sablon
Hotel Ravenstein, é o que resta do esplendor do Brabante, descendo a rua, do lado direito já se vê uma nesga do Palácio das Belas-Artes
Esta cúpula foi considerada uma enorme atração quando se inaugurou a Galeria Ravenstein, na década de 1950, liga a parte alta e a parte baixa de Bruxelas, situa-se mesmo em frente ao Palácio das Belas-Artes
Fachada principal da Biblioteca Real Alberto I com a escultura do Rei-Soldado em destaque. Em frente da escultura, do outro lado da rua, levanta-se a estátua de Rainha Elizabeth, sua mulher
Fachada do palácio de Carlos de Lorena, no Monte das Artes
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22216: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (53): A funda que arremessa para o fundo da memória

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