quarta-feira, 26 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22226: Historiografia da presença portuguesa em África (264): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)

Sociedade de Geografia de Lisboa > Sala de Portugal, uma magnificência da arquitetura de ferro


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
 
Numa tentativa de ir ao fundo do espólio (riquíssimo!) guardado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, para melhor conhecer o que aqui se guarda sobre a Guiné e quem a estudou, depois de percorrer aquele itinerário clássico de visitar os autores consagrados, o que oferecem os Reservados, o próprio boletim da Sociedade de Geografia, chegou a hora de bater à porta dos volumes das atas das sessões, estou agora entre 1876 e 1881, emana o entusiasmo dos fundadores, fala-se na criação do Instituto Colonial para dar base científica e rigor aos quadros da Administração, fala-se mesmo em fazer uma subscrição para apoiar as explorações ao interior africano, discute-se o trabalho do indígena, as potencialidades económicas, aqueles primeiros anos a África de que se fala é mais o Litoral de Angola, só mais por adiante se falará de Moçambique. Nem uma só palavra sobre a Guiné. Discute-se o papel do missionário e há quem se atire criticamente aos degredados civis e militares, são considerados uma desgraça da colonização.

E vamos continuar.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (1)

Mário Beja Santos

Para se entender a mentalidade dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, instituição criada em 1875, e que se veio a tornar a matriz do conhecimento do interior das colónias africanas, tendo mesmo gerado, pela agregação de figuras exemplares da política e da ciência, não só explorações audaciosas como estudos geográficos e coreográficos que se revelaram da maior importância para a fundamentação dos ideais do III Império, é preciso ler nos documentos da época. Nada melhor que ler as atas das sessões da Sociedade de Geografia, ir ao volume I onde estão coligidas as reuniões que ocorreram entre 1876 e 1881.

Estamos em 7 de julho de 1876, aberta a sessão presidida pelo Visconde de S. Januário, alguém propõe que se apresente ao governo de Sua Majestade a conveniência científica, económica e política de se empreender uma expedição portuguesa através do sertão africano, de costa a costa, prestando-se a sociedade a promover uma subscrição nacional para auxiliar este empreendimento. A alocução de Luciano Cordeiro, figura capital da Sociedade de Geografia e seu primeiro secretário durante anos a fio, é extremamente reveladora:

“O Sr. Luciano Cordeiro disse que uma das ideias principais que haviam presidido à fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa fora o reconhecimento da urgente necessidade e do imperioso dever imposto a Portugal pelas suas tradições, pela sua situação de segunda potência colonial da Europa, pelos seus interesses económicos e políticos além-mar, de entrar definitivamente no movimento espantoso que as ciências, os estudos e as explorações geográficas estão exercendo lá fora; e que sendo uma das fases mais interessantes e mais acentuadas desse movimento o problema africano, desde os primeiros passos no trabalho desta Fundação, ele e outros fundadores da Sociedade tinham reconhecido e assentado que uma sociedade geográfica portuguesa deveria necessariamente começar por ocupar-se vivamente daquele problema que encerrava para a nossa pátria uma questão vital (…)

Que era necessário levantar o espírito público à compreensão dos grandes interesses e dos impreteríveis deveres que o problema africano significava para nós. Que a necessidade de Portugal empreender urgentemente uma expedição científica ao interior africano, no intuito de o conhecer melhor e de o abrir ao comércio, ao prestígio português e à civilização europeia, era por tal forma axiomática que ele se dispensava de fundamentar a proposta que acabava de ler”.

Noutras sessões irão ser levantados problemas e situações para os quais os sócios da Sociedade de Geografia entendem dever encontrar resposta mediante sugestões para o governo de Sua Majestade. Um sócio, numa sessão em 1878, fala da qualidade da administração colonial, revelava-se indispensável preparar um centro de estudos para preparar tais funcionários:

“O Sr. J. M. Pereira declarou que tinha estado por algum tempo na costa ocidental de África, e por isso a experiência o levava a fazer algumas considerações. Que a circunstância de nos termos limitado a ocupar somente o Litoral fazia com que a língua portuguesa não estivesse ali mais desenvolvida; e que não sucederia assim se tivéssemos alguns estabelecimentos comerciais mais para o Interior. Que era certo não serem suficientemente habilitados os funcionários que vão para o Ultramar, porém, julgava como principal motivo disso a má remuneração que lhes dá o Estado; e que as empresas particulares nacionais e estrangeiras ofereciam um bom exemplo, pois elas tinham ali empregados tão hábeis como os melhores dos países civilizados. Que se havia aludido ao vexame e ao prejuízo que o Estado sofria por os seus empregados não conhecerem as línguas coloniais, e sem querer negar as vantagens resultantes do conhecimento dessas línguas, afirmava que, se metermos em linha de conta o estado da nossa civilização e o da civilização africana, havemos de concordar que nós é que vexamos os indígenas e não são eles que nos vexam a nós”.
 
Interveio seguidamente Adolfo Coelho que juntava uma proposta sua à de Teixeira de Vasconcelos para a criação de um instituto colonial onde se ministrasse o ensino das seguintes matérias: Geografia e Etnografia de África e da Ásia; Geografia e História das Colónias Portuguesas; Gramática Comparada das Línguas bantu e Ensino Prático do nbundo e zulu; Gramática Comparada dos Dialetos Modernos da Índia; Fauna e Flora das Colónias Portuguesas, Agricultura com Aplicação às Mesmas; Direito Administrativo Colonial. Luciano Cordeiro juntou o seu nome aos de Adolfo Coelho e Teixeira de Vasconcelos.

Curiosas serão as intervenções que se seguem, vale a pena registá-las:

“O Sr. Gastão Mesnier declarou de discordar da opinião de muitos consócios, pois estava convencido de que a África só se podia civilizar por meio dos missionários. A religião católica era a que melhor se podia implantar ali; e quer os mais acreditassem quer não, ele orador estava convencido de que o catolicismo tinha a representar um grande papel no continente africano. Pôs em paralelo o missionário da crença e o missionário da ciência; e concluiu afirmando que uma nação pequena como a nossa não se podia reger pelas mesmas leis das grandes nações, e que as cadeiras que se criassem teriam de fechar-se mais tarde por não haver discípulos para elas. 

O Sr. Batalha Reis declarou que não se preocupava e que nem a sociedade nem o governo se deviam preocupar com o que se dizia de não haver discípulos para as novas cadeiras. Que uma nação civilizada e colonial tinha o rigoroso dever de conhecer as suas colónias; e que não havia nações pequenas nem nações grandes perante o desenvolvimento científico”.

Constituiu-se uma comissão de redação e a sugestão do Instituto Colonial foi por diante.

Nesta digressão pelas atas iniciais das sessões da Sociedade de Geografia nos seus primeiros anos de atividade, o que se pretende mostrar ao leitor eram as principais preocupações dos fundadores, logo conhecer o interior africano, está latente o sentimento da cobiça de várias potências, dentro de alguns anos haverá a Conferência de Berlim e Portugal já se debate com as ambições da Bélgica sobre o Congo, da Alemanha com o Sudoeste africano e o Norte de Moçambique, as viagens de Capelo e Ivens e Serpa Pinto, de costa a contracosta, irão exacerbar a posição britânica de que não quer intrusões na linha entre o Cabo e o Cairo, chegaremos assim ao Ultimatum de 1890, com gravosas consequências para o regime monárquico.

Da leitura que iremos tentar fazer destas atas iniciais não surpreende não haver uma qualquer referência à Guiné, as primeiras reuniões estão polarizadas das explorações africanas em Angola e até Moçambique; haverá intervenções sobre a ocupação angolana, só mais tarde se irá falar de Moçambique; Cabo Verde e S. Tomé terão referências avulsas e pouco representativas nestes primeiros anos. 

E pelo adiante se verificará, até com a chegada de novos sócios declaradamente ligados a negócios, de que há grandes preocupações em ensinar o preto a trabalhar. Não faltarão referências às condições higiénicas e climáticas, os problemas das comunicações serão versados de forma continuada, e não faltarão críticas aos degradados enviados para África, como alguém sublinha:

“E que ele orador pudera verificar em África que o preto que não tinha convivência com um branco era muito mais honrado do que aquele que estava em contato com os europeus; devendo ainda assim ser muito boa a índole do negro para não estar completamente pervertida, visto que os condenados a degredo pelos mais horrorosos crimes são como que os professores que nós mandamos para ali. Se queremos introduzir a civilização em África, é urgente que se estabeleçam colónias penais, pois não pode nem deve consentir-se que o degredado tenha a mais completa liberdade. Tem dado péssimos resultados este sistema; e não é raro ver-se ali o condenado na melhor sociedade, e adquirir uma influência que por vezes embaraça o exercício do governo local. 

Devia também acabar-se por uma vez com o costume de mandar para o exército de África os soldados incorrigíveis do exército da metrópole; e que ele orador, quando estava em Luanda, passava sossegado e tranquilamente pelos negros indígenas que encontrava, não lhe sucedendo o mesmo quando tinha de passar por entre os soldados brancos do serviço policial, porque estes eram, na grande maioria, degredados e incorrigíveis”.

(continua)
Uma imagem clássica do explorador Serpa Pinto
Uma das traves-mestras da Sociedade de Geografia de Lisboa, Luciano Cordeiro
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22214: Historiografia da presença portuguesa em África (263): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (5) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Antº Rosinha disse...

O degredado mais célebre na história de Angola foi o Zé do Telhado.

Colonizar não é connosco, fomos obrigados a isso por causa dos acordos de Berlim, em África, e na India os ingleses nos obrigaram a fazer alguma coisa parecida para não perdermos o pé, e ficámos com aqueles pequenos refúgios de Goa, Damão e Diu, e chegava.

Connosco é bom é viajar, navegar, mapear, comerciar, conviver e acasalar e pouco mais.

E assim é que era bom. Mesmo missionários, sabemos que São Francisco Xavier e a companhia de Jesus inicialmente não teve nada a ver com Portugal, Portugal apenas serviu como meio de o Papa expandir o cristianismo.

Em Angola, no 25 de Abril estavam mais espalhadas missões americanas, alemãs, protestantes, do que o missionário português.

Fizemos o que pudemos, e que não nos culpem com o resultado final, embora pudesse ser ainda pior...se fosse à nossa maneira.

Havia mais à maneira das nossas terras , o tradicional pároco para batizar e casar e vá lá.

Há a piada, penso que brasileira sobre "português": O Manuel chega, prega os socos de madeira atrás do balcão, e só tira os pés do socos, quando a "mulata" lhe diz que está à espera.

Fernando Ribeiro disse...

Permite-me, meu caro Antº Rosinha, que discorde de ti. Escreveste que «colonizar não é connosco» (os portugueses), mas eu lembro que no Brasil não se fez outra coisa senão colonizar, desde que D. Manuel I criou as primeiras capitanias ao longo da costa, até à independência do Brasil, que foi proclamada pelo... rei de Portugal D. Pedro (isto, sim, é uma originalidade!). Foi uma colonização pura e dura, eu diria mesmo feroz, que consumiu milhões de vidas de escravos, índios primeiro e africanos depois, nos engenhos de açúcar, na extração de ouro, no abate de árvores de pau-brasil ou no que quer que fosse. Terminada a colonização do Brasil, deu-se então início à de África com caráter de urgência, face à cobiça de outras potências europeias. Foi o tempo das expedições através do continente, não só portuguesas, mas também inglesas (Livingstone e Stanley), francesas (Pierre de Brazza), etc.

Há muitos anos, tentei ler os livros de Serpa Pinto e de Brito Capelo e Roberto Ivens sobre as suas expedições em África, mas desisti, em face do racismo e do profundo desprezo pelos africanos que esses livros refletiam, sobretudo o livro de Capelo e Ivens "De Angola à Contra-Costa". Em compensação, fiquei muitíssimo agradado com a obra escrita pelo capitão Henrique de Carvalho sobre diversos aspetos do Reino da Lunda, como a vida na corte do Muatiânvua (o rei da Lunda), os cantos populares e até uma gramática da língua lunda. Henrique de Carvalho escreveu vários volumes de grande diversidade e profundidade e merecia ser mais conhecido por isso.

Anónimo disse...

Julgar a história....

Ter julgamentos e fazer juízos de valor sobre factos históricos à luz da ética e moral atual para não falar da componente jurídica, normalmente dá asneira (salvo melhor opinião).

Fomos colonizadores, esclavagistas e outros istas..fomos.
Se fomos mais ou menos violentos que os outros o assunto já é discutível, até porque éramos menos, logo não podíamos ocupar grandes extensões territoriais e cometer genocídios de milhões de pessoas.

Um jornalista e historiador brasileiro (Eduardo Bueno) que descreve a história sempre em tom irónico e jocoso , diz que onde os "empresários" tugas e posteriormente os brasucas foram competentíssimos foi no tráfico de escravos onde chegavam a ter 3000 % de lucro.

Não sei se uma "aventesma" da nossa praça ainda quer destruir o Padrão dos Descobrimentos.. depois admiram-se que os os "populismos" avançam a velocidade de cruzeiro.

AB
C.Martins