sábado, 29 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22233: Os nossos seres, saberes e lazeres (453): A estação de Metro dos Anjos, Maria Keil intemporal, a obra como ela a deixou (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Dentre a variedade de gostos com que cada um de nós é dotado, confesso publicamente o meu fascínio por azulejo, foi-me inculcado por uma tia que igualmente reparava e colecionava leques, habituou-me a olhar as artes decorativas não como uma subalternidade ou uma menoridade face às artes plásticas mas como um qualquer rasgo de génio já que a própria palavra decoração tem o valor amplo de que qualquer manifestação artística não prescinde. E por isso me passeio nas estações de Entrecampos, Colégio Militar ou Alameda, com a mesmíssima devoção com que contemplo o trabalho maravilhoso de Maria Keil, que chegou às artes do Metro depois de um longo percurso pela publicidade e outras artes gráficas, conhecedora da pintura e sua praticante (mas que cedo descobriu no seu lampejo modernista era um registo equivalente a tantos outros e por isso parou), habituando-se a ligar o azulejo à arquitetura.
Na homenagem que o Museu Nacional do Azulejo lhe prestou em 1989 começa por dar a interpretação do que é para ela o azulejo: "É essencialmente uma presença, um brilho. Liso ou trabalhado, de extrema simplicidade ou de extrema riqueza, é sempre perturbante. Para mim, o bom azulejo é uma grande arte difícil". Trabalhou no Metro a partir de 1958, contou com a Fábrica Viúva Lamego e com a ajuda de um grande artista, Jorge Barradas. Sabia que não podia socorrer-se da figuração, no seu lastro de experiência usara sobrearticulações e explorações geométricas, irá aplicá-las metodicamente, todas as estações serão diferentes umas das outras. Destruíram-se os seus azulejos em duas estações de Metro, Saldanha e São Sebastião. No final da entrevista, diz algo de muito belo: "Um viajante do século XVIII que passou por Lisboa, escreveu nas suas memórias de viagem que Lisboa era uma cidade onde havia casas de loiça. Gostei muito da imagem".

Um abraço do
Mário


A estação de Metro dos Anjos, Maria Keil intemporal, a obra como ela a deixou

Mário Beja Santos

Ainda no século passado (1996), o Metropolitano de Lisboa homenageou a artista que de 1959 a 1972 azulejou as estações do Metro então existentes. Foi então entendido que a estação Anjos devia ser integralmente preservada, ficaria ali a memória de uma época. Foi durante aquele período de 1959 a 1972 que se tomou a decisão de revestir as paredes das estações com azulejos decorativos. No leme do projeto arquitetónico estava Francisco Keil do Amaral e escolheu-se Maria Keil que já tinha vasto currículo no desenho publicitário, nas artes gráficas, na ilustração e que ao longo da década de 1950 se iria notabilizar na azulejaria como forma de arte urbana. Os seus estudiosos ainda hoje pasmam como ela obteve um tão constante equilíbrio entre a tradição e a modernidade. O grande segredo talvez resida no recurso a uma enorme variedade de tonalidades, ao jogo de círculos e formas polifacetadas com a incorporação de padrões plurais, gerando sinuosidades e a ilusão de planos avançados e recuados. Foi sempre diferente nas 19 estações que decorou. Ficou ligada ao primeiro ciclo de construção do Metropolitano de Lisboa e à valorização plástica de todo o espaço público do transporte urbano mais frequentado da capital. A estação Anjos foi a 15.ª a ser construída, inaugurada em 1966 quando o comprimento da linha foi ampliado para 8,5 quilómetros, a partir dos 7 quilómetros que tinha, quando atingiu a estação Rossio. A estação não escapou à regra até então seguida de pequenos átrios nas duas extremidades do cais, estações construídas a profundidades relativamente reduzidas. A estação Anjos tem cerca de 200 metros de comprimento total. Houve depois uma segunda fase de obras em que colaborou outro artista, Rogério Ribeiro, em 1976.
Autorretrato
Capa de Maria Keil para uma publicação do SNI
Os Pastores, Maria Keil, Museu Nacional do Azulejo
Painel da Avenida Infante Santo, Maria Keil

Em 1989, o Museu Nacional do Azulejo apresentou uma exposição sobre os azulejos de Maria Keil. Na introdução do catálogo refere-se que a artista se estreou nas artes gráficas em 1936, colaborou com outros artistas como Fred Kradolfer e Cândido Costa Pinto, assim foi descobrindo a economia dos elementos utilizados, a ausência de retórica, a procura da leitura direta. Não é difícil encontrar nestes seus primeiros projetos de artes gráficas uma das matrizes da sua arte azulejar, é o caso da sobrearticulação de planos e a exploração de efeitos de num espaço aparentemente monótono introduzir uma variante. Foi indiscutivelmente uma artista polifacetada, compôs cenários, aventurou-se na arte do mobiliário, foi pintora durante algum tempo. O seu autorretrato mereceu o Prémio Sousa Cardoso.
No catálogo da exposição em sua homenagem, escreve algo que abona para o currículo da futura decoradora do Metropolitano. Fala-se nas primeiras tentativas de renovação do azulejo português na década de 1930 a que estiveram ligados artistas como Bernardo Marques, Carlos Botelho, Fred Kradolfer, Paulo Ferreira e Tom e mais tarde Jorge Barradas. É neste meio que Maria Keil emerge na produção de azulejaria moderna. Começa pelo uso da figura e a sua articulação com o padrão, nasce o sentido da geometria, da organização reticular e a sobreposição é evidente no seu painel de azulejo Os Pastores, datado de 1955. Amadureceu, parece que subtraiu o azulejo aos processos da pintura e da estilização de formulários antigos, encontrou sentido para uma nova dimensão ótica e espacial, que permite passear o olhar entre a figura e o padrão. Está, pois, preparada para enfrentar a tarefa de dar pele às paredes do Metro.
Em 1956 encontra uma solução espantosa para revestir uma das paredes escadeadas de um bloco habitacional, projeto do arquiteto Alberto Pessoa, na Avenida Infante Santo, em Lisboa. É sem margem para dúvidas uma obra-maior do azulejo contemporâneo. Está tudo pronto para a multiplicação de revestimentos azulejares, encontrar soluções cenográficas simples nas dinâmicas, em função dos ritmos de utilização, ascendente e descendente, dos lances das escadas, do revestimento dos átrios, superando habilmente os tons quase monocromos, suscitando uma intensa animação de retalhos, incorporando cartelas. Daí os contrastes de várias dimensões de um mesmo padrão, ruturas com estilizações modernizantes de motivos antigos. E não me coíbo de uma citação: “Na estação Anjos, as barras de arremate dos prédios do início do século são deslocadas para uma notável ação de mobilidade entre os círculos da padronagem, como se arrastados no rodopio imparável de uma estrela cadente, até desaparecerem no humor de uma linha, visível quando o passageiro dá os primeiros passos na plataforma da estação”.
Numa conversa com uma programadora da exposição, explicou as técnicas que utilizou: “O ostracismo a que o azulejo tinha sido votado no século XIX tinha arrastado consigo algumas técnicas e usos tradicionais. Diante daquelas possibilidades de criar novos padrões para as estações do Metro, surgiu a possibilidade de também recuperar algumas técnicas. Os dirigentes da Fábrica Viúva Lamego puseram nisso os seus conhecimentos, o seu entusiasmo, ensinaram-me, ajudaram-me. Assim, na estação Intendente, foi usada a técnica da corda seca; na estação Anjos reviveram-se as barras que decoram os prédios do princípio do século; nos Restauradores fez-se uma ligação de motivos do século XVIII com um padrão moderno…”. E dirá mais adiante: “Eu só fiz parte de um movimento que começava. Estava-se num tempo de reconquista. Isto é, da tal reabilitação”.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22218: Os nossos seres, saberes e lazeres (452): Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (2) (Mário Beja Santos)

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