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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24066: Notas de leitura (1556): Em "A Minha Guerra a Petróleo", por António José Pereira da Costa; Chiado Editora, 2019 - "Cerca das 281330AGO71", uma memória de guerra, uma apreciação de um facto (Carlos Vinhal)


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Mansabá ea lgumas das tabancas (Mansomine, Manhau, Mantida, etc.) desactivadas no tempo da CART 2732 dentro da sua zona de acção, que a Leste, terminava na bolanha de Manhau (Vd. poste P12150, de Ernesto Duarte)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


N
o meu primeiro comentário no Poste 24063, fiz referência ao infortúnio que atingiu o então Cap Faria Monteiro, comandante da CART 3417, quando pisou uma mina antipessoal ali para os lados de Manhau.

No seu livro "A Minha Guerra a Petróleo", o nosso camarada António José Pereira da Costa, Cor Art Ref, faz referência este incidente nas páginas 159 a 167, porque o Cap Monteiro era, e é, seu amigo. Porque a narrativa está muito pormenorizada e fiel ao acontecimento, pelo menos nas horas difíceis passadas em Mansabá e em que eu e os meus camaradas tivemos a nossa modesta intervenção, não resisti a transcrever aqui no Blogue o capítulo na íntegra. Só espero que o nosso esforço tenha minorado a extensão dos ferimentos sofridos pelo Cap Monteiro.

A propósito, o livro "A Minha Guerra a Petróleo" ainda pode ser adquirido, tendo um custo actual de 14,00€, através da WOOK, por exemplo.
São 187 páginas de leitura interessante complementada com algumas fotos.

CV
********************

Cerca das 281330AGO71[2]

Este texto não é só mais uma memória de guerra, uma apreciação de um facto que veio ter comigo. Será a maneira como observei algo que sucedeu a outra pessoa e a memória que disso guardei, influenciada por situações que vivi antes e depois. Julgo que este texto pode ser considerado uma homenagem.

Saindo de Mansabá em direcção a nascente encontrávamos três pequenas localidades abandonadas: Mansomine, Manhau e Mantida. No tempo da paz eram servidas pela estrada que seguia para Banjara - esta já a mais de 18 km de distância - e que, na altura em que por ali andei, também já fora abandonada. Não pertencia ao nosso sector. Era apenas algo de que se falava...

Nos patrulhamentos que realizávamos naquela direcção, marcou-me especialmente a visão do quartel de Manhau, abandonado e destruído. Segundo apurei, fora um destacamento da Companhia de Mansabá, ocupado quinzenalmente por um grupo de combate e um pelotão de milícia com umas condições de vida muito más e para onde era necessário levar tudo, até a água, numa viatura-tanque. Qual seria a vantagem táctica de uma posição com aquelas características? Como tantos outros "quartéis da malta", acabara abandonado e destruído "à granada de mão", por volta de 1966.

Naquela altura, ainda se reconheciam as duas fiadas de arame farpado, agora ferruegnto e quebrado aqui e além, vagamente esticado entre as últimas varas que o tinham suportado. O cavalo-de-frisa ainda se mantinha de pé, mas inútil não chegava a vedar o acesso ao interior da área quadrada, que deveria ter tido cerca de trinta a quarenta metros de lado. No interior, nenhuma construção ou mesmo restos do que pudesse ter sido uma, eram identificáveis com clareza, mas no exterior, o sistema de iluminação continuava bem representado por alguns postes: uns já caídos, outros resistindo às intempéries numa posição quase vertical. Cada poste não era mais do que um tronco de palmeira cravado no solo, ao qual havia sido adossado pela geratriz um "abat-jour" cilíndrico deveras original.

Era constituído por um bidon vazio que tinha sofrido umas pequenas, digamos, adaptações. Uma das tampas - a que ficaria para baixo - fora removida, mas a outra apenas havia sido separada da superfície lateral do cilindro em pouco mais de metade do perímetro. Depois de aberta a geratriz oposta à que fora pregada ao poste, um petromax ficava pendente da face inferior da tampa, no interior do cilindro. Julgo que assim se pretendia preservar o candeeiro dos ventos e das chuvadas, mantendo o perímetro do aquartelamento iluminado. Sempre que um dos Petromax fraquejasse, o "electricista de noite" tinha uma tarefa a cumprir. Considero este abat-jour mais uma prova do "desenrascanço nacional" e do engenho (que não arte) dos Portugueses.

Todavia, o sistema fornecia pouca iluminação para que os defensores pudessem observar a área circundante da posição. Em compensação, o In dispunha de uma visão privilegiada sobre ela, a algumas centenas de metros de distância. Agora, olhar para este "quartel" era contemplar uma espécie de peça de arqueologia militar, que entristecia se procurássemos saber o que levava a que o destacamento fosse construído, sabe-se lá com que esforço, e depois abandonado. Depois deste, era a tabanca de Mantida, onde os militares que guarneciam Manhauiriam buscar laranjas de boa qualidade e correndo os inerentes riscos. Era uma lenda, mas para que tenha surgido é necessário que, pelo menos uma vez, lá tenham ido...

Devo ter ido a Manhau e Mantida duas ou três vezes, mas para além da visão das ruínas do quartel, tenho a imagem de uns dois metros de estrada onde a erva não tinha crescido, passado mais de um ano. Tinha sido ali... segundo se dizia e eu acredito, pois - soube dpois - que, além da mina que vitimara o Monteiro, havia mais três que o furriel de minas e armadilhas tinha detonado.

Eu estava em Bissau com a Bateria Ati-aérea, quando o Joaquim Evaristo me deu a notícia. O Monteiro[4] tinha pisado uma mina anti-pessoal. Há notícias que não podem ser dadas de outra maneira: de modo brutal e com uma frase curta e, como todas do mesmo tipo, de significado imediatamente dedutível. Não sei porquê, mas não fui logo ao Hospital. O Joaquim foi e, pouco tempo depois, só medisse:
- Está sem um pé.

Logo que me foi possível fui ao Hospital e localizei-o. Estava num quarto, deitado na cama com uma perna esticada e a outra erguida e apoiada em algo que se parecia com uma almofada...

Fiquei sem saber o que dizer, mas o silêncio de poucos segundos tornou-se impossível de suportar. Nestes momentos, sabemos que é necessário dizer ou fazer qualquer coisa, mas não temos a ideia do que possa ser. Se calhar, concentramo-nos em nós e no que sentimos, quando deveríamos considerar que o ferido ou o doente grave que ali está é que deverá estar antes de tudo.

Tartamudeei qualquer coisa, nem sei o quê. Depois tentei saber como as coisas tinham sucedido. A estrada abandonada ainda conservava as rodeiras, as marcas dos pneus das viaturas que por ali tinham passado. E foi ao movimentar-se pela área entre rodeiras que encontrou a mina.

Por outras experiências que tive, sei que a surpresa inicial deu lugar ao espanto e à pergunta feita a si mesmo:

- O que sucedeu?

Depois é uma mistura de dor sentida e uma vontade de sair dali, de tudo aquilo que não seja verdade e de um turbilão de perguntas que acabam por se redizir a uma certeza: "Estou gravemente ferido. Isto também me aconteceu a mim".

- A mim? Porquê a mim?

Os outros têm muito que fazer. A nós, nada mais resta do que aguentar a dor e sentir revolta contra a falta de sorte e a irreversibilidade da situação

Dez dias depoi de ter completado 24 anos!...

À chegada dos reforços vindos de Mansabá, os enfermeiros da sua Companhia já tinham garrotado a perna e metido o soro, procedimentos habituais nestas situações. Agora eram sete quilómetros em coluna, de regresso ao quartel, num percurso em que se queria evitar solavancos, sempre excessivos para quem sofre. Porém, nesse dia chovia e, devido à pouca visibilidade, os helicópteros não voavam. Podia ser que as condições melhorassem, mas há dias em que nem os astros ajudam. Cerca das cinco da tarde confirmou-se que o héli não viria e não houve outra solução que não fosse a evacuação, em coluna auto. A espera inglória na enfermaria foi angustiante. Uma tortura que nada justificava. 

Por fim, o pessoal de enfermagem "depositou" a maca numa das viaturas e a coluna partiu em marcha moderada. Seria uma viagem até Mansoa e daí, em ambulância, até ao hospital. Todavia a viagem de Mansoa a Bissau "não estava prevista" e a coluna por ser de quase cem quilómetros, até Bissau, debaixo de chuva intensa. Já tinham passado bastantes horas e o sofrimento físico e psicológico somavam-se, numa aritmética de revolta sem fim, que só terá tido uma paragem pelas seis e meia da tarde à entrada do Hospital Militar de Bissau. Tinham decorrido cinco horas.

Ouvi a descrição do Monteiro e, não podendo ou não sabendo, dizer mais, respondi-lhe que agora "era necessário reagir". No segundo imediato apercebi-me da agressão que tinha cometido. Há coisas que, mesmo que se pensem, não se dizem e o Monteiro fez-mo sentir respondendo-me.
- Reagir? Reagir, reages tu que tens duas pernas. Agora eu só tenho uma...

Fiquei sem palavras. Uns instantes de silêncio depois, despedi-me e deixei o quarto. Além do monte de gaze que marcava agora o fim da perna fiquei impressionado com a cor das gengivas que o ferido apresentava. Brancas. Disseram-me que era do soro que lhe fora ministrado, durante muito tempo. Por mim, penso que era um indício de anemia pela perda de sangue.

Poucos dias depois, voltei com o major Gaspar, nosso amigo e meu segundo-comandante. Ainda estou para saber o que o terá levado a aparecer, naquele dia, com as fitas das condecorações e com o brasão do Regimento de Artilharia n.º 3 (de Évora) sua unidade habitual. Era à tarde e os feridos e doentes tinham sido postos na varanda do hospital, talvez numa tentativa de lhes melhorar a disposição, se tal fosse possível...

A conversa foi curta e eu8 procurei ficar calado. O nosso amigo, talvez por ser mais velho, parecia ter maior capacidade de diálogo, mas, ao fim de alguns minutos, o silêncio acabou por surgir. O Monteiro disse, de repente e num tom que parecia subtil, mas que comportava uma crítica muito amarga e contundente:

- O meu major está muito bonito, com as condecorações!

Com o sol já baixo, ficou-me a imagem do major Gaspar com os olhos marejados, a dizer, como se se justificass:

- Calhou. Isto não é nada. Já estavam postas nesta camisa quando a vesti hoje.

Não arranjo melhor expressão para descrever a nossa saída da varanda: "Fugimos"

E chegou a véspera da evacuação para Lisboa.

De novo, o major e eu fomos ao hospital. O jantar já fora distribuído há muito e os corredores estavam desertos e escuros. Eu tinha para mim que seríamos recebidos com frieza, se não mesmo com agressividade. Porém, ao entrarmos no quarto, fomos saudados com alegria e boa disposição. Era a saída da Guiné, o retorno à "Metrópole" e à família. Era o fugir dali, um lugar onde não pertencia, para um sítio onde poderia reencontrar os seus, aqueles que havia deixado pouco mais de dois meses antes.

Fiquei surpreendido por falarmos com certo à-vontade e eu, já não me lembro a propósito de quê, disse qualquer coisa como:

- Pois é, a vida está má!

O Monteiro tratou-me pela alcunha e comentou:

- Boa piada PK! Boa piada! Olha, que até o meu coto se ri!... - e, agarrado à perna, abanava-a com as mãos.

Foi então que concluí que uns produtos daqueles que tiram as dores e dão boa disposição, talvez euforia, deveriam ter andado por ali, misturados na sopa ou mesmo em todo o resto do jantar.

O Gaspar, por seu turno, aproximou a orelha do coto entrapadíssimo e, pedindo-lhe que ligasse o transmissor, comentou a qualidade da música que estaria a ouvir.

Mais uma vez fiquei sem saber o que dizer. Não me lembro se saí por minha iniciativa, por não poder suportar o surrealismo daquela cena, ou se fui levado pelo final da visita, decretado pelo meu segundo-comandante, para meu alívio, confesso.

A partir daqui e ao longo da minha vida, fui recordando duas situações que desenterrei na memória e que envolviam pernas, as pernas do Monteiro. Uma ainda na Academia e outra já quando éramos oficiais.

Nunca tive grande jeito para um qualquer desporto em especial. Contudo, um dia descobri o basquetebol. Achei-o curioso, mas cedo concluí que deve ser dos jogos de bola mais difíceis de praticar. Ou seria "o árbitro" que me perseguia? Certo é que, sempre que eu tocava na bola fazia falta, "por passos". E não havia maneira de aprender a técnica. E aquela regra é tão apertada, convenhamos!...

Apesar disto, não desisti e resolvi aprender com o Monteiro. E uma das coisas que ele me ensinou foi que, ao receber a bola com ambas as mãos, eu deveria escolher um "pé-eixo" que, a partir daí não poderia mexer. Era como se estivesse soldado ao chão. Pelo menos, foi o que entendi. Acabei por desistir da aprendizagem, mas mantive o gosto pela modalidade, graças às indicações do meu improvisado mestre.

Recordei também a cena na Sala de Oficiais da Escola Prática de Artilharia para onde o nosso curso de tenentes tinha sido enviado para o Curso de Promoção a Capitão, que, depois, não valeu. Mas isso já são questões laterais. Uma manhã, no rádio da sala passava "Les Champs-Elysées", na voz de Joe Dassin. Bela melodia e letra curiosa e bem construída Andávamos pelos nossos vinte e dois a vinte e cinco anos e fôramos musicalmente educados na música europeia. Tínhamos cinco anos de francês, no ensino secundário, e numa música como aquela era fácil encontrar encanto. Imediatamente constituimos uma libha de seis ou sete bailadores com as mãos apoiadas no ombros do que nos ficava ao lado. Depois, em sincronismo, atirávamos alternadamente a perna direita para a esquerda e a perna esquerda para a direita, ao rítmo da música, uma gajice própria dos jovens que éramos, apesar de já todos termos um ano de África, em Angola, em Moçambique ou na Guiné para onde partíramos três e só dois haviam voltado. Naquela idade, ainda tínhamos uma certa garridice que permitia enfrentar o futuro com certo ânimo e confiança, mesmo tendo já adquirido uma certa (má) experiência da vida e sabendo que os tempos que se avizinhavam tinham tudo para ser de provação. A dada altura alguém comentou:
- Olhem só para isto! Os futuros comandantes das companhias de Artilharia que irão para o Ultramar!...

O grupo desfez-se, de imediato. Caíramos em nós. No fundo, éramos oficiais respeitáveis e conscientes dos nossos deveres e não podíamos permitir-nos a brincadeiras como aquela...

Depois da evacuação para Lisboa, tive notícias dispersas do Monteiro, até nos encontrarmos na AM na celebração dos trinta anos do nosso curso. Nessa altura, disse-me que era professor. "Professor", mas com P Grande. Por mim pensei:

- Ainda bem! Nem outra coisa era de esperar de um Homem da minha geração!

Mem-Martins, 10 de Agosto de 2018

____________

Notas do autor:

[2) - Esta é a maneira de referir nas comunicações militares ou em documentos escritos, algo que sucedeu cerca das 13 horas e 30 minutos do dia 28 de Agosto de 1971. Fica assim constituído o chamado "grupo data-hora".

[3] - Naquele tempo, nas unidades tipo Regimento da Metrópole, havia um "electricista de dia" nomeado por escala.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23182: Humor de caserna (51): O anedotário da Spinolândia: "Sabes o que é um lapso, rapaz?" (Rogério Ferreira, ex-fur mil at inf, MA, Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Nova Lamego, Pirada, Paiama, Paunca, Sinchã Abdulai e Mareue, 1970/71)

1.  Não é só do "Gasparinho", "nickname", do cap e depois major art José Joaquim Vilares Gaspar (1935 - 1977) que se alimenta o anedotário da Spinolândia... 

O próprio Com-Chefe e Governador-Geral  do CTIG, António Spínola, brigadeiro e depois general, entre 1968 e 1973, alimentou o bom e o mau hunor das nossas casernas...

Caco Baldé  ou simplesmente Caco era alcunha mais popular do Gen Spínola. Mas também  era tratado por Homem Grande de Bissau,  O Velho. O Bispo... 

Origem da alcunha: vem de caco, monóculo, mais  Baldé, apelido frequente entre os fulas. O historiador Luís Nuno Rodrigues escreveu a sua biografia (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010; a foto ao lado é retirada da capa do livro, com a devida vénia...)

Recorde-se que o monóculo é um tipo de lente corretiva utilizada para corrigir a visão em apenas um olho, sendo constituída por uma lente circular, geralmente com um fio ao redor da circunferência do anel que pode ser associado a uma corda; a  outra extremidade da corda é então ligada ao vestuário em uso para evitar a perda do monóculo. Origem da palavra: do grego: mónos, único e do latim, oculu, olho (Fonte: Wikipedia)..

Andam por aí muitas histórias deliciosas anedotas ou não) do militar mais carismático do nosso tempo de Guiné.  Vamos tentar compilar algumas, inéditas ou já publicadas. Elas também falam o nosso quotidiano, os nossos camaradas e os nossos chefes.  Na série "Humor de caserna" cabe toda a gente.

Só se contam anedotas de quem a gente gosta, aprecia, valoriza, respeita, teme, e às vezes ama e odeia ao mesmo tempo... E o Gen Spínola foi tudo isto, durante a guerra colonial e depois do 25 de Abril.


2. Havia, por parte da maioria da malta do nosso tempo, do Zé Soldado, mas também dos milicianos, um sentimento algo ambivalente em relação ao Caco Baldé... Não sei se ele era verdadeiramente adorado, como ele gostava de o ser (ou de ter sido), por todos os seus subordinados, os metropolitanos e os do recrutamemto local, a par dos seus queridos "guinéus", do Cacheu ao Cacine.

De um modo geral, as praças respeitavam-no e admiravam a sua maneira de ser e de estar, de comandar, de aparecer onde menos se esperava, a sua coragem física, o seu paternalismo autoritário, o seu populismo ("avant la lettre"), o seu carisma,  a sua "mise em scène", o seu perfil prussiano, o monóculo, o pingalim, enfim, a sua demagogia também, a sua voz de "ventríloquo"...  Era uma figura militar a quem ninguém podia ficar indiferente.

O Caco Baldé, como todos os grandes chefes militares, era  amado  por muito boa gente, mas também  temido, sobretudo  por muitos oficiais superiores,  nomeadamente a nível de batalhão (desde que não fossem da mesma arma do general, que era a cavalaria, diziam as más línguas).  

Dizia-se também que os fulas e os manjacos (as duas etnias mais "leais" às autoridades  portuguesas) o tratavam, com respeito e deferência,  como o "homem grande de Bissau". Penso até que o admiravam muito, nomeadamente as hierarquias daquelas duas comunidades étnicas.  

Não havia sondagens naquele tempo, nem nunca foi feito nenhum plebiscito. Em suma, era difícil de avaliar a popularidade de Spínola com números na mão. Tudo o que se possa escrever é baseado na percepção e observação daqueles de nós que estivemos no TO da Guiné no seu tempo. Mas quem, de nós, pode dizer verdadeiramente que o conheceu? Teríamos que  ter o testemunho daqueles.

O anedotário da spinolândia é muito maior que os  textos que já aqui publicámos sobre o humor de caserna... No meu tempo (1969/71), tenho a ideia que toda a gente contava anedotas do Spínola... Mas, passados todos estes anos, parece que até as anedotas do Homem Grande de Bissau  ou do Caco Baldé se nos varreram da memória...

Fica aqui o apelo para refrescarmos as nossas memórias. O humor de caserna é um antídoto contra a crise, a depressão, o mau-estar, o azedume que a idade também traz consigo, bem as núvens negras que atingem nesta altura a Europa e o resto do Mundo...

Começamos por republicar aqui, uma história que nos foi enviada em  1 de outubro de 2008,  pelo Rogério Ferreira, natural de Santarém, ex-fur mil at inf,  Minas e Armadilhas,  CCAÇ 2658/BCAÇ 290
5 (Teixeira Pinto, Bachile, Nhamate, Galomaro, Nova Lamego, Pirada, Paiama, Paunca, Sinchã Abdulai e Mareue, 1970/71) (Foto à esquerda).


3. Anedotário da Spinolândia (1): 

Sabes o que é um lapso, rapaz ?

Quando da minha passagem por Paunca, estive num destacamento chamado Paiama [, na margem esquerda do Geba Estreito, a noroeste de Paunca,] e, alguns dias após o Natal de 70,  tivemos a visita do heli.

Mandados os soldados de piquete para a orla da mata a fazer segurança, o heli aterrou. Apareceu-nos então um sr. Capitão em passo de corrida, dizendo que era uma visita do nosso general (Caco Baldé), e que os soldados formassem como estavam nem que fosse em cuecas.

Logo instantes depois aparece o nosso General no seu camuflado de manga curta e seu monóculo. Olha em volta e, dando indícios de não conhecer o sítio, diz:
  Eu nunca aqui estive, isto quer dizer que não vos dei os votos de Boas Festas.

E virando-se para um dos nossos soldados, o J. J. 
 natural da Torre da Gadanha e cuja mãe lhe enviava umas ricas Boias, ou seja, pedaços de lombo de porco em banha numas latas tipo Cerélac, o qual hoje é carteiro na zona da Amadora  disse:
− Isto foi um lapso... Sabes o que é um lapso?
− Sei, sim, meu general, é uma coisa para escrever.

Grande risota geral, até do general.

Rogério Ferreira
______________

Notas do editor:


(**) Útimo poste da série > 18 de abril de  2022 > Guiné 61/74 - P23177: Humor de caserna (50): "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!": um documento do "Gasparinho" que ainda hoje nos suscita um sorriso amargo (António J. Pereira da Costa, cor art ref)

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23177: Humor de caserna (50): "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!": um documento do "Gasparinho" que ainda hoje nos suscita um sorriso amargo (António J. Pereira da Costa, cor art ref)



Guiné > Região do Oio > Nhamate > CART 3330 > 1971 > Uma peça de antologia do humor negro... castrense: "O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. Conclusão: Siga a Marinha!"  ...


1. Este documento foi-nos oportunamente remetido pelo António J. Pereira da Costa, cor art e membro da nossa Tabanca Grande, com a seguinte informação (*):

(...) Aqui vai uma nota escrita pelo célebre major Gaspar que inventou aquela expressão que ainda hoje usamos: Siga a Marinha!

In Os Anos de Guerra: 1961 - 1975: Os portugueses em África: Crónica Ficção e História. Organização de João de Melo - II Volume. S/l: Círculo de Leitores 1988. 190 (documento reproduzido com a devida vénia...).

Leiam-na com atenção e vejam se ela não é um tratado de logística da Guerra Colonial. É de um humor amargo, mas era a verdade. (...)


2. Fixação e revisão de texto, da responsabilidade do editor LG, de modo a tornar mais legível o conteúdo da mensagem:


Ministério do Exército | Comando Territorial Independente da Guiné

Mensagem nº 125/71 [classificada como Confidencial, Urgente), enviada pelo Comandante da CART 3330, SPM 6928, Cap Art José Joaquim Vilares Gaspar, dirigida ao Comandante da Engenharia, com conhecimento a CAOP1, RepOper/Com-Chefe, RepPop/Com-Chefe, RecAcap/Com-Chefe, e BCAÇ 2928. Entrada na Secretaria do Batalhão de Engenharia, nº 306, em 22/3/71.

Nhamate, 18 de Março de 1971.

Assunto - Quartel em Nhamate (ou mais propriamente abarracamento)

1. Exponho a V. Excia um dos assuntos mais vitais para a continuidade militar e humana de NHAMATE [, a leste de Binar: vd. carta de Bula].

2. Passo a descriminar [sic, em vez de discriminar]:

a) DEPÓSITO DE GÉNEROS

Quando chover fico sem pão pelo menos 15 dias. Julgo que não é muito agradável. Informo V. Excia que não como pão. Gordo estou eu.

E os outros géneros ? E os autos subsequentes ? Só problemas.

b) CASERNAS: 

Barracas de lona, todas oficialmente dadas incapazes. Na Birmânia, viveu-se assim 1 ou 2 meses. Os quadros vivem-no há 10 anos. E os milicianos (os meus, de certeza) “dão o litro” até ao fim. Os soldados dão tudo. Há que tudo lhes dar, na medida do possível.

c) CANTINA: 

E o tabaco ? Desde Napoleão e Fredy [diminuitivo de Frederico] da Prússia que o tabaco era uma das bases da eficiência do Exército. Como combater ou trabalhar sem o velho cigarrinho ? E outros géneros ? V.Excia, mais experiente, meditará sobre o assunto.

d) CASERNA DE CIMENTO: 

Único exemplar. Vou demoli-lo. Não tenho materiais. Solicito auxílio Engenharia.

e) MESS [sic, em vez de Messe]: 

Desde o início das chuvas desnecessita de garrafas de água. Basta as mesmas estarem abertas. Ponchos e gabardinas já temos.

f) CHAPAS DE ZINCO: 

Ao mínimo vento já voam no Quartel.

g) GABINETE D COMANDANTE E 1º SARGENTO: 

Com as chuvas eu e o 1º Sargento só temos a solução de entrar de escafandro, visto estar a 2 metros abaixo da superfície do solo.

h) O meu pessoal só pode transitar em canoas balantas. E alguns não sabem nadar. CONCLUSÃO: SIGA A MARINHA!


3. Este quartel tem se ser revisto por um Oficial de Eng[enharia], senão começo a construir um novo com os materiais dos REORD[ENAMENTOS], contra a norma, o que é aborrecido, contende com a disciplina e eu não gosto.

4. Agradecendo a boa atenção de V. Excia., gostaria de aqui ter como convidado um Senhor Oficial de Eng[enharia] a fim de concordar ou condenar as minhas asserções supras.

Cumprimentos,

O Comandante,
José Joaquim Vilares Gaspar, Cap Art



3. Comentário do editor LG:

Reproduzo, no essencial, o que escrevi na altura, há cerca de 14 nos atrás.

Repare-se no circuito da informação: uma simples mensagem, que devia ser de rotina, a pedir o apoio da Engenharia para se proceder a obras de reparação num aquartelamento  do interior (na realidade, um conjunto de barracos, como tantos outros), seguia para 6 (seis): o comandante do BENG 447,  com conhecimento a outras unidades,  incluindo três repartções do Com-Chefe!!!... 

Digam-me lá como se podia ganhar a guerra com tantos relés parasitas, porteiros, gate-keepers, típicos do disfuncionamento burocrático! ... 

De um exército em armas (que chegou aos 40 mil homens, no CTIG) quantos não haveria, do cabo ao sargento, do tenente ao coronel, com funções amanuenses, ligados à gestão da informação  e conhecimento?!

Milhares de homens, mangas de alpaca militares, escreviam notas como esta (seguramente menos geniais, divertidas, contundentes, demolidoras, corrosivas... como esta!), batiam-nas à máquina, expediam-nas, classificavam-nas, arquivavam-nas, retinham-nas, guardavam-nas na gaveta, analisavam-nas tardiamente, reencaminhavam-nas tarde e a más horas para o nível superior da hierarquia militar... 

Enfim, a maior parte das vezes estes homens não comunicavam devidamente, não recebiam resposta ou feedback positivo, continuavam perdidos e sós, nas Nhamates  e bu...rakos do mato da Guiné...

Pela primeira vez, em 2008, ouvi falar em Nhamate, na CART 3330 e no seu desconcertante e bravo comandante, o cap art Gaspar, tratado afetuosamente como "Gasparinhi"... 

Pergunta.se:

(i) será que a sorte dos homens que estavam em Nhamate melhorou ? 

(ii) será que nenhum morreu afogado na época das chuvas ? 

(iii) será que nunca lhes faltou o tabaquinho e a água de Lisboa

(iv) será que a Marinha seguiu mesmo ? 

(v) e o Gasparinho (que ternura de nome, posto pelos seus pares e usado pelos seus subordinados) não terá acabado na psiquiatria ? 

Sabemos hoje que acabou mesmo na psiquiatria e levou, ainda por cima,  dois anos de prisão disciplinar... Vejo que morreu cedo, coitado, em 1977... Um homem que tratava o Frederico da Prússia por Fredy merecia um estátua em Nhamate!

Tenho alguma relutância em classificar em poste na série Humor de Caserna... Embora ligeiro, soft, é o título que me acorreu primeiro... Mas podia ser outro qualquer, mais contundente, mais duro, mais agressivo, mais próximo do tempo e do lugar, algures na Guiné, longe do Vietname, como eu ironicamente costumava escrever, no tempo em que lá estive, em 1969/71.

4. Comentário adicional do António J. Pereira da Costa (*):

(...) Sobre este assunto quero acrescentar que não se tratava de uma situação de rotina, mas sim de um pedido para solução de um problema de instalações que se arrastava.

 Como podem ver,  o pedido era enviado às principais Repartições  do ComChefe que não estariam no circuito habitual para uma situação destas. Tratava-se, portanto, de fazer o "protesto" subir de tom para provocar a reacção de quem de direito. Sei que este desiderato foi atingido. 

Por mim considero este documento um verdadeiro tratado de logística, para além de uma prova de inteligêcia. (...)

26 de junho de 2008 às 23:07
_____________

Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 26 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2986: Humor de caserna (5): Siga a Marinha para Nhamate, mais abarracamento que aquartelamento (António José Pereira da Costa)

sábado, 16 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23173: Humor de caserna (49): Mensagem, de 13/3/1971, enviado pelo Cap Art Gaspar, cmdt da CART 3330, à Manutenção Militar, c/c ACAP, Com-Chefe, CAOP1 e BCAÇ 2928: "Maior respeito boa vontade Vexa. Verifico todo peixe estragado, ovos com pintos, etc. Ir buscar estes implica risco vida. Ou monto aviário ou entre acordo. Pronto colaborar todo sacrifício. Estou com o pessoal destruído moralmente. Julgo compreendeu." (Ernestino Caniço)

 


88/C/71

Maior respeito boa vontade Vexa. Verifico todo peixe estragado,  ovos com pintos, etc. Ir buscar estes implica risco vida. Ou monto aviário ou entre acordo. Pronto colaborar todo sacrifício. Estou com o pessoal destruído moralmente. Julgo compreendeu. Cap Gaspar


Foto (e legenda): © Ernestino Caniço (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. M
ensagem do nosso camarada Ernestino Caniço:

 (i) ex-Alf Mil Cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/dez 1971;

(ii) hoje médico, aos  77 anos teima em continuar ao serviço dos outros,  de acordo com o seu juramento hipocrático; 

(iii) vive em Tomar, estando reformado do SNS ]


Data: 15 abril 2022 17:25  

Assunto - Major Gaspar

Caros amigos:

Votos de ótima Páscoa.

Face ao citado humor do Major Gaspar (*), ocorreu-me enviar-vos um excerto de uma mensagem dirigida pelo então  Cap Gaspar à Manutenção Militar, em 13mar1971, enquanto Cmdt da CART 3330.

A referida mensagem foi enviada com conhecimento à ACAP (Assuntos Civis e Acção Psicológica), COMCHEFE, CAOP1 e BCAÇ 2928.

Sendo um fragmento de um documento original, aquilatareis vós do seu interesse.

Um abraço,

Ernestino Caniço

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sexta-feira, 15 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23170: Humor de caserna (48): o major art José Joaquim Vilares Gaspar, o "Gasparinho", visto por Salgueiro Maia: loucura ou contestação do sistema?

1. Trancrição de um excerto do poste P3262 (*), da autoria do nosso saudoso amigo, Leopoldo Amado (1960-2021), historiador guineense,  vítima da pandemia de Covid-19:


(...) O exemplo mais sonante de loucura, traço muito comum à literatura de guerra colonial, é-nos dado por Salgueiro Maia, ao referir-se à caricata figura do major Gaspar, cuja irreverência abeirava-se da loucura, aliás, motivo pelo qual acabou ser hospitalizado:

(...) o major Gaspar vai comandar o CAOP 2 em Mansabá, onde, dando boa conta do recado, é solicitado para se deslocar a Bissau, à reunião semanal do Com-Chefe, onde deveria ser salientado o seu compor­tamento. Só que a coluna que, vinda de Farim, o devia transportar a Bissau nunca mais chegava. 

Farto de esperar, avança para Mansoa só com o condutor, percorrendo um itinerário onde eram frequentes as emboscadas, pois passava ao lado do Morés. À sua chegada a Mansoa, umas centenas de elementos da população agitam-se, pe­gando nas suas mercadorias com vista a ocupar lugar na coluna. Aí, o major Gaspar acha conveniente mandar parar o jipe. A população acerca-se e ele explica: 

«Meu povo, permaneçam mansos, porque a coluna ainda não vem aí, só vem o Gaspar.» 

Continua só em direcção a Bissau. Começa por visitar os seus amigos páras à entrada da cidade, depois o seu amigo director do Hospital Militar, os seus amigos comandos, etc. 

Entra em Bissau feliz e, desejando dar saída à sua alegria, descobre que o único sítio da Guiné onde havia uma peanha para um polícia dirigir o trânsito tinha um PSP guineense, que o major Gaspar considerou estar a fazer mal o seu trabalho. 

Fez parar o jipe ao lado da peanha e fez sair o polícia do sítio e, de pistola-metralhadora ao pescoço, o major Gaspar foi dirigir o trânsito. Lá, como noutros sítios, os condutores, apesar de na maioria serem militares, não eram obe­dientes, e assim o nosso amigo fartou-se de desobediências. Tanto, que atirou uma rajada por cima de uma camioneta da engenharia militar que não lhe obedeceu. 

Continuou em funções, mas surge mais uma camioneta, do Depósito de Adidos, que também não lhe obedece, e aí vai o resto do carregador. 

O Palácio do Governo, onde se encontrava o general Spínola, distava uns 400 m em linha recta, pelo que os disparos eram nítidos e originaram que a polícia do Exército fosse chamada ao local.

Postas perante a realidade, as entidades competentes determi­naram a baixa à neuropsiquiatria do major Gaspar. Mas alguns, suficientemente conhecedores da maneira de ser do «doente», con­seguiram autorização para o director do Hospital Militar conven­cer o major a descansar uns dias no Hospital, onde os amigos o visitaram com assiduidade, criando talvez o único período de ver­dadeiro descanso e convívio que este homem teve ao longo de vários anos de guerra e de guerras com o sistema. 

As histórias do major Gaspar foram para muitos combatentes o escape natural nas vicissitudes da vida em campanha; quem o conheceu guarda dele a imagem do lutador pela dignidade e pela justiça, a certeza de que a sua luta foi imortal (...) ”[19] )**)

[ Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Realce a amarelo, para  efeitos de publicação deste poste no blogue: LG]
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Nota do Leopoldo Amado:

[19] Maia, Salgueiro, O Acaso, In Capitão de Abril – Memórias da guerra do Ultramar e do 25 de Abril, Editorial Notícias, pp. 56 e 57.
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Notas do editor:


quinta-feira, 14 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23167: Humor de caserna (47): O Gasparinho, que eu... não conheci no BAC 1 / GA 7 (Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7 / GA 7, Bissau, 1969/71; ex-comandante do 22º Pel Art, Fulacunda, 1969/70)

1. Comentário publicado na nossa página do Facebook, Tabanca Grande Luía Graça, pelo nosso camarada Domingos Robalo, com data de 11 de abril de 2022, 21h18;

Domingos Robalo, ex-fur mil art, BAC 1 / GAC 7 / GA 7, Bissau, 1969/71; foi comandante do 22º Pel Art, em Fulacunda (1969/70); nasceu em Castelo Branco, trabalhou na Lisnave, vive em Almada; tem 26 eferências no nosso blogue. 

[ Foto atual, à esquerda, Tabanca da Linha, Algés, 2019; foto de Manuel Resende].



Olá amigos, camaradas. 

Li os relatos do blogue (*) e algo não bate certo em termos de datas em relação ao major Gaspar. Irei confirmar, pois sou desse tempo na BAC1/GA7. 

Em março de 1969, estava eu colocado no RALIS, tendo como 2° Comandante o Coronel Ferreira da Silva. Já na altura não era militar de quem se gostasse. 

Em maio de 69 embarco para a Guiné, sendo mobilizado em rendição individual,  colocado ns BAC1, então comandada pelo capitão Moura S. 

Em novembro de 69 venho de férias e em Almada conversei casualmente com um anterior camarada do RALIS, que me informou da mobilização do Coronel Ferreira da Silva para comandar a BAC1, em vias de passar a GAC7, o que viria acontecer pouco tempo depois.

 Quando regressei de férias e me apresentei na unidade eu e o "novo comandante" já eramos conhecidos por termos tido alguns arrufos no RALIS. 

"Ó filho" era um termo muito do agrado deste militar. Um dia, o Sargento Canário do QP e encarregado das obras da unidade, já falecido, teve um caso com o " Ó filho" e foi de imediato recambiado para o mato. Disse o Coronel:  "Então Canário, as obras andam ou não andam? Resposta do Seiras,  sargento; "Meu comandante, como quer que as obras andem se não têm pernas ?". 

O Comandante não gostou do à vontade do "pobre Canário", que já teria mais de 50 anos de idade, eu era um puto com 21 anos. 

Ao tempo do capitão Moura S. era eu que participava na regulação de tiro em todos os PELART do TO juntamente com o capitão Viriato O. alternando com o capitão Fradique. O coronel, comandante da unidade resolveu ir fazer uma regulação de tiro a um PELART. Deu os elementos ao chefe de secção, furriel Monj.... fez-se a pontaria, tudo pronto?! Fogo...!!!

Granada pelo ar..., vai cair numa palhota amiga, vários feridos... Aqui deu- se a bronca. De quem foi a culpa? Dos dados mal calculados, mal introduzidos na BF ou deficiente comunicação? 

Levantou-se um auto que andou enrolado muito tempo até que chegaram mesmo a propor ao furriel que assumisse culpa e poder embarcar e passar à peluda. Só que este não aceitou porque entendeu não ter de assumir uma culpa que não sentia ter. 

Entretanto, o Coronel tinha dado baixa e regressou à Metrópole. Em maio de 71 sou desmobilizado e regresso com mais um louvor, desta feita dado pelo 2° Comandante, recém chegado de Piche, o major Mexia, já falecido. 

O major Gaspar será figura posterior à minha desmobilização. Do coronel, nunca mais ouvi referência, a não ser agora no blogue.

Os oficiais do QP, à data de maio de 71 eram ; major Mexia, capitães Viriato, Fradique, Pereira S, Evaristo e Lourenço, estes últimos da A.A. [Artilharia Anti-Aérea].

Mais estórias haveria, mas a prosa já vai longa. 

Abraço. Saudações artilheiras. Domingos Robalo.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 11 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23158: Humor de caserna (46): Histórias pícaras: O Gasparinho - Parte III (António J. Pereira da Costa / Luís Faria / José Afonso / José Borrego): (vi) Picagem automática: as rajadas de G3 em vez da pica; (vii) Mensagem-relâmpago: Quem viu passar as minhas chapas de zinco, levadas pelo tornado? (viii) Informo Vexa que Sexa passou na mecha

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23158: Humor de caserna (46): Histórias pícaras: O Gasparinho - Parte III (António J. Pereira da Costa / Luís Faria / José Afonso / José Borrego): (vi) Picagem automática: as rajadas de G3 em vez da pica; (vii) Mensagem-relâmpago: Quem viu passar as minhas chapas de zinco, levadas pelo tornado? (viii) Informo Vexa que Sexa passou na mecha


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Aspecto do edifício do Comando após o tornado de 25 de Abri... de 1971. A maior parte dos militares portugueses não estava famializarizado com as bruscas tempestades tropicais, os tornados, nem muito menos preparado para suportar o calor e a humidade do território... Até à natureza estava contra eles...

Foto (e legenda): Fernando Barata (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuamos  a recompilar histórias do (ou atribuídas ao) cap art José Joaquim Vilares Gaspar, o primeiro de três comandantes que teve a CART 3330 (Nhamate e Bula, 1970/72), entretanto promovido a major: ainda  no CTIG, seria 2.º cmdt do BA 7 e  faria uma breve passagem pelo COP 6, em Mansabá, antes de ser evacuado para a Metrópole, alegadamente por problemas psiquiátricos. (Vd. aqui os comentários ao Poste P23156, dos nossos camaradas António J. Pereira da Costa,  Carlos Vinhal e Francisco Baptista,) (*)

No CTIG ficou conhecido pelo "nick name" Gasparinho, sendo um oficial querido entre a sua tropa e até entre aqueles que o conheceram. Apesar de (ou talvez por) as suas "excentricidades". Faleceu por volta de 1977.

O António J. Pereira da Costa comentou (*):

(...) Fui amigo do major Gaspar. Procurarei fazer umas rectificações. Creio que foi em princípios de 1972, que o major Gaspar tomou o comando do COP 6, onde se demorou pouco tempo (talvez um mês). Efectivamente, numa ida a Bissau, ele e outro camarada, terão andado aos tiros à Bandeira, à passagem por Nhacra (?) , após o que foi evacuado para a Metrópole, com problemas psiquiátricos.

Do que sei dele vi que era um frequentador de bares. Porém tinha atenuantes pois andava naquela vida desde a passagem pelo Estado da Índia Portuguesa. Casou lá, com uma senhora indiana (inglesa) de quem se terá divorciado, em poucos anos.

Não esteve prisioneiro, mas a vida correu-lhe mal, por lá. Na Guiné, andaria, pois "destroçado e enojado" e eu acrescento cansado e saturado, sendo um homem inteligente e frontal, a vida que levava era-lhe penosa. Em Bissau na companhia do tal camarada que veio com ele de Mansabá, fez alguns distúrbios.

Conheci-o na EPA (Escola Prática de Artilharia), num curso que frequentámos com diversos camaradas e vi que estava claramente perturbado. As histórias que dele se contam têm (muitas) um fundo de verdade.(...) 

Eis mais um depoimento sobre ele, e mais uma história,  desta feita pelo nosso saudoso Luís Faria  (1948-2013), ex-fur mil inf MA,  CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72) (Vd. poste P4657, de 8/7/2009).


Histórias pícaras > Gasparinho
 
(vi) Picagem automática: as rajadas de G3 em vez da pica

(...) Um dia, creio que pelo final da manhã, fomos surpreendidos por disparos de G3 vindos da direcção da estrada de Bissorã e cada vez mais próximos. Ficados à defesa, depara-se-nos uma nuvem de pó cada vez mais próxima, até que avistámos duas viaturas que a antecediam: da primeira, com a pica G3 na mão, apeia-se o Cap Gaspar (Gasparinho) que era por demais falado pelas estórias que dele se contavam e contam (já referenciadas neste Blogue) e que, veio de Nhamate ao nosso burgo, se bem recordo, em missão de cortesia apresentar os cumprimentos de boas-vindas ao Cap Mil Mamede e dar uma de conversa com o pessoal e uns copos à mistura bem bebidos!!

Apesar do pouco tempo em presença, recordo-o como um homem educado e alegre, simpático e bonacheirão, terra-a-terra sem papas na língua e valente, que me pareceu gozar com a guerra e com o sistema, em especial com a hierarquia dominante, (seria curioso ver a resposta que daria ao nosso AB, o Almeida Bruno!!) o quem julgo, contribuía em parte para a estima que a sua rapaziada lhe tinha e demonstrava. 

Podiam dizer que ele funcionava assim por estar bem encostado!? Que fosse? Não me pareceu nada dar-se ares de importante e muito menos egocêntrico, como outros!

Acabada a visita, lá se montaram ele e a sua rapaziada nas viaturas, qual vedeta cinéfila aos olhos do pessoal sorridente que presenciava a sua partida, na esperança de um regresso para breve, mas que não mais aconteceu. Foram na verdade umas horas diferentes e marcantes, pela positiva.

Pena não ter havido muitos como o Gasparinho, que com todos os seus defeitos e virtudes era ao que parece, um raio de sol para a sua Rapaziada e por aquelas terras de sofrimento. Que esteja em Paz! (...)

Luís Faria
 
O José Afonso, ex-fur mil at cav, CCAV 3420 (Bula, 1971/73), a companhia do Salgueiro Maia, já aqui outra variante desta  história: vd. (iii) Reconhecimento pelo fogo, na picada de Nhamate-Binar (**).

A história seguinte também foi aqui contada pelo José Afonso:


(vii) Mensagem-relâmpago: quem viu passar as minhas chapas de zinco, levadas pelo tornado ?


(...) Em Nhamate (, sede da CART 3330, 1970/72), como em toda a Guiné de vez enquanto aconteciam pequenos tornados, anunciando que pouco tempo depois iria chover torrencialmente. 

Uma das vezes voaram as chapas que cobriam algumas casernas do destacamento de Nhamate. 

Então o Capitão Gasparinho envia uma mensagem a todas as Unidades, com grau de urgência relâmpago, nos seguintes termos:
- Solicito e informem se viram passar as minhas chapas de zinco!

(O grau de urgência relâmpago obrigava a cessarem todas as comunicações rádio, pois era normalmente utilizado para pedir evacuações aéreas, quando havia vidas em perigo,) (...)

Há uma outra variante desta história, aqui conta pelo José Francisco Robalo Borrego (Poste P4628 de 2/7/2009);

(...) A certa altura o pessoal do BEng 447 foi colocar chapas de zinco nos telhados das casernas (barracões?) da companhia. 

Passados uns dias um tornado muito forte arrancou as ditas chapas e nunca mais ninguém as viu. O inevitável capitão Gaspar perguntou ao BEng por mensagem mais ou menos nestes termos: "Solicito informe se chapas colocadas nesta em tal data… regressaram à sua Unidade de origem" (...) 

José Borrego

A história seguinte também já foi contada pelo José Afonso:


(viii) Informo Vexa  que Sexa passou na mecha!

(...) Durante o período do Natal, o General Spínola visitava todas ou quase todas as tropas aquarteladas na Guiné, mesmo aquelas estacionadas em sítios mais perigosos. Deslocava-se quase sempre de Heli e um Heli-Canhão de apoio. Nestas deslocações toda a zona onde ele circulava e os sectores envolventes tinham instruções para toda a rede de rádios estar em escuta permanente. 

Como estava prevista a ida a Bula, o Comandante do Batalhão de Bula ordenou que a Companhia do Capitão Gaspar informasse a sede do Batalhão logo que os hélis sobrevoassem Nhamate e se deslocassem para Bula.

Considerando a importância da missão, o Capitão Gaspar achou conveniente ir pessoalmente para o rádio e, assim, logo que ouviu barulho dos hélis a aproximarem-se chamou o comando do Batalhão de Bula ao rádio e informou:
- Informo Vexa (vossa excelência) que Sexa (sua excelência) passou na mecha !!! Terminado.

No dia seguinte todas as unidades do Teatro de Operações da Guiné receberam a seguinte mensagem:
- A partir desta data é expressamente proibido o uso de abreviaturas SEXA e VEXA. (...)



[ Seleção / Revisão / Fixação de textos e títulos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG ]
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(**) Vd. poste 9 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23154: Humor de caserna (44): Histórias pícaras: O Gasparinho - Parte I (António J. Pereira da Costa / José Afonso): (i) Siga a marinha; (ii) E viva a Pátria! Viva o nosso General!... Puuum"!; (iii) Reconhecimento pelo fogo, na picada de Nhamate-Binar; (iv) Não há rádios AVP1? Então mandem-me... o Teixeira Pinto!

domingo, 10 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23156: Humor de caserna (45): Histórias pícaras: O Gasparinho - Parte II (José Borrego): (v) Meu comandante, vá chamar filho a outro


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > Pelotão de Artilharia / GA 7 > Agosto de 1972 > Espetacular foto noturna do obus 14 em ação...

Algumas características técnicas do Obus 14 cm m/943: 

(i) Origem Reino Unido; 

(ii) Ano de fabrico: 1941 (entrada ao serviço: 1943); 

(iii) Calibre: 140 mm; 

(iv) Guarnição: 10 elementos; 

(v) Peso do obus 6190 Kg; 

(vi) Peso da granada HE; 40,5 Kg; 

(vii) Alcance: 15.600 m; 

(viii) Campo de tiro horizontal: -530 mil a +530 mil; 

(ix) Campo de tiro vertical; -90 mil a 800 mil; 

(x) Cadência de tiro: 2 TOM; 

(xi) Locomoção Tração Automóvel... 

Observ: Foi descontinuado em 1987, é hoje peça de museu...

Foto (e legenda): © Vasco Santos (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Temos andado a recompilar histórias do (ou atribuídas ao) cap art José Joaquim Vilares Gaspar, o primeiro de três comandantes que teve a CART 3330 (Nhamate e Bula, 1970/72), e que depois  foi promovido a major, 2º cmdt do BA 7, por volta dos finais de 1970. No CTIG, ficou conhecido pelo diminutivo Gasparinho. Faleceu por volta de 1977.  (*)

Eis mais um depoimento sobre ele,  e mais uma história (se não duas...), desta feita já aqui contada em tempos (Poste P4628, de 2 de julho de 2009), pelo nosso camarada José Francisco Robalo Borrego, ten cor art ref, que pertenceu ao Grupo de Artilharia n.º 7 de Bissau (GA 7) e ao 9.º Pel Art (Bajocunda 1970/72). 

É também uma boa ocasião para relembrar aqui os nossos valorosos arilheiros do GA 7 / GA 7 (Grupo de Artilharia de Campanha 7 / Grupo de Artilharia 7)


Histórias pícaras > Gasparinho

(v) Meu comandante, vá chamar filho a outro...

(...) Em fins de 1970 (Outubro?), apresentou-se no Grupo de Artilharia n.º 7 (GA7) o Senhor major Gaspar, acabado de ser promovido, para assumir as funções de 2.º comandante do Grupo. 

O major Gaspar, também conhecido por Gasparinho, comandava a Companhia de Artilharia 3330, estacionada em Nhamate e mais tarde em Bula. Era uma Companhia independente, cuja unidade mobilizadora foi o extinto Regimento de Artilharia n.º3 (RAL 3) em Évora.

O comandante do GA7 era o Senhor tenente-coronel Ferreira da Silva que tinha por alcunha o Assassino da Voz Meiga, porque ao dirigir-se aos seus subordinados fossem eles oficiais, sargentos ou praças tinha por hábito tratá-los por “filho” ("Ó filho isto, ó filho aquilo"...) mas na hora de administrar a justiça e disciplina (RDM) era um “pai” pouco meigo.

Um dia tratou o major Gaspar por “filho” e, como este gostava pouco de paternalismos, terá advertido o comandante que pai só tinha um e que não admitia que o voltasse a tratar com tal “afecto”.

Devido ao feitio do comandante, ou talvez não, o certo é que não morriam de amores um pelo outro e, segundo se dizia, tinham muitas divergências e acesas discussões.

No dia de todos os Santos era tradição fazer-se uma formatura geral com representantes dos três Ramos das Forças Armadas em frente ao Palácio do Governador da Província, salvo erro.

A representação do Exército coube ao GA7 com a incumbência de enviar uma força para a cerimónia do dia de finados, força essa, que sob a responsabilidade do major Gaspar terá chegado ligeiramente atrasada ao local da formatura, o que desagradou profundamente ao comandante perante o olhar das altas entidades.

Como cmdt e responsável máximo, o ten cor Ferreira da Silva terá feito uma chamada de atenção ao major Gaspar, que,  não tendo gostado da “repreensão” em público, desatou aos berros e com insultos ao cmdt, sendo retirado do local por um oficial conhecido, pondo termo ao espectáculo deplorável!

Para quem conhecia a personalidade do major Gaspar, aquilo foi uma atitude perfeitamente natural em linha com o seu temperamento. Para a época era, ou parecia ser, um oficial desinibido, frontal e, por vezes, desafiador da disciplina. Dizia-se que na sua folha se serviços tinha tantos louvores como castigos e que gozava de alguma simpatia, junto do Senhor General António de Spínola, devido às suas características peculiares.

No regresso à Unidade os dois comandantes discutiram o incidente anteriormente ocorrido, tendo ambos chegado, ou quase chegado, a vias de facto e a situação só não foi mais grave, porque um oficial se intrometeu entre os dois.

Perante a insubordinação do major Gaspar, o cmdt mandou chamar o Sargento da Guarda para prender o major, mas este dizia ao 1.º sargento que não podia prendê-lo, porque não estava em flagrante delito.

Este episódio durou algum tempo em que um mandava avançar o Sargento da Guarda e o outro mandava-o recuar... Houve até quem dissesse que o sargento da guarda, impaciente e nervoso, terá suplicado: "Meus comandantes, decidam-se lá, porque, segundo o Regulamento, o comandante da guarda não pode abandonar o distrito da guarda, por muito tempo". Tal era o desconforto…!

Face ao sucedido,  o escalão superior procedeu ao respectivo processo disciplinar e criminal, acabando os dois por serem punidos com penas de prisão. (...)

(José Borrego)


[ Seleção / Revisão / fixação de texto e título, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG ]

terça-feira, 5 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23142: Recordando o Salgueiro Maia, que eu conheci, o meu comandante, bem como os demais bravos da minha CCAV 3420 (Bula, 1971/73) (José Afonso) - Parte III: Histórias pícaras: (iv) A "guerra de Bissau": guardando as costas dos nossos "maiores" ; (v) Capunga: o furriel de calções à "pop"; (vi) O "Velhinho", antigo refractário


Guiné > Região de Cacheu > Bula > CCAV 3420 (1971/73) > Natal de 1971: o cap cav Salgueiro Maia, falando à sua tropa


Foto (e legenda): © José Afonso (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Infografia: Rede de Segurança de Bissau (COMBIS, Cumeré), c. 1971.  Cortesia de José Afonso. 

Ver aqui carta de Bissau (1949), escala 1/50 mil




1. Na altura em que passam 30 anos da morte do Salgueiro Maia (1944-1992), continuamos a publicar algumas histórias dele e da sua companhia, já aqui contadas em 2009, pelo José Afonso (ex-fur mil, 3º Gr Comb,  CCAV 3420 (Bula, 1971/73)-

O nosso camarada, que é até agora o único representante da sua companhia na Tabanca Grande, foi bancário na CDG, no Fundão, está reformado, e vive hoje em Freixial de Cima, Castelo Branco, onde gere o património agrícola da família (foto à esquerda) (*)


(Continuação)

(iv) A "guerra de Bissau": guardando as costas dos nossos "maiores"


Havia determinadas datas em que se fazia a chamada Guerra de Bissau. Datas como Natal e Páscoa, datas do aniversário do PAIGC e datas em que Bissau sofreu alguns ataques.

Assim fazia-se deslocar tropa para os sítios donde o IN alguma vez atacou Bissau ou para zonas de onde era possível atacar. Assim, 2 Pelotões da CCav 3420 por duas vezes foram mandados para Nhamate. Foi o 1.º pelotão por 2 dias duma vez e o 3.º de 19 a 24 de Novembro de 1971.

Fizemos Bula – Binar - Nhamate a pé, para ali passar 5 dias. Em Nhamate, estava a Companhia de Artilharia 3330, não só aqui como nos destacamentos de Manga, Unche e Changue mas era em Nhamate a sua sede de comando. (Esta CART 3330 teve como 1ºcomandante o cap art José Joaquim Vilares Gaspar, o célebre "Gasparinho", de que temos algumas histórias para contar; proovido a major, foi para o Cop de Mansabá)

Achamos estranho quando no primeiro dia, ao pôr-do-sol, toca o clarim para a formatura do arriar da Bandeira. É formada a secção em frente mas o engraçado é que depois da bandeira descida, em vez de o Furriel mandar direita volver, manda meia volta volver. E, nesta posição, de costas para o pau da bandeira, cantava-se:
- E viva a Pátria, viva o nosso General! 

Ao mesmo tempo mandavam como que um coice e gritavam:
- PUM!!!


(v) Capunga: o fur mil Afonso de calções... à "pop"

Cap cav Salgueiro Maia, Lisboa,
Terreiro do Paço, 25 de Abril de 1974.
Foto de Afredo Cunha


Um dia no Destacamento de Capunga aparece um helicóptero a sobrevoar a Zona e, de seguida, faz-se para pousar no minicampo de futebol. Desconhecia-se quem vinha nele, pois não havíamos sido informados. 

O furriel Afonso, que na altura estava a comandar o Destacamento, dirigiu-se tal como estava para receber quem nele vinha. Está vestido como normalmente se anda nos destacamentos. De chinelos, sem bivaque, de t-shirt e calções que já tinham sido calças, agora transformados em calções que, com as vezes que tinham ido a lavar e como não tinham baínhas, se encontravam todos desfiados.

Vinha no helicóptero o Coronel Paraquedista Rafel Durão, Comandante do CAOP1, de Teixeira Pinto, 
e o Comandante da Companhia 3420, 
cap Salgueiro Maia.  Ao ver o Furriel naquela 
figura,  o Coronel pergunta se está apresentável... 
Antes que o furriel Afonso diga alguma coisa, 
Salgueiro Maia olha  para o Coronel e diz:
- Não vê, meu comandante, que está com uns calções...à"pop" ?!


(vi) O "Velhinho", antigo refractário

Havia na Companhia um soldado que quis fugir à tropa e, então deu o salto para França. Mas, quando o irmão foi nomeado padre e disse a 1.ª Missa, não resistiu e, porque era de Monção, atravessou a fronteira para assistir à missa. 

Com a informação da Pide, o nosso amigo, foi preso e acabou por ter que fazer a tropa pelo que apareceu na nossa Companhia já com os seus 30 anos. Era por isso conhecido como o Velhinho. Este era um elemento do 3.º Grupo de Combate, que nas operações gostava de ir sempre à frente com a HK21 e faca de mato à cintura e dizia para o Capitão:
- Se um dia apanho um turra morto, o capitão vai deixar-me cortar uma orelha para fazer um porta-chaves e os testículos para fazer uma bolsa.

Era homem para isso, só que não estava autorizado a fazê-lo.

(Continua)

[ Revisão / fixação de textos e títulos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: LG ]
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