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domingo, 22 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24005: Facebook...ando (71): Brincando, em Bajocunda, já no final da guerra, com uma pista elétrica de carros de corrida, um brinquedo então na moda na metrópole (Amílcar Ventura, ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323, Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74)

Guiné > Região de Gabu > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 >  "Em Bajocunda não era só guerra também nos divertíamos de vez em quando em 73/74"... Foto do álbum do Amílcar Ventura.

Foto (e legenda): © Amilcar Ventura (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  O Amílcar Ventura, ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74), natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde 9 de maio de 2009 (*), publicou a foto acima na nossa página do Facebook (Tabanca Grande Luís Graça), no passado dia 20. (**)

A foto chamou-me a atenção, não tanto pela legenda ("Em Bajocunda, na Guiné Bissau, não era só guerra também nos divertíamo-nos de vez em quando em 73/74"), quando sobretudo pela "cena retratada": dois militares (um deles, pode ser o próprio Amílcar Ventura)  "brincam" numa pista elétrica de corridas, daquelas que estavam então na moda, na metrópole, e que hoje pertencem à pré-história dos nossos brinquedos, sendo vendidas a preço de saldo no OLX ou na Feira da Ladra... Outros dois militares acompanham as "peripécias" da corrida... A pista não podia ser grande (talvez 10 metros, com duas faixas e dois carros) e só se podia usar quando havia luz elétrica, à noite... O local só pode ser um dos quartos dos furrieis...

Não era vulgar encontrar-se este "brinquedo", no meu tempo (1969/71), nos nossos quartéis... Nessa época, a maior diversão, à noite, eram os jogos de cartas (e nomeadamente a "lerpa" ou o "king"). Ou a "botelada", em campo pelado, ao fim da tarde... 

Fica aqui o "achado"... Obrigado ao Amílcar por desencantar esta imagem do seu álbum, que também fala muito do nosso quotidiano...
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Notas do editor:

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15388: Álbum fotográfico de Alfredo Reis (ex-alf mil, CART 1690, Geba, 1967/69) (3): O que é um homem precisava no mato, num miserável destacamento como o de Banjara, em 1967 ?



Foto nº 1 >  A "lavandaria" de Banjara... O detergente OMO eras um bem de primeira necessidade


 Foto nº 2 > Com acúcar, com afeto...



Foto nº 3 > Fósforos e cigarros: outros dois produtos de primeiríssima necessidade no mato...


Foto nº 4 >  Só havia 3 camas e 3 colchões (!)  para as praças do pelotão. o cmdt,  alferes Alfredo Reis, aqui
à entrada de um abrigo...



Foto nº 5 > Inventário das munições existentes no destacamento de Banjara, em 5 de junho de 1967... 7900 cartuchos de 7,9 m/m (para Mauser, usada pela milícia) e 4000 cartuchos de 7,62 m/m (para a G3)... Em caso de ataque, os defensores teriam mesmo que poupar as munições... As munições de G3, a divirdir, por 30 homens, davam para 6 carregadores (de 20)... O ataque a um destacamento como este, à noite, isolado, sem possibilidades de socorro, podia dura 1, 2, 3 horas...



Foto nº 6 > Requisção de material, com data de 9/VI/67:

fósforos, 
palha de aço, 
camisas para petromax de 150 velas, 
torcida e vidro (?) para o frigorífico, 
pregos (...), 
aerogramas, 
selos, 
12 esferográficas (uma vermelha e as outras azuis), 
bloco de cartas, 
OMO e sabão, 
uma garrafa de whisky,  
Sumol ou outros sumos, 
camas e colchões para as praças (só havia 3...), 
500 tijolos (...), 
cabeça para a máquina a petróleo (...),
3 jogos de talheres,  
12 pratos de alumínio, 
1 barril de vinho, 
latas de cerveja 
e 100 gramas de piri-piri... 

Nota final: "Agradecemos o envio dos artigos requisitados e os preços dos que têm de ser pagos por nós".



Guiné > Zona leste > Geba > CART 1690 (1967/69) >  Destacamento de Banjara c. 1967


Fotos: © Alfredo Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: LG] (*)



Dois antigos alferes da CART 1690: Alfredo Reis (à esquerda)
e Domingos Maçariço (à direita). 24 de julho de 2010:
recordando, 42 anos depois, o ataque ao destacamento de
Banjara. Foto: Alfredo Reis (2010)
1. As fotos (acima. numeradadas de 1 a 6) são do álbum do ex-alf mil Alfredo Reis que, tal como o A. Marques Lopes, pertenceu à CART 1690. juntamente com o António Moreira e o Domingos Maçarico, todos  eles membros da nossa Tabanca Grande.

O Alfredo Reis é veterinário, reformado, vivendo em Santarém.    A seleção, a legendagem e a organização temática do álbum (cerac de 170 fotos) são do A. Marques Lopes. (*)

 Além da sede (Geba), o Alfredo Reis esteve nos vários destacamentos da CART 1690, alguns dos quais, como Banjara e Cantacunda, eram os piores "buracos" do CTIG na época. 

Os destacamentos não tinham luz eléctrica e as condições de segurança eram precárias. Banjara (a noreste, mais próximo de Mansabá) e Cantacunda (a norte) eram os destacamentos mais distante: ficavam a 45 km e 50 km, respetivamente, da sede da companhia, que era em Geba...

Banjara não tinha população civil (apenas milícia em reforço...) e estava cercada por mata densa; era defendida nesta época por um pelotão, 30 efectivos (, podendo ser reforçado); a um quilómetro havia uma fonte onde, alternadamente, os NT e o PAIGC se iam fornecer de água. Às vezes, encontravam-se… Mas havia uma fuga concertada dos dois lados, sem tiroteio. (**)

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Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série:

15 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15371: Álbum fotográfico de Alfredo Reis (ex-alf mil, CART 1690, Geba, 1967/69) (1): Eu e o meu pelotão em Cantacunda (Parte I)

19 de novembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15386: Álbum fotográfico de Alfredo Reis (ex-alf mil, CART 1690, Geba, 1967/69) (2): A visita, à sede da companhia, do Conjunto Académico João Paulo, em 24 de agosto de 1968



(...) «Banjara fica situada a cerca de 40 Km de Geba e a cerca de 20 Km de Mansabá, na estrada Bissau/Bafatá. Fica no coração da mata do Oio, e teve, antes da guerra colonial, uma unidade industrial de serração de madeiras. (...)

(...) Banjara gozava da fama, e do proveito, de ser o segundo pior destacamento da Guiné, a seguir a Beli, na zona de Madina do Boé. Não apenas pelos ataques mas, sobretudo, pelo perigo que representava, por estar muito isolado da Companhia, e por estar cercado por uma cintura de destacamentos IN, que vigiavam de fora do arame farpado e do alto das gigantescas árvores que o envolviam todos os movimentos da nossa tropa [tinha Sinchã Jobel do lado sul e Samba Culo do lado norte].

O destacamento era constituído por uma caserna, quatro abrigos subterrâneos e um posto de comando, que era uma casa abarracada, sem portas nem janelas, por onde os sardões e as cobras vagueavam livremente, sem nenhum obstáculo que lhes barrasse a passagem, a não ser a presença humana. Tinha ainda outros abrigos à superfície. A envolver este destacamento, que no essencial era uma clareira circular com cerca de mil metros de diâmetro, duas fiadas de arame farpado paralelas e em círculo. O capim era necessário cortá-lo de dois em dois meses, para evitar a aproximação camuflada do IN. As casas de banho, como é de calcular, eram a céu aberto.

A guarnição deste destacamento, comandado por um alferes, variava entre 60 a 80 homens, normalmente (houve alturas em que tinha só um pelotão), bem armados e disciplinados, capazes de aguentar debaixo de fogo uma boas dezenas de horas. O seu comando era rotativo (...).

(..:) O dia, em Banjara, iniciava-se naqueles anos (1967/1968), por volta das 18 horas. A essa hora o Comandante mandava distribuir a 3ª refeição, e as sentinelas avançadas ocupavam os seus postos. Toda a gente vestia então o seu camuflado, calçava as botas e recarregava as armas. Não é que de dia estivessem todos a dormir, mas durante a noite entrava-se em alerta máximo. Durante a noite era rigorosamente proibido acender luzes, fazer fogo e fumar à vista desarmada para não denunciar a presença e a localização de ninguém.


Tomada a 3ª refeição e colocadas as sentinelas, que eram sempre dobradas, iniciava-se toda uma série de rondas de posto a posto, podendo os soldados que estavam de folga, e só nos abrigos subterrâneos, jogar cartas, conviver e confraternizar, pôr a correspondência em dia, etc.  (...)

Durante a noite, de vez em quando, uma sentinela nossa dava um tiro, à aproximação do arame farpado de um macaco ou qualquer outro bicho (podia não ser...). Logo todos corriam para as armas pesadas e, normalmente, o IN respondia com dois tiros ao longe. Então a nossa sentinela, aquela ou outra, respondia passado algum tempo com três tiros. A seguir a resposta de novo do IN, então com 4 tiros. Era um jogo macabro, que nos mantinha constantementevivos e despertos.

O dia amanhecia, então, e, pelas 7 da manhã, iniciava-se a distribuição da 1ª refeição. As horas mortas do pessoal eram gastas, durante o dia, à caça, quando isso era possível e o capim estava seco e caído no chão, a jogar cartas, pôr a correspondência em dia e jogar futebol. O jogo de futebol era normalmente diário, mas sempre a horas diferentes, para não se cair na rotina, e sempre com os abrigos guarnecidos de atiradores.

Terminada a 1ª refeição iniciavam-se os trabalhos de rotina, para o que o efectivo estava dividido em 4 grupos, cada um deles composto por 15 ou 20 homens, comandados por um sargento.Um grupo estava de serviço à água e à lenha para as refeições. Os banhos eram tomados na bolanha a um quilómetro do arame farpado, e sempre com 10 ou 12 homens armados em vigia. Outro dos grupos era o piquete que realizava, normalmente, uma patrulha de reconhecimento nas imediações do aquartelamento. O terceiro grupo estava de prevenção rigorosa e o quarto estava de folga.

Este destacamento tinha apenas uma coluna de reabastecimento por mês, no máximo, mas chegava a estar mais de 2 meses sem alimentos frescos e sem correio. Não havia população civil, apenas militares.(..:)

(...) [Em Outubro de 1969, quando a CART1690 saíu de Geba, a CCAÇ2406, que estava
em Mansabá, colocou um pelotão em Banjara. No entanto, saíu de lá em Janeiro
de 1970, sendo o destacamento desactivado] (...)

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13642: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXIII: O quotidiano em Canjambari...(Agostinho Evangelista, 1º pelotão)








1

1. Continuação da publicação das "histórias da CCAÇ 2533", a partir do documento editado pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias). (*)

Desta vez ex-sold Agostinho Gomes Evangelista, do 1º pelotão conta-nos como era, a seus olhos, o dia a dia em Canjambari, que não era muito diferentes de outros buracos por onde todos ou quase todos nós passamos, meses e meses e meses a fio, no TO da Guiné, (LG)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12467: Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte VII): Como é que a malta passava os 'tempos livres'...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >  Capa do jornal de caserna, mensal,  "O Serrote", edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto. 









Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Jornal de caserna "O Serrote", mensal, edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto. Páginas do meio: 12/13. Total de páginas: 24.



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª C/BART 6520/72 (1972/74) > Um jogo de bridge entre oficiais. Em 2º plano, do lado esquerdo, o alf mil Jorge Pinto.


Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição; L.G.]



1. Mensagem do Jorge Pinto [ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) , com data de 14 do corrente,  em resposta a um comentário anterior do nosso editor [ " Toda a Guiné era concentracionária e claustrofóbica... Mas quem estava em Bambadinca, como eu, tinha - nas horas vagas, fora da intensa atividade operacional - a doce ilusão da liberdade de pôr viajar 30 km em estrada alcatroada, e ter em Bafatá um 'cheirinho' da civilização... O mesmo se pode dizer da malta que estava em Bafatá e em Lamego...E talvez em Mansoa e Teixeira Pinto... Ou não ? Bissau não conta, para nós não era mato"]...


Vejo que voltaste a caprichar, obrigado.  Enviei estas fotos (*) com o objectivo de revelar um aspecto do modo como se passava algum do tempo, naquele "ambiente concentracionário", como tu bem dizes. Contudo, por incrível que pareça, grande parte do nosso tempo era passado fora do arame farpado: patrulhamentos, emboscadas, operações, reabastecimentos, idas à lenha... Devo salientar que fora do arame farpado as deslocações eram sempre feitas, no mínimo, ao nível de bigrupo, mais uma ou duas secções de milícias.

Dentro do aquartelamento havia sempre assuntos que nos envolviam.  Muita leitura, lembro-me, por exemplo, da chegada do primeiro exemplar do jornal Expresso. Sebentas de Direito e de História também eram companheiras inseparáveis de alguns oficiais.

Ouvíamos a BBC,  de Jorge Letria. Da Argélia vinha a voz do Manuel Alegre e o pensamento de Piteira Santos [Rádio Voz da Liberdade]. O próprio PIFAS, e o amigo [Armando] Carvalheda nas rubricas radiofónicas também muito ajudaram tal como a "Maria Turra" [Rádio Libertação, emitindo de Conacri].. 

Muita conversa, sobretudo após ouvirmos a BBC. Claro que também havia conversas filosóficas, sobretudo com o régulo Malã, que após ter estado em Meca, S. Francisco da Califórnia, Macau, Lisboa, Londres e outras urbes europeias,  afirmava com grande veemência que Fulacunda é que era BOM. 

Muitos jogos, não só de futebol e voleibol mas também jogos de sala: longas noites de bridge (foto acima)), King, sueca, ramin, poker de dados, ping-pong...


Atividades culturais, como por exemplo a feitura de um jornal mensal, O Serrote (capa reproduzida acima ) aberto à colaboração de todos. Ali se escreveram:  (i)  piadas de caserna relacionadas com episódios rocambolescos da comunidade residente; (ii)  resumos de livros lidos por alguns; (iii)  poemas que fazem lembrar as medievais cantigas de amigo e amor; (iv) assuntos de atualidade interna (anexo) e externa; além de (v) anedotas, concursos de cultura geral, contos.

Como vês,  Luís, o tempo lá se ia passando. Cada dia era religiosamente riscado um a um nos calendários pendurados nas grossas paredes dos abrigos.

Bom fim de semana para toda família. Forte abraço.

Jorge Pinto [, foto da época, à esquerda]

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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12380: O que é que a malta lia, nas horas vagas (2): a revista brasileira, ilustrada, "O Cruzeiro" (Abílio Duarte, ex-fur mil art da CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)



Guiné > Zona leste > Região de Gabu >  s/d > O Abílio Duarte na messe, em Nova Lamego, decorada pelo Pechincha, lendo a revista brasileira "O Cruzeiro"...

Foto do álbum de Abílio Duarte, ex-fur mil art da CART 2479 (mais tarde CART 11 e finalmente, já depois do regresso à Metrópole do Duarte, CCAÇ 11, a famosa companhia de “Os Lacraus de Paunca”) (Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70).

 Foto: © Abílio Duarte (2013). Todos os direitos reservados.[Edição: L.G.]


1. Sobre a revista O Cruzeiro:

"O Cruzeiro foi a principal revista ilustrada brasileira do século XX. Começou a ser publicada em 10 de novembro de 1928 pelos Diários Associados de Assis Chateaubriand.
Foi importante na introdução de novos meios gráficos e visuais na imprensa brasileira, citando entre suas inovações o fotojornalismo e a inauguração das duplas repórter-fotógrafo, a mais famosa sendo formada por David Nasser e Jean Manzon que, nos anos 40 e 50, fizeram reportagens de grande repercussão.

"O site Memória Viva, especializado em biografias de pessoas famosas da recente História do Brasil, inaugurou uma nova fase de existência com o lançamento da edição on line da revista O Cruzeiro."

[Excerto reproduzido com a devida vénia... Algumas edições estão já disponíveis no sítio Memória Viva].

2. Apelo do editor, L.G.:

Amigos e camaradas. leitores do nosso blogue:

Foi aberta esta nova série no nosso blogue, "O que é que a malta lia, nas horas vagas" (*)... E eu, aqui, faço um apelo, mais uma vez, à vossa generosa participação, para que nos enviem textos e fotos dos momentos de ócio, ao sol, no abrigo, no bar, lendo livros, jornais, revistas... Em muitos aquartelamentos havia pequenas bibliotecas alimentadas pelo Movimento Nacional Feminino... É possível que também chegassem pelo correio jornais e revistas... Ainda se lembram de quais? Um ou outro assinava publicações periódicas... Enfim, essa informação interessa-nos para melhor documentar o nosso quotidiano naquela terra verde e vermelha onde passámos alguns dos nossos verdes anos...

Um Alfa Bravo fraterno. Luís Graça, editor.
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sexta-feira, 1 de junho de 2012

Guiné 63/74 - P9973: (Ex)citações (181): Revisitando as cartas do alf mil Carlos Geraldes (José Freitas, ex-fur mil minas e armadilhas, CART 676, Pirada, 1964/66)





Guiné > Região de Gabu > Pirada > CART 676 (1964/66) > O bom do senhor Barbosa, Chefe de Posto de Pirada na intrincada tarefa de fazer o recenseamento civil. Foto nº 59 do álbum de Carlos Geraldes (1941-2012).

Foto (e legenda): 
© Carlos Geraldes (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, Todos os direitos reservados.


1. Comentário de José Freitas, com data de 16 de maio último, ao poste P4980 (*):

Eu pertenci à mesma CART  676  (**) como o alferes Geraldo [sic]. Sou o José Guilherme  Teixeira da Silva Freitas,  furriel miliciano de minas e armadilhas,  e  confesso-me  muito surpreendido com as suas narrações. 


O Alferes Geraldes  conta muitas histórias com que eu não concordo. Só para dar um exemplo: eu é que ajudei com a tradução em francês várias vezes [, nos contatctos com as autoridades senegalesas]. Até ensinei aos  cabos que trabalhavam na secretaria com o 1º sargento,  na escola em  Pirada. 

Também fui eu que usei granadas ofensivas como armadilhas para  proteger os sargentos que moravam numa pequena casa fora do  aquartelamento, [em Pirada]. Fui também com o Capitão [Álvaro Santos Carvalho]  Seco e mais 15 soldados,  fomos num Unimog devido a informação recebida dum grupo terrorista e fomos  emboscados,  perdendo a viatura. Tivemos que desertar [sic] pois eles eram um grupo de 200,  pelo menos. 

O que li de você,  Alferes Geraldes,  é a SUA HISTÓRIA, mas há outros que tiveram uma importância também...

2. Comentário do editor:

Obrigado, José Freitas, nosso leitor e camarada, pela visita ao blogue e pelo comentário ao poste do Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66. Trata-se de um série, Cartas, que cobrem o período da vossa comissão de serviço (maio de 1964 a março de 1966), e de que se publicaram dez postes. Espero que os tenha lido todos (*).


Certamente por lapso de memória, você - que presumo viva no Brasil, não ? - começou por tratá-lo por Geraldo. O seu nome é Carlos Adrião Geraldes. Ou melhor, era: o Carlos já não está entre nós, faleceu de ataque cardíaco, em Viana do Castelo,  no princípio deste ano. Infelizmente ele já não poderá acrescentar mais nada ao que deixou escrito no nosso  blogue, e que é muito e é valioso. Às vezes quando lemos os escritos dos outros, "vemos a árvore mas não a floresta". 


De qualquer modo, o José Freitas fica desde já convidado a integrar o nosso blogue, bastando para tal mandar-nos duas fotos da praxe e contar-nos uma ou mais histórias, as suas histórias. O nosso blogue existe (desde há 8 anos), justamente por que todos fomos e somos  importantes. Todos, sem exceção. Você, o Carlos, eu, todos os camaradas de armas que passaram pelo TO da Guiné. (***)


Alguns camaradas nossos fizeram comentários elogiosos,  a propósito desta série epistolar, em que o Carlos Geraldes descreve, entre a ternura e a ironia, o seu quotidiano nos sítios do setor por onde passou (Pirada, Bajocunda, Paunca), as relações entre camaradas e as relações dos militares da CART 676 com os comerciantes e as autoridades locais... Alguns destes comentadores conhecem a região, por lá terem estado em data posterior à vossa saída. Aqui ficam uma seleção desses comentários:


(...) Uma série de altíssima qualidade, que, a meu ver, prestigia o blogue (Carlos Cordeiro, 16/9/2009);

(...)  A tua guerra está cheia de episódios fortes e delicados. Talvez esta chuvada possa serenar o ambiente, ademais a senhora já abalou. Quanto às libertinagens referidas, eram frequentes nos vinte aninhos, e punham a nú a fragilidade da NT. Acho eu que isso ainda vai acabar bem. Continua (José Manuel Diniz, 11/9/2009);

(...) Não há duvida que os nomes maçaricos e piriquitos se deve a duas espécies de pássaros muito comuns na Guiné, os maçaricos amarelos os periquitos verdes.
Mas a razão de a tropa portuguesa ser cognominada com esses termos. As madrinhas foram as nossas ex-lavandeiras que iam esperar os militares e oferecerem os seus préstimos de lavandeira. De tal modo a malta formada a preceito de farda amarela mais pareciam os tais bandos de maçaricos. Então elas diziam, 'jubi chegaram mais manga de maçaricos'. Mas eis que em mais uma nova chegada de militares mas todos de farda verde, surpresa total nas lavandeiras, 'jubi agora maçarico cá tem! Agora só manga de piriquito'. Se há outros motivos quem sou eu para discordar.
(José Colaço, 9/9/2009)

(...) Com que então sardinha assada? Como dizia o outro: ele há guerras... e guerras! Mas as descrições que fazes compensam com delícia as dificuldades passadas. Um Ford T? Outra maravilha só possibilitada em África. Aguardo os próximos episódios. (José Manuel Dinis, 3/9/2009)

(...) estive lendo o teu P4892 e quando falas de Bajocunda deixa-me uma grande alegria pelo tempo que lá estive se bem que com oito anos de diferença, mas o engraçado é que quando lá cheguei em Nov 73 havia três frigoroficos a petróleo um maior que os outros já não funcionava e se calhar era o mesmo que tu lá encontraste no dia 8 Fev 65. (Amílcar Ventura, 2/9/2009);


(...) Bela vida e boa descrição. Já não conheci Pirada com essa tranquilidade, mas sei que era assim, e que o Soares era homem-grande. Sei que, dessas cumplicidades, foi permitido viver com tranquilidade. E sei de uma senhora que se deslocava de Bajocunda usando um jeep. Ali vivia-se como em África, romântica, misteriosa, solidária.
Manda mais sff.
(José Manuel Dinis, 28/8/2009)

(...) Aqui o Carlos, por meio de períodos claros e sucintos, faz descrições muito interessantes sobre a saga da nossa tropa por matos e bolanhas da Guiné.  Quando pode ainda dá umas ferroadas, ora no regime, ora na estrutura repressiva. Não nos dignifica, mas retrata comportamentos de mal-amados.  Tem havido manifestações exageradas na defesa da honra no convento, mas para a história verdadeirq não podemos ignorar as nossas fraquezas e alguns comportamentos deploráveis.Os meus parabéns. (José Manuel Dinis, 25/8/2009) (...) Curiosamente ao ler os aerogramas que fui trocando com a familia, também sou levado a chegar à conclusão que a guerra da Guiné era um mar de rosas, mas era de tal maneira que nem os familiares acreditavam. Como nós haverá muitos camaradas que o fizeram. (César Dias, 14/8/2009)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4980: Cartas (Carlos Geraldes) (9): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1966


Vd. os restantes postes da série (no total são dez):


23 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4997: Cartas (Carlos Geraldes) (10): 2.ª Fase - Abril de 1966 - Epílogo - O Regresso

15 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4958: Cartas (Carlos Geraldes) (8): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1965

10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

3 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

25 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4861: Cartas (Carlos Geraldes) (3): 1.ª Fase - Agosto e Setembro de 1964

21 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4848: Cartas (Carlos Geraldes) (2): 1.ª Fase - Maio a Julho de 1964

14 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4821: Cartas (Carlos Geraldes) (1): Apresentação e Prólogo


(**) CART 676:  Mobilizada pelo RAP 2. Partida: 8 de maio de 1964. Chegada: 27 de abril de 1966. Localização: Bissau, Pirada, Bissau. Comandante: Cap Art Álvaro Santos Carvalho Seco.

(***) Último poste da série > 30 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9965: (Ex)citações (180): Defendendo a honra do BCAV 8320/72, Bula, 1972/74, que foi acusado de rebelião, em agosto de 74, e cujo pessoal vai fazer sábado, dia 2 de junho, na Trofa, o seu XXVI Encontro anual (Zeca Pinto)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3933: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (4): Cenas, pouco edificantes, de caserna, que não contarei...

Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência.

Foto: © A. Marques Lopes (2005). Direitos reservados.

1. Mensagem de Cristina Allen, através da sua filha Joana Santos:

Caro Luís Graça,

Junto mais um texto da minha mãe para o Blogue.
Em breve, ela sairá de Bissau, mas eu ainda não acredito.

Um abraço,

Joana


2. Um agradecimento e ... um poema a Bissau (*)

por Cristina Allen

A Vasco da Gama, Luís Graça, Jorge Cabral, Torcato Mendonça, Mário Fitas e Alberto Branquinho,


Vocês são demasiado elogiosos.

Tinha preparado, para este Blogue, um texto hilariante sobre a perseguição nocturna a um coronel, que punha gravata para o jantar, me piscava um olho velhaco e, numa noite em que o Mário se ausentara, entrou, no meu quarto, em cuecas. Tantos anos volvidos sobre o caso, não acho que seja assim tão engraçado.

É que, a esse tempo, o homem teria a idade do meu pai e, nos dias de hoje, já sou mais velha do que ele então seria. Também entrava nessa história o Carlos D’Orey, um amigo que morreu de abandono.

Portanto, nada de graças. Em vez desse texto, mais uma visão de Bissau, da qual não consigo ainda partir.


Bissau, a menos bela,
te cantarei bela
em cada esquina.
Bissau, como te vi,
luzeiro e sombra densa,
Bissau da paz
e luta ardente,
Bissau benvinda,
oculta para sempre.

E se, em sonhos,
farrapos de mim
por ti e só por ti ainda gritam,
são coisas da lembrança,
cidade adormecida,
entre a morte e a vida
bem cumprida,
delgado fio pendente…

E, da suprema traição,
que tão bem viste,
o espanto e a ira,
na tua cor esbatidos,
mais brandos tos retorno,
em meus olvidos,
Bissau, a menos bela,
que cantarei mais bela
em cada esquina.


Cristina Allen
Fevereiro de 2009

__________

Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores da série:

9 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!

19 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3913: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (3): Quanta chuva, Mário ?

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3647: Banco do Afecto contra a Solidão (3): Regueirão, a Avenida da Desesperança. (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral

Amigos

Envio apontamento para a nova série, mas principalmente Votos de Bom Natal.
E que a Solidariedade nos ilumine a todos, e nos faça entender que não somos Nós e os Outros, mas somos todos Nós.

Abraços Grandes
Jorge Cabral

Os Meus Amigos do Regueirão dos Anjos

Jorge Cabral


Quase não é uma rua, o Regueirão. Beco comprido à ilharga do Banco, não aparece em nenhum Roteiro Turístico. É porém local de muitos sem-abrigo. Talvez um dia venha a mudar de nome. Por mim proponho – Avenida da Desesperança.

Aí encontro quatro Amigos. Um é grande e moldavo, outro negro de Angola, o terceiro velho e gasto e ainda uma mulher para compor o naipe.

São todos ex, ex-tudo e nunca falam do passado.

Quem foram? Não pergunto, mas descobri que o velho esteve na Guiné. Pela tatuagem, claro. Imagino-o lá. Padeiro em Buba, maqueiro em Piche, atirador no Xitole, o mato, o quartel, o perigo, as bebedeiras, a jogatana, as bajudas...

Como foi o regresso? Quando e porquê se terá ele perdido? Uma mulher? Um crime?
Talvez apenas a chatice da rotina o tenha feito berrar um ipiranga e embarcar sem rota...

Vivem aqui os quatro, entre cartões, cobertores, plásticos. Comem o que lhes trazem as carrinhas benfeitoras. O preto arruma carros. A mulher canta salmos e os outros esperam, sabe-se lá o quê? E bebem, bebem sempre, mas já não se embriagam.
Ontem levei castanhas. Assaram-nas na rua.
- Vai um trago, patrão?
- É do bom, Senhor Engenheiro!

Não bebo há anos, mas emborquei da garrafa, pois então.
- Bela pomada, amigos, sim senhor...
__________

Notas de vb:

1. Artigos da série em

15 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3630: Banco do Afecto contra a Solidão (2): Ajuda ao João Santos, ex-combatente em Moçambique, que vive num contentor (Mário Fitas)

2. Último artigo do Jorge Cabral em:

4 de Dezembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3562: Banco do Afecto contra a Solidão (1): A última comissão do Coronel (Jorge Cabral)

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2290: Estórias de Bissau (14) : O Pilão, a menina, o Jesus e os pesos que tinha esquecido (Virgínio Briote)

Guiné > Bissau > Quartel de Brá, 1966. Adidos, pessoal em trânsito, um Batalhão, uma CCmds, cabia lá tudo.

Guiné > Bissau > Bissalanca, base aérea de Bissau > 1966 > A primeira geração de comandos, aqui representada pelo Briote, ex-alf miliciano (à esquerda, acompanhado pelo Furriel Azevedo, ao centro, e o Sargento Valente, à direita).

Fotos: © Virgínio Briote (2005). Direitos reservados.

Histórias do Cupilão (ou Cupelom) (1)

por Virgínio Briote (Ex- Alf Mil, Cmds)

Em condições normais, saíamos para o mato dois ou três dias e descansávamos uma semana em Bissau. Por isso, tempo não faltava para dar umas voltas por Bissau. E falar em Bissau, naqueles tempos era também falar do Cupilão.

Conheci lá muita gente, provei excelentes pratos típicos de Cabo Verde e doutros lados, cachupa, galinha à cafreal, participei em festas da boa gente cabo-verdiana, ouvi mornas e coladeras, eu sei lá o que fiz mais.

Cupilom, não te faço favor nenhum. Foi no bairro com o teu nome que aprendi a gostar daquela gente e daquelas terras.

O Cupilom, naqueles anos de 65 e 66, era um sítio calmo, andávamos por lá à vontade, sem receio. E os guerrilheiros também, quando em trânsito por Bissau, para curarem as mazelas ou para tratarem dos seus assuntos, particulares ou da guerra.

Os incidentes eram de baixa intensidade, como agora se diz. Uns copos a mais, quase sempre na origem, ou uma ligeira disputa por alguma beldade, nada que não se resolvesse, geralmente, sem necessidade de recorrer à temível PM do cap Matos Guerra.

O Jesus, assim se chamava o militar protagonista desta história, era tão assíduo no Cupilom que muita gente o conhecia e as novidades vinham ter com ele. Meninas em trânsito para Dakar, meninas novas acabadas de chegar e ainda à procura de poiso, só de informações da guerrilha é que ninguém se lembra de alguma vez ter contado.

Uma noite, aí entre as 23 e as 24h, estando eu a entrar na porta de armas de Brá, com o soldado Alegre ao volante do ME-14-04, vejo a sair um jeep nosso, com o Sargento M. Valente e mais três soldados. A esta hora, ainda vão sair, devo ter falado com os meus botões.

Vim a saber da história no dia seguinte. O soldado Jesus, no final da 3ª refeição, meteu-se numa viatura que fazia o habitual transporte para a cidade e apeou-se na entrada para o Cupilom. Nada de anormal, afinal era a sua 2ª residência. Terá andado por ali, de cima para baixo, a falar com esta e aquela, até resolver, segundo disse, regressar à estrada para apanhar novamente outra viatura para Brá.

Uma gentil figura apareceu à porta de uma casa e o Jesus, cordial como era, meteu conversa. Acabou por entrar e, palavras dele, minutos depois estavam na cama à conversa.

Terminada a conversa, já com as calças na mão, ouviu-a perguntar-lhe pelos pesos.
- Quais pesos? Eu não sou desses que pagam! Estar com o Jesus não é para qualquer uma!

E resolve dirigir-se para a porta. Só não contava é com a rapidez da companheira de cama. Muito mais lesta, sacou a chave e começou aos gritos.
- Paga, paga, não sai daqui sem pagar!

Aflito com a reacção, a dedução é minha, mudou de voz e de maneiras. Que pagava, que estava só na brincadeira.
- Paga então, paga e eu abro a porta para tu sair.

Só que o Jesus não tinha dinheiro com ele, tinha-se esquecido, disse à senhora.
- Não sai, eu não abro porta para sair.

Que tudo se resolvia, amanhã viria a casa dela e faria o pagamento, palavra dele, do Jesus.A conversa a decorrer no tom que nós imaginamos e mais barulho se junta com palmadas e vozes à porta.

Muito conhecedor do Cupilom e dos hábitos daquela gente, o nosso herói embora não deva ter percebido mais que uma palavra, deve ter entendido muito bem o motivo do diálogo.
- Vamos meter calma nesta história.
- Não quer calma, quer pesos, dá pesos eu abro porta.

Não deve ter passado de meia dúzia de minutos esta conversa, imagino eu, uma eternidade para o Jesus, que nunca tinha estado preso, tanto quanto sei. Habilidoso, fez uma proposta ao pessoal que estava cá fora, à porta. Que era só ir à estrada, que a viatura parava junto a um sítio que toda a gente conhecia e que pedisse para alguém dos comandos lhe levar os pesos.

E não é que, minutos depois, ouviu um camarada seu falar à porta?
- Olha, diz ao Sargento Valente que venha com os pesos e que não se esqueça de trazer a equipa também, o Jesus a querer sair por cima. Não lhe tinham chegado os momentos de aflição, ainda queria mais.

E foi assim que o nosso bom Sargento entrou na história. Inteirado, puxou dos pesos, passou-os por baixo da porta, e, então sim, só depois de os ter contado, a gentil menina abriu a porta.
Cá fora ainda quis protestar mas o Sargento Valente não lhe deu hipótese.
- E ao menos, meu Sargento, viu a cara dos gajos que estavam aqui à porta?

Ao nosso herói tudo lhe custou. Pediram-lhe 50 pesos, teve que os pagar ao Sargento e até ao final da comissão a aventura do intrépido Jesus foi tão falada que, meses depois, estava tão arredondada que, do original só ficou o nome dele.

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Notas dos editores:

(1) Vd posts anteriores desta série:

11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)

17 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2272: As nossas (in)confidências sobre o Cupelom, Cupilão ou Pilão (Helder Sousa / Luís Graça)

14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

19 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2281: Estórias de Bissau (13) : O Pilão, a Nônô e o chulo da Nônô (Torcato Mendonça)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)



Guiné > Bissau > Pós-25 de Abrild e 1974 > Manifestações populares de regozijo mas também de contestação: na primeira foto, um manifestante empunha um cartaz onde se lê: "Abaixo a D.G.S." [a polícia política portuguesa]; na segunda foto, um dos manifestantes exibe um improvisado autocolante nas costas, onde se lê: "Viva o General António Spínola! Viva o Povo da Guiné!"... Quatro anos antes, em fevereiro de 1970, desenfiado e perdido em Bissau, eu estava longe de poder imaginar cenas como estas... (LG)

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

Nesta rúbrica Blogueforanada - O melhor de ... retomam-se alguns textos, da 1ª série do nosso blogue, que já estão esquecidos ou que são de mais difícil acesso, merecendo ser, por uma razão ou outra, relembrados... É o caso, por exemplo, deste que se hoje se republica, com algumas alterações (1)...

Reprodução do post de 8 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVIII: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)


Guiné > Zona leste > Bambadinca > 1969 > O ex-furriel miliciano Henriques, atirador de armas pesadas, da CCAÇ 12 (1969/71) : "Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!"...

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados


1. Tenho algumas cartas que fui escrevendo, no meu Diário de um Tuga, dirigidas a amigos, mas que nunca cheguei a pôr no correio. Por lassidão. Por cansaço. Mas também por receio de correr riscos, desnecessários. Nunca soube até onde podia chegar o longo braço da PIDE/DGS e até onde me vigiava, nos vigiava. Também nunca fui, até hoje, à Torre do Tombo confirmar as minhas suspeitas... Sei, pelo que me disseram (mas nunca confirmei), que algumas pessoas com quem convivi em Bambadinca (um civil e um primeiro sargento) terão sido informadores da PIDE/DGS... Não me choca: este país era uma imensa bufaria...

Se bem me lembro, eu era o único tuga, da CCAÇ 12 (uma uniddae de intervenção constituída por soldados africanos, recrutados do chão fula), que recebia, em Contuboel e depois em Bambadinca, o Notícias da Amadora e o Comércio do Funchal, jornais conotados com a oposição ao regime de Salazar-Caetano. Por sua vez, o Fur Mil Marques (que irá cair, comigo, a 13 de Janeiro de 1970 numa mina A/C), recebia a Seara Nova. Não era nenhum crime de lesa-pátria nem punha o regime em perigo. Afinal, eram jornais sujeitos a censura (o famigerado exame prévio, que eufemismo!). Circulavam legalmente… e até chegavam à Guiné, a Contuboel e depois a Bambadinca, pelo Serviço Postal Militar (SPM).

Na época, poucos de nós se interessavam por política. De resto, quem se interessava por política era do reviralho, alguns grupos e grupúsculos (intelectuais e estudantis, católicos progressistas, organizações clandestinas, ligadas à esquerda e à extrema-esquerda…). Tínhamos todos nascido no Estado Novo e sido formatados, desde o berço, pelo Estado Novo… Quem se poderia interessar por política ? O termo tinha, de resto, uma conotação ameaçadora e perigosa...

Não obstante a efémera primavera marcelista e as mudanças de cosmética no aparelho repressivo do Estado Novo, o país começava, perigosamente, a descomprimir-se… A contra-cultura e a contra-ideologia do Maio de 68, lá fora, e da crise estudantil de 69, cá dentro, instalavam-se no quotidiano, nas empresas, nas redacções dos jornais, na universidade, nas instituições e até nas forças armadas… Um espírito de contestação e de subversão começava a ameaçar os aliceres (podres) do regime... Era o famoso espírito dissolvente, denunciado pelos espíritos mais lúcidos e ultraconservadores do regime.

Chegavam-me, à Guiné, alguns ecos dos movimentos estudantis e das lutas operárias de 1969 que eu apoiava apenas quixotescamente… Era preciso, todavia, ler as notícias nas entrelinhas. De qualquer modo, começava-se a perder as ilusões sobre a natureza do regime, sob o consulado de Marcelo Caetano (que tinha estado na Guiné em Abril de 1969, contrariamente ao seu antecessor que nunca posto os pés em África). E alguns de nós começavam a ter a consciência do beco sem saída a que nos conduzia a guerra colonial.

Na campanha eleitoral de Outubro de 1969, a oposição ao regime defende o direito à autodeterminação das colónias… Em 1966, eu já lutava pelo fim da guerra, mas sabia que lá iria parar, inelutavelmente... Que iria parar a Angola, a Moçambique ou à Guiné… Mas dos três pesadelos, a Guiné era o pior, para a malta da minha geração... Um primo meu tinha morrido na Guiné, em Ganjola, em 1966...

Em 1969 eu deveria ser dos poucos militares, em Bambandica, que estava inscritos nos cadernos eleitorais, tendo inclusive exercido o meu direito de voto… Eu, o meu capitão e poucos mais…

Sempre fui um outsider. Não estava ligado a nenhuma rede ou organização política da chamada oposição democrática. Por me manifestar, a título individual, contra a guerra colonial e expressar as minhas simpatias pelo PAIGC, chamavam-me o Soviético ou o camarada Sov, o que era pouco lisonjeiro para o meu espírito de independência e de recusa de alinhamento político-partidário...

A alcunha foi-me posta, creio eu, pelo Sargento Piça, o sargento mais bacano que eu conheci na tropa. Uma amizade feita de muitas cumplicidades e muitos copos. Era o nosso pai e o nosso irmão mais velho. Alentejano dos sete costados, devia andar pelos seus 37 anos, tantos quantos os do nosso capitão Brito, militar de carreira, três comissões, um bom homem…

Enfim, serve este preâmbulo para contextualizar o texto que se segue. L.G.

2. Publico hoje uma carta que escrevi, de Bissau, a um dos meus amigos... Ao fim de nove meses de comissão, desenfiei-me e fui até Bissau. Tínhamos uma espécie de acordo tácito, nós, os milicianos da CCAÇ 12 e o sargento Piça, que nos arranjava a guia de marcha. Todos os pretextos era bons, médicos ou não médicos, para se fugir do Vietname (ou seja, do mato): o mais vulgar, era “ir Bissau mudar o óleo” (sic), tratar dos dentes, marcar a tão sonhada viagem de férias à Metrópole, enfim, beber uns copos, comer umas ostras, espairecer as ideias, carregar as baterias…

Tínhamos chegado à Guiné em finais de Maio de 1969, no N/M Niassa. Ao fim de menos de nove meses, e de uma intensa actividade operacional, era já precária a nossa saúde física e mental…

Trinta e cinco anos depois, posso revelar a quem era destinada a carta que nunca chegou ao seu destino: era para o meu camarada e grande amigo Levezinho, o Tony Levezinho, furriel miliciano como eu e o Humberto Reis na CCAÇ 12…

O Tony fez há dias 58 anos, no dia 24 de Novembro [de 2005], no seu retiro algarvio, lá para os lados de Sagres… É uma surpresa que eu lhe faço, mesmo que ele estranhe o tom desta carta… É também um pequeno gesto de homenagem e de amizade, para com ele e a Isabel que eu, na época, só conhecia de fotografia. O Tony veio de férias à Metrópole, e casou, a meio da comissão, deixando a pobre da Isabel como potencial candidata a viúva... Felizmente, estão hoje os dois bem vivos e são um casal maravilhoso...

Bom, o Tony nunca suspeitaria da existência desta carta que eu, pela minha parte, imaginei mandar-lhe como se ele estivesse na… Metrópole, longe do Vietname

É uma carta insólita para um camarada, no sentido etimológico do termo: o que dorme no mesmo quarto, na mesma camarata… (O que era literalmente o nosso caso). Devo dizer que já não me recordo de quantos dias andei desenfiado em Bissau, longe do Vietname.. Possivelmente uma semana, não mais… O Levezinho conhecia Bissau, tão bem ou tão mal como eu…Neste acaso, utilizei-o apenas como um simples interlocutor imaginário para uma conversa imaginária… Em condições normais, em Bambadinca, eu nunca faria (in)confidências deste género. Por pudor, simplesmente por pudor. Ou por falta de tempo...

Este texto está datado, vale o que vale e algumas das suas expressões mais duras podem ferir, mesmo ainda hoje, algumas sensibilidades… Em resumo, não poderia subscrevê-hoje, tal como foi escrito há trinta e cinco anos… Não sou mais o mesmo, ou pelo menos não gostaría de ser mais o Henriques... Mesmo assim, apeteceu-me divulgá-lo.

Julgo que pode ter algum valor documental para a sociologia histórica da guerra da Guiné. Revela sobretudo um estado de alma, o de um jovem, de 23 anos (já feitos em Janeiro de 1970!), apanhado na rede como um cão (como ele costumava dizer) e que lutava por sobreviver, física e mentalmente, a uma guerra com a qual ele não podia, de modo algum, estar de acordo.

Espero que os meus amigos e camaradas de tertúlia, a começar pelo Tony Levezinho, sejam condescendentes comigo.


Diário de um Tuga > Bissau, far from the Vietnam. 10 de Fevereiro de 1970:

Meu caro L [evezinho].

Gostaria de falar-te de Bissau, cidade lumpen, e da sua morna dolce vita, em termos não propriamente de desencanto mas de desmistificação, a ti que ficaste no Vietname… E com palavras que fossem como ácido sulfúrico na pele!... Receio, porém, que a minha crueldade não chegue a tanto (que a realidade, essa, é requintadamente sádica, grotesca, como as telas de Brueghel ou do Goya!) e que não passe, afinal, de azeda esta carta que daqui te envio, aproveitando o macaréu da minha neurastenia e uns fugazes dias de liberdade vigiada. Daqui, da esplanada do Pelicano, frente ao estuário do Geba, rio tragicamente belo, insubmisso como os povos que habitam as suas margens!...


Bissau: cidade-caserna, cidade-bordel

Bissau revisitada (1)… Devo, antes de mais, confessar-te que, se acaso fugi da Guiné por uns dias, nem por isso deixo de sentir-me perseguido pelo seu fantasma. Sabes como é (ou, pelo menos, deves imaginar): uma incómoda sensação de estado de sítio (que nada tem a ver com a insularidade – aliás, pouca gente sabe que Bissau fica numa ilha), agravada, para quem aqui vegeta, pelos fantasmas dos foguetões que ainda há tempos flagelaram Bolama, a antiga capital colonial…

Bissau, cidade-caserna, cidade-bordel!... Para quê falar-te do tráfego (e do tráfico!) de carne branca sem qualquer carga erótica para lá do fetiche da cor da pele ?! De qualquer modo, o contrabando do sexo é negócio que vai de vento em popa - aqui funcionam as leis do mercado, a procura é muita e a oferta é variável ! – a par da quinquilharia oriental e sobretudo dos produtos nipónicos que ultimamente invadiram os free-shops cá do sítio, desde os Gouveia aos Taufik Saad, para quem o amendoim, o coconote e os panos de chita já foram chão que deu uvas… Enfim, o comércio da guerra e a guerra do comércio, uma parelha que sempre se deu bem em toda a parte!

Para quê falar-te dessas prostitutas que naufragam em todos os portos onde cheire a merda, a morte e a soldadesca, fugidas da miséria das ilhas de Cabo Verde e dessas outras ilhas de Lisboa e do Porto ?! Ou ainda dessas fêmeas, balzaquianas, que os tropas do ar condicionado mandaram vir da Metrópole e que passam, sequestradas, nos Wolkswagen e nos Mercedes pretos, conduzidos por soldados africanos – insólita imagem de jovens eunucos negros, subsaarianos, guardando as velhas odaliscas nos haréns dos sultões das Arábias!...

Não suporto, aliás, a visão desse branco asséptico, dessa cor neutra das metropolitanas cujo tom de pele tem qualquer coisa de viscoso como as paredes dos hospitais… Receio até que esteja a tornar-me racista ao contrário ou a caminhar para a misogenia, como aquele prisioneiro que, ao sair de Auschwitz, não conseguiu sequer beijar a mulher porque tinha horror a tudo o que era humano

Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…

Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”!...

Imagina, pois, Bissau como estância de repouso do guerreiro. Há aqui, de certo, um equívoco, um tremendo equívoco por parte do médico miliciano, que até é um gajo porreiro, capaz de dar umas baixas aos operacionais, não obstante as ameaças veladas do comandante de sector… Mas eu estou farto dos gajos porreiros, como ele, que joga bridge com os cabrões dos oficiais superiores, apostados em ganhar a guerra (leia-se: os próximos galões) à custa de ti, de mim e da nossa tropa-macaca… É que Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!...

De qualquer modo, para além duns furtivos raides ao Pilão, as únicas operações que aqui se realizam ainda são do tipo gastronómico. Enfim, a nossa velha filosofia epicurista segundo a qual o melhor que se leva desta vida é ainda o que se come e o que bebe. Eis-nos, portanto, tristemente reduzidos ao ciclo vegetativo , ou seja, aos camarões, às ostras e às verdianas (sim, por que essas pretas de 1ª, na nossa linguagem machista e racista, também são coisas que se comem!)…

Do Pilão ao Chez Toi

Quanto ao Pilão, como escrever-to ? É a grande tabanca, o grande muceque de Bissau, um verdadeiro gueto, um enorme abcesso putrefacto produzido pelo colonialismo e pela guerra, e onde frequentemente explodem as tensões raciais e étnicas.

O Pilão é o lumpen… Daí as recomendações que te fazem ao chegares aqui - lembras-te ? -, à mistura com histórias mirambolantes, pouco ou nada verosímeis, de cabeças cortadas à catanada:
- Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite. Os gajos são todos turras. E com as verdianas, muito cuidado, menino, que as filhas da puta já nasceram todas esquentadas! - avisou-me um furriel fotocine, no Chez Toi, uma espelunca de 3ª classe com pretensões a night club, onde os tropas de galões dourados redescobrem o gosto civilizado do champagne francês (marado…), bebido com uma pin-up ao colo, como em qualquer bar rasca, de alterne, na Reboleira do J. Pimenta…

Descobri, entretanto, que o gajo – o fotocine – não passava de um proxeneta, nas horas vagas:
- É, claro, se quiseres, tens aqui coisa fina… Pró carote, já se vê..

Trata-se de um safado miliciano, como tantos outros que estão aqui na guerra do ar condicionado, afilhados de padrinhos com boas relações no Terreiro do Paço. Cabrões que conhecem a Guiné au vol d’oiseau, de helicóptero ou de Dornier. Felizardos que passam fins de semana nas praias da Ilha de Bubaque. Gajos para quem Buba ou Bambadinca, Guileje ou Piche são tudo cartões de visita exóticos: apenas sabem vagamente que fica lá no mato, no Vietname, de preferência longe de Bissau…


Os do Vietname, a espécie mais curiosa da fauna nocturna

Quanto ao resto, meu caro, é aquele ritmo burocraticamente febril duma cidadela militar, tradicional reduto da presença dos tugas desde finais do Séc. XVIII, simbolizado no forte da Amura. Há tropa por todo o lado, com particular notoriedade para a tropa especial aqui aquartelada – comandos, paras e fuzos – que entre duas viagens de helicóptero, ou de lancha de desembarque, na ociosidade destes dias e noites escaldantes de Bissau, se pavoneiam pelas esplanadas, de tomates inchados, apalpando o cu das bajudas, olhando por cima do crachá a tropa-macaca ou provocando-se mutuamente, por excesso de adrenalina ou por velhos ressentimentos corporativos…

O tráfego de viaturas e aeronaves é intenso mas só dificilmente nos apercebemos de que Bissau é o centro motor dum país em guerra. O melhor é tu postares à entrada do Hospital Militar e contares os helicópteros que aterram na placa…

À noite, entretanto, c’est le vide: os únicos noctívagos ainda são aqueles que vêm do mato e que sofrem da fobia do arame farpado: é vê-los até às tantas da madrugada, à mesa das esplanadas, empanturrando-se de ostras e de cervejas e contando histórias do mato. Mas em vão o guerreiro, em cura de repouso, busca outra atmosfera em que o oxigénio não esteja carregado das toxinas da angústia e da lassidão… A menos que, no dia seguinte, tenha passagem marcada para a Metrópole… Ele vem da guerra e para a guerra há-de voltar, de avião ou de barco, já que não há praticamente ligações terrestres de Bissau para o resto da Guiné. De qualquer modo, os que vêm do Vietname, ainda são as espécies mais curiosas da fauna humana que vagueia por esta capital-fantasma.

De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, de violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos…


Já nem sequer se pode tocar no cabelo de um preto (Capitão P.)


A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o Velho como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro, ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel ameaçar executar, in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...
- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!

Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!...

Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda.

Henriques (*)
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(*) ... Luís Graça, ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores desta nova série:

11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1945: Blogue-fora-nada: O melhor de ... (1): Nunca contei uma estória de guerra aos meus filhos (Virgínio Briote)

23 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1987: Blogue-fora-nada: O melhor de... (2): Apanhados pelo macaréu e mortos no Rio Geba (Sousa de Castro, CART 3494, Xime, 1972)

(2) Vd. a série Estórias de Bissau:



11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)