sábado, 12 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22992: (In)citações (195): Estou a preparar a 2ª edição, revista e acrescentada, do meu livro "A Pesca à Baleia na Ilha de Santa Maria" (Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72)


Arsénio Puim, natural de Santa Maria, Açores, a viver em São Miguel, 
escritor, ex-alf mil capelão, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72):



1. Mensagem do nosso amigo e camarada Arsénio Puim:

Data - 11 de fevereiro de 2022 17:25
Assunto - Nota de leitura
 

Obrigado pela tua “nota de leitura” relativa ao meu livro (*). Um livro, sem dúvida, simples e limitado, de cariz popular e muito mariense-açoriano, mas que julgo será um bom documento para a posteridade.

Posso informar-te que, desde há algum tempo, estou a preparar uma nova 2.º edição, também revista e acrescentada. Desta vez , é a reedição do livro “A Pesca à Baleia na Ilha de Santa Maria”, que publiquei em 2001 (, edição do Museu de Santa Maria, 109 pp.). Espero que venha a lume no próximo verão.

Luís, apreciei o pequeno debate relativo a alguns termos marienses de influência americana (**). Penso que esta foi no passado, em maior ou menor dimensão, uma realidade frequente em meios populares mais isolados e menos escolarizados que sofreram a influência doutras culturas. 

Em Santa Maria a influência foi americana, noutros meios será francesa ou alemã e ainda noutros foi portuguesa. É o caso, “mutatis mutandis”, do crioulo, que também se insere nesta dinâmica linguística corrente, proporcionada pela oralidade corrente, no caso, a associação da língua nativa e a língua dos colonizadores. São fenómenos curiosos.

Relativamente ao termo “calafona”, não há duvida que vem de “Califórnia”. Porém, no uso mariense popular o termo foi alargado a todo os emigrantes de qualquer área da América que apresentam características muito americanizadas, tanto no sotaque como no vestuário, maneiras de ser e linguagem. Já o termo “calafão” é muito menos usual em Santa Maria.

Quanto ao termo “raivar”, é verdade que às vezes, numa versão mais evoluída, se diz draivar, mas num americanismo mais retinto é mesmo “raivar”.

Do termo “estôa” não conheço em Santa Maria a variante estoro. Sei, porém, que os termos podem adquirir nas diversas ilhas um cunho próprio. E quanto aos nomes próprios, eles sofrem habitualmente grandes adaptações na América.

E tu, Luís,, quando é que escreves o teu livro? Com a tua bagagem e capacidade, há que pensar nisso.

Sabes que o Mário Ferreira, médico do nosso Batalhão, também publicou em 2007 o livro “Tempestade em Bissau”? (***) Numa ocasião em que fui a Lisboa , há quinze anos, ele ofereceu-me um exemplar. É uma visão da Guiné e da guerra, romanceada mas ao mesmo tempo baseada na realidade, à maneira talvez de romance histórico - escrita por alguém que (vê-se) esteve lá - e onde afloram conceitos filosóficos e sociais muito válidos.

Muita saúde! Um grande abraço.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 8 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"

(**) Último poste da série > 10 de dezembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22796: (In)citações (194): Divulgação do Prémio Literário Antigos Combatentes - Ministério da Defesa Nacional (Mário Beja Santos)

(***) Vd. poste de 29 de dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7525: Notas de leitura (181): Tempestade em Bissau, Ano 1970, de Mário Gonçalves Ferreira (Mário Beja Santos)

Vd. também poste de 10 de setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2092: Antologia (61): Tempestade em Bissau (Mário G. Ferreira)

Guiné 61/74 - P22991: Recortes de imprensa (120): A seca e os incêndios florestais fora de época... (Apontamento de Carlos Pinheiro no semanário O Almonda de Torres Novas)

1. Em mensagem do dia 11 de Fevereiro de 2022, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), enviou-nos um recorte do seu apontamento publicado no Semanário "O Almonda" de Torres Novas, onde colabora regularmente:

Com a devida vénia ao Semanário "O Almonda" de Torres Novas
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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22584: Recortes de imprensa (119): Reacção de Mário Beja Santos ao artigo do "Diário de Notícias", de 29 de Setembro de 2021, "Comandos africanos nas Forças Armadas Portuguesas. Histórias de abandono e traição"

Guiné 61/74 - P22990: Os nossos seres, saberes e lazeres (491): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (37): Óbidos, diferentes povos, presenças régias, rico maneirismo, restauros e omissões (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Há riscos que se correm quando se visita um lugar histórico e não se tem a faculdade de olhar sem ver o que está por detrás das alterações arquitetónicas e urbanísticas. Há evidentemente vestígios da vila medieval em Óbidos, basta percorrer a Rua Direita, foi sempre a coluna vertebral da povoação. O que é mais evidente é período quinhentista e seiscentista, não é por acaso que se volta a visitar o Museu Municipal e a esplêndida Igreja Matriz, marcada por uma obra-prima do Renascimento e a pintura do pai de Josefa d'Óbidos e dela própria. Mas é tanta a riqueza, há tanto para olhar sabendo ver, que um dia destes voltaremos a este magnífico lugar onde a Rainha D. Leonor veio chorar a morte do seu único filho.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (37):
Óbidos, diferentes povos, presenças régias, rico maneirismo, restauros e omissões

Mário Beja Santos

É sempre um prazer voltar a Óbidos: a tal fortificação que parece assentar num castro celta, por aqui houve mouros e judeus e cristãos, depois da conquista pelos portugueses; mirar as suas torres, percorrer as suas muralhas, determo-nos na Porta da Vila, encimada pela inscrição “A Virgem Nossa Senhora foi concebida sem pecado original”, deambular por ruas tortuosas, visitar os seus templos, em particular a Igreja de Santa Maria, bisbilhotar vestígios do passado, portais góticos ou janelas manuelinas, andar de lupa em riste à procura de cruzes, azulejos, insculturas, a peregrinação é fértil. Desta feita, entra-se para a visita com um trabalho publicado sobre arquitetura e urbanismo referente aos séculos XVI e XVII, de autoria de Teresa Bettencourt da Câmara, dissertação de mestrado, edição de 1989, da autarquia e da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, e volta-se ao museu municipal à procura que o novo olhar propicie novas surpresas.
Castelo de Óbidos
Porta da Vila

Fala-se da vila medieval, seguramente que o foi, mas o que hoje se oferece ao visitante tem fundamentalmente a ver com edificações dos séculos XVI e XVII, os múltiplos restauros depois do terramoto de 1755 e das intervenções proporcionadas pela Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais em 1952. Em jeito introdutório à sua tese de mestrado, Teresa Câmara refere a presença de grandes maciços calcários a dominar a paisagem, acrescentando que “Em épocas não muito recuadas toda a zona ribeirinha desde Óbidos até Leiria era constituída por terrenos recentemente conquistados ao mar, que originaram novos espaços de cultura e de floresta e até povoações como Peniche, Baleal e Alfeizeirão. Situada numa colina despida e seca, que contrasta fortemente com a zona plana que a rodeia, de grande riqueza florestal e solo fértil, a vila de Óbidos tem a protege-la ventos e pestes um dos grandes maciços estremenhos: a serra de Montejunto”. Fala-se muito da Rainha D. Leonor e menos da Rainha D. Catarina que, beneficiou largamente a vila de Óbidos, oferecendo-lhe o aqueduto, um enorme progresso.
Mas que não se pense que os tempos medievais não foram marcantes, obviamente que foram, dada a excecional posição defensiva de Óbidos, as suas muralhas foram refeitas por reis da primeira dinastia, como mais tarde D. Manuel, D. João III e D. João IV. Mas é irrecusável que o que o visitante tem à mostra é mais resultado das transformações urbanísticas operadas a partir do século XVI até às grandes operações de restauro datadas de 1952. Segue-se com prazer as descrições que a mestranda faz das alterações da Rua Direita, o pelourinho e o chafariz, a praça que envolve a igreja de Santa Maria, de que um pouco mais à frente iremos falar. E permita-me o leitor que nesta Rua Direita entre para de novo visitar riquezas artísticas que tanto aprecio, com eles as partilhando.

Aqueduto de Óbidos e da Usseira, é aqui que está a mãe d’água, três quilómetros que custaram 32 mil cruzados à Rainha D. Catarina de Áustria
Museu Municipal, fundando em 1970. Foi a casa onde viveu pintor Eduardo Malta, que a cumulou de azulejaria e obras de arte. A coleção de arte testemunha a ação das colegiadas religiosas e o enriquecimento cultural marcado por encomendas a alguns dos maiores nomes da Arte Portuguesa. Destaca-se a coleção de pintura dos séculos XVI e XVII, onde constam obras de André Reinoso e Josefa d’Óbidos.
Escultura de São João Baptista
Uma natureza morta assinada por Josefa d’Óbidos
Lamentação sobre o Cristo morto, por Josefa d’Óbidos
Um belíssimo retrato
A mulher de Eduardo Malta pintada pelo artista
Crucifixo indo-português
Interior da igreja de Santa Maria, foi transformada em Mesquita durante a ocupação dos mouros. O interior é revestido de azulejos atribuídos a Gabriel del Barco. Igreja profusamente decorada com quadros de pintores locais. Os quadros nas paredes atribuem-se ao pintor obidense Baltazar Gomes Figueira (pai de Josefa d’Óbidos). As oito pinturas sobre madeira, no altar-mor, são do pintor, também obidense, João da Costa.
No altar colateral sul, há 5 pinturas assinadas por Josefa d’Óbidos, veja-se este pormenor.
Pormenor do altar-mor, quadros de Baltazar Gomes Figueira
Túmulo de D. João de Noronha, alcaide de mor de Óbidos, obra executada em pedra de Ançã, este túmulo é considerado das primeiras e mais belas obras do Renascimento Português. A autoria do trabalho é polémica, há quem o atribuía a João de Ruão ou a Nicolau de Chanterenne
Pormenores do teto da igreja de Santa Maria de Óbidos

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22970: Os nossos seres, saberes e lazeres (490): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (29): Numa Lisboa de fronteira, soluções ousadas com gente saloia e corrida de touros (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22989: Notas de leitura (1418A): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março 2019:

Queridos amigos,
Não é a primeira vez que aqui se faz referência à investigação deste universitário norte-americano. Este seu trabalho está datado de 1991, contempla uma gama de entrevistas que ele efetuou em 1975 na Guiné-Bissau e recomenda-se vivamente, para quem pretenda estudar aprofundadamente este período da luta armada, os comentários que apresenta na sua bibliografia, extensíssima, ao tempo. Há factos apresentados que investigação posterior, é essa uma das grandes dívidas que temos ao trabalho de Julião Soares Sousa, demonstradamente mitificados: a fundação do PAI em 1956 (quando a sua primeira referência em público surge no início de 1960), a ligação direta entre o PAIGC e o massacre do Pidjiquiti, nunca se provou que os Manjacos sublevados tivessem recebido qualquer influência deste partido. É notório que ainda existe uma forte mitologia, a despeito do trabalho de investigação que põe a nu acontecimentos e situações que foram forjadas ao serviço da hagiografia. Acontece assim em muitos atos fundadores.

Um abraço do
Mário



A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1)

Beja Santos

“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.

Chilcote trata sempre Amílcar Cabral como um dos mais importantes pensadores do terceiro mundo, resume o seu percurso curricular (Cabral e o contexto histórico), socorre-se das impressões de outros biógrafos como Patrick Chabal, Gérard Chaliand, Basil Davidson, Mário de Andrade ou Joshua Forrest, o mundo universitário de Lisboa, os seus trabalhos como agrónomo e podólogo, a formação da teoria revolucionária, o diplomata, o seu legado; dedica um capítulo à teoria do colonialismo e imperialismo, disseca as considerações de Cabral sobre a situação colonial da Guiné Portuguesa, o estado de desenvolvimento das forças produtivas; a teoria do nacionalismo revolucionário e da libertação nacional, segundo Chilcote, é original em Cabral, este era conhecedor das teses marxistas-leninistas, estava plenamente informado das diferentes correntes do nacionalismo revolucionário emergentes dos anos 1950 para os anos 1960, o seu pensamento levou-o a desenvolver a cultura popular como acompanhante obrigatório da luta de libertação nacional, é nessa observação que ele vai intuir uma teoria de libertação nacional com dados inovadores, num território sem proletariado, a chamada luta de classes forjada pelas correntes marxistas, pertenceria a vanguarda da libertação a uma pequena burguesia que em determinada fase do processo revolucionário teria que decidir um suicídio de classe, optando pela doutrina revolucionária, ou resignando-se a ser um apêndice do neocolonialismo; daí outra vertente do seu pensamento, o que ele considerava ser uma teoria de classe e luta de classes.

Partindo do conceito consagrado de que classe e luta de classes eram em si o resultado do desenvolvimento das forças produtivas em conjugação com o sistema de propriedade dos meios de produção, Cabral questionou se a imensíssima massa humana dependente da agricultura estaria habilitada a tomar como eixo mobilizador a luta de classes quando, como no caso específico da Guiné, o colonizador não possuía terra, nem indústria, era um instrumento dentro de uma colónia-feitoria, assim havia que repensar a conceção de classe e luta de classes, e de novo o líder do PAIGC enfatizava o caráter marginal dessa pequena burguesia e da sua decisão histórica de se mobilizar, ou não, para as transformações revolucionárias; também nesse contexto, Cabral tomava como objeto de estudo as divisões e contradições existentes na sociedade guineense, os grupos étnicos, a essência religiosa, as chefaturas, as alianças ou hostilidades ao poder colonial, as formas primitivas das forças produtivas, a apropriação dos meios de produção e a ausência da luta de classes, daí passando para a importância da agricultura comunitária em oposição aos processos agrários feudais, considerando, no topo de todas estas reflexões a instituição de um modelo socialista que teria como sigla libertadora do jugo colonial “a unidade e a luta”, uma unidade étnica, conjugando os povos guineense e cabo-verdiano; neste processo de análise, Chilcote procede a uma curta síntese, convocando um conjunto de autores que estudaram a realidade socioeconómica da Guiné sobre as alianças que Cabral pôde instituir e o processo ideológico em que organizou a vanguarda revolucionária.

Assim se chega à explanação de como Cabral forjou uma teoria de Estado e desenvolvimento, Chilcote destaca que Cabral não deixou uma teoria consumada, ia-se formando por etapas, nas áreas libertadas foram erguidas escolas, infraestruturas de saúde, armazéns do povo, tudo numa lógica de desenvolvimento autocentrado, montou-se um sistema de justiça popular e esquemas de participação na vida comunitária, logo através da figura dos comités de tabanca. Para solidificar a emergência do Estado, dotou-o de estruturas políticas, caso do Conselho Superior de Luta, em determinada fase considerou que estavam criadas as condições para abalar a presença portuguesa através de uma consulta popular para chegar à independência e aprovação de uma constituição. Observa Chilcote que Cabral dava grande importância à tríade dirigente, à organização militar com as FARP à frente mas custodiadas por comissários políticos. Cabral considerava que o órgão supremo do povo seria a Assembleia Nacional Popular, esta seria a trave-mestra do novo Estado.

Chilcote analisa seguidamente a transição da luta de libertação para a construção do Estado e os problemas postos quanto ao modelo de desenvolvimento, optar pela agricultura, pela descentralização política ou, pelo contrário, enveredar pelo desenvolvimento industrial, concentrar o poder em Bissau, confiar em pleno nos projetos dos doadores. Sabe-se qual o modelo de desenvolvimento centralizador seguido pelos dirigentes do PAIGC e o seu falhanço, as tensões entre guineenses e cabo-verdianos que tiveram o seu desfecho no golpe de 14 de novembro de 1980.

Em jeito de conclusão, o investigador norte-americano resume os tópicos para futuras discussões sobre o pensamento e obra de Cabral, tópicos esses que ele considera os cinco principais em análise: o líder do PAIGC entendia que a luta pela independência da Guiné-Bissau ajudaria a suprimir a História interrompida do país, essa luta contra o colonialismo era o dínamo da História contemporânea, a matriz da identidade do Estado emergente; Cabral tinha uma visão singular de um socialismo, a sua teoria de nacionalismo revolucionário e libertação nacional fazia o entrosamento entre a cultura e a condição económica, acreditava que todo aquele sacrifício e dedicação pela causa da independência induziriam uma nova consciência em todas as linhas do progresso; a teoria da luta de classes das correntes do marxismo ortodoxo não eram por ele consideradas aceitáveis, ele identificou várias classes sociais, refletiu sobre as divisões e contradições existentes na sociedade guineense e nunca se iludiu com a noção de proletariado, reservou o papel de vanguarda para uma pequena burguesia sobre a qual teceu uma terrível consideração: ou se “suicidaria” ou aderiria ao nacionalismo revolucionário, deixou em muitos escritos uma organização de participação e confiava plenamente que o Estado independente iria absorver ou assimilar as novas estruturas das zonas libertadas.

Ronald Chilcote considera que tudo quanto se vier a estudar sobre o pensamento e a ação de Cabral não pode pôr de parte dois factos históricos: ele foi, acima de toda a luta pela libertação na Guiné, o pensador que dotou o novo país de um quadro organizativo e acreditava plenamente que mesmo com a modéstia de recursos a Guiné pudesse caminhar, também com a ajuda internacional, para novas sendas do progresso, com grandes transformações da economia agrícola; Cabral manejou, graças a uma análise independente do marxismo por uma fórmula nova que pretendia imprimir à situação revolucionária que ele sonhava para a Guiné-Bissau, a despeito de certas cedências ao marxismo ortodoxo.

O estudo de Chilcote inclui um importante apêndice e uma bibliografia anotada que merecem ser verificados, o que se fará seguidamente.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22977: Notas de leitura (1418): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte III: a influência dos "calafonas"

Guiné 61/74 - P22988: O segredo de... (36): Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74): louvado pelo comando do BART 3873, por, no decorrer da Acção Guarida 18, em 3/2/1973, em Ponta Varela, "ter a peito descoberto enfrentado o IN, abatendo um guerrilheiro"


Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); nosso coeditor, ea viver, até há alguns dias atrás em Abu Dhabi, Emiratos Árabes Unidos. Volta a Portugal por um período mínimo de seis meses.


Louvor


CTIG > Bambadinca > BART 3873 > 24 de outubro de 1973 > Ordem de serviço nº 251 > 


"Louvo o Fur Mil 13839871 Jorge Alves de Araújo, da CART 3494, por durante o desenrolar da Acção Guarida 18, realizada em 3 de fevereiro de 1973, no contacto havido com o IN, ter a peito descoberto enfrentado o IN, abatendo um guerrilheiro.

Pela sua decisão revelou dotes de coragem, pelo que é digno de público louvor."



1. Comentário do editor LG: 

O nosso querido amigo, camarada e coeditor  Jorge Araújo nunca fez gala, que eu saiba, deste louvor... que no tempo do gen Arnaldo Schulz daria, por certo, lugar à atribuição  de uma cruz de guerra... (Vd. poste P13844) (*)

Refere ele, mais abaixo, que "só após o falecimento da minha mãe, em 27Dez2015, é que tomei conhecimento da Ordem de Serviço n.º 251, do meu Batalhão, de 24 de outubro de 1973. Este documento foi encontrado no vasto espólio que me deixou (estou a falar de papel), e  ao qual designei, na altura, como o 'Baú de Minha Mãe' "... 

Ele não faz questão, mas eu faço, de partilhar este "segredo" na série que criámos há uns largos anos, em 30 de novembro de 2008,  "O segredo de...".  (**) 

(Tem ainda poucos postes, umas escassas três dezenas e meia, mas começou muito bem com um espantosa revelação do Mário Dias,  vd. poste P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações.)



CTIG > Bambadinca > BART 3873 > 24 de outubro de 1973 > Ordem de serviço nº 251 > 


Louvor atribuído o Cap Mil Inf José António de Campos Simão, da CCAÇ 12: "... por sendo comandante daquela CCaç, demonstrou capacidafr de comando, iniciativa e espírito de sacrifício, depois que a sua Companhia foi transferida para o Xime, passando de uma situação de intervenção para outra em que ficou responsável or uma zona de acção, que é a mais difícil do sector do Batalhão.

"Depis de um período bastante longo de adaptação à nova situação, a Companhia está agora a percorrer áreas de refúgio do IN, de muito difícil acesso. Pela competência demosntrada no comando da sua Companhia, é o Capitão Simão merecedor de ser galardoado com público louvor".




CTIG > Bambadinca > BART 3873 > 24 de outubro de 1973 > Ordem de serviço nº 251



2. Comentário de Jorge Araujo ao poste P22963 (***) 


Pois é, camarada António Duarte: há factos da nossa vida (de todos nós) que o tempo não consegue apagar... e então os da guerra... jamais!

Antes de mais, quero dizer-te, assim como ao colectivo da Tabanca, que deixei de dirigir a Tabanca dos Emirados desde a passada 6.ª feira, para recuperar o cargo na Tabanca do Pragal (Almada). Foram seis meses lá, e agora seis meses cá.

Quanto ao tema de hoje, que recuperas com grande oportunidade, sempre te digo que para mim não é uma efeméride, nem duas, mas sim três. Ou seja, foram as "cenas" da Acção Guarida 18, depois a viagem para Bafatá e, depois, o início do 2.º período de férias na metrópole. Foram muitas emoções em pouco tempo.

Ainda ontem, dia 2Fev2022, em contacto telefónico com o meu/nosso camarada Carneiro (ex-Alf Mil de Operações Especiais da minha CART 3494) recordámos o episódio ocorrido em 3Fev1973, na região da Ponta Varela. Ele já não participou nas últimas actividades efectuadas pela 3494, no Xime, devido ao facto de ter sido nomeado para as "africanas", tal como aconteceu com o camarada Joaquim Mexia Alves (ex-Alf Mil de Operações Especiais da CART 3492).

Sobre o facto de ter estado no "frente-a-frente" (ao virar da esquina), o resultado do "encontro" deu lugar a um louvor atribuído pelo nosso Cmdt do BART 3873, TCor Tiago Martins (1919-1992), publicado em 24 de Outubro do mesmo ano, isto é, quase nove meses depois da ocorrência.

Como curiosidade, só após o falecimento da minha mãe, em 27Dez2015, é que tomei conhecimento da Ordem de Serviço n.º 251, do meu Batalhão, com a data indicada anteriormente. Este documento foi encontrado no vasto espólio que me deixou (estou a falar de papel) ao qual designei, na altura, como o «Baú de Minha Mãe».

Para completar este quadro de memórias, com quarenta e nove anos, vou enviar ao camarada Luís Graça, por correio interno, o documento supra, onde consta, também, um louvor atribuído ao Cap Mil Inf José António de Campos Simão, da CCAÇ 12, que agora recordaste.

Para ti e para o colectivo da Tabanca, envio um forte abraço de amizade.

Saúde.
Jorge Araújo
3 de fevereiro de 2022 às 22:45 


3. Mensagem do Jorge Araújo:

Data - quinta, 3/02/2022, 23:27 
Assunto - Efeméride com 49 anos -  03Fev7193/ 03Fev2022

Caro Luís,

Então como está a tua recuperação? Espero que estejas a registar boas melhoras..

Como referi no comentário ao poste do António Duarte, hoje editado, já regressei à "metrópole",  depois de uma comissão de seis meses lá para as bandas do Médio Oriente... Agora vão ser seis meses cá, até meados de Julho, para "nova corrida; nova viagem", como se diz nos equipamentos de diversão existentes nas feiras.

Vim alguns dias antes de caducar a minha estadia, pois precisava de tomar a 3.ª dose da vacina do Covid, uma vez que lá o não podia fazer. Além disso, havia também a necessidade de resolver alguns assuntos que a distância não o permite.

Tinha a intenção de te dar esta notícia em simultâneo com o envio de mais um texto de "memórias cruzadas"... mas o comentário, por não permitir juntar os documentos que prometi dar conta, fez com que a notícia do meu regresso tivesse de ser sem o texto terminado.

Assim, e para o que entenderes por bem fazer, anexo parte da Ordem de Serviço do BART 3873, relacionada com as ocorrências de que dou conta.

Até breve... fica bem.
Um abraço.
Jorge Araújo.
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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22987: Fauna e flora (19): O grou-coroado ou "ganga" (em crioulo), uma ave que "matou a malvada" a alguns de nós, em tempo da guerra... Está agora ameaçada de extinção.

 

Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O abastecimento das NT era deficiente, pelo que se recorria aos "produtos naturais" da região, neste caso, à caça de aves como a "ganga" (em crioula) ou "grou-coroado" (em portugês) (*).



Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 >  A "ganga" é uma ave que, quando adulta, atinge um metro de comprimento e tem 1,60 metros de envergadura... Infelizmente, é um alvo fácil para os seus predadores (, incluindo os caçadores humanos)... 

Estima-se que a subpopulação da África ocidental ( B. p. pavonina ) tenha diminuído de 15.000-20.000 indivíduos em 1985 para 15.000 indivíduos em 2004... Para saber mais, ver o portal da   IUCN Red List of Threatened Species > Black Crowned Crane.. 



Guiné > Região de Bafatá > Sector L2 > Geba > CART 1690 (1967/69) > Destacamento de Banjara > 1968 > O destacamento não tinha população civil e era defendido por um pelotão da CART 1690. Distava 45 km de Geba. O ataque a Banjara, a 24 de julho de 1968, às 18h00, já aqui foi descrito há 17 anos atrás por A. Marques Lopes.

As instalações que se veem na foto pertenciam à antiga serração do empresário Fausto Teixeira ou Fausto da Silva Teixeira, um dos primeiros militantes comunistas a ser deportado para a Guiné, em 1925, dono de modernas serrações mecânicas aqui, em Fá Mandinga e em Bafatá, a partir de 1928, exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960...

Este destacamento tinha apenas uma coluna de reabastecimento por mês, no máximo, mas chegava a estar mais de 2 meses sem alimentos frescos e sem correio. Não havia população civil, apenas militares. A çaça era um recurso...

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 19. Ilustração de  EA - Ézio Almir) (Com a devida vénia...)


Ganga (crioulo)
Balearica pavonina (Lineu, 1758)
Grou-coroado (português) | N’ghanghu (balanta) | Eghatai (fula)
Comprimento  100 cm | Envergadura 190 cm

Ao contrário das aves apresentadas neste guia, a ganga é rara e localizada. Ocorre nos vales dos principais rios do país, de forma isolada ou em pequenos bandos, frequentando zonas de água doce pouco profunda, incluindo bolanhas. Devido à sua beleza e comportamento é frequentemente capturada e mantida em cativeiro. Está ameaçada de extinção. (**)


Prefácio

Alfredo Simão da Silva
Director-Geral do IBAP

A Guiné-Bissau está entre os dois sítios mais importantes para as aves aquáticas na África Ocidental, recebendo anualmente cerca de um milhão de aves migradoras provenientes da Europa. 

As aves aquáticas migradoras encontram nas zonas intertidais da Guiné-Bissau um ecossistema produtivo e rico em alimento. O Parque Natural dos Tarrafes do Rio Cacheu, com os seus extensos mangais, é exemplo de um destes ecossistemas, razão pela qual foi reconhecido como sítio Ramsar (zona húmida de importância internacional) e como IBA (área importante para as aves). 

A simbiose e interdependência entre as aves e os recursos marinhos estão patentes no Rio Cacheu, sendo as aves um dos indicadores ecológicos mais importantes que certificam a saúde do ecossistema do mangal neste parque.

A paixão crescente e visível pelas aves na Guiné-Bissau iniciou-se nos anos 1980 com a formação dos primeiros quadros nacionais nesse domínio, apoiada por programas e/ou projectos de conservação da natureza e da biodiversidade. Neste âmbito, a contagem mundial das aves aquáticas começou a ser realizada sistematicamente no país e é acompanhada da constituição paulatina de um banco de dados nacional sobre as aves e o reforço de capacidades. 

Entretanto, fruto deste trabalho, foram sendo publicados a nível nacional, regional e internacional, documentos científicos importantes sobre as aves da Guiné-Bissau. A elaboração do presente guia das aves comuns da Guiné-Bissau, enquadra-se exactamente no espírito da estratégia nacional para as áreas protegidas e a conservação da biodiversidade (2014-2020), designadamente, o pilar estratégico monitorização das áreas protegidas, conhecimento e valoração da biodiversidade e dos serviços dos ecossistemas, e divulgação e sensibilização.

Este livro, dirigido sobretudo às acções de educação ambiental e à formação de jovens quadros no domínio da avifauna, é também um excelente manual de comunicação e de campo útil para outros actores. Este guia vai permitir aos amantes da natureza conhecerem melhor uma boa parte das aves que ocorrem nas áreas protegidas da Guiné-Bissau contribuindo para o reforço do conhecimento das espécies de aves no país.

Efectivamente, este pequeno guia é produto também da recolha e da sistematização de informação realizada desde há alguns anos a esta parte em diversas áreas protegidas. Por outro lado, é também um subsídio concreto para que a Guiné-Bissau possa dispor no futuro de uma publicação científica e mais completa sobre a avifauna. Esta ambição faz parte dos grandes desafios a médio prazo do Departamento de Monitoria e Conservação da Biodiversidade do Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas (IBAP).
 
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 9 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22983: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte IV: A morte da ave-real mensageira, que já não canta, no triângulo de vida de Canhánima, Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti! (... "A árvore da vida floriu!")

Guiné 61/74 - P22986: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXVII: Castro Laboreiro, Parque Nacional da Peneda-Gerês







Portugal > Parque Nacional da Peneda - Gerês > Castro Laboreiro, s/d. Texyo e fotos envaidos em 20/9/2021

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo", da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74. (*)




António Graça de Abreu


Escritor e docente universitário, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem já três centenas de referências no blogue.



Castro Laboreiro, Portugal



Maravilhas à solta na extrema da “ditosa Pátria”, onde o Minho acaba e a Galiza se desdobra.

Castro Laboreiro, os montes suspensos no céu, enraizados na terra, as ruínas do velhíssimo castelo. A magia castreja, espigueiros e moinhos, fornos comunitários e pontes medievais sobre ribeiros eternos saltitando sobre a penedia. Carvalhos e castanheiros, as cabras e as gentes, as vacas e a transumância, as pedras e o rolar do tempo. Para encantar o palato, iguarias de espantar, cabrito serrano, bacalhau com broa, vitelinha assada. Insinuante, na berma da estrada, um cachorrinho castro-laborense, os olhos irradiando ternura, saúda o viajante.

Um passeio largo em volta da aldeia. Ar puro e intensos perfumes enovelando-se nos caminhos. Depois das viagens por tanto mundo, a graça serena de fruir o meu país. A meu lado, a minha amiga rescende entre lírios selvagens, urze e glicínias brancas. A fantasmagoria de existir, circunspecto e exaltante.

Envelheço, o coração cansado ao lado da menina, senhora minha companheira, ilustração excelente de sete sinuosos lustros de vida. Um beijo, na montanha verde, inóspita e afectuosa, um abraço com as cores da terra e do céu. Rejuvenesço ainda, cada dia que passa.

António Graça de Abreu

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Guiné 61/74 - P22985: Fichas de unidades (24): 26ª CCmds (Bula, Teixeira Pinto e Bissau, 1970/71)


Guiné > Região de Cacheu > Teixeira Pinto > 35ª CCmds (1971/73) > O fur mil cmd Ramiro Jesus com um "djubi",  o "Caboiana", cuja mãe morreu, vítima de uma emboscada das NT, e que, tendo ficado órfão,  foi resgatado pelos militares da 26ª CCmds (Teixeira Pinto e Bula, 1970/71). Acabou por ser criado no quartel e tornar-se a mascote da companhia... No fim da comissão, a 26ª CCmds entregou o miúdo aos cuidado dos periquitos, a 35ª CCmds. (*)

Foto (e legenda): © Ramiro Jesus (2022).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Ficha de unidade: 26ª Companhia de Comandos (**)

Identificação: 26ª CCmds

Unidade Mob: CIOE - Lamego

Cmdt: Cap Inf Cmd Alberto Freire de Matos

Partida: Embarque em 25Mar70; desembarque em 31Mar70 | Regresso: Embarque em 27Dez71

Síntese da Actividade Operacional


Após o desembarque, deslocou-se em 06Abr70 para Bula, onde iniciou o treino operacional com a 16." CCmds, de 07 a 29Abr70, deslocando-se seguidamente para Teixeira Pinto, a fim de realizar operações nas regiões de Peconha, Catum e Belenguerez, ficando depois atribuída ao CAOP (depois CAOP 1), como força de intervenção e reserva daquele agrupamento.


 Nesta situação tomou parte em diversas operações realizadas nas regiões de Churo-Caboiana, Bachile, Burné, Churobrique e Belenguerez, entre outras, com destaque para a operação "Relâmpago Gigante".

De 06 a 10Dez70, foi deslocada para Bula, a fim de reforçar o BCaç 2928, com vista à realização de operações na região de Ponate, após o que regressou a Teixeira Pinto, a fim de colaborar na segurança afastada dos trabalhos da estrada Teixeira Pinto-Cacheu e na realização de várias operações naquela área.

Em 27Jun71, recolheu, transitoriamente, a Bissau para um período de descanso, após o que voltou para Teixeira Pinto, de novo atribuída ao CAOP 1, com vista à realização de operações nas regiões de Ponta Costa, Belenguerez e Burné e ainda na colaboração na segurança e protecção aos trabalhos da estrada Teixeira Pinto-Cacheu.

Em 14Dez71, recolheu a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.


Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 91 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág.533. (Com a devida vénia...).


2. Operação Relâmpago Gigante - 16 e 170ut1970

Um golpe de mão/emboscada foi realizado na região de Tecanhe - Barme - Balem, CAOP 1, por dois Gr Comb das 26ª CCmds, 27ª CCmds e DFE 3.

Detectada uma arrecadação na região de S. Domingos, sendo recolhido o seguinte material:

1 espingarda "Mauser"
1 pistola metralhadora "PPSH"
1 cano de espingarda "Mosin-Nagant"
1 aparelho de pontaria de canhão s/r "B-10"
1 aparelho de pontaria de mort 8,2 cm
2 canos metralhadora pesada
8 carregadores para metr "PPSH"
2 carregadores metralhadora ligeira  "Degtyarev"
3 carregadores metralhadora ligeira "M-52"
9 minas A/P
2 granadas de canhão  s/r  7,5 cm
1 granada de canhão s/r  B-10, 
8 granadas de morteiro 60 mm
1 granada de LGFog 8,9 cm
3 granadas de LGFog  "RPG-2"
31 espoletas diversas
6 cargas suplementares para mort 82 mm
6 cargas propulsoras LGFog"RPG-2"
100 disparadores diversos
126 cartuchos propulsores para mort 82 mm
95 detonadores
auscultador
1 chave Morse
3 baterias para rádio
diverso material rádio e sanitário e documentos vários.

No segundo dia foram abatidos 2 elementos lN e apreendida 1 espingarda "Mauser". Destruídas várias casas junto dum campo cultivado.

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 2. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015, pág. 503. (Com a devida vénia...).


3. Não temos qualquer representante da 26ª CCmds na nossa Tabanca Grande. Há apenas 5 descritores.  
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de  9 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22980: Blogoterapia (301): Que será feito do "Caboiana", o menino órfão que deixámos em Teixeira Pinto? (Ramiro Jesus, Fur Mil Cmd, 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73)

(**) Último poste da série > 5 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22879: Fichas de unidades (23): BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), CCAÇ 3398 (Buba), CCAÇ 3399 (Aldeia Formosa), CCAÇ 3400 (Nhala)

Guiné 61/74 - P22984: Parabéns a você (2035): José Brás, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22978: Parabéns a você (2034): Constantino Neves, ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BCAÇ 2893 (Nova Lamego, 1969/71)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22983: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte IV: A morte da ave-real mensageira, que já não canta, no triângulo de vida de Canhánima, Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti! (... "A árvore da vida floriu!")



Guiné > Guoleghal, a ave peralta do conto de Canhánima ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina),  
conhecido na Guiné como ganga...Em inglês, "Black Crowned-Crane".

Ganga (crioulo)
Balearica pavonina
Grou-coroado (português), N’ghanghu (balanta), Eghatai (fula)
Comp 100 cm | Env 190 cm

Ao contrário das aves apresentadas neste guia, a ganga é rara e localizada. Ocorre nos vales dos principais rios do país, de forma isolada ou em pequenos bandos, frequentando zonas de água doce pouco profunda, incluindo bolanhas. Devido à sua beleza e comportamento é frequentemente capturada e mantida em cativeiro. Está ameaçada de extinção.

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 19).


Foto (e legenda): © Armando Pires (2010).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 



Cherno Baldé > Com cerca de 19/20 anos, em 1989, em Kiev,  na Ucrânia, que então integrava a antiga URSS. Recorde-se que, ainda criança, a família deslocou-se de Canhámina para Fajonquito, em 1968, onde o pai era empregado da Casa Ultramarina.  Até à independênxia, passava os dias enfiado no quartel de Fajonquito. Aqui  aprendeu as primeiras letras.  Sairá depois para Bafatá, onde fez o ensino secundário. Entre 1986 e 1989, foi estudante universitário, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia (1986-1989). Na sequência da guerra civil que estlou na Guiné, em 7 de junho de 1998, opondo Ansumane Mané e 'Nino' Vieira (e seus aliados senegaleses), o Cherno Balde e a família refugiarm-se em Fajinquito. Uma parte dos textos que temos vindo a republicar foram escritos "durante o periodo que passei em Fajonquito a quando do conflito politico militar de Junho 98. O regresso forçado a minha terra fez revivar a memória do passado."


Comentário do editor LG: 

Cherno, à medida que vou lendo e relendo as tuas memórias deste período de 1974/75,  elaboradas numa escrita tão elegante quanto, ao mesmo tempo,   dramático (pelas sombras negras que evocas e que atravessam a história da tua Pátria, durante muito tempo - para ti, menino e moço - Sancorlã e o seu coração vital, Fajonquito / Canhámina), vou-me dando conta que o deserto do Sahará, física e simbolicamente,  vai progressivamente tomando conta da África negra outrora subsahariana (e, a norte, claro, o sul do mediterrâneo, Espanha, Portugal)... E a tua Canhámina,  r0deada de sagrados poilões, e embora protegida durante a guerra colonial por "forças" que tu chamas misteriosas, acaba por sucumbir, em 1974/75 pela maléfica conjugação da acção dos homens e da natureza... É o luto da tua infância perdida, que fizeste, ou que ainda estás a fazer ou, se calhar, que nunca chegarás a fazer...

Há algo de profundamente pungente (, e que nos amarfanha o coração),  nestes teus textos quando falas desse mundo perdido da tua infância, e que bem pode ser sintetizado  pela expressão "Adeus, Fajonquito"...



1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte IV (*)


(ix) Gueloghal ou a ave real mas também mensageira

Ainda hoje, a primeira coisa que nos chama a atenção quando visitamos a localidade de Canhámina é a sua mata de poilões bem no centro da aldeia. Ė impressionante.

Contam que, em tempos idos, quando a relação dos homens com a natureza ainda era muito próxima e viva, aqui habitava uma miríade de aves de diferentes espécies e a sua vozearia era audível a quilómetros de distância. A mais importante, dentro do imaginário colectivo era, sem dúvida, a Gueloghal ou ave real, cuja presença testemunhava a sacralidade e proeminência do lugar no contexto do mundo espiritual dos homens da época, onde tudo era importante e tudo fazia sentido.

- Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti ! Maudhô yannô to dourôh, banenguél wilti ! Si bhô uri men ganda, banenguél wilti ! Si bo may men ganda, banenguél wilti … (1)

A Gueloghal, para além de se distinguir pela sua beleza e graciosidade que lhe valeram o epíteto de ave real, também, era conhecida como ave mensageira, dotada de capacidades de transportar mensagens de partes incertas e/ou de revelar aos homens, acontecimentos vindouros. A sua presença nesse lugar misterioso se revestia de uma auréola simbólica e ancestral de confiança na probabilidade de uma vida de paz e tranquilidade. Não se deve admirar muito pois, todos os povos que chegaram até aqui, vindos do interior do continente, sem excepção, vieram na vã esperança de encontrar a paz e a tranquilidade a que ansiavam.


(x) Canhánima. capital do regulado de Sancorlã, parte do reino de Firdu, fundado por Alfa Moló


Quem terá sido o primeiro habitante de Canhámina? Uma pergunta difícil de responder porquanto, os actuais habitantes de Sancorlã seriam capazes de jurar, a pés juntos, que foram os seus antepassados e com provas provadas dentro do esquema mitológico habitual do tipo: “Era uma vez, a família de caçadores do grupo dos nossos antepassados que, após um longo percurso, em perseguição de um animal de caça, acabaram por desembocar neste local milagroso…”

O que, porém, não deverá suscitar muita controvérsia, é o facto de que estas paragens já eram habitadas quando os Fulbhé (fulas) chegaram com as suas manadas de gado, vindos de Macina (Mali), de Tekrur (Senegal) ou Futa-Djalon (Guiné-Conacri).

Conta-se que, no seu périplo pela região na primeira metade do século XIX, El-Adj Omar, imperador do Sudão, teria passado por aqui a caminho de Futa-Djalon acompanhado do seu djatigui (2) e futuro rei de Firdu, Alfa Moló a quem ele teria dado todas as terras situadas entre as bacias dos rios Gâmbia e Geba, mais concretamente até ao local designado Dandum (Dandum Cossará?), à condição que as pudesse retirar aos “infiéis” reis Soninquês, claro. Despediram-se após ter recebido das mãos do grande homem de letras a promessa de que a sua aventura seria coroada de êxito.

De regresso a casa, Alfa Moló convocou os grandes de entre os Fulbhé [, fulas,] e disse-lhes:

- Como todos sabem, desde que vivemos entre os Soninquês [ou Saracolés], não somos mais os donos das nossas vacas, das nossas ovelhas nem das nossas próprias mulheres, por isso, vamos combatê-los e acabar com os seus abusos de poder.

Os grandes de entre os Fulbhé após terem escutado e, cheios de medo, responderam:

- Nós não vamos combater os Soninquês e tão pouco iremos ajudar aquele que o irá fazer.

Então o Alfa Moló levantou-se em toda a sua altura e, sacudindo o fundilho das calças, disse a frase que ficaria para sempre gravada nos anais da história épica do reino de Firdu:

- Se não me ajudarem a combatê-los, então ajudar-me-ão a fugir.

E foi assim que tudo começou, Alfa Moló e os seus apoiantes atacaram os Soninquês e, com o apoio decisivo dos Almamis de Futa-Djalon, acabariam por conquistar a região e instalar o reino de Firdu (Fuladu), repartido em pequenos regulados entre os quais o de Sancorlã que ele confiou aos seus aliados locais (Samba Shábu?) e que escolheram para capital a localidade de Canhámina. (3).


(xi) O sagrado triângulo da vida de Sancorlã / Canhánima


Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana, nada acontece por acaso, tudo se justifica e se fundamenta em fórmulas simples e ao mesmo tempo complexas, e neste caso concreto de Canhámina / Sancorlã, conta-se que a origem da força e do poder local se devia à conjunção de determinados factores de ordem mística e que, por conseguinte, a perda daquela força e do poder, verificada mais tarde (1974), se deveu a violação do princípio regulador do equilíbrio ou pacto inicial estabelecido, que começou com a penetração de elementos estranhos ao meio, entrando nesse leque tudo o que veio a ligar-se com o processo da dominação colonial, da submissão e da penetração do sistema mercantilista da produção e comercialização (borracha, coconote, amendoim etc.); de elementos novos de sujeição, de opressão e alienação cultural e espiritual que se lhe seguiram os passos, onde os impostos de capitação e a balança dos comerciantes eram os elementos mais nocivos dentro do sistema de exploração e empobrecimento das populações, terminando com a entrada silenciosa e criminosa dos guerrilheiros do PAIGC que transformaram o recinto dos poilões num campo de tortura e de exterminação dos próprios filhos de Sancorlã.

Conta-se que, antigamente, da mata de poilões situada no centro de Canhámina, descia uma linha de força para sul até a floresta de palmeiras (surumael), situada nos limites do regulado e no meio da qual se encontrava uma nascente cujas águas abasteciam a população da aldeia, estando ligada, por sua vez, à bolanha, (prolongamento da bacia hidrográfica do rio Farim-Canjambari).

Surumael (matagal) representava o ângulo feminino do triângulo de Canhámina onde se praticavam não só a produção do arroz nas terras baixas mas também todos os rituais femininos ligados a educação e/ou reprodução social (cerimónias de casamento, fanados etc.).

De Surumael, seguindo sempre o percurso da bolanha para poente até à distância de três km, estava situado o terceiro ângulo ou o complexo masculino, Djunkoré, formado, por uma extensa área alagada durante a estação das chuvas e no meio da qual se encontrava um grande lago bem no centro da bolanha.

As populações das aldeias mais próximas e as aves pescadoras vinham aqui encontrar os peixes que subiam com as águas do rio Farim. Também aqui davam de beber as grandes manadas de gado (vacas, ovelhas, cavalos) que faziam a fama da região, acompanhadas de crianças nuas e barulhentas, com a flauta numa mão e a varra noutra.

Na margem esquerda do lago Djunkoré encontrava-se um poilão bem alto e que, durante o período nocturno, irradiava uma luz florescente provocando o efeito bômina (claridade), que era visível a uma grande distância. Djunkoré funcionava como o refúgio dos homens e das aves, onde se praticavam as cerimónias e rituais masculinos. Todas as gerações passadas fizeram-se homens neste espaço mítico e verdejante.

Deste ângulo subia outra linha de retorno à aldeia, formando assim uma espécie de triângulo, o triângulo de vida de Canhámina. O conjunto formava um ambiente natural propício para a vida animal, em particular das aves selvagens. Mas, também constituía o centro da vida económica, social e cultural da aldeia e seus arredores.



Guiné > Região de Bafatá > Sector de Contuboel> Carta de Colina do Norte (1956) > Posição relativa do regulado de Sancorlã, e povoações de Fajonquito (com Canhámima, a leste, na carta de Tendinto, não disponível "on line") e, junto à fronteira com o Senegal, Cambaju e Lenquemembé.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

E, numa escala maior, reproduzindo fielmente o triângulo de Canhámina, a organização social e política do regulado, também, se apoiava em três pilares ou áreas geográficas (diwal): 

  • a área de Canhámina (ângulo sudoeste) (carta de Tendinto, não disponível "on line");
  • a área de Lenquebembé / Cambaju (ângulo noroeste)  (carta de Colina do Norte);
  • e a área de Panambo / Kerwane (ângulo nordeste) [ já no Senegal ou fronteira (?), carta de Tendinto, não disponível "on line" ];

e, cada uma das quais gozando de uma certa autonomia.

Esta divisão administrativa fomentava muitas rivalidades, algumas das quais ainda hoje subsistentes, mas também era factor de concorrência e de dinâmica criativa que permitia manter a necessária coesão social e política assim como a chama guerreira do regulado.

Todavia, a sucessão de Alfa Moló na segunda metade do Séc. XIX, não viria a ser nem bem sucedida e muito menos pacífica, obrigando ao seu sucessor, o intrépido Mussá Moló, a disputar não somente o trono com outros pretendentes dentro da família, como fazer face a pretensões autonomistas dos pequenos regulados em que estava dividido o reino de Fuladu, (com particular incidência naqueles cuja liderança era chefiada por Fulas-Forros, antigos suseranos e pouco inclinados a aceitar a vassalagem vis-a-vis dos Fulas-pretos cujo poder representava Mussá Molo), sob o olhar atento dos Almamis de Futa e ainda a presença cautelosa mas insidiosa das potências europeias (os Portugueses a partir de Farim e Geba, e os Franceses a partir do Senegal) que cobiçavam a região meridional do Firdu. (4).


(xii) Os portugueses e os seus aliados fulas

Nestas circunstâncias, os pequenos regulados Fulbhé do nordeste e leste Guineense tinham que escolher entre submeter-se à tirania de Mussá Molo, apoiado subrepticiamente pelos Franceses, ou aliar-se aos Portugueses. Assim nasceu a aliança de interesses entre os Fulas e Portugueses que, tudo somado, pareciam distantes e sem quaisquer interesses em comum.

Porém, esta aliança fortuita não estava isenta de algumas contradições. Os Fulas, de um lado, precisavam dos Portugueses para se proteger das ameaças e razias constantes dos homens de Mussá Molo mas, sendo muçulmanos, eram portadores de um inevitável “proselitismo religioso” que estava na base da sua libertação e do seu poder conquistado perante os Soninquês.

Os portugueses, por seu turno, precisavam de aliados no interior onde não conseguiam chegar para fazer valer as suas pretensões para lá do Geba mas, também, tinham na bagagem a Bíblia e o compromisso da salvação de almas perdidas para justificar as suas conquistas de além-mar.

Mas tarde e, sempre que se sentiriam aflitos, os portugueses não hesitariam em recorrer aos seus aliados muçulmanos do interior (Fulas e Mandingas) para reprimir os povos guerreiros “animistas” do litoral Guineense mas, logo que se sentiam minimamente aliviados da pressão, se apressavam a afastá-los destas zonas para não espalhar a sua indesejada influência religiosa.

Com Teixeira Pinto e seus auxiliares muçulmanos, os portugueses fecharam o capítulo da conquista e pacificação (?) do território da Guiné no início do século XX, impondo de seguida, a todos os habitantes da Guiné, a obrigação do pagamento de impostos. Com estes, veio a necessidade de produzir excedentes comerciais abrindo, desta forma, uma porta de entrada a produção do amendoim que, juntando-se a colecta da borracha, se transformariam, durante muito tempo, nas actividades obrigatórias de toda a região do interior.

Com o florescimento do comércio nos anos 40 e 50, houve a necessidade de abrir vias de acesso e de ligação com as zonas portuárias de Farim e Bafatá. As medições feitas determinaram que a estrada tinha que passar no meio da mata de poilões de Canhámina, que seria o ponto de convergência das três estradas (Cambaju ao norte, Bafata ao sul e Farim a Oeste,). 

Esta foi a primeira abertura (ferida) no triângulo de Canhámina, o primeiro sinal inquietante da mudança dos tempos, que abriu as portas para a penetração de elementos estranhos no círculo de vida de Sancorlã.


(xiii) Fajonquito, "guarda-costas" de Canhánima


Com o intuito de preservar Canhámina da invasão do novo mundo e das suas consequências inevitáveis, Fajonquito serviu de escoadouro e aldeia satélite para canalizar todos os elementos que não se enquadravam no pacto de equilíbrio do mundo antigo. Foi assim que as casas comerciais que queriam instalar-se em Canhámina, foram empurradas para lá, a três quilómetros a oeste a fim de preservar o triângulo.

Foi assim que, pelas mesmas razões, tanto a escola portuguesa (1964) assim como a primeira companhia de tropas metropolitanas (1965) enviada para reforçar o regulado com o início da luta para a independência, ficaram pouco tempo na aldeia, tendo sido, de seguida, transferidas para Fajonquito. 

Era preciso manter o equilíbrio do pacto, tanto assim que, pese a vontade de o fazer, os guerrilheiros do PAIGC nunca conseguiriam penetrar no triângulo e atacar Canhámina, o coração de Sancorlã, mesmo desguarnecida de tropas. Eram desviados para longe por uma força misteriosa.


Mas, nem tudo correu tão bem como se pensava, e o mal já estava feito e pouco a pouco assistir-se-ia ao desmoronar da vitalidade do sistema que vigorara até ali. 

O primeiro sinal de alarme foi a diminuição drástica do barulho das aves e das chuvas, também. As espécies mais inteligentes simplesmente tinham desaparecido dos poilões de Canhámina, entre as quais a famosa Gueloghal. 

Em seguida, veio um outro alarme do sudoeste com a extinção da luz de Djunkoré e do seu lago que parecia inesgotável. O velho poilão florescente, completado o seu ciclo de vida, tinha cessado as suas actividades de faroleiro para as aves viajantes.

Por fim, as mulheres, alarmadas, vieram informar que os olhos da fonte de Surumael tinham secado e já não corria água da nascente. Também, os macacos (babuínos, pára-quedistas, etc.) que espantavam as crianças no seu interior, já não viviam no matagal. 

Era o fim do pacto de equilíbrio? Parecia incrível, e os olhos virados para Canhámina não encontravam nenhuma resposta. Decididamente, os ventos da história tinham mudado de direcção e com esta viragem, acontecia o fim de um ciclo histórico e, por coincidência, também climático.

(xiv) O fim da aliança dos portugueses com os fulas


Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu…Canjufa…Pirada…Canjadude… Piche…Bafatá…Bambadinca…Farim…Guidaje, tudo.

As milícias, eternas sacrificadas, voluntárias da sua própria desgraça, num repente incompreensível, se pasmaram na vã gesticulação de mãos vazias. Adeus, camaradas, nada se pode fazer, é o virar de uma época. Os tempos mudam e os homens também.

Com a conquista da independência, os guerrilheiros do PAIGC, qual exército de Gengis Cã, silenciosa e furtivamente instalaram-se nos portões de Canhámina bem no centro dos poilões, tecendo paciente e meticulosamente a sua teia de morte, desafiando insolentemente os deuses de Sancorlã, completando a missão histórica que Amílcar Cabral lhes tinha legado: 

“A sociedade fula é do tipo vertical, em cima estão os régulos, no meio os Djilas ambulantes e, em baixo, os camponeses. Entre os vários segmentos sociais, uma coisa os une fortemente, são contra a luta armada…”

Enfraquecida pela guerra que quase esvaziou as suas aldeias, ferida mortal e traiçoeiramente pela abdicação dos seus aliados, Sancorlã não conseguiu reagir atempadamente ao infortúnio que se abateu sobre ela e, em menos de dois anos completou-se a destruição (decapitação) das suas forças vivas e da sua elite dirigente, encurralada, fragilizada e justamente vitimada. 

O mundo aplaudia a Guiné-Bissau independente, pais onde não havia lugar para aqueles que tinham fraquejado. O acordo de Argel, uma quimera e, não se esqueçam: ”Nem toda a gente é do povo”.

(xv) O martirológio dos valorosos fulas, fuzilados, ou apodrecendo nas masmorras do PAIGC, em Bafatá, Bambadinca, Farim


Todos os valorosos que não quiseram pactuar com o novo regime e eram demasiado orgulhosos para fugir dos seus ex-inimigos, entregaram seus peitos às cordas de nylon dos comissários políticos de PAIGC e mais tarde as suas vidas, fazendo a viagem sem regresso para os cárceres de Bafatá e Bambadinca. As justificações teóricas e práticas não faltaram. As festas também. “Páa-nô-uni! Páa nô mamáa… Páa-nô-uni, Pa-nô-mamáá, Panó terráá…”.

Em Fajonquito, ainda continuamos durante muito tempo, a pescar e a nadar no lodo do que restava do rio Farim/Canjambari e, sem pudor, ao sabor da brisa, mudamos também de camisola e hino. Continuamos a pedir as armas mas já não eram contra os canhões mas contra os colonos e seus aliados. Os heróis de mar não tinham aguentado tão bem em terra firme. 

Os peixes também, assim como os ex-soldados, para se adaptarem ao novo clima, se metamorfosearam em coisas pequenas e escuras escondidas na imundície da lama das bolanhas, escorregadios como o sabão chinês que invadiu os nossos mercados.

Alguns realizaram a proeza de, em tempo recorde, arrastando seus bubus brancos, transformar-se em Marabus de esquinas e mesquitas com salmos e cuspo na testa, pedindo a perdão dos nossos pecados colectivos. Outros passaram as fronteiras. Mas, muitos foram os que morreram sufocados nas prisões de Farim, brigando por escassos graus de cereais crus. Os deuses estavam a ouvir? Aláau…akbaar!

Os tempos, verdadeiramente, tinham mudado e nós vivíamos ou melhor sobrevivíamos sem dar por isso. Aconteceu exactamente como no poema ecológico de Júlio Roberto (5):

- Onde se encontra o matagal?... Destruído!
- Onde está a água, o lago e o poilão?... Desapareceram!
- Onde estão os valorosos de Sancorlã?... Morreram!

Bissau, Junho de 2010. (**)
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Notas do autor

(1) Canto das aves mensageiras “Guelodhé” em língua fula: A árvore da vida floriu! Ao velho que tinha visitado as terras altas, informamos: A árvore de vida floriu! Se estiver em vida que nos informem! Se não estiver em vida, que nos elucidem! A árvore da vida floriu de novo!

(2) Djatigui – Anfitrião, palavra de origem incerta utilizada em quase todas as línguas de África do oeste.

(3) Crónicas guerreiras dos reis de Firdu (Fuladu)

(4) Ver René Pélissier: Historia da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegambia. (1841-1936), vol. I e II, Imprensa Universitaria, Editorial estampa, Lisboa, 1989.

(5) Carta do chefe Seattle (Índio) em 1884 ao grande chefe branco de Washington, inserido no poema ecológico de Júlio Roberto

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

8 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

6 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22973: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Os sinais de uma mudança anunciada, os recados vindos do Oio e a delegação que voltou de mãos a abanar

(**) Excertos do poste de 30 de Junho de 2010 >Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã