sábado, 5 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22970: Os nossos seres, saberes e lazeres (490): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (36): Numa Lisboa de fronteira, soluções ousadas com gente saloia e corrida de touros (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Tinha 7 anos quando fui viver no Bairro Social de Alvalade, junto ao Campo Grande, todo o percurso de Entre Campos ao Campo Pequeno, a Avenida 5 de Outubro que acabava num descampado mais tarde ocupado por um colégio e por uma fiada de vivendas, hoje voltadas para a Biblioteca Nacional, as visitas que comecei a fazer à Biblioteca Municipal das Galveias para ler o Cavaleiro Andante, o Mosquito, depois os livros da Biblioteca dos Rapazes, o Júlio Verne e por aí fora, tornaram-me este local familiar. Posso imaginar os problemas postos ao arquiteto para decorar o interior desta estação num território fronteiriço entre a cidade e o campo, assim aconteceu até ao fim da Segunda Guerra Mundial, depois deu-se a explosão da construção para satisfazer novos estratos sociais que emergiram na multiplicidade de serviços que o Estado Novo consentiu. Francisco Simões e a dupla dos arquitetos encontrou soluções engenhosas para representar um quadro de identidade do passado ao presente, todo aquele azul celeste e mármores em policromia acolhem o passageiro e dão-lhe oportunidade, nos minutos de espera, de ir descobrindo a cifra de toda aquela representação humana e animal.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (36):
Numa Lisboa de fronteira, soluções ousadas com gente saloia e corrida de touros


Mário Beja Santos

Aí pelos anos 1990 ampliaram-se várias estações do metro, o Campo Pequeno foi uma delas, coube ao escultor Francisco Simões e aos arquitetos Duarte Nunes Simões e Nunes Simões encontrar soluções plásticas e de remodelação num local marcado por uma praça de touros, com reminiscências de moradias, um entreposto de gados num espaço onde mais tarde se implantou uma Feira Popular, e uma vasta tradição à volta do itinerário saloio que passava por Entre Campos, eram negócios de produtos agrícolas levados da região de Loures para os principais mercados da capital. A solução estética a encontrar, diga-se em abono da verdade, não era óbvia, o Campo Pequeno tem um longo passado de zona de fronteira, durante muito tempo era o limite da zona da Lisboa urbana, depois o Campo Grande, deste ao Campo Pequeno passavam os gados para matança e consumo humano, mas havia outras atividades que Francisco Simões estudou e deu resposta com indiscutível talento.
Lembrou as lavadeiras e aguadeiras (vindas de Caneças), as vendeiras de fruta, de galinhas e ovos, as leiteiras e as floristas. Pelo eixo viário paralelo à Avenida da República, e que ainda na minha infância vi marcado por leitarias, carvoarias, tabernas e outro comércio adequado a servir esta tropa de vendedores, muitos deles vindos da Ribeira ou para lá caminhando a partir do chão saloio, pois bem, Francisco Simões perfilou esta mole humana e procurou resposta para o delicado problema da tauromaquia, num tempo em que já crescia a hostilidade às corridas de touros. Também aqui foi hábil, não há representações do ato de tourear, condiciona toda a representação plástica aos elementos do espetáculo: cavalos, touros, cavaleiros, toureiros; obviamente a imagem da mulher, como alusão erótica que a corrida contém.

Estação de metro Campo Pequeno nos primeiros tempos
Respeitaram-se integralmente os painéis por Maria Keil, os anos passam, são bem conhecidas as limitações que lhe impuseram para revestir a pele destas paredes, a artista encontrou soluções felizes, engalanando com geometria dinâmica e subtis jogos de cor todo este revestimento parietal, que hoje admiramos como clássicos da azulejaria.
Se o objetivo do escultor foi o de conceber uma arte ligada às coisas e às pessoas na confluência do Campo Pequeno, no passado e no presente, tomou opções que permitem considerar o produto final como de extrema engenhosidade: cantaria portuguesa, com o recurso ao polimento ou amaciamento dos mármores. Sabe-se que na questão da sua obra Francisco Simões utilizou diversos mármores: lioz, de Pêro Pinheiro; azulino, de Maceira; encarnadão e amarelo, de Negrais; rosa, de Vila Viçosa; ruivina, de Estremoz; brechas, de Tavira; negro, de Mem Martins; verde, de Viana do Alentejo; cinzento, de Trigaches, Alentejo, e azul da Baía, Brasil. Tudo em escultura figurativa. Impossível ao passageiro não se sentir curioso em procurar descobrir o sentido desta ligação entre o passado e o presente.
Impunha-se igualmente um diálogo permanente entre os arquitetos e o escultor. Os arquitetos não podiam fazer alterações de fundo nas dimensões da estação da autoria do arquiteto Keil do Amaral, havia que intervir naquele espaço alargado com as obras de arte, encontrou-se solução na abobada do cais com um azul-céu que aumentou virtualmente as dimensões e renovou os pavimentos mármore, garantido uma fruição dos painéis envolvendo a corrida dos touros e os seus protagonistas. A parceria arquitetura-escultura foi um sucesso.
(continua)
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Nota do editor

Guiné 61/74 - P22949: Os nossos seres, saberes e lazeres (489): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (28): Faiança polícroma, corda seca, ponta de diamante, o azulejo decorativo visto à lupa (Mário Beja Santos)

5 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Aqui vai um comentário sexista e machista.
Porque é que as mulheres esculpidas estão tão belas e com as "catarinas" tão erguidas?
Estes arquitontos saíram-me melhor do que as encomendas...

Um Ab. e bom domingo
António J. P. Costa

Carlos Vinhal disse...

Pereira da Costa
Quanto mais erguidas as "catarinas" mais profundo é o "vale".
Carlos Vinhal

António J. P. Costa disse...

O vale é por onde escorre a água que se despeja pela cabeça, como se aprendia na recruta.
Nos tergos, a água não corre...
Um Ab.
António Costa

Valdemar Silva disse...

Realmente, a ideia de transformar as saloias em boazonas citadinas a vender alfaces só mesmo para arregalar a vista e ser chamariz do Metro.
E, naquele tempo, a amazona a chatear o marialva deveria ser qualquer coisa pensada em tempos vindouros.
Lá vai mais uma das minhas, trabalhei mais de dez anos a vinte metros daquela estação do Metro. Talvez por estar próxima de um bairro degradado ao Rego, aquela estação era ponto de encontro de bando de carteiristas que "não se conheciam de lado nenhum".

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Se não erro há nesta estação uma Lady Goodiva, em ploter e montada num cavalo (kórror, em ploter!). A ideia deveria ser transformar-nos a todos/as em Peeping Toms. Estes arquitontos são tontos!

Um Ab. e bom dia
António J. P. Costa