sábado, 16 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23435: Frase do dia (4): Quer queiramos, quer não, na Guiné era diferente de Angola e Moçambique... É a minha segunda pátria. Confesso que em Mampatá do Forreá sentia-me em casa e ainda hoje tenho lá "ermons", "sobrinhos" e até "filhos". Para outros sou "avô". Até já me ofereceram uma casa para eu ir para lá viver (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70)

1. Comentário de José Teixeira ao poste P23429 (*):

(i) ex-1.º Cabo Aux Enf,  CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70);

(ii)  um dos históricos do nosso blogue, integrando a Tabanca Grande desde 14/12/2005; 

(iii) autor de diversas séries (Estórias do Zé Teixeira; Crónicas de uma viagem à Guiné-Bissau: de 30 de abril a 12 de maio de 2013: reencontros com o passado; O meu diário); 

(iv) tem 374 referências no nosso blogue: é autor de vários livros, entre contos e poesia, o último dos quais "Palavras que o Vento (E)leva", 2022, 138 pp., edição da Poesia Impossível, a ser lançado em novembro próximo; 

(v) um fundadores e régulos da Tabanca Pequena de Matosinhos; 

(vi) voltou à Guiné-Bissau por diversas vezes; 

(vii) gerente bancário reformado; 

(viii) avô babado de três netos; 

(ix) mora em São Mamede de Infesta)


Quer queiramos, quer não, na Guiné era diferente de Angola e Moçambique. Afirmo isto porque tenho,  entre os meus amigos, como todos nós, gente que andou por essas bandas, com quem tenho dialogado. 

O teatro de guerra era pequeno, tanto quanto a "província". A maior parte dos que estavam no interior tinha o seu aquartelamento com tabancas ao lado, ou, como eu, vivia na própria tabanca. 

As operações, apesar de duras e violentas, eram de curta duração, na maioria dos casos. Alguns de nós, como eu, passávamos muito tempo na tabanca. A população recebia-nos bem -sabia acolher e conviver. 

Confesso que em Mampatá do Forreá sentia-me em casa e ainda hoje tenho lá "ermons" "sobrinhos" e até "filhos". Para outros sou "avô". Até já me ofereceram uma casa para eu ir para lá viver. Todos os dias tenho alguém a pedir-me amizade no FB dizendo-se filho de A, neto de B, etc. De Empada nem tanto porque a tabanca ficava ao lado do quartel e o convívio era menor, mas quando lá estive em 2005, 2011 e 2013 fui reconhecido, bem recebido e mimado.

Quando entrei no barco - O Niassa - para regressar a casa, lembro-me de ter dito cá para mim: "Adeus Guiné para sempre, jamais cá voltarei"... E, passados uns anos, a saudade daquela gente, a beleza daquela terra, começou a atormentar-me. Agora é a minha segunda Pátria.

Ainda há dias, filha do Chefe de tabanca de Mampatá, e creio que à data Régulo do Forreá, esposa do atual Régulo de Contabane, ao chegar a Lisboa, me telefonou para saber com estou e a minha "senhora" e para nos encontrarmos em breve.

Zé Teixeira
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Guiné 61/74 - P23434: Os nossos seres, saberes e lazeres (512): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (59): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Maio de 2022:

Queridos amigos,
Não tinha a veleidade de numa semana percorrer de fio a pavio a minha ilha mágica, condicionei-me a andar a saltitar por localidades da costa sul e a acantonar-me nas Furnas, aqui larguei a âncora. Mas não faltou vontade de rever os Arrifes, em cujo quartel dei duas recrutas. Num outro passeio percorri São Vicente Ferreira e Fenais da Luz, ficara-me a lembrança dos crosses durante as ditas duas recrutas. Aqui ficam as imagens de locais esplendorosos como os Mosteiros e a Lagoa das Furnas, e deixa-se o aviso aos amantes da Natureza que o Parque Terra Nostra, em frondosa primavera, está mais belo do que nunca.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (59):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 4


Mário Beja Santos

São dias conduzidos ao sabor da memória, feita a deambulação por Ponta Delgada, houve lembranças dos primeiros passeios dados, logo uma ida de autocarro até à Lagoa das Sete Cidades, carreira com horário estranho, partiu-se ao despontar da manhã, e só havia regresso a meio da tarde, o mais grave era não se encontrar um sítio para amesendar, houve que pedir de mão estendida a alguém que fizesse uns ovos mexidos com linguiça, o turismo então era miragem fora da cidade, das povoações mais habitadas, havia o Hotel São Pedro e o das Furnas, locais para comer com tradições, o bife do Alcides, uns recantos panorâmicos para saborear as lapas com molho Afonso, e uns passarinhos da Ribeira Grande. Décadas depois, tudo mudara. Tinha saudades dos Mosteiros, daquele mar bravio inextinguível, o dia estava ensolarado, era promissor de águas azuladas, como se confirmou. Na Avenida, subi para o autocarro em direção aos Mosteiros, é aquele belo percurso da costa sul, revi Feteiras, Candelária, Ginetes, tive pena de não ir à Ponta do Escalvado, mas era dos Mosteiros que eu queria matar saudades, como mais tarde irei noutra carreira até João Bom, enfim, havia também lembranças da Bretanha. Saio da viatura e inicio a peregrinação, a beleza do mar e depois os Mosteiros, há grandes mudanças neste mais de meio século, é ponto de turismo, estamos a cerca de 30 km de Ponta Delgada, talvez a Freguesia tenha mais de mil habitantes, deve para aqui haver muita casa secundária, hei de comer um peixinho com alemães, franceses e ingleses à volta. Mas, entretanto, ando de olhar lavado pela ponta dos Mosteiros e a avistar os ilhéus.

Regresso a Ponta Delgada e vou até São Pedro, aproveito para prestar homenagem a Roberto Ivens que aqui nasceu, sigo para a igreja barroca posta em lugar ermo, é um dos mais ricos templos religiosos dos Açores, veja-se aquela talha dourada, a pintura do teto, foi pena ter começado a faltar a luz para não poder captar em todo o seu colorido um belo quadro de Pedro Alexandrino de Carvalho intitulado O Pentecostes.
Sigo agora para a cidade da Lagoa, aqui vim há mais de meio século comprar louça, e aproveito toda e qualquer circunstância para aqui me sentar à mesa, há repastos deliciosos. É nisto que dou com um monumento dedicado aos combatentes, aproximo-me e vejo que há referências de camaradas que tombaram na Guiné. E curvo-me respeitosamente na sua memória.
Impunha-se agora dar uma certa ordem à vagabundagem, já saltitei por aqui e por acolá, vou agora estacionar nas Furnas, enveredo por um passeio pedestre, não chega a 10 km, não tinham conto as saudades de percorrer esta lagoa, começa-se pela subida ao longo da vila, passa-se perto da Poça da Dona Beija, segue-se em direção ao Pico do Milho, a vista que aqui se desfruta é de estalo, segue-se estrada fora em direção à Ermida de Nossa Senhora das Vitórias, uma construção neogótica que se deve a José do Canto, insere-se este templo religioso na Mata Jardim do mesmo José do Canto, temos na berma da estrada a Casa dos Barcos, mais à frente avista-se o Centro de Monitorização e Investigação das Furnas, tem-se a contemplação da maior araucária classificada da Europa. A partir de agora anda-se em caminho de terra plano, é uma esplendorosa passeata até ao Recinto das Caldeiras. Começam a chegar autocarros de turismo, vêm desfrutar a atividade geotermal e ver enterrar ou desenterrar o cozido tradicional preparado com o calor interno do vulcão das Furnas. Aqui faz-se uma pausa, ainda há muito para palmilhar, ganha-se coragem e caminha-se para o Miradouro do Pico do Ferro, há que ter cuidado com o trânsito, encontra-se depois um caminho que nos vai levar ao centro da freguesia, já estou a aguar, quero ir comer o cozido ao Miroma, a primeira vez que aqui estive foi almoço com o Melo Bento e o José Medeiros Ferreira, meteram-me numa boa encrenca, fazer uma conferência no Ateneu Comercial de Ponta Delgada, acabou tudo em bem, houve gente que me quis conhecer, não esqueço um jantar memorável em casa do Dr. Armando Côrtes-Rodrigues, tive direito a receber livros autografados.
Vou passar a tarde no Parque Terra Nostra, que saudades, Deus meu! Vou partilhar convosco algumas das imagens deste cenário idílico, cada vez que o visito o parque deslumbramento é permanente, são constantes as surpresas deste mundo florar com espécies de todo o mundo.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23418: Os nossos seres, saberes e lazeres (511): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (58): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 3 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23433: In Memoriam (439): Morreu o ex-alf mil Pina Cabral (de seu nome completo, Mário Daniel de Pina Cabral Silva), comandante do 4º Gr Comb, CART 2479 / CART 11 (Contuboel e Nova Lamego, 1969/70) (Valdemar Queiroz)


Nazaré > 26 de maio de 2018 > 28º Convívio  da CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus" (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/71) >  O último adeus do Pina Cabral, ex-alf mil da CART 2479. Esteve connosco em Contuboel e Nova Lamego, já não foi para Paúnca, sendo evacuado para Bissau, por motivo de doença.

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2022).. Todos os direitos reservados. [Edição; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lourinhã > Vimeiro > 25º Convívio da CART 2479 / CART 11, "Os Lacraus" (Contuboel, Nova Lamego, Piche, 1969/70) > 30 de maio de 2015 > Da direita para a esquerda, o Pinheiro e o Pina Cabral. 

Segundo informação do Abílio Duarte, ex-fir mil, o Pina Cabral foi o comandante do Umaru Baldé, durante a instrução no CIMC - Centro de Instrução Militar de Contuboel. O Umaru escreveu-lhe diversas cartas. E foi com uma carta de recomendação do Pina Cabral que ele conseguiu chegar a  Portugal em 15/4/1999, para aqui morrer meia dúzia de anos depois. (*)

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz & Renato Monteiro (2015). Todos os direitos rservados (Edição e legendagem complementar:  Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Nelas > Canas de Senhorim > 31 de maio de 2014 > 24º convívio da CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/71) > A referir nesta foto o 4º. Pelotão, com o ex-alf mil Pina Cabral sentado, mais o Valdemar Queiroz; à esquerda o ex-1º cabo Altino, mais o Manuel Macias, o Abílio Duarte Pinto, o Aurélio e a ainda o ex-fur mil trms Silva.

Foto (e legenda): © Abílio Duarte (2014). Todos os direitos reservados. [Edição; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Bissau > Brá > 26 de fevereiro de 1969 > Desfile da CART 2479, com o alf mil Pina Cabral à frente.

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2022).. Todos os direitos reservados. [Edição; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Nova Lamego > CART 2479 / CART 11 (1969/70) > 4º Gr Comb >  Junho de 1970 > Ao centro, na primeira fila, de pé, o alf mil Pina Cabral, de camuflado e cachimbo, à sua esquerda o fur mil  Valdemar Queiroz. A foto é da máquina do Pina Cabral. (**)

Foto (e legenda): © Valdemar Queiroz (2014). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70]

Data - 15 jul 2022, 17:29
Assunto - Morreu o ex-alf mil  Pina Cabral

Luís Graça, é uma chatice.
 
Morreu mais um camarada da guerra na Guiné, o meu 'Alfero Pina' (Foto à direita, em Brá, 26/2/1969). (***)

O Mário Daniel de Pina Cabral Silva, julgo que natural de Vila Nova de Gaia, foi o alferes miliciano comandante do meu Pelotão.

- Queiroz estamos lixados, agora é que chegámos à Guiné - , disse-me ele quando chegou, junto do navio "Timor", uma pequena lancha com os pilotos de barra muito pretos.

Creio que a partir desse momento nosso 'Alfero Pina' começou logo a ficar doente e nunca mais teve melhoras.
 
O 'Alfero Pina', assim tratado pelos soldados fulas, ainda se foi aguentando com umas poucas saídas para o mato, mas eu ou o Macias fomos na maioria das operações os comandanstes. do 4º Pelotão. Ele veio evacuado para Bissau e já não foi connosco para Paunca.

O 'Alfero Pina' era a empatia em pessoa e o cúmulo do miliciano em todo o seu procedimento no tempo que passámos na guerra da Guiné.
 
Costumávamos falar ao telefone e ultimamente telefonava da Casa de Saúde onde estava internado mas mal conseguia falar. Sempre nos demos muito bem, sem, antes, nunca nos termos conhecido.

Grande amante da fotografia, tinha um grande espólio (slides?) da Guiné e dos Encontros Anuais da Companhia.

A última vez que estivemos juntos foi no Encontro Anual da Companhia em 26 de maio de 2018, na Nazaré.

Por favor, um minuto de silêncio! Os meus sentimentos à sua filha e restante família. Havemos de nos encontrar.

Valdemar Queiroz
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Notas do editor:

(*) 27 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16530: (In)citações (101): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte III): E a propósito...o Umaru Baldé e o Luís Cabral que eu conheci... Eventualmente por uma diferença de alguns anos não se encontraram, no "terminal da morte" que era então o Hospital do Barro, em Torres Vedras, a vítima (Umaru Baldé, c. 1963-2004) e o carrasco (Luís Cabral, 1931-2009) (Abílio Duarte, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Piche e Paunca, 1969/70)

(**) Vd. poste de 29 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13666: Fotos à procura de... uma legenda (35): 4º pelotão, CART 11, junho de 1970, Nova Lamego... Uma grande e enigmática foto (Valdemar Queiroz)

(***) Último poste da série > 20 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23371: In Memoriam (438): Mário de Oliveira (1937-2022), ex-alf mil capelão, CCS/BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68), repousa desde 26/2/2022 em campa rasa, a nº 72, do cemitério da Lixa, Felgueiras

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23432: Notas de leitura (1464): “A primeira coluna de Napainor”, por António S. Viana; Editorial Caminho, 1994 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Dir-me-ão que "A primeira coluna de Napainor" tem qualidade, onda imaginativa, está muito bem organizado, mas não nos faz subir ao Sétimo Céu. Respondo que nos faz sempre bem ler romances-testemunho plenos de vibração, relevando aqueles aspetos da intelectualidade dos jovens da nossa geração que sobraçavam Camus à procura de soluções espirituais, isto numa atmosfera de caserna, subindo e descendo ravinas, em pleno Planalto dos Macondes. É um romance que vou guardar, até para homenagem que este alferes disfarçado de romancista presta aos seus soldados, a coragem em revelar-nos todas as suas dores, inquietações e medos. É uma muito boa literatura que vai ficar, tempos virão para joeirar o prestável do imprestável, na literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário



A primeira coluna de Napainor, por António S. Viana (2)

Beja Santos

É com satisfação que vos venho falar de uma obra de ficção passada no teatro moçambicano, “A primeira coluna de Napainor”, por António S. Viana, Editorial Caminho, 1994. Um livro bem urdido, imaginativo na organização, homenageando um punhado de jovens oficiais milicianos, cúmplices nas leituras, alardeando experiência da teia de solidariedades próprias de quem anda pelo mato e convive com os horrores da guerra. É um processo de escrita onde se usa o difuso e o genérico, jamais saberemos qual a unidade militar a que eles pertencem, os locais que percorrem, os nomes dos quartéis por onde estacionam. Fazem operações, entram em aldeias, encontram uma velha esquálida, apanham animais, aqui surge a primeira metáfora do livro, Álvaro empunha a máquina fotográfica, é simbolicamente o guardador do tempo, um autoproposto cronista daquela unidade militar que anda pelo Planalto dos Macondes, surgem os nomes e as alcunhas, o Picareta, o Tristezas, o Padeiro, o Alminhas, o Risota, o Jigas, o Galego, o Pau de Burro. Um dos alferes escreve um diário, ele é adjunto do comandante de operações em Arduz, sabemos que a atividade da guerrilha se intensificou, a resposta é incendiar as palhotas em aldeias de duplo controlo. As relações com os missionários estrangeiros são tensas.

O leitor é facilmente capturado pela vivacidade das descrições:
“Um vulto passou a correr à frente da viatura, procurando desembaraçar-se da arma, praguejando e saltando como se estivesse no circo. Álvaro bateu no vidro e chamou mas o soldado desapareceu no mato. Um cortejo de abelhas seguia-lhe o rasto, como uma cauda monstruosa. Depois, dos lados do Unimog, apareceram mais soldados numa estranha dança sem sentido. Os que traziam panos de tenda ou capas de camuflado procuravam defender-se, embrulhando-se em gestos desajeitados.
Então Álvaro puxou da máquina e começou a disparar. Punha-se de pé, quase encostado ao teto, deitava-se no volante, encostava a objetiva ao vidro e ia disparando, procurando apanhar os homens nas posições mais insólitas, nos ângulos mais difíceis, encobertos, a agredirem-se a si próprios em esgares de dor, de cabeça perdida pedindo água, sumindo-se no mato”.


O sargento Leónidas é outra metáfora, um militarão que não se conforma com o “humanismo” do alferes, chamado Var. Há uma figura viscosa em Arduz, o tenente Baleia, compete-lhe fazer interrogatórios, tem gosto que saibam que é torcionário, diz a quem o quer ouvir que os pretos são preguiçosos, traiçoeiros e mal-agradecidos, só obedecem ao chicote. E chegamos à terceira metáfora, a estranhíssima deserção do alferes Caciz, anda fugitivo e quando é encontrado declama Camões, tudo num despropósito que torna todo aquele encontro e regresso ao quartel uma espantosa peça de absurdo, é um Camões que parece anunciar o todo e qualquer falta de sentido naquelas andanças da guerra. Há cortejos de leprosos, intermináveis deslocações, uma crescida tensão entre Leónidas e Var, cada vez mais dependente do álcool. Há cartas deixadas no mato por gente da Frelimo, continua-se a incendiar aldeamentos, surge um capelão lúbrico, os amigos alferes têm desavenças, trocam palavras ásperas, é numa delas que alguém clama: “Tu querias que um povo como nós, que fez da Índia, da África e do Brasil razões de sobrevivência no corpo e na alma, fechasse essa página da história sem que o absurdo, o sofrimento e até o ridículo se instalassem?”. Inevitavelmente, naquele fim do mundo há o administrador Fonseca que procura decidir a vida de toda a gente e não esconde o desprezo que sente pelos administrados. Anda-se a tentar recuperar populações, é essa a principal missão da Companhia 333, no intervalo faz operações, Var, que tem sonhos endemoninhados, acorda sempre aos gritos nas noites passadas no mato.

E é numa dessas operações que tem lugar um dos mais belos textos deste romance:
“Veio sorrateiro como um gato. Dobrou a beira da encosta para o planalto, escondeu-se atrás de um arbusto e abocanhou o cão, escapando-se ribanceira abaixo. Porém, o Picareta viu-o.
O soldado ouviu um restolhar no capim, logo seguido de um latido abafado. Era o cãozinho do capitão. O rafeiro instalara-se na mercedes à saída de Malavala, sem ninguém dar por ele, e viajara com o pelotão para Napainor. O soldado procurou-o entre os arbustos, intrigado com o que se passava.
Uma espécie de gato grande, com manchas, tinha filado o cão e começava a descer a ravina. O soldado aproximou-se o suficiente para apontar a arma e ferrar-lhe dois tiros. O rugido de dor surpreendeu-o. Mas o bicho desapareceu no horizonte, entre o mato cerrado e os arbustos de pequeno porte. ‘O sacana do gato estava mesmo a pedir’, pensou o Picareta, metendo-se encosta abaixo.

Via as marcas das patas desenhadas no chão molhado da chuva e seguiu-as, tentando enxergar para além da vegetação. O ar da manhã abrira-lhe o apetite, mas decidiu que não ia deixar o gato banquetear-se com o Dick. O capitão havia de lhe agradecer. Dobrou a curva da picada estreita por onde seguia e avistou-o de novo, uns trinta metros à frente, a olhar para trás, antes de desaparecer no mato.
Quando, momentos depois, o leopardo lhe saltou para cima, do meio de uns arbustos, foi apanhado de surpresa, a FN voou-lhe, com uma patada, para dez metros de distância e foi ao chão, empurrado pelo peso do felino. Agarrou-se-lhe ao pescoço com ambas as mãos e apertou quanto pôde, mas o bicho abocanhara-lhe o braço. Sentia-lhe os dentes a furarem-lhe a pele e as garras a arrancarem-lhe o couro-cabeludo. ‘Merda, anda um gajo na guerra para ser morto por um gato’. Conseguiu passar-lhe o braço à volta do pescoço e tentou voltar-se, espetando os seus próprios dentes no cachaço do bicho, enquanto procurava estrangulá-lo.

Já durava há um século aquele combate desigual, quando ouviu tiros mesmo ao pé. O 48 saltava desesperadamente, procurando uma aberta entre homem e leopardo para puxar o gatilho.
- Sai de cima do animal que eu quero disparar – gritou o cabo.
O Picareta ouviu-lhe os berros, mas não largou o pescoço do felino. O 48 já tinha despejado mais de metade do carregador da FN, mas nenhuma bala atingira pontos vitais e temia ficar sem munições antes de conseguir matar o leopardo. Continuou aos saltos e a disparar, sempre que conseguia fazê-lo sem perigo de atingir o companheiro. Conseguiu enfiar-lhe a última bala por entre as goelas. Então a fera largou a presa e levantou a cabeça em busca do novo inimigo antes de, com um rugido fraco, cair inanimado.

O Picareta, sem se aperceber de que o perigo passara, continuava agarrado ao leopardo. A pele da cabeça, ensanguentada, caía-lhe sobre os olhos. O braço direito tinha sulcos de centímetros de fundura, o ombro esquerdo estava descarnado e o camuflado rasgado em vários sítios.
- Era o que faltava que este cabrão deste gato me matasse – gritou para o outro, procurando afastar a cortina de pele e sangue que não o deixava ver”
.

Aproxima-se o fim de um ano de comissão lá naquele duríssimo ponto do planalto. A obra terminará com a narrativa do que se supõe ter sido o drama dos últimos dias de José Bação Leal, morto por negligência médica. Manipulando um encadeamento entre os dramas pessoais que atravessavam aqueles jovens alferes, o desnudamento do inferno da guerra, há episódios coloridos de pincelada etnográfica e etnológica que tornam toda esta trama narrativa um regalo para os olhos. Por isso termina com a descrição de um batuque, primorosos parágrafos:
“Centenas de autóctones dividiam-se em duas filas, cujo vértice concentrava alguns tocadores com timbales, pauzinhos de madeira, tambores e outros instrumentos que, de vez em quando, percutiam. Um deles segurava um pequeno tambor, com uma ressonância aguda, que de vez em quando tocava energicamente, fazendo as filas moverem-se como a cauda de um lagarto.
As mulheres, vestidas com panos vistosos, e alguns homens, com campainhas nos tornozelos, turbantes na cabeça ou penas de aves enroladas nas pernas, coloriam este mapiko (dança maconde) a que os soldados em tronco nu davam um tom insólito. Perto dos tocadores, o barril de vinho era destapado, frequentemente, por dois sipaios, que davam a beber a ‘água de Lisboa’ em duas pequenas conchas. Aguardava-se a chegada do mascarado, que a determinada altura saiu do mato e entrou no meio das filas, correndo atrás das mulheres que fugiram espavoridas.
Vinha vestido com peças de tecido camuflado amarradas com cordas e, ao peito, trazia um conjunto de chocalhos. Da máscara pendiam peças de pano, de tal maneira que não era visível nenhuma parte do seu corpo. Depois de correr atrás das mulheres estacou, entre as duas filas, enquanto a assistência corria de um lado para o outro, gritando e rindo. Depois, subitamente, o tambor pequeno soou e o mascarado encetou uma dança rapidíssima, voltando a imobilizar-se. Fez isto mais quatro ou cinco vezes, antes de desaparecer de novo. Então as duas filas começaram a desfazer-se e toda a gente começou a dançar”
.

Um belíssimo testemunho em literatura de guerra, a vibração de quem andou a combater no áspero Planalto dos Macondes.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23421: Notas de leitura (1463): “A primeira coluna de Napainor”, por António S. Viana; Editorial Caminho, 1994 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23431: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (9): relatório, de 15 pp., da Op Dinossauro Preto (BCP 12, Gadamael, de 2jun a 17jul73) - Parte I


Guiné > Bissau > Bissalanca> BA 12 > BCP 12 (1972/74) > O ex-fur mil paraquedista Manuel Peredo é o primeiro do lado direito, armado de RPG-2, seguido do 2º sargento Carmo Vicente e do furriel mil Fernandes, cabo-verdiano, todos do 4º Gr Comb da CCP 122 / BCP 12 (Bissalanca, 1972/74). Estes dois elementos também estão equipados com armamento capturado ao PAIGC. Em junho de 1973 (e até 25 desse mês, com BCP 12 destacado em Gadamael), o Carmo Vicente era também o cmdt do 4º Gr Comb / CCP 122 (comandado pelo cap pqdt Terras Marques).

O Peredo viveu (ou ainda vive) em França; tem 8 referências no blogue que integra desde 27 de julho de 2008. Disse-nos na altura que foi pela mão do Carmo Vicente que chegou ao nosso blogue. O Carmo Vicente, DFA - Deficiente das Forças Armadasa, é autor de vários livros (incluindo poesia, memórias e contos), com destaque para "Gadamael" (1ª ed., 1982; 2ª ed., revista e aumentada, 1986, edições Caso) (Vd. postes P2915, de 4 de junho de 2008, e P2917, de 5 de junho de 2008).(*)

Foto (e legenda): © Manuel Peredo (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Junho de 1973 > Foto do álbum do Rodrigues Delgadinho (**), na altura fur mil parquedista, da CCP 123 / BCP 12, força de elite que conseguiu travar a ofensiva do PAIGC contra aquele aquartelamento de fronteira. Gadamael faz parte dos três famosos G - Guidaje, Guileje, Gadamael... "Tremeu mas não caiu"...

Foto (e legenda): © Delgadinho Rodrigues / Manuel Peredo (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Manuel Peredo [ ex-fur mil paraquedista, CCP 122 / BCP 12, Bissalanca, 1971/73, vive em França, ou vivia até há uns anos; tem 8 referências no nosso blogue: integra o nosso blogue desde 2008](***)

Data - 7 jul 2022, 19h00
Assunto - Gadamael

Olá, camarada Luís Graça.

O blogue tem relançado o tema dos três G (*) e não me parece que esteja a despertar grande interesse, o que é pena. A mim foi o que mais me marcou dos dois anos de Guiné.

Aqui há anos, quando o tema foi muito comentado e discutido e alguns já estavam saturados de tanto falar sobre Gadamael, também dei o meu contributo. Um dia o João Seabra enviou-me por email o relatório da atividade do meu batalhão, o BCP12, onde tudo está descrito ao pormenor.

Para mim tem muito valor este documento,mas não sei se terá algum interesse para o blogue e se alguma coisa poderá ser publicada. Envio o ficheiro PDF,mas talvez fosse melhor perguntar ao João Seabra se não há nenhum inconveniente em ser publicado.

Boa leitura e um abraço para o Luís Graça.

Manuel Peredo,
ex furriel pára da CCP 122.


2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Manuel Peredo, por nos teres facultado cópia do relatório da Op Dinossauro Preto (onde em 15 páginas se conta a odisseia do BCP 12, na defesa de Gadamael, entre 2 de junho e 17 de julho de 1973).

Sei agora, ao ler o documento, que foste ferido (mas também louvado) em Gadamael nesta altura (veremos isso na Parte III). Se mais razões não houvesse, esta bastava para reproduzir o documento que nos mandas, no todo ou em parte, no nosso blogue.

Não há problema em fazê-lo, o documento foi, em devido tempo, desclassificado, de acordo com os carimbos nele visíveis, na cópia que o João Seabra obteve diretamente do Arquivo Histórico-Militar. 

O João Seabra, hoje advogado, foi alf mil, da martirizada CCAV 8350, "Piratas de Guileje" (Guileje, 1972/73), é também merecedor da nossa gratidão por ter-te feito chegar, em tempos, esta cópia que tu agora partilhas com a Tabanca Grande. (O João tem 14 referências no nosso blogue, é pena que não nos dê notícias há muito, tal como outros "Piratas de Guilje").

Devido à sua extensão (15 páginas), vamos publicar o documento em 3 ou 4  partes. Um parte já foi transcrita no Poste P23415, a partir dos excertos da CECA (2015) (**). 

Nas primeiras cinco páginas do rekatório, verifica-se que falta, no entanto, a página 4 (relativa ao período entre 14 e 18 de junho de 1973, em que se realizaram a Op Bisturi Negro e a Op Diamante Preto), informação essa que se reconstitui aqui, a partir dos excertos da CECA (2015) (**):

- Operação Bisturi Negro - 14 e 15jun

A CCP 121 saiu em patrulhamento apeado, rumo Leste, flectindo para NWe depois para Norte. Em Cacoca 6E4.94 foi flagelada durante 45 minutos com armas autom, LGFog RPG-2 e RPG-7, canh s/r, por um grupo lN estimado em 80 elementos que se deslocavam na direcção Leste/Oeste.

As NT sofreram 1 morto (guia) e 2 feridos ligeiros. Da batida efectuada verificou-se que o lN sofreu 4 mortos confirmados e elevadas baixas prováveis dada a forma como procurou reter as NT com uma segunda linha de fogo com nítida intenção de retirar mortos e feridos, o que foi confirmado por sinais de arrastamento de corpos e abundantes rastos de sangue.

Foram referenciados elementos de tez clara e o lN utilizou esp autom G-3, metr lig HK-21 e dilagramas.

A CCP 121 regressou a Gadamael Porto para evacuar os feridos. Dois GComb voltaram a sair, rumo Leste flectindo depois para Norte. Montaram uma emboscada nocturna. Não houve contacto com o lN.

- Operação Diamante Preto - 17 e 18jun

A CCP 122 a 3 GComb saiu em patrulhamento. Em Cacoca 6F8.65 foi detectado um grupo lN estimado em 20 elementos ao qual foi montada uma emboscada imediata. O lN sofreu 1 morto confirmado e feridos prováveis; foi recolhida uma pá articulada, uma pica e uma granada de LGFog RPG-2 com carga.

Reiniciada a progressão o agrupamento foi flagelado do lado da fronteira com 3 granadas de canh sr/, sem consequências.

Foi montada uma emboscada nocturna. Não houve contacto com o lN
.


3. Relatório de Operações nº 16/73 | Operação Dinossauro Preto | Período: 2jun73 - 17jul73 | Região: Cacine / Gadamael | Referências: Carta [Cacoca] 1/50.000 | Exemplar nº 4 | BCP 12 | Bissalanca| 31jul73| 15 pág. Assinado: Sílvio José Rendeiro de Araújo e Sá, ten cor paraquedista.

Documento desclassificado. Cópia proveniente do Arquivo Histório-Militar. Cortesia de Manuel Peredo / João Sebra.

De assinalar a observação, na pag 1, ponto 3e: "Alteração à organização regulamentar: 2. Armamento: Utilizados LGF RPG 2, RPG 7, Met Lig Dectyarev, Esp Aut Kalashnikov e Mort 60"... Os páras reconheciam que o armamento do PAIGC era melhor que o nosso... Ou era "fetichismo" ? Afinal, os tipos do PAIGG também não desdenhavam da G3, dilagrama, HK 21 (capturado às NT)... 

Como diz o povo, "a galinha do vizinho é sempre melhor que a minha"... A "kalashnikovmania" é um velho tema aqui debatido no blogue...





Falta a página 4 (vd. comentário do editor LG, ponto 2, acima)



(Continua) 
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de junho de  2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23430: Estórias do Zé Teixeira (53): Amores em tempo de guerra: II - Correspondência desviada (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 11 de Julho de 2022, trazendo-nos a segunda estória para a subsérie de Amores em tempo de guerra.

Amores em tempo de guerra

II - Correspondência desviada

Depois da passagem de rotina pelos postos de sentinela, o alferes recolheu aos seus aposentos e adormeceu rapidamente. Acordou-o um ruído de vozes, onde sobressaía a fala do Joaquim Santos, o “perna-marota” onde se fundia a língua portuguesa com o crioulo. Vestiu uns calções e seguiu ao encontro dos desordeiros. O tempo de regresso à Metrópole aproximava-se, provocando nos seus homens uma certa inquietação e alguma euforia, que era preciso conter, sobretudo, era preciso evitar ruído noturno, e mais redobrada atenção quanto aos comportamentos.

O tempo de Guiné já ia longe demais, as vicissitudes da guerra impunham as suas marcas, era preciso calma, atenção e respeito pelo caminho que cada um dos seus homens estava a fazer. Para si, como comandante daquele grupo, o sonho era fazê-los regressar a casa, na Metrópole. O Cais da Rocha em Lisboa, de onde partiram, era a meta de chegada, onde todos deviam apresentar-se, pelo menos os que restavam: três já tinham partido, sendo que um fora num doloroso sobretudo de pinho, e os outros feridos em combate.

Imbuído deste espírito, o Alferes José Barbosa dirigiu-se ao abrigo de onde provinha o ruído. Três soldados brancos e um africano, discutiam. Cansados de acordar nas noites anteriores com o ruído que o Joaquim Santos produzia e os palavrões que lhe saltavam pela boca fora, quando acabava a sua hora de sentinela, os camaradas rodearam-no para uma chamada de atenção e ele reagiu de forma incorreta, como era seu costume.
- Joaquim chegue aqui! E vocês vão deitar-se. Acabou a festa!

Ao deparar com o Joaquim de G3 na mão, um pouco alcoolizado, o que não era seu hábito, e bradando palavras inconsistentes, logo pensou em admoestá-lo e redigir uma participação ao comandante da Companhia. Avaliando melhor a situação, filou-o por um braço e conduziu-o à porta da sua habitação. Sentaram-se, silenciosamente, num monte de cascalho, e a G3 entrou em descanso na mão do alferes. O pobre do soldado começou a chorar.

O Joaquim Santos, a quem fora dado pelos camaradas da recruta a alcunha “perna marota”, porque sofria de um pequeno tique na perna direita, era uma pessoa irritante, pela forma provocadora como reagia aos seus superiores e na relação com os camaradas. Até a voz, grossa e rouca, incomodava e ele sabia-o, pelo que abusava da fama para tirar proveito. Aparentemente não tinha grandes amigos e o alferes acompanhava-o de perto, para evitar sarilhos.
- Ah agora chora?! Mas há minutos despertou toda a gente do abrigo, e não foi a primeira vez. São seus colegas, devem merecer-lhe respeito. Disse-lhe o alferes, zangado. Que se passa Joaquim? Parece que está interessado em levar com uma participação ao comandante e apanhar mais meio ano de comissão!
- Se o meu alferes soubesse...
- Quero saber, antes de pensar no castigo que lhe vou dar!? Fale!

O silêncio que se seguiu entrecortado por soluços disse ao alferes, que algo de grave se passava, pelo que esperou pacientemente.
- O meu alferes sabe que sou casado e tenho uma filha. Tinha dois meses quando abalamos para a Guiné. Não sente a dor que me persegue... não pode sentir... amo a minha mulher... adoro a minha filha que mal conheço...
- Talvez, mas também tenho outras dores, que você não sente. Essa é a sua dor, mas todos nós, que aqui estamos, sofremos. A saudade mata, bem sabe... e cada um tem os seus dilemas. Temos de saber gerir os problemas com senso e você... se pensa que essa dor lhe dá o direito de incomodar os seus camaradas estás enganado!
- Não, meu alferes. Peço desculpa... estou confuso... não sei o que hei de fazer...
- Desembuche homem!
- Todas as semanas escrevo à minha mulher, e ela me escreve. Desde há dois meses queixa-se que não recebe a minha correspondência, e eu sempre lhe escrevi. Juro! Acusa-me de abandono, e até insinua que a troquei por uma madrinha de guerra. Não sei que fazer... eu amo-a e não quero perdê-la nem à minha filhinha! Alguém me desvia a correspondência, mas quem? Quem está interessado em arruinar o meu casamento? Ou será ela que me está a fintar?

O problema era grave. Não havia palavras que atenuassem a dor do Joaquim, pensou o alferes, optando por alimentar o diálogo. Talvez conseguisse que o Joaquim encontrasse a solução. Mais ninguém o conseguiria.
- Diga-me uma coisa. A sua família mora por perto?
- Sim. E aí é que está o problema. A minha mãe, que vive a cerca de dois quilómetros, escreve-me maravilhas da Ana Maria e da Anita. Passa lá por casa todos os dias com a menina. Almoça aos sábados e dispõe a tarde para ela, e a menina conviverem com os meus pais. O meu tio, que nos cedeu uma casinha junto à sua, para ela lá viver, para economizar uns cobres, acusa-a de ser depravada, porque nunca está em casa e que deve ter-me trocado por outro.
- E você em que acredita? Na sua mãe? Ou no seu tio...
- Eu quero acreditar na minha mãe, mas... ela está trolaró desde que o meu irmão morreu na guerra, em Angola. O meu tio... ela vive lá... e ele vê tudo.
- O seu irmão morreu em combate?
- Sim. Era condutor e pisou uma mina anticarro. O meu alferes sabe que essas não perdoam...
- Sim... Lamento... disse o alferes, comovido.

O alferes pensou: tenho de arranjar maneira de despachar este homem para casa, talvez a lei o permita, dado que o irmão morreu em combate, mas agora devo ajudá-lo a resolver o problema.
- Tem de encontrar formas de fazer chegar os seus aerogramas à sua mulher. Nunca se lembrou em enviá-los para a morada da sua mãe?
- Pois! E a minha mãe ficava a saber os nossos segredos. Nunca!
- Já pensou em ir de férias? Assim descobria o segredo da correspondência desviada... via a menina e aclarava a vossa relação afetiva. Merece ser feliz.
- Meu alferes o senhor sabe que na tropa ganhamos muito pouco. Dá para a cerveja e pouco mais.
- Porra! Tem ou não dinheiro para comprar a passagem? O que está primeiro, o dinheiro ou a sua felicidade e a da sua esposa? Amanhã vamos falar com o sargento e vai de férias. É uma ordem.
- Se o meu alferes assim entende! Ai que bom será, ver a minha menina!
- E a sua mulher. Ela merece confiança. Por favor, acredite na sua mãe. Amanhã vai escrever-lhe uma carta. Eu forneço-lhe o papel e o envelope. Mete dentro um aerograma para a Ana Maria e pede à tua mãe para lho entregar. Até ir de férias é assim que vai fazer e o seu problema fica resolvido. Pode crer.

E aqueles dois homens calejados por uma guerra ingrata, perderam-se na conversa, e encerraram este encontro, já o sol despontava, abraçados um no outro.

José Teixeira

(Continua)
Abril de 2008 > José Teixeira em Canamine
Abril de 2008 > Recepção em Guileje
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23351: Estórias do Zé Teixeira (52): Amores em tempo de guerra: I - Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

Guiné 61/74 - P23429: Frase do Dia (3): Na verdade, nós saímos da Guiné, mas a Guiné não sai de nós (José Martins, ex-fur mil trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70)

 1. Comentário (*) de Martins (ex-Fur Mil Trms, CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), e nosso colaborador permanente, autor, entre outras, da série "Consultório Militar"; m histórico da Tabanca Grande, onde está desde 2005; tem jácerca de 460 referências. 

Caro Ramiro Figueira

Foi bom ter voltado a Canjadude e Che-Che, apesar de 
ser em pensamento, sítios por onde andei e onde permaneci dois anos, já lá vão mais de cinquenta.

Na verdade, nós saímos da Guiné, mas a Guiné não sai de nós.

Abraço.

Zé Martins (**)

13 de julho de 2022 às 09:27 (*)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23427: (Ex)citações (411): O calor e alguma ociosidade inerente levou-me a andar aqui pelo blogue a passear pela infinita quantidade de publicações que por cá há, com destaque para a região do Boé onde, em 1987, fui abrir uma missão com hospital de campanha, no âmbito dos Médicos Sem Fronteira (Ramiro Figueira, ex-Alf Mil Op Esp da 2.ª CART/BART 6520/72)

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23428: Historiografia da presença portuguesa em África (325): A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2021:

Queridos amigos,
Há algo de intrigante na publicação de uma tipografia do Porto, em 1916, de um relatório elaborado para o governador em Bolama em 1914. Aceita-se que o governador tenho autorizado a sua divulgação pública, ou mesmo o ministro, mas o retrato esboçado por Vasco Calvet de Magalhães tem para ali verdades duras como punhos, aquele terço da Guiné tem algum comércio e pouco mais, faltam infraestruturas, o Geba e o Corubal carecem de obras, considera os régulos uns sanguessugas, para quem põe em dúvida o rasto de violência que assola as etnias basta ler o que ele escreve sobre massacres e extermínios, ódios étnicos viscerais que depois alguns historiadores vêm escandalosamente atribuir a insurreições contra a presença colonial, ali, naquele terço da Guiné, de fresca data, quase oferecido de bandeja pela Convenção Luso-Francesa de 1886 as lutas tribais revelaram-se como o acontecimento mais tenebroso do século, pode mesmo dizer-se que o povo afável que hoje conhecemos tem na sua génese um quadro de violência que paradoxalmente conheceu em versão com a crescente administração portuguesa e com as vicissitudes das lutas pela independência.

Um abraço do
Mário


A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (2)

Mário Beja Santos

Com impressão na tipografia Progresso, Porto, 1916, o Administrador da Circunscrição de Geba fazia o seu relatório, seguramente encaminhado para Bolama, terá recebido autorização para edição própria. É um documento de grande importância, como o leitor ajuizará. Permite, em primeiro lugar, apercebermo-nos como mudam os critérios de organização do território, e neste caso é surpreendente a Circunscrição Civil de Geba, tinha uma área aproximada de 13 mil quilómetros quadrados, cerca de um terço do território da colónia, limitada a Norte e a Oeste pela linha de fronteira do marco 58º ao 95º, pelos limites Sul e Leste das regiões de Pateá, Colá e Oio, e limite a Oeste a região do Cuor; ao Sul e Leste o rio Corubal desde a sua confluência com o Geba até ao território do Corubal e a linha de separação deste território do de Badora e Cossé e linha de fronteira do marco 24º ao 58º, e o rio que a separa da região Norte do Forreá. Cerca de 19 regulados, desde Cabu até Mansomine. Impossível não ficarmos impressionados com a extensão desta circunscrição.

O mínimo que se pode dizer é que Calvet de Magalhães conhecia a fundo muitos dos problemas deste terço de território da Guiné onde a presença portuguesa era ténue. Já se escreveu que ele alerta o Governador para a escassez de recursos humanos, para os problemas inerentes ao crescimento de Bafatá que carecia de melhores meios de policiamento, é profundamente crítico quanto ao modelo de instrução, denuncia a exploração dos autóctones pelos comerciantes, onde preponderavam os sírio-libaneses, propõe um novo modelo de imposto substituindo a palhota pela capitação, é também profundamente cético quanto às modalidades de recrutamento do pessoal local, e diz mesmo: “Fui o primeiro funcionário encarregado de fazer um recrutamento nesta região. Até então, o governo só aqui recorria quando precisava do auxílio dos indígenas. Em 1909 embarcou o primeiro contingente de Fulas e Mandingas. A maioria fugiu de Bolama, em primeiro lugar porque não simpatizava com a vida militar e depois porque, em geral, eram maltratados. Esta pobre gente vai mais pela palavra do que pela pancada”. E recorda ao Governador que os recrutados fogem para território francês, não vê conveniência nenhuma em voltar a fazer recrutamento nestes moldes.

Passam-lhe pelo território os dois principais rios da Guiné, ao tempo o transporte percorria à navegabilidade do Geba e em parte à do Corubal. Alerta para o rio Geba estar a assorear-se constantemente e explica como e porquê: “Os locais onde os baixos aparecem numa determinada época, em virtude do lodo e das areias, arrastados pela corrente violenta das águas, mudam constantemente. Assim, uma embarcação é colhida de surpresa, quando navega, porque o rumo que seguiu a última vez tem de ser mudado em sentido contrário, porque a corrente em dias apenas, muda os bancos de lado e areia de uma para outra margem. Entre Ganjarra e Geba há um baixo de pedra e cascalho que na maré baixa não tem mais de 40 centímetros! Estou convencido de que cortadas algumas das curvas do rio Geba, tais como a de Ganjarra e a de Cuor, as correntes das águas, correndo a direito, escorreriam o leito do rio aprofundando-o mais e faria as viagens muito mais económicas e rápidas”. Vaticina igualmente que o rio Cocoli (o Corubal) se se destruíssem as rochas a montante do Xitole seria num curto período um dos rios de maior navegação porque para o comércio se desenvolver nestas regiões falta-lhe apenas a via de comunicação. Refere que anda no ar a ideia de construir um caminho-de-ferro do Xime a Kadé e manifesta o seu regozijo: “As margens da linha férrea transformar-se-ão em vastos campos de amendoim onde os Fulas virão de preferência estabelecer as suas lavras deste produto”.

Vive permanentemente inquieto com a construção das estradas e diz mesmo: “Como é que ocupando nós a Guiné há tantos séculos, ainda não se pensou na construção de uma estrada que ligue o litoral com as povoações mais importantes do interior?”. Espraia-se a descrever as culturas indígenas e releva a ingenuidade comercial destes: “Acontece que os indígenas quando colhem estes produtos, os vendem todos, como acontece com a mancarra, não tendo a previdência de guardarem a quantidade necessária para a futura sementeira. Quando procedem à sementeira, vão ter com os negociantes e compram-lhe o produto que lhes venderam pelo triplo do preço que estes deram por ele!”.

Gosta de mostrar trabalho, põe mesmo a imagem no seu relatório da construção de uma ponte sobre o rio Colufi com 152 metros de comprimento e 7,5 metros de altura que veio permitir a comunicação entre vários regulados com Bafatá; enumera melhoramentos em pontes e mercados e dá-se ao cuidado de apresentar um projeto de regulamento de venda e porte de armas. Não resiste a falar sobre o mosaico étnico da região, a sua origem e história, etnografia, costumes, etc. A história recente das lutas étnicas é tema que lhe interessa muito, faz uma descrição das guerras do Forreá entre Fulas e Beafadas e também a insurreição dos Mandingas que não se conformavam com a imposição dos novos régulos Fulas no Forreá. Narra também que os Mandingas se envolveram contra os Beafadas e que os Futa-Fulas do Futa-Djalon auxiliaram os Mandingas pois desejavam exterminar os Fulas-Forros, só que estes massacravam os Mandingas nas emboscadas. E veio também à baila a revolta de Mólo, pai de Mussá Mólo, Bambarã, ele declarou guerra de extermínio aos Mandingas, foi conquistando regulados onde ia colocando à frente Fulas. Moló submeteu também os Beafadas. E Calvet de Magalhães diz que o seu túmulo é venerado pelos Fulas-Pretos (Fulas cativos). O seu filho Mussá Mólo teve que fugir para a Gâmbia depois de ter praticado uma série de prepotências e infâmias em território português e francês. Gosta de nos contar curiosidades, como esta: “Todos os Fulas-Pretos ou Fulas-Cativos da região de Geba guardam respeito aos Fulas-Forros. Têm consciência da sua verdadeira origem! Todas os Fulas-Pretos da região são descendentes de Mandingas, Beafadas e Soninqués”. O Administrador de Geba diz claramente que considera o régulo um flagelo para o indígena, um sanguessuga.

Caminhando para o final da obra, apresenta um apontamento sobre a língua Fula, deita um olhar atento sobre as indústrias indígenas recordando que existem em toda a circunscrição dispersos tecelões que, com o próprio algodão que os indígenas cultivam, tecem panos de uma única cor ou com vários desenhos. “Estes indígenas, se lhes fossem fornecidos teares modernos e se lhes corrigissem defeitos, tornar-se-iam verdadeiros artistas”. Espraia-se pela fauna e pela flora, dá-nos conta dos diferentes tipos de macacos, da existência do chimpanzé, do leão pequeno, do leopardo pequeno, do pangolim, hipopótamos e raros elefantes, enumera as aves de rapina, os galináceos, os palmípedes, os lagartos, jiboias e cobras e todo o tipo de peixe.

Não deixa de ser curioso apresentar-nos em anexo a lista estabelecimentos existentes na circunscrição civil de Geba. Destaca em Bafatá: Companhia Francesa da África Ocidental; Companhia Francesa do Comércio Africano; Nouvelle Société Commerciale Africaine (antiga Casa Soler); Rudolf Titzck e Comandita; Companhia Franco-Escocesa; E. Salagua e Companhia; Aimé Grenier e Companhia; Osório Pereira Tavares; João Teixeira e José Fernandes, para além de 20 estabelecimentos de sírio-libaneses. Em Bambadinca estavam estabelecidos Francisco Monteiro e Leão Ledo Pontes; no Xime, Rudolf Titzck e Comandita e Domingues Marques Vieira; em Geba destacavam-se os seguintes estabelecimentos: Hans Schwartz, E. Salagua e Companhia, Rudolf Titzck e Comandita, Augusto Fernandes e Paulo dos Reis Pires.

Este relatório de 1914 é uma peça fundamental para entender a presença portuguesa num terço da colónia nesse ano em que eclodiu a I Guerra Mundial.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23413: Historiografia da presença portuguesa em África (324): A circunscrição de Geba, em 1914, relatório de Vasco Calvet de Magalhães (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23427: (Ex)citações (411): O calor e alguma ociosidade inerente levou-me a andar aqui pelo blogue a passear pela infinita quantidade de publicações que por cá há, com destaque para a região do Boé onde, em 1987, fui abrir uma missão com hospital de campanha, no âmbito dos Médicos Sem Fronteira (Ramiro Figueira, ex-Alf Mil Op Esp da 2.ª CART/BART 6520/72)

1. Mensagem do nosso camarada Ramiro Alves de Carvalho Figueira, médico na situação de reforma, ex-Alf Mil Op Especiais da 2.ª CART/BART 6520/72 (Nova Sintra, 1972/74), com data de 12 de Julho de 2022:

Boa tarde.

O calor e alguma ociosidade inerente levou-me a andar aqui pelo blog a passear pela infinita quantidade de publicações que por cá há. Chamou-me a atenção uma série de publicações sobre o local onde foi declarada a independência da Guiné, em 24 de Setembro de 1973. De entre estas publicações, a de uma antropóloga alemã de seu nome Tina Kramer que andou a percorrer a Guiné praticamente de lés-a-lés e que dedica uma referência a Lugadjole onde terá sido declarada a independência em 1973.

Ora acontece que nas minhas andanças pelas medicinas estive ligado aos Médicos Sem Fronteiras e, em 1987, coube-me ir abrir uma missão com hospital de campanha, na Guiné-Bissau, no sector do Boé. Confesso que senti algum entusiasmo, o Boé era para todos quantos estiveram na Guiné durante a guerra um local mítico e penso que não havia ninguém, pelo menos no meu tempo, que não soubesse da retirada de Madina do Boé e do desastre do Che Che.

Partimos de Lisboa num dia que não recordo em Setembro de 1987 com uma equipa de 4 médicos, um enfermeiro e um encarregado da logística. Não tinha regressado nunca mais à Guiné desde o fim da comissão em 1974, mas depressa me ambientei, desde logo à chegada com aquele calor intenso que nos subia pelas pernas acima a recordar o desembarque no mesmo local em 1972. 

Poucos dias depois a partida para Gabú (Nova Lamego) onde dormimos um dia e fomos recebidos pelo governador local, o Paulo (não me recordo do nome todo dele), homem que andou na luta e tinha uma recordação perene dela, uma prótese numa perna.

No dia seguinte partimos para Lugadjole, local destinado para a missão. A estrada era uma velha picada daquelas que todos nos recordamos com os seus buracos e saltos inopinados. Parámos em Canjadude, uma tabanca com ar arrumado e limpo, mas que logo a seguir tinha ainda as marcas da guerra, uma viatura blindada e uma camioneta, completamente calcinados jaziam à beira da estrada. 

Finalmente o Che Che e a jangada. Íamos num jipe cedido pelo governo,  seguidos por uma camioneta onde carregávamos todo o material para a montagem do hospital, a entrada na jangada foi uma habilidade de equilibrismo complicada, mas depois a saída, à chegada do Che Che, foi mesmo um prodígio de equilíbrio que o condutor do jipe, de seu nome Domingos, e o condutor da camioneta executaram quase que por milagre.

Reiniciámos a viagem a caminho de Béli onde chegámos ao fim de umas horas muito difíceis de trajecto. Em Béli estava uma missão de alemãs que nos acolheu muito bem e nos deram uma refeição deliciosa de cabrito (disseram-nos que era…) acompanhadas de vinho branco fresquíssimo delicioso, de tal forma delicioso que um dos colegas que me acompanhava apanhou uma enorme bebedeira e acabou por fazer o resto do caminho a dormir quase não se apercebendo dos tremendos saltos que o jipe dava. 

Chegámos a Lugadjole já ao anoitecer e ainda tivemos de descarregar a camioneta para termos camas onde dormir dado que a casa onde fomos alojados nada mais tinha do que paredes, eram casas construídas pelos soviéticos quando tentaram explorar bauxite naquele local, o que acabou por não se revelar rentável e o local foi abandonado.

Os dias foram-se passando entre as consultas e trabalhos para nos instalarmos e um belo dia conseguimos convencer o responsável local, um homem de poucas falas, chamado Kassifo N’Cabo, a levar-nos ao local onde fora declarada a independência. 

No jipe dele e ainda no jipe que nos tinha sido cedido pelo governo guineense, saímos a caminho da fronteira com a Guiné Conakri e, pouco antes da tabanca de Vendu Leidi subimos a um ponto um pouco mais alto, que na crónica da Tina Kramer fiquei a saber que se chamava Orre Fello, onde uma estrutura meio abandonada nos foi indicada como tendo sido o local da declaração da independência. 

Na verdade, não sei se realmente terá sido ali que se deu o acontecimento, mas dada a proximidade da fronteira (Vendu Leidi situa-se práticamente nela) e o local meio perdido nos confins do Boé, admito que terá sido esse o tal local.

Por agora é só, as descrições do trabalho em Lugadjole são longas e provavelmente fastidiosas. Resta dizer que montámos o hospital de campanha que tinha bloco operatório e que esteve a funcionar creio que cinco ou seis anos.

1 – Mapa da região, onde marcado com uma estrela se pode ver o local de Orre Fello
2 – Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 > Fotografia minha acompanhado por um dos médicos, o Dr. João Luís Baptista, no Che Che
3 –Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 > Baga Baga junto de Béli
4 - Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 > Vendu Leidi > Orre Fello > Local da declaração de independência
5 –Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 >  Vendu Leidi > Orre Fello >  Casa que se dizia ter sido de Amílcar Cabral
6 – Guiné-Bissau >Região de Gabu > Sector do  Boé > Médicos Sem Fronteira > 1987 >  Jangada do Che Che

Fotos (e legendas): © Ramiro Figueira (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Abraço
Ramiro Figueira