terça-feira, 14 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23351: Estórias do Zé Teixeira (52): Amores em tempo de guerra: I - Um dia de festa em tempo de guerra (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

O José Teixeira em Ingoré, em 2015, rodeado de crianças

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) com data de 12 de Junho de 2022, trazendo-nos uma estória de amor, em tempo de guerra, como não podia deixar de ser. Quem não conheceu uma bela Binta na Guiné? A minha lavadeira chamava-se Binta e era bem bonita.


Amores em tempo de guerra

I - Um dia de festa em tempo de guerra

Não havia luar naquela noite. A obscuridade formigava de estrelas tão vivas que se tornavam ofuscantes aos olhos da Binta. Deitada na margem do regato avivado pela água das fortes chuvadas, ali mesmo ao lado do arame farpado que rodeava a tabanca, Binta deixara-se embalar em pensativo sonho, naquele local onde o mensageiro do Braima a ia visitar, em silêncio, longe a longe, fora das vistas de sentinelas, para lhe trazer novas do seu amado.

“Há quanto tempo lhes resisto... fui lavadeira de alferes, furriéis e até soldados que passaram por aqui. De uns gostei mais, mas nenhum me prendeu o coração. Quantas vezes tive de lhes dizer não!... quantas vezes tive de controlar as suas investidas maliciosas... O facto de ser filha do sargento da milícia e estar noiva do Braima, filho do Mamadu, tem sido a minha arma, que os obriga a respeitar-me. Se eles sonhassem onde anda o Braima, o que ele faz na mata... onde estaria eu?... Obrigada, minha mãe por me ensinares esta mentira, tu, que nunca na vida mentiste e me ensinaste que a mentira é usada pelos homens de cabeça grande, os que se perdem na bebida… na soberba ou na ganância…

...O alferes José Barbosa é diferente... Há dias pegou-me na mão, olhou-me nos olhos e eu pude ver bem dentro dele. Tem uns olhos transparentes, com um pouco de azul-celeste no contorno. Uns olhos destes não mentem, a mentira provocaria uma sombra, estou certa... E ele disse-me: “se o teu Deus é assim tão poderoso que pode criar uma mulher tão bela como tu, ficarei feliz por me submeter à sua lei para o resto da minha vida. Direi contigo: Allah é grande e não há outro Deus senão Ele. Casa comigo, eu dou ao teu pai tudo quanto ele me pedir, casa comigo”, insistiu... insistiu e eu fugi dos seus braços...

...Barbosa... eu amo Braima e esperarei por ele. Já recusei e continuarei a recusar entregar o meu corpo... O meu pai correu com pretendentes velhos e novos. Apesar de não ter recebido o quinhão prometido pelo pai do Braima, naquela noite. Para ele só há uma palavra, a dele. Respeito-o como pai, respeito-o como homem e amo o Braima... cabe-me guardar para ele o maior prazer.
- Mas onde está esse Braima que ninguém vê por aqui? Perguntou-me com ar inquiridor.
- Tive de lhe responder com a mentira que a minha mãe me ensinou.

Onde estará ele a esta hora?... talvez a dormir dentro de uma barraca... ou sobre o chão quente... ou a atacar um quartel... Olossato ou lá o que é, nem sei onde fica...
- Não! Está deitado a contemplar as estrelas, a pensar em mim... será possível que um homem e uma mulher, separados por esta luta violenta, esta guerra maldita; por rios e florestas cerradas; quilómetros de picadas cheias de perigos, possam enlaçar os seus olhos e pensamentos através das estrelas e viver o seu amor?... Braima do meu coração foge da guerra que nos mata... vem meu amor...
Quero-te a meu lado, quero ler o nosso futuro nos teus olhos, amar, ter filhos... maldita luta que me afastaste do meu amor!”

E Binta deixou-se adormecer como tantas vezes, sonhando com o seu amado. Acordaram-na os passos do cabo de ronda na sua tarefa noturna de manter as sentinelas em alerta.

José Teixeira

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23342: Estórias do Zé Teixeira (51): Há festa na Tabanca (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

5 comentários:

Anónimo disse...

Gosto muito desta tua sensibilidade e amor ao próximo, do teu sentido de justiça e busca da paz e da fraternidade entre as gentes de todo o mundo. Sei , julgo que todos sabemos , do modo respeitoso como sempre trataste as pessoas de Mampatá. Aprecio também os teus dons na escrita.

Um grande abraço, amigo Teixeira.

antonio graça de abreu disse...

Muito bonito. Mas afinal Binta amava quem? A complexidade do amor, mais ainda em tempo de guerra, com etnias e crenças religiosas tão díspares. Mas uma boa história.
Abraço,

António Graça de Abrwu

Hélder Valério disse...

Há na introdução uma pergunta e uma afirmação: "Quem não conheceu uma bela Binta na Guiné? A minha lavadeira chamava-se Binta e era bem bonita."

Ora bem, quando cheguei à Guiné, fiquei quase um mês em Bissau e, naturalmente também tive que ter uma "lavadeira" mas não me recordo o nome nem realmente quem era. Tenho ideia de que seria a mesma que levava e lavava a roupa dos que me cederam alojamento no seu quarto.
Mas em Piche claro que a minha lavadeira se chamava Binta, era bem bonita, a mais bonita e requisitada por aqueles lados. Uma jovem mamã que afastava os "avanços" de quem queria tentar, apertando o seio e fazendo esguichar o leite para cima do atrevido.
Uma lavadeira competente, apesar de muito trabalho.
Quando regressei a Bissau para o Centro de Escuta, a lavadeira chamava-se Irene, uma "mulher grande", seca de carnes e com uma postura de grande altivez e serenidade.
Novamente grande competência, pois recordo bem como a roupa era bem cuidada.

Quanto à história do Zé Teixeira pois, para além de ser "em tempo de guerra" é também uma história "com a guerra pelo meio".

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Infelizmente a Binta teria que viver com a mentira e na mentira, com a cumplicidade de sua mãe e a proteção do seu pai. Nunca iria dizer à tropa que o seu amado estava "no mato" e combatia os "tugas". Mas também tivemos camaradas de armas, guineenses e cabo-verdianos, que conheceram esta ambivalencia, tendo dois "senhores"...

Juvenal Amado disse...

Zé Teixeira

É uma história deliciosa. Será que encontrou seu amado no fim da guerra, ou foi à aventura que sopravam os ventos de um país novo?

Um abraço