1. Comentário publicado, em 16 de Junho, no Poste Guiné 61/74 - P23353: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (4): um "annus horribilis" para ambos os contendores: O resumo da CECA - Parte III: Cerco e ataque IN (650/700 elementos) a Guidaje, de 8 de maio a 12 de junho de 1973 pelo nosso camarada Manuel Luís R. Sousa, Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma, (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ / BCAÇ 4512/72, Jumbembem, 1972/74) e autor do livro "Prece de um Combatente - Nos trilhos e trincheiras da guerra colonial":
Sobre a progressão da coluna no dia 29 de Maio, atentem no seguinte excerto do meu livro PRECE DE UM COMBATENTE, que eu vou tentar distribuir e dois comentários consecutivos, para contornar o número de caracteres que me são autorizados.
"...A cerca de 4 ou 5 quilómetros, já próximo das viaturas destruídas a que acima me referi – nas proximidades de um local que hoje identifico no mapa da Guiné como Genicó – zona mais perigosa, os sapadores recusaram-se a picar, alegando cansaço físico.
É então recebida ordem para que o pelotão de Jumbembém, em que eu estava integrado, avançasse até à frente para picar, em substituição dos sapadores.
Nesse dia, na escala que tínhamos no pelotão, tocava-me a mim a picar.
Cheguei à cabeça da coluna e foi-me entregue uma pica (um pau com um ferro num extremo) pelo capitão que comandava a coluna, – ao que sei hoje, seria um tal capitão Rodrigues de Farim – ordenando-me que começasse a picar na rodeira do lado esquerdo.
Após ter começado a picar, ordenou-me para passar para a rodeira do lado direito, já que atrás de mim se encontrava outro picador, precisamente o mesmo soldado Lopes, vindo mais dois atrás, um de cada lado, seguidos do referido grupo de Comandos.
Entretanto, após ter começado a picar, um oficial, creio que um alferes, sugeriu ao referido capitão, para, a partir dali, as máquinas da engenharia, que também integravam a coluna, começarem a abrir nova picada paralela àquela, dada a forte probabilidade de estar minada.
Referiu que não, argumentando que ali o terreno era firme, pois só mais lá para a frente é que as máquinas abririam nova picada.
A morte do meu camarada Domingos Martins da Silva Lopes
Continuei então a picar, pelo lado direito, sob grande tensão, pairando um silêncio sepulcral por entre a mata densa que ladeava a picada, ouvindo-se apenas os motores das viaturas um pouco distantes à retaguarda.
Eram cerca das 10h30 e o calor já era intenso.
A cerca de 20 metros após ter começado a picar passei sob uma árvore de grande porte, cujas raízes estavam salientes e atravessavam a picada.
Eu era o primeiro homem lá à frente, sendo certo que pelos flancos, pela mata, como atrás referi, seguiam forças a proteger o itinerário de qualquer investida lateral do IN.
Ouvi o soldado Lopes, que me seguia, como disse na rodeira do lado esquerdo, a dizer-me em sussurro: “Sousa, vamos com cuidado”..."
"...No mês de Maio já as primeiras chuvas tinham caído e o terreno da picada estava tão uniforme que não dava para se vislumbrar quaisquer vestígios que me permitissem detectar visualmente a existência de minas.
Depois de picar cerca de 50 metros, isto é, já picava para lá da referida árvore a cerca de 20/30 metros, ocorreu atrás de mim uma enorme explosão, o que me levou instintivamente a baixar-me para me proteger, ficando envolvido por fumo negro e terra que me caiu em cima em consequência da mesma explosão.
Momentaneamente o silêncio foi absoluto, interrompido entretanto pelo queixume de alguém atrás:
-“Ai minha mãezinha…ai minha mãezinha”.
Continuei então ali abaixado, até que, volvidos alguns instantes, me foi passada a palavra que o pessoal de Jumbembém regressaria a Binta.
Recuei pelas pegadas que tinha feito em sentido contrário, pelas que ainda eram visíveis depois da explosão da mina.
Apercebi-me, ao chegar novamente à referia árvore, que o meu colega, o soldado Domingos Martins da Silva Lopes, que me substituiu na rodeira do lado esquerdo, estava morto, cuja arma desapareceu em consequência da potência daquele engenho explosivo.
Contudo o seu corpo estava intacto, porém sujo com a terra e fumo da explosão, indiciando que a sua morte teria sido causada por esmagamento dos órgãos internos, dada a violenta deslocação do ar – que eu a cerca de trinta metros ainda senti – provocada pela deflagração da mina, que o projectou a alguns metros.
O militar que clamava “ai minha mãezinha” era um furriel dos Comandos que evidenciava esfacelamento do rosto.
Teria sido ele a sugerir ao soldado Lopes para picar precisamente sob as raízes da árvore que referi. (Sabe-se que este furriel ficou cego em consequência dos ferimentos).
Vi ainda mais um ferido ou outro, mas sem gravidade.
O regresso do meu pelotão a Binta
Regressou o meu pelotão a Binta em duas viaturas, transportando o corpo do soldado Lopes e os feridos..."
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Nota do editor
Último poste da série de 16 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 – P23356: (Ex)citações (408): Da parte operacional, pouco sei para além do que os meus amigos, quando vinham a Bissau, me contavam parte do que por lá passaram e também do meu serviço no Centro de Mensagens do QG (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS/CTM/QG/CTIG)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Obrigado, Manuel Luís, por este impressionante testemunho... "Aquilo" não era para "meninos de coro"...nem para "escoteiros"...
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