Era domingo de Páscoa na aldeia. Fazia frio mas o sol estava esplêndido.
Era um daqueles dias
em que a gente se reconciliava com a vida.
Nem que fosse por uns breves instantes.
Com a vida, mas não necessariamente
com o mundo.
Como o Eça e o seu príncipe Jacinto,
em Tormes, ali ao lado,
do outro lado do vale,
à volta de um copo de vinho verde, branco,
de umas cebolinhas do talho
com presunto ou salpicão.
(Não havia favas, em Candoz,
havia as ervilhas de quebrar.)
A manhã, primaveril, trazia-te
os sons, as cores e os cheiros do campo.
Um outro campo que não o mesmo
da tua infância da Estremadura.
Descobriste, tarde, esta parte
do Portugal sacroprofano
que era mais pagão, celta, visigótico e românico
do que fenício, romano, judeu, mouro ou gótico.
Um citadino, como tu, não sabia
o que era isso de ouvir,
logo pela manhã,
os galos a cantar nos seus galinheiros.
Ou ver as cerdeiras (cerejeiras) em flor.
Ou observar os melros de bico amarelo
pousados nas videiras
que desabrochavam, em gamões.
Quinta de Candoz > s/d > O pôr do sol nos montes (aqui chamam montes aos pinhais, onde outroram cresciam carvalhos e castanheiros)
Um citadino como tu não tinha o privilégio de ouvir falar dos gaviões
nem das suas frágeis presas.
Nem sabia por que autoestradas andavam
as toupeiras, os ouriços-caixeiros
e as raposas deste país.
Nem por que razão falavam alto e bom som
aquelas gentes de além-Douro.
Nem o seu gosto desmedido pelo fogo
que ribombava como o trovão.
Nos campos de erva, de diferentes tonalidades de verde,
eram visíveis as partes cortadas para as ovelhas,
entáo recolhidas nas cortes,
à medida que os gamões das videiras
cresciam a olhos vistos.
Na grande matança da Páscoa,
o inocente que era sacrificado,
era o cordeiro, o anho,
o ex-libris da gastronomia da região.
Já fumegabvam as chaminés
enquanto ao longe se ouvia
o estralejar dos foguetes.
O compasso pascal andava por aí,
alvoraçado como a canalha,
já vinha no Alto, já chegava ao Cruzeiro,
com a cruz abrindo os tortuosos caminhos e estradões
e exorcizando os medos ancestrais.
In hoc signo vinces.
Com este sinal vencerás.
Desde Constantino, o Imperador,
que a cruz marcava a vida dos servos da gleba
e depois os cabaneiros, os rendeiros e os camponeses,
do nascer ao morrer.
Levava dois dias a percorrer a freguesia.
A cruz, o Cristo pregado na cruz,
o compasso,
os homens da opa vermelha
e o menino da sineta,
de sobrepeliz branca como o anjo.
Pouco mais de mil almas
e algumas escassas centenas de fogos,
dispersos, a visitar:
"Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!",
proclamava o homem da opa vermelha,
o mordomo da festa sacroprofana,
que fazia as vezes do padre.
Em frente o vale e a montanha.
A linha do Douro.
O rio Douro ao fundo.
Pacificado,
onde já não chegava o sável e a lampreia,
nem o barco rabelo com o néctar dos deuses.
Cem anos depois, o Eça não voltaria a escrever
A cidade e as serras.
Havia ainda um mundo a desmoronar-se.
E testemunhas vivas desse mundo.
O mundo dos rendeiros e dos camponeses pobres
que decidiram trocar o arado
e as juntas de bois
e a rega do milho
pela linha de montagem automóvel
ou pelos chantiers da construção civil
nos arredores de Paris
ou pelas as fábricas do Porto.
Quinta de Candoz > s/d > A preparação do anho... Ainda a Maria da Graça (1922-2014) (à esquerda) era viva... Veio do Sul em visita aos do Norte. A meio a Alice (Chita) e, à sua esquerda, a cunhada Maria (Mi).
Já havia a barragem do Carrapatelo,
e as suas eclusas,
as antenas das telecomunicações
e os moínhos eólicos no alto das serras.
E o Mercedes de matrícula K.
E o alcatrão.
E os telemóveis.
E as casas do granito
arrancado às pedreiras de Alpendorada.
O progresso cobrava o seu preço,
a globalização também.
Estradas e estradões tinham esventrado
o cenário bucólico
que outrora escondia a miséria dos casebres
dos cabaneiros, os mais pobres dos pobres.
O Zé do Telhado já há muito que morrera,
desterrado em Angola,
mas ainda continuava vivo
nos telhas vãs da memória
das gentes dos vales do Sousa e Tamega
Os netos dos antigos senhores, os fidalgos,
proprietários agrícolas absentistas
do Porto e da Foz do Douro,
recuperavam as casas dos caseiros
e faziam delas a sua casa de campo.
Com piscina e court de ténis.
O povoamento continuava disperso
pelo verde e pelos socalcos.
Os montes estavam carecas
depois das últimas décadas de incêndios.
Já há muito que regressara
o último soldado das colónias
e se escrevera o último aerograma
a dar conta do fim do Império.
Os brasileiros tinham dado lugar aos franceses.
E o Porto ali tão perto.
Cada vez mais perto
com as autoestradas, as IP e as IC do país motorizado.
Um mundo quase perfeito, visto da janela do teu quarto.
Domingo de Páscoa, de manhã.
Faltavm-lhe só, porventura, os camponeses,
que morreram.
E os que emigraram.
E os que não voltaram.
E os soldados que morreram, de morte matada,
nas guerras do passado.
E os que morreram, mal haviam nascido.
Que as famílias eram numerosas
mas a mortalidade infantil altíssima.
Passavas os olhos
pelas paredes da casa, de grosso granito.
Já tinham albergado
sete, oito ou mais gerações,
que os seus registos só iam até 1820.
Não era nada, se quando sabias
que os australopitecos, teus antepassados,
tinham evoluído há 5 milhões de anos,
200 mil gerações atrás.
Quinta de Candoz > s/d > O fogo, depois do recolher do compasso pascal
No virar do milénio,
na madrugada do século XXI,
Cristo continuaria a ressuscitar
todos os anos, pela Páscoa,
no Entre-Douro e Minho da tua aldeia.
E os cristãos poderiam ver abalada a sua fé,
mas continuariam a reunir-se
em casa uns dos outros
para comer o agnus Dei com arroz de forno.
E para celebrar o milagre da vida,
a vitória da vida sobre a morte.
Há quinhentos anos que se deitavam foguetes nas vilas e aldeias do teu Portugal sacroprofano.
Não sabias nada da história do fogo de artifício,
sabias apenas que viera da velha China
com as naus quinhentistas.
Para celebrar a ressurreição de Cristo,
ou mais prosaicamente para fazer a festa.
Que era a vitória sobre o trabalho,
o tripaliu(m) que matava a gente.
E para marcar o tempo, o fluir do tempo,
o solstício do inverno e do verão,
a inexorável usura do tempo.
E todos os anos pela Páscoa,
tu, descendente de austrapolitecos,
assistias da tua varanda de granito
à alegria infantil
dos camponeses durienses, mortos há muito,
face à orgia de fogo que assinalava,
em cada freguesia,
o recolher do compasso pascal.
Da tua janela vias o mundo
ou uma parte dele, mesmo ínfíma:
Paredes de Viadores, Mesquinhata,
Santa Leocádia, Grilo,
Porto Antigo, Paços de Gaiolo...
Estes nomes, medievos, passariam a ser-te familiares.
E as serras à volta do teu presépio:
Montemuro, Aboboreira
e, mais ao longe, Gralheira, Meadas, Marão,
separadas pelo vale do Douro...
Em 2004, os de Paços
é que lançaram o fogo mais vistoso:
"Dois mil contos de réis!"!,
diziam as gentes da terra,
ainda incapazes de raciocinar em termos de euros,
dos milhões de euros do novo Brasil da Europa.
Capricharam, os de Paços de Gaiolo,
mas também era verdade
que eles tinhamo dobro dos fogos
da tua adoptiva freguesia de Paredes de Viadores.
Quinta de Candoz > s/d > Azevinho
Da janela do quarto da aldeia que tu também havias feito tua,
só não podias ver o mar.
E fazia-te falta o mar, confessavas.
O mar.
A maresia.
O azul.
O rugir do grande oceano Atlântico.
E o pôr do sol no mar.
Na exacta e nítida linha do horizonte.
E a silhueta do cabo Carvoeiro
e das Ilhas das Berlengas.
Ah!, quanto falta nos fazia o mar,
ó Sofia, deusa grega antiga.
Mas a hora não pensar nele, no mar.
Nem na mediterrânica luz da poesia da Sofia.
Naqueles domingos de Páscoa de Candoz ,
se te era legítimo ter um pensamento,
de admiração e agradecimento,
ele ía direitinho para os antepassados
que desbravaram Candoz
e ergueram solcalcos e muros de pedra
em antigos montes de carvalho e castanheiro
sem esquecer os teus australopitecos
que nunca terão chegado a estas terras
de Candoz e de Fandinhães,
parte do concelho, extinto em 1836,
a que os antigos, pobres diabos,
chamavam Bem Viver.
Da janela do teu quarto,
com o Porto Antigo ao fundo,
na albufeira do Carrapatelo,
e enquanto aguardavas o compasso pascal,
gritavas ao mundo dos vivos e dos mortos:
"Boas e Santas Páscoas. Nós por cá..., todos bem!"
Texto e créditos fotográficos: © Luís Graça (2023)
Texto poétixo de Luís Graça, originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > 13 Abril 2004 > Portugal sacroprofano - XIX: Boas e Santas Páscoas. Nós, por cá, todos bem!
Texto profundamente revisto e melhorado nesta data, 6/4/2023 (em que a minha querida Joana faz 45 anos, às dez e trinta da manhã; e a nossa Nitas deixou a Terra da Alegria há duas semanas: faria hoje precisamente 49 anos de casada com o homem da sua vida, o Gusto, meu "mano", o "engenheiro" da Quinta de Candoz).