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quinta-feira, 6 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24202: Manuscrito(s) (Luís Graça) (221): Boas e santas Páscoas, nós por cá... todos bem!

 

Quinta de Candoz > s/d > Visita do compasso pascal...


Joana Graça (2014) - Técnica mista, 30 x 40 cm. S/ título

Cortesia de © Joana Graça (2014). Todos os direitos reservados


A Páscoa em Candoz: 
no tempo em que ainda estávamos todos vivos, 
e felizes, e de boa saúde
 

À Nitas (que era a deusa do lar  
e a oficiante da liturgia de Candoz);

À Joana (que hoje faz anos, e que desde pequenina gostava 
de brincar com a fada Oriana em Candoz);

À Chita (que é a mãe da Joana,  a "alma gémea" da Nitas 
e a minha feiticeira  de Candoz);

Ao Gusto (que há 49 anos, em 6/4/1974, se casava com a sua "Nita"
 e que, por amor, se tornou o senhor "engenheiro" de Candoz, 
agora inconsolado e inconsolável com a perda 
daquela que era "mais de metade" do seu ser)

 

Quinta de Candoz > c. 1999 >Os manos e sócios, da esquerda para a direita: Chita (Alice), Nitas (Ana) (1947-2023), Zé e Rosa


Era  domingo de Páscoa na aldeia. 
Fazia frio mas o sol estava esplêndido. 
Era um daqueles dias 
em que a gente  se reconciliava  com a vida. 
Nem que fosse por uns breves instantes. 
Com a vida, mas não necessariamente 
com o mundo. 
Como o Eça e o seu príncipe Jacinto, 
em Tormes, ali ao lado, 
do outro lado do vale,
à volta de um copo de vinho verde, branco,
 de umas cebolinhas do talho 
com presunto ou salpicão.
(Não havia favas, em Candoz, 
havia as ervilhas de quebrar.)

A manhã, primaveril, trazia-te 
os sons, as cores e os cheiros do campo.
Um outro campo que não o mesmo 
da tua infância da Estremadura. 
Descobriste, tarde, esta parte 
do Portugal sacroprofano
que era mais pagão, celta, visigótico e românico 
do que fenício, romano, judeu, mouro ou gótico.

Um citadino, como tu, não sabia 
o que era isso de ouvir, 
logo pela manhã, 
os galos a cantar nos seus galinheiros. 
Ou ver as cerdeiras (cerejeiras) em flor. 
Ou observar os melros de bico amarelo 
pousados nas videiras 
que desabrochavam, em gamões.


Quinta de Candoz > s/d > O pôr do sol nos montes (aqui chamam montes aos pinhais, onde outroram cresciam carvalhos e castanheiros)


Um citadino como tu 
não tinha o privilégio de ouvir falar dos gaviões 
nem das suas frágeis presas. 
Nem sabia por que autoestradas andavam 
as toupeiras, os ouriços-caixeiros 
e as raposas deste país. 
Nem por que razão falavam alto e bom som 
aquelas gentes de além-Douro. 
Nem o seu gosto desmedido pelo fogo 
que ribombava como o trovão.

Nos campos de erva, de diferentes tonalidades de verde,
eram  visíveis as partes  cortadas para as ovelhas, 
entáo recolhidas nas cortes, 
à medida que os gamões das videiras 
cresciam a olhos vistos.

Na grande matança da Páscoa, 
o inocente que era sacrificado, 
era o cordeiro, o anho
o ex-libris da gastronomia da região. 
Já fumegabvam as chaminés 
enquanto ao longe se ouvia
o estralejar dos foguetes. 
O compasso pascal andava por aí, 
alvoraçado como a canalha
já vinha no Alto, já chegava ao Cruzeiro, 
com a cruz abrindo os tortuosos caminhos e estradões
e exorcizando os medos ancestrais.

In hoc signo vinces
Com este sinal vencerás. 
Desde Constantino, o Imperador, 
que a cruz marcava a vida dos servos da gleba 
e depois os cabaneiros, os rendeiros e os camponeses,  
do nascer ao morrer. 

 Levava dois dias a percorrer a freguesia. 
A cruz, o Cristo pregado na cruz, 
o compasso, 
os homens da opa vermelha 
e o menino da sineta, 
de sobrepeliz branca como o anjo. 
Pouco mais de mil almas 
e algumas escassas centenas de fogos, 
dispersos, a visitar:
"Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou!", 
proclamava o homem da opa vermelha, 
o mordomo da festa sacroprofana,
que fazia as vezes do padre.

Em frente o vale e a montanha. 
A linha do Douro.
O rio Douro ao fundo. 
Pacificado,
onde já não chegava o sável e a lampreia,
nem o barco rabelo com o néctar dos deuses.

Cem anos depois, o Eça não voltaria a escrever 
A cidade e as serras.
Havia ainda um mundo a desmoronar-se. 
E testemunhas vivas desse mundo. 
O mundo dos rendeiros e dos camponeses pobres 
que decidiram trocar o arado
e as juntas de bois
e a rega do milho
pela linha de montagem automóvel 
ou pelos chantiers da construção civil 
nos arredores de Paris
ou pelas as fábricas do Porto.


Quinta de Candoz > s/d > A preparação do anho... Ainda a Maria da Graça (1922-2014) (à esquerda) era viva... Veio do Sul em visita aos do Norte. A meio a Alice (Chita) e, à sua esquerda, a cunhada Maria (Mi).


Já havia a barragem do Carrapatelo, 
e as suas eclusas,
as antenas das telecomunicações 
e os moínhos eólicos no alto das serras. 
E o Mercedes de matrícula K.
E o alcatrão. 
E os telemóveis.
E as casas do granito 
arrancado às pedreiras de Alpendorada.
O progresso cobrava o seu preço,
a globalização também. 
Estradas e estradões tinham esventrado 
o cenário bucólico 
que outrora escondia a miséria dos casebres 
dos cabaneirosos mais pobres dos pobres. 

O Zé do Telhado já há muito que morrera, 
desterrado em Angola, 
mas ainda continuava vivo 
nos telhas vãs da memória
das gentes dos vales do Sousa e Tamega
Os netos dos antigos senhores, os fidalgos
proprietários agrícolas absentistas 
do Porto e da Foz do Douro, 
recuperavam as casas dos caseiros 
e faziam delas a sua casa de campo. 
Com piscina e court de ténis. 

O povoamento continuava disperso 
pelo verde e pelos socalcos. 
Os montes estavam carecas 
depois das últimas décadas de incêndios. 
Já há muito que regressara
o último soldado das colónias 
e se escrevera o último aerograma
a dar conta do fim do Império.
Os brasileiros tinham dado lugar 
aos franceses.
E o Porto ali tão perto. 
Cada vez mais perto 
com as autoestradas, as IP e as IC  do país motorizado.

Um mundo quase perfeito, visto da janela do teu quarto. 
Domingo de Páscoa, de manhã. 
Faltavm-lhe só, porventura, os camponeses, 
que morreram. 
E os que emigraram. 
E os que não voltaram. 
E os soldados que morreram, de morte matada,
nas guerras do passado.
E os que morreram, mal haviam nascido. 
Que as famílias eram numerosas 
mas a mortalidade infantil altíssima. 

Passavas os olhos 
pelas paredes da casa, de grosso granito. 
Já tinham albergado 
sete, oito ou mais gerações, 
que os seus registos só iam até 1820. 
Não era nada, se quando sabias  
que os australopitecos, teus antepassados, 
tinham evoluído há 5 milhões de anos, 
200 mil gerações atrás.


Quinta de Candoz > s/d > O fogo, depois do recolher do compasso pascal


No virar do milénio, 
na madrugada do século XXI, 
Cristo continuaria a ressuscitar 
todos os anos, pela Páscoa, 
no Entre-Douro e Minho da tua aldeia
E os cristãos poderiam ver abalada a sua fé,
mas  continuariam a reunir-se 
em casa uns dos outros 
para comer o agnus Dei com arroz de forno. 
E para celebrar o milagre da vida, 
a vitória da vida sobre a morte.

Há quinhentos anos que se deitavam foguetes 
nas vilas e aldeias do teu Portugal sacroprofano. 
Não sabias nada da história do fogo de artifício, 
sabias apenas que viera da velha China 
com as naus quinhentistas. 
Para celebrar a ressurreição de Cristo, 
ou mais prosaicamente para fazer a festa. 
Que era a vitória sobre o trabalho, 
tripaliu(m) que matava a gente. 
E para marcar o tempo, o fluir do tempo, 
o solstício do inverno e do verão, 
a inexorável usura do tempo.

E todos os anos pela Páscoa, 
tu, descendente de austrapolitecos, 
assistias da tua varanda de granito 
à alegria infantil
 dos camponeses durienses, mortos há muito, 
face à orgia de fogo que assinalava, 
em cada freguesia, 
o recolher do compasso pascal. 

Da tua janela vias o mundo 
ou uma parte dele, mesmo ínfíma:
Paredes de Viadores, Mesquinhata, 
Santa Leocádia, Grilo,
Porto Antigo, Paços de Gaiolo... 
Estes nomes, medievos, passariam a ser-te familiares. 
E as serras à volta do teu presépio: 
Montemuro, Aboboreira 
e, mais ao longe, Gralheira, Meadas, Marão, 
separadas pelo vale do Douro... 
Em 2004, os de Paços 
é que lançaram o fogo mais vistoso:
"Dois mil contos de réis!"!,  
diziam as gentes da terra, 
ainda incapazes de raciocinar em termos de euros, 
dos milhões de euros do novo Brasil da Europa. 
Capricharam, os de Paços de Gaiolo, 
mas também era verdade 
que eles tinhamo dobro dos fogos 
da tua adoptiva freguesia de Paredes de Viadores.


Quinta de Candoz > s/d > Azevinho


Da janela do quarto da aldeia 
que tu também havias feito tua, 
só não podias ver o mar. 
E fazia-te falta o mar, confessavas.
O mar.
A maresia. 
O azul. 
O rugir do grande oceano Atlântico.
E o pôr do sol no mar. 
Na exacta e nítida linha do horizonte. 
E a silhueta do cabo Carvoeiro 
e das Ilhas das Berlengas.

Ah!, quanto falta nos fazia o mar, 
ó Sofia, deusa grega antiga.
Mas a hora não pensar nele, no mar. 
Nem na mediterrânica luz da poesia da Sofia. 
Naqueles domingos de Páscoa de Candoz , 
se te era legítimo ter um pensamento,
de admiração e agradecimento, 
ele ía direitinho para os antepassados 
que desbravaram Candoz 
e ergueram solcalcos e muros de pedra
em antigos montes de carvalho e castanheiro
sem esquecer os teus australopitecos 
que nunca terão chegado a estas terras  
de Candoz e de Fandinhães, 
parte do concelho, extinto em 1836, 
a que os antigos, pobres diabos, 
chamavam Bem Viver.

Da janela do teu quarto, 
com o Porto Antigo ao fundo,
na albufeira do Carrapatelo,
e enquanto aguardavas o compasso pascal, 
gritavas ao mundo dos vivos e dos mortos:
"Boas e Santas Páscoas. Nós por cá..., todos bem!"


Texto e créditos fotográficos: © Luís Graça (2023)

Texto poétixo de Luís Graça, originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > 13 Abril 2004 > Portugal sacroprofano - XIX: Boas e Santas Páscoas. Nós, por cá, todos bem!

Texto profundamente revisto e melhorado nesta data, 6/4/2023 (em que a minha querida Joana faz 45 anos, às dez e trinta da manhã; e a nossa Nitas deixou a Terra da Alegria há duas semanas:  faria hoje precisamente 49 anos de casada com o homem da sua vida, o Gusto, meu "mano", o "engenheiro" da Quinta de Candoz).
___________

sexta-feira, 17 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"


Ilustração: © Joana Graça (2008)


Sintra > Azenhas do Mar > 31 de dezembro de 2018 > O último pôr do sol do ano...


(...) Um gajo não é um herói, muito menos um deus.
Afinal, és melhor, camarada: 
és um homem, 
que tens de saber dar corda  aos sapatos e ao coração, 
e que és capaz de parar um segundo frente ao pôr do sol,
e tirar um autorretrato instantâneo
e, como um bom franciscano, 
dizer ao deus-sol:
-Até amanhã, camarada, amigo, irmão! (...) (*)

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição : Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]


Graça, L.  - Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica nos Provérbios em Língua Portuguesa

Parte I : 'Muita Saúde, Pouca Vida, porque Deus não Dá Tudo' (**)

Às vezes quando a doença e a morte me batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública...

Desde ontem no Norte, eu e a Alice, aguardamos o desfecho fatal de uma doença crónica degenerativa e irreversível de que é vítima, desde há 4 anos, alguém que muito amamos.    A nossa Nitas não merecia isto, dizemos com raiva e impotência, mesmo sabendo que ela tem recebido "os melhores cuidados do mundo", no Hospital de São João. 

Para mais tratando-se de uma doença que poderia ter sido evitada, ou prevenida, sendo muito provavelmente de origem profissional ou relacionada com o trabalho (exposição continuada ao benzeno, conhecida substância cancerígena,  no laboratório de química orgânica onde começou a trabalhar no início dos anos 70), se nessa altura, mas também antes e depois,  os portugueses tivessem feito, individual e coletivamente, um maior esforço na proteção da saúde e segurança no trabalho, nas empresas, nos laboratórios, nas universidades, nos campos e nos outros locais de trabalho.  

É uma brutal realidade, mas não é só a guerra que mata: o trabalho mata, muitas vezes lentamente, insidiosamente... E pior ainda: quando saímos de cena, e dizemos, com alguma euforia e muita ingenuidade, no último dia de trabalho: "Amanhã é o primeiro dia do resto da minha vida"... Há quem, infelizmente, não ultrapasse os primeiros anos da reforma...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19 (***), estamos agora a lidar com outra situação-limite, devastadora em termos pessoais e familiares. É uma boa ocasião para pensarmos e reflectirmos sobre  o que é importante, afinal,  na vida. E sobretudo para se ser solidário e emprestar o "ombro amigo" a quem dele precisa ainda mais do que nós...

Pessoalmemente, confesso que não tenho agora, por estes dias,  grande cabeça para escrever sobre  a guerra que nos roubou, a todos, alguns anos de vida e de saúde, ou deixou marcas para o resto da vida. Mas o nosso blogue existe, continua teimosamente a querer viver e sobreviver (vai fazer 19 anos em 23 de abril próximo). E tem que ser "alimentado". Todos os dias, como o nosso corpo...  É um compromisso que temos com os "amigos e camaradas da Guiné", o de publicar todos os dias um ou mais postes.

Daí a portunidade (ou não) deste  e doutros textos que vou buscar ao meu "baú"... Espero, ao menos, que a sua leitura tenha algum proveito para os nossos leitores.  Para mim, é também é uma forma de lidar com o meu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que me estão próximas. Não sei até quando vou ficar por cá, pelo Porto.  No mínimo, até à Páscoa. Vamos falando. H0je, através da "crueldade" dos nossos provérbios a que chamamos populares (****)... LG


1. Provérbios: Arqueologia da Língua e do Saber

Os provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa deveriam decididamente merecer um outro estudo como objetos de investigação científica (sociolinguística, semiológica, histórica, antropológica, sociológica, etc.), para além da sua simples recolha sistemática (por ex., Machado, 1996) ou do seu embrionário tratamento em termos de categorização temática (por ex., Gomes, 1974; Joaquim, 1983; Costa, 1999).

Pondo de lado questões como a sua origem, a sua historicidade, a sua função ideológica, o seu modo de produção e reprodução, etc., vamos limitarmo-nos aqui a analisá-los enquanto representações sociais tanto da saúde e da doença como dos praticantes da arte médica (Herzlich e Pierret, 1984; Graça, 1996).

Gomes (1974. 5) define o conceito de lugar comum como "estrutura frásica, decorada, fossilizada e envelhecida". 

Machado (1996), em O Grande Livros dos Provérbios, não perde tempo a fazer a distinção entre os muitos sinónimos que é habitual a associar-se ao termo provérbio (por ex., adágio, aforismo, anexim, apotegma, axioma, ditado, dito, dito sentencioso, dizer, exemplo, máxima, parémia, preceito, prolóquio, refrão, rifrão, sentença). Para nós, essa distinção também é algo bizantina, devendo ser remetida aos eruditos da língua portuguesa.

O Dicionário Houaiss da Língua Portugesa (Lisboa, 2003) define provérbio como:

(i) uma frase curta;

(ii) geralmente de origem popular;

(iii) frequentemente com ritmo e rima;

(iv) rica em imagens ou metáforas;

(v) sintetizando um ideia a respeito da realidade, uma regra social ou uma normal moral.

Um dos nossos pressupostos, seguindo Gomes (1974), é o de que muitos deles teriam uma matriz ideológica cristã-feudal, indissoluvelmente ligada à ruralidade e à oralidade, por um lado, mas também à cristandade, como um todo. Aliás, muitos deles são comuns às principais línguas europeias, em particular às de origem latina.

Uma das suas particularidades ou originalidades é a forma de expressão

(i) em poucas palavras, resume-se uma ideia-força, por vezes em termos antinómicos ("Deus dá o mal e a mezinha"); além disso,

(ii) são fáceis de decorar ("Espírito são em corpo são"); 

(ii) têm, por vezes, um claro objetivo de crítica social ("Os erros do médico, a terra os come"); 

(iv)  
ou um simplesmente um um propósito didático ("O mal do olho coça-se com o cotovelo");

(v) moralizante ("À custa do doente come toda a gente");

(vi) ou filosófico ("Queres conhecer o teu corpo ? Mata o teu porco").

Enquanto parte de uma arqueologia da língua e do saber e, portanto da nossa própria cultura (Braga, 1986), os provérbios parecem-nos constituir um material no mínimo interessante para o estudo não só da 

(i) história das mentalidades,  como até da 

(ii) emergência dos modernos sistemas, políticas, profissões e práticas de saúde (Mira, 1947; Barbosa, 1984; Goff e Sournia, 1985; Ferreira, 1990; Lemos, 1991; Barbaut, 1991; Cosmascini, 1995; Geremeck, 1995; Sournia, 1995; Graça, 1994, 1996, 1997 e 1999).

Além do mais, há um grande défice da contribuição antropossociológica para a formação pré e pós-graduada dos nossos profissionais de saúde, não só dos nossos médicos e enfermeiros e outros prestadores como dos gestores de serviços de saúde.

Por exemplo, de há muito que é reconhecida a necessidade de se desenvolver a "sensibilidade sociocultural" dos médicos de medicina geral e familiar (Barbosa, 1984). Por outro lado, só muito lenta e tardiamente as nossas faculdades de medicina e as nossas escolas de enfermagem (e de tecnologias da saúde) se têm aberto para o contributo das ciências sociais, em particular da  história, da sociolinguística, da psicologia social, da sociologia e da antropologia.

Daí que o presente texto possa ser visto, também, como uma proposta (modesta) para repensarmos a história da saúde, da doença e da medicina em Portugal , ainda largamente dominada até ao final do séc. XX  dominada pelo iatrocentrismo e pelo etnocentrismo (Mira, 1947; Ferreira, 1990; Lemos, 1991).

É hoje relativamente pacífica a ideia de que:

(i) não há só uma medicina;

 (ii) nem um só modelo etiológico ou explicativo de saúde/doença. 

J. Ch. Sournia, conhecido médico francês e historiador da medicina, relativiza a pretensa universalidade da medicina (ocidental), pondo o acento tónico naquilo que é, por essência, o ato médico, desde a Grécia Antiga até às nossas atuais sociedades da informação:

"O ato médico coloca uma pessoa que se considera doente na presença de outra à qual atribui poder e conhecimentos. Nenhuma destas circunstâncias pode escapar à história: o desejo de ser tratado é justificado por uma dor ou uma anomalia na aparência ou no funcionamento do corpo, cuja apreciação varia de acordo com as épocas, as culturas, as sociedades e as religiões", escreve J. Ch. Sournia, na sua História da Medicina (Sournia, 1995. 7).

Muitos destes provérbios e expressões idiomáticas da língua portuguesa devem ser tratados como verdadeiros "fósseis" da filosofia de senso comum. Todos eles fazem parte do nosso património cultural mas alguns deles ainda são verdadeiros "fósseis vivos".

No mínimo, veiculam representações sociais (Vala, 2002) da saúde, da doença, da dor, da morte e da medicina e dos seus praticantes, que ainda hoje sobrevivem sob a forma de estereótipos, preconceitos e teorias espontâneas, e que às vezes emergem, aqui e acolá, no discurso e na prática dos atores sociais.

Alguns, inclusive, são verdadeiras joias do pensamento sincrético (tal como alguns dos grafitos que, teimosamente, provocatoriamente, cobrem muros e paredes das nossas cidades). Pensamos que uma parte deste património cultural pode e deve ser recuperadas por aqueles de nós que lutam pelo triunfo de uma nova saúde pública.

Alguns destes provérbios podem inclusive ser usados no âmbito da educação e da promoção da saúde, nomeadamente aqueles que estão relacionados com fatores de risco e fatores protetores da saúde (físicos, químicos, biológicos e psicossocais).

Vou exemplificar alguns destes pontos de vista, através da análise, meramente exploratória, de um primeiro corpus de provérbios portugueses que está longe de ser exaustivo e sistemático: no essencial, baseia-se nas recolhas feitas por Gomes (19974) e Machado (1996); há outras fontes avulsas (incluindo inúmeros sítios na Internet) que, por economia de espaço e de tempo, não vou aqui referir.

Machado (1996) reuniu mais de 26 mil entradas, organizadas por ordem alfabética. Nalguns casos, é referida a mais antiga documentação da sua origem que o autor conseguiu obter, anterior ao Séc. XIX. Por outro lado, Costa (1999) compilou e classificou em termos temáticos mais de 40 mil provérbios, num paciente trabalho digno de monge, ao longo de toda uma vida.

Diga-se, por fim, que é discutível o estatuto de provérbio, português e de origem popular, que é atribuído a um ou outro dos objetos seleccionados. Alguns são de origem bíblica, latina e erudita. Não vamos, porém, perder tempo com essa discussão.

Outros confundem-se com o calão usado pelas classes populares. Por muito que isso possa ferir algumas sensibilidades, entendemos que não tínhamos o direito, enquanto estudiosos destes materiais significantes, de os amputar, censurar, branquear ou suavizar... O que importa é a sua apropriação pelos falantes da língua portuguesa, o seu uso mais ou menos socialmente alargado e historicamente documentado.


2. A Representação da Doença e do Doente

Na ideologia cristã-feudal, a doença é representada socialmente da seguinte forma esquemática (Quadro I):

(i) está quase sempre associada à morte ("Mal viver, mal acabar"; "Tosse seca, trombeta da morte"; "Doença comprida em morte acaba"; "Não há morte sem achaque");

(ii) e, muitas vezes, à morte em massa de que a peste negra de 1348-1351 e o infernal ciclo de epidemias que se lhe seguiu durante mais de quatro séculos é o termo de comparação ("Não matou mais a Peste Grande de Lisboa", ou seja, a de 1569) (Quadro III);

(iii) é vista como algo de inelutável, que transcende a vontade humana e contra a qual o homem é totalmente impotente ("Boda e mortalha no céu se talha"; "Deus faz o que quer e o homem o que pode") (Quadro II);

(iv) e quase sempre um castigo ou uma provação de um Deus que é estranha e misteriosamente um pai maniqueísta, justiceiro e misericordioso ("A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"; "De Deus vem o mal e o bem"; " Deus o dá Deus o leva"; "Deus castiga sem pau nem pedra"; "É tão bom Deus como o Diabo");

(v) e que só Deus, e não os médicos, pode curar ("De hora a hora Deus melhora"; "Deus dá o mal e a mezinha"; "Deus fere porém Suas mãos curam").

Até à criação do Estado Moderno (grosso modo, até ao fim do Ancién Régime ou Antigo Regime, no nosso caso até à revolução
o de 1820) não faz qualquer sentido falar-se em sistemas e políticas de saúde ou de protecção social ou até de assistência pública.

Estes conceitos irão surgir, lentamente, como resposta aos efeitos perversos da revolução industrial e urbana, operada pelo desenvolvimento do capitalismo liberal, bem como às profundas transformações demográficas, sociais, económicas, científicas, culturais e políticas que marcam o Século XIX . Nomeadamente o conceito de assistência pública é um conceito burguês que irá emergir da Revolução Francesa (Graça, 1996).


Quadro I — Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a doença e o doente

Objeto

Provérbio

Doença /  Enfermi- dade

  • "A bouba (1) dói é no cu de quem tem"

  • "A doença e a dor conhecem-se na cor"

  • "A doença vem a cavalo e vai a pé"

  • "A doença vem às braçadas e sai às polegadas"

  • "As sezões vêm a cavalo e voltam a pé"

  • "Doença comprida em morte acaba"

  • "Febre hermititeus não cura senão Deus" (2)

  • "Febre outonal ou longa ou mortal"

  • "Fora de horas urinar é sinal de enfermar"

  • "Melhor é curar gafeira (3) que casa inteira"

  • "O mal vem às braçadas e sai às polegadas"

  • "Sarampo, sarampelho, sete vezes vem ao pêlo"

Doente

 

 

 

 

  • "À custa do doente come toda a gente"

  • "Doente mudou de cabeceira, morte certa"

  • "Doente que espirra, não morre no dia"

  • "Em casa de doente o lugar não se aquente"

  • "Feliz o doente que se conhece"

  • "Não fujas que eu não tenho lepra"

  • "Não há doenças, só há doentes!"

  • "Não há nada pior para a saúde do que a gente estar doente"

  • "O são ao doente em regra mente"

  • "Terra ruim e mulher doente é que quebra a gente"

  • "Um doente come pouco e gasta muito"


(1) Termo que em meados do Séc. XVI passou a designar as doenças do foro dermatológico, com especial destaque para as doenças venéreas, como a sífilis; (2) Intermitente, segundo Machado (1996. 232); referência provável ao sezonismo ou sezões; (3) Lepra

Até à Renascença (grosso modo, até ao Séc.XVI)   não há sequer um clara noção do que seja a saúde, em termos individuais ou colectivos. De resto, "não há doenças, só há doentes" (Quadro I).

A única excepção são a lepra e as epidemias que devastam a Europa medieval e a que Herzlich e Pierret (1984) chamam l'Ancién Régime du Mal, o Antigo Regime do Mal...

Enquanto hoje a doença crónica é (ou pode ser) vista como uma forma de vida, a epidemia será então uma forma de morte. A doença era marcada por três características 
(Herzlich e Pierret, 1984. 23):

(i) o número;

(ii) a impotência e a morte;

(iii) a exclusão social.

De facto, com a epidemia, não há doentes individualizados: não se morre só, em casa ou no hospital, morre-se em massa, por toda a parte, das formas mais cruéis e macabras (por ex., emparedado vivo com toda a família).

A morte é algo de inelutável, indizível e fatal, sendo a exclusão a única saída. A resposta colectiva, através da "socialização do mal", será a do internamento forçado e da brutal segregação dos doentes (Foucault, 1972; Geremek, 1995).


Quadro II— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre Deus enquanto ‘fatum’

Objeto

Provérbio

Deus / 

Fatum

 

 

  • "A quem Deus não açoita é sinal de que o não perfilha"

  • "Ao menino e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo"

  • "Boda e mortalha no céu se talha"

  • "Cada qual é como Deus o fez"

  • "De Deus lhe venha o remédio"

  • "De Deus vem o mal e o bem"

  • "De hora a hora Deus melhora"

  • "De tudo Deus se serve"

  • "Deixai fazer a Deus que é santo velho" (Séc. XVI)

  • "Deus castiga sem pau nem pedra"

  • "Deus dá o mal e a mezinha"

  • "Deus escreve direito por linhas tortas"

  • "Deus faz o que quer e o homem o que pode"

  • "Deus fere, porém Suas mãos curam"

  • "Deus mora na igreja, não sai de casa e ainda por cima se tranca dentro do sacrário"

  • "Deus o dá Deus o leva" ou "Deus o dei Deus o levou"

  • "Diz o são ao doente: 'Deus te dê saúde' "

  • "Em tempo de inverno, ninguém se fie em Deus"

  • "Enquanto há saúde quedos estão os santos"

  • "Febre hermititeus (1) não cura senão Deus"

  • "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

  • "O diabo não é tão feio como o pintam"

  • "O futuro a Deus pertence"

  • "Quando Deus não quer, os santos não podem"

  • "Quando Deus não quer, santos não rogam" (Séc. XVI)

  • "Quando Deus o assinalou,  alguma coisa má lhe achou"

  • "Quando Deus se atrasa, vem um anjo no caminho"

  • "Saúde e geração não se apura"

  • "Tão bom é Deus como o Diabo"


(1) Intermitente, segundo Machado (1996. 23); referência provável ao sezonismo.

No caso da lepra, os doentes eram apartados da comunidade e da família, despojados dos seus bens, submetidos a um macabro simulacro de funeral em vida, além de serem obrigados a viver da caridade, a usar um vestuário distintivo e a fazer-se anunciar através do toque de matracas, junto às povoações e nas vias públicas.

A lepra era, na Alta Idade Média, a Doença, por antonomásia. Conhecida desde a antiguidade, é amplamente citada na Bíblia como a doença do pecado da carne, logo um terrível castigo divino, susceptível de se propagar às gerações seguintes.

Com as Cruzadas (Séc. XI), aumentou consideravelmente o número de leprosos e, em consequência, multiplicaram-se as leprosarias (ou gafarias, em Portugal) ao ponto de terem existido em França mais de duas mil, por volta de meados do Século XIII (Imbert, 1958).

A partir de finais do Século XIV, esta terrível doença que marcou o imaginário do homem medieval ("Não fujas que eu não tenho lepra" é uma expressão que ainda hoje se usa em Portugal), tenderá a regredir no Ocidente. O regresso dos cruzados terá igualmente contribuído para a introdução de muitas doenças transmissíveis, até então desconhecidas na Europa, e que se transformaram em temíveis epidemias e doenças endémicas (peste, tifo, varíola, etc.).

A mais mortífera de todas foi, contudo, a peste negra (do latim pestis, derivado de peius, "a pior doença") , designada sob a forma de múltiplas expressões como febris pestilentilis, infirmitas pestifera, morbus pestiferus, morbus pestilentialis, mortatitas pestis ou muito simplesmente pestilentia. Estima-se que, em meados do Séc. XIV, terá vitimado cerca de 25 a 30 milhões de pessoas (entre um terço a um quarto da população do Ocidente), a maior catástrofe demográfica de que os europeus têm memória.

Quanto à sífilis (também conhecida como morbo serpentino, mal das boubas, morbo gálico, etc.), é já, claramente, um pandemia pós-feudal, resultante do florescimento das cidades, da economia mercantil, da mobilidade espacial e sobretudo das viagens marítimas intercontinentais: trazida, ao que parece,  do Novo Mundo pelos marinheiros de Cristovão Colombo, era conhecida como o mal francês (morbo gálico) na Itália, como o mal italiano em França, como o mal português na Índia, como o mal espanhol nas Américas, como o mal cristão entre os otomanos, e assim sucessivamente (Mira, 1947. 103-104).

Embora não haja dados que permitam calcular as taxas de natalidade e mortalidade da população portuguesa nos Séculos XIV e XV, aceita-se como pacífico que fossem muito elevadas. Segundo os historiadores, a média de vida ou a esperança de vida após a puberdade situar-se-ia entre os 35 e os 40 anos. O que aliás está implícito nalguns dos provérbios seleccionados (Quadro III e Quadro IV):
  • "A morte não escolhe idades";
  • "Até aos 40 bem eu passo, dos 40 em diante 'ai a minha perna, ai o meu braço' ";
  • "De quarenta arriba não molhes a barriga";
  • "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba";
  • "Na era de 31, poucos moços, velhos nenhum".
A começar pela capital do Reino, sempre foi alta a taxa de morbilidade e de mortalidade da população portuguesa. Mesmo no auge dos Descobrimentos, a deslumbrante e magnífica Lisboa, celebrada por viajantes estrangeiros que aportavam ao estuário do Tejo, não passava de uma montureira em que a peste era endémica (do grego en+demos, no meio do povo):

A Lisboa que o médico, de origem hebraica, Amato Lusitano (1511-1568) evoca nas suas Centuriae curationum medicinalium, não é apenas a do conhecido 'postal ilustrado', publicado na obra de J. Braunius, Civitates orbis terrarum (1572);

Para além da sua ímpar topografia e da benignidade do seu clima, a par da grandiosidade do seu porto, muralhas, palácios, igrejas e conventos, Lisboa continua a ser uma cidade medieval no que respeita à sua malha urbana e sobretudo às suas condições sanitárias (Graça, 1996).

Como diz Ricardo Jorge (s/d. 170), "as ruas afogavam-se em estrumeiras; quem podia, só as transitava a cavalo. Canos, apenas mencionados no regimento de municipal de 1502, só ao findar do século XVI é que tinham traçado figurável - tudo parcelar e desconexo, contando-se tão somente dois canos reais". A par isso, "na praia vazavam-se todos os despejos e despojos; e a barbárie era tal que os próprios cadáveres dos escravos eram deitados ao monturo, entregues ao dente do cão, do rato e à podridão livre".

Ricardo Jorge referia-se nomeadamente ao execrável hábito de lançar os cadáveres dos escravos negros e mouros ao Estuário do Tejo (por ex., na praia de Santos ou a partir da escarpa de Santa Catarina). Esta prática, muito pouco misericordiosa, atentatória da saúde pública, terá levado D. Manuel I a mandar construir dois poços funerários (o dos Negros e o dos Mouros), onde os cadáveres eram lançados e, periodicamente, cobertos de cal viva!

E acrescenta o autor da biografia de Amato Lusitano:

"Daí a mortandade, a curteza de vida. Amato viu superiormente, e é o primeiro a dizê-lo, quanto Lisboa reduzia a vida dos seus habitantes, assinalando o seu regime de baixa longevidade; e, antecipando-se à observação mais moderna, afirma de ciência certa que a maior parte dos lisboetas sucumbem às primeiras idades - maiori ex parte juvenes e vita decedunt " (Jorge, s/d. 170-171).

A doença, a infelicidade e a morte também estão intimamente associadas à pobreza (Quadro IV):
  • "De gente pobre até o rasto é triste";
  • "Desgraça do pobre é ter nascido";
  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente".
Quadro III - Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a morte e a peste

Objeto

Provérbio

Morte/ Vida

  • "A morte não escolhe idades"

  • "A tris matou quem quis" (1)

  • "A vida é um sono de que a morte nos desperta"

  • "A vida tem uma porta só, a morte tem cem"

  • "Ano de muito peixe ano de mortes"

  • "Antes a morte que tal sorte"

  • "Esta vida são dois dias e o Carnaval são três"

  • "De má vida se engendra a morte"

  • "Esta vida não chega a netos nem a filhos com barba"

  • "Mais vale andar neste mundo em muletas do que no outro em carretas"

  • "Mais vale morte que má sorte"

  • "Mal desconhecido com seu dono morre"

  • "Mal viver, mal acabar"

  • "Morreu, acabou-se"

  • "Na hora da morte não vale a pena tomar remédio"

  • "Nada mais certo do que a morte; nada mais incerto do que a hora da morte"

  • "Não há cousa tão junta a outra como a morte à vida" (Séc. XVI)

  • "Não há morte sem achaque"

  • "Nem rei nem papa à morte escapa"

  • "O que no leite se mama,  na mortalha se derrama"

  • "O sono é a imagem da morte"

  • "O temor da morte é a sentinela da vida"

  • "Onde entra a morte entra a má sorte"

  • "Para a morte o remédio é abrir-lhe a boca"

  • "Para tudo há remédio senão para a morte" (Séc. XVI)

  • "Quem de novo não morre de velho não escapa"

  • "Quem mal vive mal acaba"

  • "Quem nasceu para a forca não morre afogado"

  • "Quem se mata morto fica e, se não morre, entesica"

  • "Só uma porta a vida tem, enquanto a morte tem cem"

  • "Tal vida tal morte"

  • "Temer a morte é morrer duas vezes"

  • "Tosse seca – trombeta da morte"

Epidemia/ Peste

  • "Fuge cito vade longe rede tarde" (4)

  • "Da fome, da peste e da guerra e do bispo da nossa terra - libera nos, Domine"

  • "Dia de São Silvestre (5), não comas bacalhau que é peste"

  • "Em tempo de guerra e peste é mentira como terra"

  • "Livre-te de fruta mal sazonada que é peste disfarçada"

  • "Mal de muitos é peste"

  • "Não matou mais a Peste Grande de Lisboa" (2)

  • "Se durante a epidemia temeres a morte, serás presa dela" (3)



(1) Icterícia, segundo Machado (1996: 55); (2) A de 1569; (3) Adágio oriental (Mira, 1947: 405); (4) Provérbio latino usado na Idade Média ("Foge depressa, vai para longe e não voltes não cedo"); (5) 31 de Dezembro

De qualquer modo, o facto de não haver uma consciência colectiva da saúde/doença terá a ver, antes de mais, com o nível de conhecimento sobre a etiologia (ou a causalidade) das doença humanas:

  • Até à revolução bacteriológica de meados do Séc. XIX (protagonizda por Pasteur, Koch e outros), as doenças infecciosas eram atribuídas a misteriosos miasmas; daí (i) o sentido do provérbio português "Livra-te dos ares, que eu livrar-te-ei dos males" e (ii) a vulgarização de práticas mais ou menos ritualizadas como as fogueiras nas ruas em caso de epidemia, as fumigações de pessoas, animais, objectos e casas, a travessia das ruas por manadas de gado bovino, etc.;
  • Quanto às doenças não transmissíveis, essas, continuavam a ser, ainda até há relativamente pouco tempo, um outro "mistério";
  • De facto, só a partir dos anos 60 foi possível tentar "uma interpretação global das relações existentes entre as condições de vida, a saúde e o crescimento da população" (McKeown, 1990. 13).

Quadro IV —Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre a pobreza e a velhice

Objeto

Provérbio

Pobre / Pobreza

  • "De gente pobre até o rasto é triste"

  • "Desgraça de pobre é ter nascido"

  • "Entre ricos e pobres alguém há-de escapar"

  • "Frango na panela do pobre é desgraça certa, doença do pobre, 'bouba' do franguinho ou raiva do vizinho"

  • "Os pobres têm tempo"

  • "Por pouca saúde, vale mais nenhuma"

  • "Pobre com pouco se alegra"

  • "Quando pobre come frango, um dos dois está doente"

Idade / Tempo / Velhice

  • "A morte não escolhe idades"

  • "A saúde nos velhos é mui remendada"

  • "Até aos 40 bem eu passo, dos 40 em diante 'ai a minha perna, ai o meu braço' "

  • "A velhice não tem cura"

  • "Cabelos brancos, flores de cemitério"

  • "De quarenta arriba não molhes a barriga"

  • "Em uma hora se paga quanto se erra em toda a vida (Séc. XVI)

  • "Engorda o menino para crescer e o velho para morrer"

  • "Esta vida são dois dias"

  • "Hoje com saúde, amanhã no ataúde"

  • "Hoje na figura, amanhã na sepultura"

  • "Hora de morrer não tem retardo"

  • "Mal vai à corte em que o  boi velho tosse"

  • "Na era de 31, poucos moços,  velhos nenhum"

  • "Não há moço doente nem velho são"

  • "O menino engorda para crescer e o velho para morrer"

  • "O tempo dá o remédio onde me falta o conselho"

  • "O tempo tudo cura "

  • "O tempo tudo cura menos velhice e loucura"

  • "Perde-se o velho por não poder e o novo por não saber"

  • "Por um dia de prazer um ano de sofrer"

  • "Porco de um ano, cabrito de um mês, mulher dos dezoito aos vinte e três"

  • "Prisca idade, priscos tempos" (1)

  • "Quem a trinta não tem siso a quarenta não é rico"

  • "Quem faz em novo paga em velho"

  • "Teme a velhice porque nunca vem só"

  • "Um dia pior, outro melhor"

  • "Velho não se senta sem 'ui', nem se levanta sem 'ai' "

  • "Velho que de si cura cem anos dura"


(1) Prisco=antigo (em linguagem poética)


Em suma, foi preciso esperar pelo século XIX para que se fizesse luz sobre a natureza das doenças transmissíveis. Em escassas dezenas de anos, os progressos da bacteriologia e virologia tornam-se espectaculares (Quadro V).

Em contrapartida, só na segunda metade do século XX é que foi posta em evidência a etiologia multifactorial de doenças crónicas como o cancro, a diabetes ou a cardiopatia isquémica, e o peso que nesse tipo de doenças tinham (e têm) os factores ambientais e comportamentais, e não apenas os biológicos ou genéticos.

No complexo puzzle das teorias explicativas da saúde/doença, há hoje quatro evidências empíricas que McKeown (1990:14) considera como fundamentais:
  • O reconhecimento de que o genoma humano é sensivelmente o mesmo do primitivo Homo Sapiens Sapiens, ou seja, dos nossos antepassados caçadores-recolectores de há cem mil anos;
  • A descoberta de que, nos países desenvolvidos, o salto qualitativo em termos de melhoria do estado de saúde e de crescimento populacional começou um século antes da medicina ter meios eficazes de intervenção no combate às doenças, sendo esse salto atribuído, em grande medida, à melhoria da envolvente socioeconómica (alimentação, habitação, saneamento básico, higiene ambiental e pessoal, nível de instrução e de informação, serviços de saúde pública, etc.);
  • A descoberta, pelas ciências biomédicas, da natureza das doenças infecciosas e da possibilidade da sua prevenção pela dupla via do aumento da resistência do organismo humano e da redução da exposição aos agentes transmissores;
  • E, finalmente, o reconhecimento (este muito mais recente, de há quarenta anos para cá, desde os anos 60 do séc. XX ) de que a maior parte das doenças não transmissíveis não podem ser apenas imputáveis àbiologia humana e à constituição genética, mas também ao sistema socioecológico em que vive o homem moderno; nessa medida, podem ser objecto de prevenção, através da eliminação, redução ou controlo dos factores de risco quer ambientais quer comportamentais.

Quadro V - Alguns dos principais genes patogénicos identificados na época de ouro da bacteriologia

Ano

Germes patogénicos

Autor

País

1875

Lepra

Hansen

Noruega

 

Amebíase

Loesch

Alemanha

1878

Furúnculo

Pasteur

França

1879

Febre puerperal

Roux

França

 

Blenorragia

Neisser

Alemanha

1880

Malária/ Paludismo

Laveran

França

 

Febre tifóide

Eberth

Alemanha

1882

Tuberculose

Koch

Alemanha

1883

Cólera

Koch

Alemanha

1884

Tétano

Nicolaïer

Rússia

1887

Febre de malta

Bruce

Grã-Bretanha

1889

Cancro mole

Ducrey

Itália

1894

Peste

Yersin

França

1901

Doença do sono

Dutton

Grã-Bretanha

1905

Sífilis

Schaudinn

Alemanha

1906

Coqueluche

Bordet

França

1909

Tifo

Nicolle

França



Fonte: Adapt. de Sournia (1995: 260)

Referências bibliográficas (a publicar no final da série)

(Continua)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19370: Manuscrito(s) (Luís Graça) (149): O último pôr do sol... nas Azenhas do Mar

(**)  Adpat. de um texto do autor, de 2000, publicado na sua página pessoal, Saúde e Trabalho - Luís Graça; u
ma outra versão, mais abreviada, foi publicada no Médico de Família, III Série, 6 (Junho 2000)

(***) Vd. postes de:

2 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20800: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado ? (Luís Graça) - Parte I: A lepra, a doença por antonomásia na Idade Média

4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"

7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20827: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte III: Entrevista dada ao jornalista José Pedro Frazão, programa "Da Capa à Contracapa", emitido aos sábados, às 9h30, na Rádio Renascença
14 de abril de 2020 Guiné 61/74 - P20855: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte IV: Saúde e terror até ao fim do Antigo Regim

(****) Último poste da série > 12 de dezembro de  2022> Guiné 61/74 - P23870: Manuscrito(s) (Luís Graça) (215): Verão de 68