terça-feira, 14 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20855: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte IV: Saúde e terror até ao fim do Antigo Regime


Lisboa, vista em perspectiva. Gravura em cobre, meados do Séc. XVI  (Pormenor) (in G. Braun - Civitates Orbis Terrarum.., vol. V, 1593) (Fonte: Museu da Cidade de Lisboa).

Em meados do Séc. XVI, a cidade de Lisboa não sofrera grandes alterações desde o reinado de D. Manuel. Destaque, ao centro, para a representação do Terreiro do Paço e, mais a norte, a Praça do Rossio, com os edifícios do Paço dos Estaus, ao fundo,  e do Hospital Real de Todos os Santos, do lado direito. O hospital ocupava grande parte do que é hoje a Praça da Figueira. Em 1569, no reinado de Dom Sebastião, por por acasião da "Grande Peste",   a cidade perde um terço dos seus habitantes. Era então uma das maiores cidades da Europa.


Mesmo no auge dos Descobrimentos, a deslumbrante e magnífica Lisboa, celebrada por viajantes estrangeiros que aportavam ao estuário do Tejo, não passa de uma montureira em que a peste é endémica. A Lisboa que o médico, de origem hebraica, Amato Lusitano (1511-1568) evoca nas suas "Centuriae", não é apenas a do conhecido "postal ilustrado", publicado na obra de J. Braunius, Civitates orbis terrarum (1572). Para além da sua ímpar topografia e da benignidade do seu clima, a par da grandiosidade do seu porto, muralhas e palácios bem como das centenas das suas igrejas e conventos, Lisboa continua a ser uma cidade medieval no que respeita à sua malha urbana e sobretudo às suas condições sanitárias.





Como diz Ricardo Jorge, na sua biografia de Amato Lusitano (s/d. 170/171), "as ruas afogavam-se em estrumeiras; quem podia, só as transitava a cavalo. Canos, apenas mencionados no regimento de municipal de 1502, só ao findar do século XVI é que tinham traçado figurável - tudo parcelar e desconexo, contando-se tão somente dois canos reais. Na praia vazavam-se todos os despejos e despojos; e a barbárie era tal que os próprios cadáveres dos escravos eram deitados ao monturo, entregues ao dente do cão, do rato e à podridão livre". E acrescenta: "Daí a mortandade, a curteza de vida. Amato viu superiormente, e é o primeiro a dizê-lo, quanto Lisboa reduzia a vida dos seus habitantes, assinalando o seu regime de baixa longevidade; e, antecipando-se à observação mais moderna, afirma de ciência certa que a maior parte dos lisboetas sucumbem às primeiras idades - maiori ex parte juvenes e vita decedunt ".


Até aos séc. XVI/XVII, há três grandes
Luís Graça,
docente jubilado da ENSP/NOVA
 epidemias com maior ou menor impacto na situação sanitária e demográfica da Europa Cristã: a lepra, a peste e a sífilis. No séc. XVIII,o maior flagelo será a varíola. E, depois com a industrialização, o tifo, a febre amarela,  a cólera, a tuberculose, passam a ser os novos problemas de saúde pública, a par dos acidentes de trabalho. 


Estamos a abordar cada uma delas, para procurar tirar algumas lições para os dias de hoje, em que enfrentamos a pandemia de COVID-19.

Recorremos para isso a textos, já com duas décadas, que continuam disponíveis na página Saúde e Trabalho: Página Pessoal de Luís Graça, Sociólogo, alojada do sítio da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade MOVA de Lisboa.


São excertos de textos que estamos a rever e a atualizar, mas também a aligeirar, retirando por exemplo  maior parte das citações e referências bibliográficas, descabidas num blogue como este. Depois da lepra  e da peste, duas epidemias que continuam no nosso imaginário, depois da peste negra (1348-1253) ,  o maior desastre demográfico da Europa, o Ocidente cristão continua assolado por um um ciclo de pestes que se prolonga até ao séc. XVII. Importa pereceber melhor as medidas que foram sendo tomadas pelos nossos embrionários sistemas de saúde.


1. "Regimento do Que se Ha-de Observar Succedendo Haver Peste (de que Deus nos Livre!)" (1695)


As preocupações com a defesa da saúde pública não são exclusivas do Estado Moderno, ou seja, dos últimos dois séculos, já vêm de muito mais longe. Em todo o caso, as medidas propostas tanto pelo poder central e pelos municípios como pelos próprios médicos que se interessaram pela higiene (sinónimo de saúde pública até aos princípios do séc. XX), sempre foram avulsas, inconsequentes e, em grande parte, ditadas pelo terror que inspiravam as cíclicas epidemias.por ex., rarefacção da mão de obra nos campos e subida dos salários) e nos reinados seguintes. 

O curto reinado de D. Pedro I (que sobe ao trono em 1357 e morre em 1367), é marcado pelos efeitos da terrível crise demográfica, sanitária, social e económica em que está mergulhado o reino de Portugal bem como o resto da Europa. 

Mas, por outro lado, essa conjuntura vai ser propícia ao reforço do centralismo laico e estatal, de que D. Dinis fora o arquitecto. Para fazer face aos novos surtos de peste que se registam até 1365, e para impedir o alastramento da doença, são tomadas sobretudo medidas repressivas, incluindo a perseguição às feiticeiras e a discriminação contra os judeus.

A partir das três principais fontes que compulsou (Leis Extravagantes, de Duarte Nunes de Leão, princípios do Séc. XVII; Colecção dos Regimentos por Que se Governa a Repartição de Saúde do Reino, 1819; Elementos para a História do Municipio de Lisboa, de E. Freire de Oliveira, 1881), o grande historiógrafo da medicina portuguesa, Maximiano Lemos  (Régua, 1860- Porto, 1923)  inventariou e analisou sumariamente o essencial da legislação sanitarista que foi promulgada desde o início do Séc. XVI ao Séc.XVIII (
Lemos, 1991. 155-159).

Sobre a natureza desta legislação, o nosso ilustre historiógrafo da medicina portuguesa começa, aliás, por fazer uma distinção entre:

(i) aquela que se reporta à "profilaxia das epidemias" (sic), em geral emanada pelo poder régio;

(ii) e a que se refere a "medidas de higiene local", em princípio da iniciativa dos municípios (ou, pelo menos, dos principais municípios do Reino, com destaque para o de Lisboa).

O conceito de prevenção das doenças transmissíveis ou infectocontagiosas era, obviamente, desconhecido na época, embora já fosse intuitivo para os médicos de formação arábico-galénica. A sua fundamentação científica, como se sabe, é recente, remontando ao triunfo da bacteriologia, com Pasteur e Koch,  na segunda metade do Séc. XIX.
 

Medidas que hoje são óbvias,como a higienização das mãos e das superfícies, a desinfeção, a esterilização, enfim, a antissepsia e a assepia, eram complemente estranhas à medicina e aos médicos... A teoria miasmática das doenças e a teoria da geração espontânea eram então dominantes... Foi preciso que surgisse a 1ª revolução científica e técnica no campo da medicina, em meados do sec. XIX para que estas teorias se tornassem, pouco a pouco, obsoletas.

O que os tratadistas da higiene, enquanto ramo do conhecimento e da prática médicas, podiam até aí propor não era mais do que um conjunto de medidas elementares com vista não só a erradicar a doença ou eliminar as suas causas (atribuídas a estranhos miasmas ou à conjugação dos planetas, em particular Saturno, Júpiter e Marte) como sobretudo a minimizar, tanto quanto possível, os seus efeitos devastadores. 

Para se ter uma ideia desses efeitos, basta referir que,  durante a Grande Peste de Lisboa , que durou de julho de 1569 à primavera de 1570, terão morrido 50/60  mil pessoas (Roque, 1982). Tudo indica que tenha sido trazida por mercadores vindos de Veneza, dando razão mais uma vez ao provérbio Mercator, ergo pestiferus (Sou mercador, logo portador de peste). De qualquer modo, ficou na memória dos portugueses que grafaran a expressão e no passado usavam o provérbio "Não matou mais a Grande Peste de Lisboa", quando precisavam de um termo de comparação para uma grande mortandade.

A natureza endémica ou epidémica da doenças então mais prevalentes, aliada ao total desconhecimento da sua etiologia e à total ineficácia terapêutica, não dava aos médicos grandes alternativas de acção. 

A via da repressão, com as suas diversas variantes (v.g., isolamento, segregação, internamento forçado ou abandono puro e simples dos doentes), é o traço comum do sanitarismo até ao final do Antigo Regime. O termo "quarentena" só aparece nas línguas modernas (por ex., em inglês) no princípio do sec. XVII); o cordão sanitário (, do francês, "cordon sanitaire", é um terno de meados do séc. XIX.

A pouco e pouco vai-se criando um corpo de administração de saúde (provedor-mor de saúde e seus ajudantes), fazendo parte integrante do aparelho de Estado.

Um dos regimentos de saúde mais antigos que se conhece é o alvará de 1506, no reinado de D. Manuel I, estipulando violentas medidas de repressão para quem, acometido de "peste" (nome comum para muitas das doenças transmissíveis da época), entrasse na cidade ou para quem mandasse para a cidade algum "empestado": multas, penas como çoites em público, ou degredo na ilha de S.Tomé. Outras providências: marcação, com sinais especiais, das casas com doentes empestados; criação da futura "Casa da Saúde", no Vale de Alcântara, em Lisboa; enterramentos em cemitérios especiais; fecho das casas de prostituição ao sol posto, etc.

Era compreensível o terror que as epidemias (e sobretudo as de peste bubónica, depois da pandemia de 1348-1353), ainda continuava (e continuaria) a infundir século e meio depois. Talvez mais aos burgueses e à "outra gente de melhor condição", a começar pelo rei e a sua corte, a nobreza e o alto clero, do que propriamente à arraia miúda (na feliz expressão de Fernão Lopes) para quem a experiência continuada da miséria, da doença, do sofrimento e da morte fazia parte integrante do seu quotidiano. 

De qualquer modo, ficou-nos da memória dessa época ditados como: "Da fome, da guerra e da peste ...e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine!" ou "Não matou mais a Grande Peste de Lisboa" (a de 1569).

Não sabemos como, na prática e com que relativa eficácia, eram aplicadas estas medidas punitivas por parte do poder régio, secundado pelo provedor-mor de saúde. De qualquer modo até as penas, devidas por infracções às leis sanitárias, eram diferenciadas, em função da condição social do infractor:

(i) o peão era açoitado em público e, em seguida, posto em degredo, na Ilha de S. Tomé, durante sete longos anos;

(ii) ao escudeiro, cavaleiro ou mercador, aplicava-se uma pena mais suave e menos vergonhosa: multa e dois anos de degredo que o rei, eventualmente, comutaria em fixação da residência por uns meses numa qualquer aldeia da Beira Interior.

Na legislação de 1506 previa-se já a construção de um tipo de estabelecimento, completamente novo, distinto do hospital e da gafaria: destinar-se-ia, em particular aos pestiferados e aos portadores de doenças infectocontagiosas que não podiam ser internados no Hospital Real de Todos os Santos.


A esse estabelecimento se referem as cartas régias de 22 de junho e 23 de julho de 1520, em que se recomenda à câmara municipal de Lisboa a sua construção e em que se aprova a escolha do terreno.  

A futura "Casa da Saúde" será construída no Vale de Alcântara, junto ao estuário do Tejo, num local espaçoso e arejado, e na altura bem longe das portas da cidade e do paço real (situado no que é hoje a Praça do Comércio, vulgo Terreiro do Paço, e destruído com o terramoto de 1755). Em 1520 o plano aprovado pelo rei previa um estabelecimento de 160 camas.

Noutros sítios, como Évora, também existiam casas de saúde que, no entanto, mais não eram que casas particulares,  situadas fora das muralhas,  requisitadas pelo município, e transformadas em hospitais temporários.

A "casa da saúde" é a versão portuguesa  do "lazzaretto" italiano (, termo grafado no séc. XVI,)  uma estrutura que no final da Idade Média irá desempenhar um papel indispensável na gestão da saúde pública em Itália.  





Ilha do "Lazzaretto Vecchio", em Veneza, perto do atual Lido de Veneza.  


Por um decreto de 1423 pelo Senado da República Sereníssima Epública, foi aqui criado  o primeiro lazareto da história. O seu nome deriva do nome  da ilha que o viu nascer, n altura ILha de Santa Maria da Nazaré... O povo chamava-o "Nazaretum", mais tarde  tornou "Lazzaretto", talvez por analogia com a leprosaria que existia numa ilha ao lado, já desde o séc. XII (e que hoje se chama  San Lazzaro degli Armeni). 

Como se sabe,São Lázaro era o patrono dos leprosos. Mas o novo estabelecimento sanitário destinava-se a isolar e a segregar um novo tipo de doentes, os de doenças infecto-contagiosas ou "exótico-pestilenciais", e nomeadamente as vítimas de peste, os "pestiferados".

Posteriormente, será craido, em 1468, noutra ilha ("Vigna Murada") o "Lazzaretto Nuovo", que funcionará como uma espécie de depósito  de  convalescentes... Enquanto os doentes eram, sem dó nem piedade, isolados no "Lazzaretto  Vechio", e aqui chegaram a morrer, às centenas, os que tinham a sorte de sobreviver, passavam depois do "Lazzaretto Nuovo" antes de poderem regressar à comunidade.

A ilha (que hoje que se chama "Lazzaretto Vechio" foi progressivamente ampliada com terras roubadas à lagoa de Veneza. Mas não oterá mais do 2,5 hecares. Escavações arqueológicas recentes (2004) revelaram a presença de valas comuns, contendo milhares de esqueletos que datam das epidemias de peste dos século XVI e XVII. Sucessivamente, o "Lazzaretto Vecchio" também foi utilizado como local de quarentena e descontaminação de mercadorias.

Sabe-se que nos surtos de peste do séc. XVI chegavam a morrer 500 pessoas por dia, de todas as classes sociais. Uma das vítimas do surto de peste de 1485 terá sido o
 "doge" Giovanni Mocenigo (1409-1485) (Valsecchi, 2007).

Com o tempo, o lazareto passa a ser distinto do hospital e de outros hospícios (onde coabitam a doença, a miséria, o vício, a deficiência, a loucura...). Começa pela sua localização: extra-muros, fora da cidade, isolado, é um espaço que, criando um tampão de segurança, entre o seu perímetro e a população, confere segurança, não apenas psicológica mas também física. É, portanto, uma primeira medida preventiva: afastam-se e isolam-se os marginais, os vagabundos, os indigentes, os mendingos, todos os grupos de risco que podem infetar os saudáveis, em caso de surto epidémico.

Para além da segregação socioespacial dos doentes, vítimas de epidemias (só os pobres eram internados à força na "Casa da Saúde", em Alcântara...), criava-se ao mesmo tempo um esboço de aparelho sanitário com o seu corpo de funcionários, sob a autoridade do provedor-mor da saúde.

Não sabemos exactamente quando foi criada esta figura, que era distinta do físico-mor e do cirurgião-mor (cuja origem remonta ao reinado de D. João I e que tinham funções de regulamentação das respetivas profissões). A criação da figura do provedor-mor da saúde dataria do início do Séc. XVI. A sua origem seria provavelmente municipal. Na Câmara Municipal de Lisboa, o serviço sanitário constituía mesmo um dos pelouros mais importantes do Século dos Descobrimentos:

"No princípio de cada ano, era este pelouro distribuído a um dos vereadores que tomava o nome de provedor-mor da Saúde da corte e do Reino e cuja esfera de acção transpunha a capital, irradiando por todo o País (Lemos, 1991. 156).


Em 1506 sabe-se quem é o provedor-mor, o desembargador Pedro Vaz, de nomeaçao régia.  Terá vistado a Itália (Roma, Milão, Florença), em missão de estudo sobre o sistema em vigor na prevenção e combate às epidemias.

No reinado de D. João III também terá ido a Veneza uma legação para se inteirar das medidas sanitárias a adoptar em caso de peste. A República Venesiana, pelas relações comerciais que mantinha com o Oriente, era uma das cidades europeias mais expostas ao risco de peste. Mas também foi das primeiras a adoptar medidas de profilaxia contra a doença, medidas essas rapidamente imitadas por outras cidades e nações (por exemplo, as quarentenas, os lazaretos, o culto de São Roque).


Por carta régia de 1525, alargam-se as medidas a tomar em caso de epidemia, ampliando-se as providências constantes do Alvará de 1506:
  • isolamento dos doentes em ruas e bairros especiais;
  • pastagem pelas ruas de manadas de gado vacum;
  • purificação do ar por meio de queima de ervas aromáticas;
  • encerramento, a pedra e cal, das casas em que houvesse vítimas mortais da peste;
  • sinalização das casas com bandeiras ou ramos de alecrim;
  • utilização do vinagre e da cal como desinfectante;
  • proibição da compra e venda da roupa de doentes;
  • criação de cemitérios especiais foras de portas;
  • proibição de procissões e ajuntamentos, etc.

Estas medidas constam do "Regimento que Leva Pedro Vaz sobre o Que Toca ao Bem da Saude", de 1526.


O alvará de 1537 prevê penas severas para quem vier para Lisboa, proveniente de lugares empestados, ou para quem sair das embarcações ancoradas no Tejo sem a devida licença. As sanções são extensíveis a quem acolher pessoas suspeitas de contaminação.

Em 1569, será a vez de D. Sebastião mandar vir de Sevilha dois médicos (Tomas Alvarez e Garcia de Salzedo) com experiência no combate a epidemias (Mira, 1947. 124-125).

O conselho que estes especialistas espanhóis deram às autoridades portuguesas para minimizar os efeitos da "grande peste de Lisboa" (1569) incluíam medidas de natureza diversa (resumindo assim o que então se sabia em matéria de saúde pública, incluindo medidas repressivas), tais como:

  • reforçar o abastecimento e víveres à cidade;
  • zelar pela qualidade e conservação dos géneros alimentícios;
  • proceder à limpeza cuidados das ruas;
  • lançar ao mar as imundícies;
  • acender fogueiras de lenhas aromáticas na via pública, de manhã e à noite;
  • evitar expor ao ar o sangue obtido das sangrias;
  • proibir os bailes e os ajuntamentos de negros;
  • fechar as casas de prostituição;
  • encerramento dos banhos públicos;
  • manter desabitadas as casas onde tivessem morrido doentes de peste;
  • mandar queimar as roupas, de menor valor, das pessoas atacadas pela doença (e mandar lavar as de maior valor, com água do mar e vinagre);
  • proibir a circulação, nas ruas, de mendigos portadores de chagas;
  • pôr em quarentenas os navios de transporte de escravos;
  • mandar enterrar de imediato os mortos, em covas fundas e com ma espessa camada de cal viva por cima dos cadáveres;
  • organização de dois hospitais nos extremos da cidade para prestação dos primeiros socorros, internamento e convalescença;
  • contratação de médicos para prestação de cuidados domiciliários;
  • emprego de terapêuticas de "purificação do sangue" (sangrias, clisteres, sudoríferos, etc.), etc.

A nível da prolifaxia individual, os médicos espanhóis faziam também algumas recomendações: 


  • não abrir as janelas antes do nascer do sol; 
  • não sair de casa senão decorridas duas horas depois de ele ter nascido; 
  • aspergir o interior da casa com água e vinagre ou com vinho aromático;
  • fazer lume de lenhas aromáticas; 
  • enramar as casas com plantas de aroma agradável;
  • trazer nas mãos pomas feitas de substâncias balsâmicas, etc. 

E, por fim, uma nota de humanização: que se procurasse "alegrar e pôr ânimo ao enfermo nesta enfermidade por todas as maneiras possíveis" (Mira, 1947. 126).

O alvará de 1580 cofirma e amplia o regimento do provedor-mor da saúde: 

  • declaração obrigatória de casos de peste perante o cabeça de saúde (o representante do provedor a nível da paróquia); 
  • tratamento diferenciado dos empestados ricos e pobres (devendo estes últimos serem internados na Casa de Saúde); 
  • providências sobre os enterramentos;
  • lavagem e desinfecção das roupas; 
  • criação de um corpo de emergência de médicos e cirurgiões dependente do provedor-mor. 


2. Um incipiente corpo de administração sanitária

O pensamento geral do século XVI sobre as causas da peste não tinha evoluído: a peste era atribuída aos misteriosos e invisíveis miasmas, enfim, à corrupção do ar, à contaminação dos poços pelos judeus, a condições telúricas mal definidas, a castigo de Deus, a conjunções malévolas dos planetas e dos cometas... E recomendava-se o isolamenento dos doentes e e das zonas de infeção bem como a adoção do regime das quarentenas. 

Acreditava-se em que era suficiente o hálito para transmissão do contágio. Daí já o uso de panos, tapando a boca e o nariz,   no contacto com os doentes, bem como de máscaras e fatos especiais,  para se evitar o contágio pelo corpo do doente e da roupa da cama.

Pelo alvará de 1580, o regimento do provedor-mor da saúde é não só confirmado como ampliado. Cem anos depois, através de decreto de 1688, a autoridade do provedor-mor sai aparentemente reforçada, ao ordenar-se que as câmaras e as justiças do reino não só não se intrometam na esfera de competência do provedor-mor da saúde como cumpram e façam cumprir as as suas ordens. 


Por alvará de 1627, e devido à epidemia em Málaga, são cortadas todas as comunicações com esta cidade e outras do sul de Espanha. As cartas devem ser desinfectadas (através do vinagre e do fogo).

Por decreto de 1688, ordena-se que as câmaras e as justiças do reino não se intrometam na jurisdição do provedor-mor da saúde e que, além disso, cumpram e façam cumprir as suas ordens. A autoridade do provedor-mor de saúde estende-se aos territórios de além-mar.

Já no início do Séc. XVIII, é publicado novo "Regimento do Provedor-Mor de Saúde" (1707) ampliando e modificando algumas das disposições relativas à administração san

O provedor-mor da saúde passa a ver alargada a autoridade: a eles e aos provedores, seus ajudantes, compete fazer o registo dos facultativos, a inspecção das boticas e dos depósitos de géneros, o controlo sanitário de bebidas, exercer as funções de polícia sanitária marítima do porto de Belém, etc.

Em 1695, tinha entretanto saído o famoso "Regimento do Que se Ha-de Observar Succedendo Haver Peste (de que Deus no Livre) em Algum Reino ou Provincia Confiante com Portugal".

Trata-se de um típico documento de sanidade internacional que será completado, dez meses depois, com o Regimento para o Porto de Belém. Entre outras medidas, estes dois diplomas vêm instituir o cordão sanitário à volta das fronteiras e as quarentenas (isolamento de 40 dias ou mais) para tripulações e navios que demandassem os portos portugueses, oriundos de país suspeito. 


Curiosamente, estas providências surgem noventa e dois anos depois da última e derradeira epidemia de peste bubónica no nosso país. Esta epidemia desaparece depois de 1603 do território nacional,com excepção do Algarve (em que irá ressurgir por meados do Séc. XVII) e do Porto (onde haverá um derradeiro surto epidémico em 1899, atempo de Ricardo Jorge).

Para além do provedor, havia ainda o guarda-mor de saúde (uma figura que foi copiada do sistema italiano e que chegará inclusive até ao séc. XX, estando consagrada nos diplomas da reforma sanitária de Ricardo Jorge, 1899-1901) (Graça, 2017).

Originalmente, os guardas-mores estavam incumbidos de vigiar as portas e os postigos das cidades, de modo a impedir, tal como aconteceu no Porto, durante o inverno de 1574-1575, a entrada dos "pobres", e o risco da sua sempre temida aglomeração.

Em 1579, por ocasião de outra epidemia de peste bubónica, era guarda-mor de saúde de Lisboa o Dr. Diogo Salema (Lemos, 1991. 176).

Ainda a propósito da figura do guarda-mor da saúde, refira-se o caso de Évora, estudado por Abreu (2004) ("A cidade em tempos de peste: medidas de protecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637"): Duas dessas medidas foram a criação do cargo de Guarda-Mor da Saúde (1569) e o Regimento da Porta de Alconchel (1582). 


"A ordem dos procedimentos a seguir em caso de declaração de peste era relativamente simples: nomeado o Guarda-Mor da Saúde, este indicava dois meirinhos a quem, por sua vez, competia recrutar os homens que considerassem necessários à defesa da cidade. 

"As portas eram imediatamente encerradas, sendo colocadas bandeiras brancas ao longo das muralhas - sinal identificador de que a urbe estava sob quarentena e, portanto, com acesso condicionado. Brancas eram também as varas que os meirinhos transportavam, símbolo legitimador do poder que o monarca, temporariamente, lhes concedia.

"A partir deste regulamento, pelo menos em termos teóricos, os abusos deixaram de ser tolerados passando a ser exemplarmente punidos: concretamente, e para além das penas pecuniárias estipuladas, quatro anos de degredo para o ultramar, tratando-se das elites, açoitamento público e dois anos de degredo para as galés, um pregão era encarregue de as divulgar pelas ruas da cidade.

"Seria, porém, o Regimento da porta de Alconchel que, em 1582, apertaria as malhas do controle sobre o espaço, definindo com mais precisão as atribuições do Guarda-Mor da Saúde e daqueles que com ele faziam equipa (...).

"Três notáveis da cidade tornavam-se depositários das chaves das portas, que lhe deviam ser entregues pelos meirinhos ao cair da noite. 

"Terminada a epidemia, a vereação recolhia as chaves e levantava as bandeiras da saúde, o Guarda-Mor e os meirinhos suspendiam as suas funções. 

"A precaridade nestes cargos (...) acabaria por limitar não só o grau de conhecimentos, e portanto de eficácia, dos seus detentores como até a sua própria autoridade. Ao contrário de muitas cidades italianas onde o poder e o prestígio destes indivíduos se tornou uma força normativa da cidade". (Fonte: Abreu. 2004)

Para além do cargo de guarda-mor, a cidade do Porto também tinha ao seu serviço um físico e um cirurgião que, entre outras, exerciam funções de autoridade sanitária, competindo-lhes, por exemplo, examinar todos os que chegavam em naus e navios de terras donde havia  novas de estarem impedidas por causa de epidemias (caso da França, Flandres, etc., com quem os mercadores do Porto tinham relações comnerciais, pro mar).  


Em meados do séc. XVIII continua a ser uma preocupação das autoridades sanitárias a prevenção e o controlo das epidemias. Em 1748 é publicado o "Tratado sobre os Meyos da Preservação da Peste mandado fazer por ordem de Sua Magestade". Lemos (1991. 145) resume no essencial as medidas preventivas que deveriam ser tomadas, segundo o tratadista cujo nome se desconhece:

  • estabelecimento, nas fronteiras,  de um cordão sanitário [, "avant a lettre", já que a expressão em francês aparece pela primeira vez em 1821 para designar o encerramento da fronteira da França com a Espanha, nos Pirinéus por ocasião de surto de febre amarela, e a medida será depois teorizada pelo grande higienista francês Adrien Proust (1834-1903)];
  • imposição de rigorosas quarentenas nos portos de mar;
  • manutenção cuidadosa da limpeza nas ruas, mercados e habitações;
  • vigilância do estado dos bens alimentares;
  • repressão da mendicidade;
  • criação de hospitais especiais, fora de portas, para empestados, suspeitos e convalescentes;
  • criação de cemitérios próximos desses hospitais;
  • organização de primeiros socorros...

Há ainda uma medida, aparentemente nova, a "proibição de instalação, no interior da cidade, de oficinas cujos produtos possam inquinar o ar. É muito provável que esta seja a primeira referência, entre nós, aos  famosos "estabelecimentos insalubres, incómodos e perigosos" que vão surgir como desenvolvimento do capitalismo industrial. 

O país tinha conhecido um primeiro surto industrialista a partir de 1675 (, ano em que Duarte Ribeiro de Macedo, o nosso primeiro teórico da 'política industrial', publica a sua obra "Sobre a Introdução das Artes",) e vai conhecer outro,  entre 1720 e 1740, antes do pombalismo. 

 No final do Antigo Regime, é à intendência geral de polícia, de que Pina Manique (1733-1805) será o todo poderoso superintendente, no período que vai de 1780 a 1803) que se devem medidas legislativas tais como:
  • o decreto que cria a obrigatoriedade da inspecção sanitária das prostitutas (1781);
  • a regulamentação da oferta de trabalho para os indigentes (1781);
  • a organização da estatística das mortes violentas e o estudo da criminalidade (1791);
  • o plano de construção de cemitérios públicos (1791).

Este último tinha um objectivo sanitário explícito, além do registo e controlo da mortalidade (por ex., proibição de enterramentos sem certidão de óbito).


Em resumo, pode-se dizer que até ao século das Luzes, o séc. XVIII, não há  consciência colectiva da saúde/doença, o que  terá a ver, antes de mais, com o nível de conhecimento sobre a etiologia (ou a causalidade) das doença humanas. 

Até à revolução bacteriológica de meados do Séc. XIX (protagonizda por Pasteur, Koch e outros), as doenças infecciosas eram atribuídas a misteriosos miasmas; daí (i) o sentido do provérbio português "Livra-te dos ares, que eu livrar-te-ei dos males" e (ii) a vulgarização de práticas mais ou menos ritualizadas como as fogueiras nas ruas em caso de epidemia, as fumigações de pessoas, animais, objectos e casas, a travessia das ruas por manadas de gado bovino, etc... (
A proibição dos porcos deambularem livremente pelas ruas da cidade de Lisboa data apenas de 1773!).

Quando surgiam epidemias (, de resto, cíclicas), a única resposta societal era a da imposição do terror através da segregação socioespacial (separação dos doentes e dos sãos, separação dos doentes ricos dos doentes pobres). O lazareto, distinto do hospital,  é uma das "instituições totalitárias" que o Ocidente cristão vai criar para lidar com as epidemias da 1ª era da globalização. E não é por caso que nasce em Veneza.

(Continua)

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Referências bibliográficas:

ABREU, L. (2004) - A cidade em tempos de peste: medidas de protecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637. Sesión 18: crisis de mortalidad y epidemias em España y Portugal. Congresso Associación de Demografia Historica (ADEH), VII, Granada 1-3 de Abril de 2004. Facultad de Filosofia y Letras. Universidad de Granda.

GRAÇA, L. - Hospital Real de Todos os Santos: da ostentação da caridade ao génio organizativo. Dirigir-Revista para Chefias. 32 (1994)26-31.


GRAÇA,  L. - Ricardo Jorge e a modernização da saúde pública. In: Veloso AJ, Mora LD, Leitão H, editors. Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book; 2017. p. 34–49.

JORGE, R. (s/d) - Amato Lusitano. Comentos à sua vida, obra e época. Lisboa: Instituto de Alta Cultura.

LEMOS, M. - História da medicina em Portugal: instituições e doutrinas, Volume II. Lisboa: D.Quixote; Ordem dos Médicos, 1991 (1ª ed., 1899)

MIRA, M.F. - História da medicina portuguesa. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1947.

ROQUE, M. C. - A "Peste Grande" de 1569 em Lisboa. Lisboa, 1982 (Separata dos Anais da Academia Portuguesa da História, 1982, II série, vol. 28).


VALSECCHI, M. C. - Mass Plague Graves Found on Venice "Quarantine" Island."National Geopraphical", AUGUST 29, 2007.

4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20810: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte II: Peste: "Mercator ergo pestiferus"

7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20827: O que podemos aprender com as epidemias e pandemias do passado? (Luís Graça) - Parte III: Entrevista dada ao jornalista José Pedro Frazão, programa "Da Capa à Contracapa", emitido aos sábados, às 9h30, na Rádio Renascença

7 comentários:

José Saúde disse...

Luís,

A universalidade da história é repleta de episódios que se repetem, não obstante que saibamos que a sua repetibilidade se estendeu ao longo de séculos, consoante o tipo de epidemias que devastou a humanidade.

É verdade que essas calamidades mexeram substancialmente com uma sociedade que inesperadamente se confrontou com as malditas pragas e que dizimaram consequentemente casas de família, assim como um rol de populações residentes em cidades, vilas e aldeias.

Luís, amigo e camarada de armas na Guiné, gostei da tua explanação, ou não fosses tu um docente jubilado numa área que tão bem conheces, a da sua saúde.

Resta deixar a todos os nossos camaradas esta simples frase: cuidem-se por que o Covid-19 é um inimigo silencioso e adverso em conceder tréguas ao mais incauto adversário.

Abraço,

Zé Saúde

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Para aqueles de nós que falam da "pandemia amarela" vinda da China e tendem a "diabolizar" a China , que seria responsável por outras grandes pandemias do passado)...

Camaradas, cuidado com a "tentação racista"... Os vírus e as bactérias não tem pátria, nem raça, nem cor...Mas também não tem pernas para andar nem asas para voar... È preciso que alguém, um ser vivo (animal, mamífero, ou um primata como o homem) seja "hospedeiro" e os transmita... A pneumónica, por exemplo, ficou conhecida como a "gripe espanhola", entre nós...Quanto à sífilis, claramente, uma pandemia pós-feudal, resultante do florescimento das cidades, da economia mercantil, da mobilidade espacial e sobretudo da 1ª era da globalização, com os chamados Descobrimentos (, descoberta da América ou "Novo Mundo", caminho marítimo para a Índia, navegações transatlânticas, etc.), nos séc. XV e seguintes, era conhecido como morbo gálico (gaulês ou francês), em Itália, o mal italiano ou napolitano em França, o mal cristão entre os otomanos, o mal turco entre os cristãos, o mal espanhol nas Américas, o mal português em Goa...

Há quem diga que a grande (e derradeira) vingança das índias contra Colombo e depois as tropas espanholas que dizimaram as civilizações dos maias, dos incas... e por aí fora. Na Idade Média eram os desgraçados dos judeus que eram acusados e mortos pelos cristão sob a "suspeita" de envenenar os poços e provocar as epidemias de peste...

Precisamos, em épocas trágicas como a das pandemias, de arranjar "bodes expiatórios" e de desenvolver "teorias da conspiração"...Em Luanda e em Dili, já houve, ao que parece, casos de portugueses matratados sob a acusação de serem agentes transmissores do SARS-Cov2-2, causador da COVID-19...

Acusar os outros e pôr uma etiqueta na testa do "vizinho" é uma prática que tem, geralmente, efeitos perversos...Foram os portugueses os primeiross a aproximar os povos e a inaugurar a primeira estrada da globalização... Em rigor, era uma "picada", cheia de coisas deslumbrantes mas também com muitas "minas e armadilhas"...

Jorge Araujo disse...

Caro Camarada Luís,

Obrigado por mais esta tua excelente narrativa histórica (e também pedagógica), sobre um tema que se há-de perpetuar durante os próximos tempos (anos?) e que a todos aflige, por nos causar desconsolo e desconforto, aliado ao facto de poder causar vários danos no nosso quotidiano, ou naqueles que nos estão próximo.

Este teu contributo (e outros semelhantes) é mais um ponto alto na função social que o «BLOGUE DA TABANCA» desempenha junto da comunidade dos antigos combatentes, que se projecta em todos aqueles que estão à sua volta e/ou nos visitam, com mais ou menos frequência, e que irá continuar a ser, como tem sido referido por diversas vezes, uma "Fonte de Informação e Conhecimento".

Entretanto, e porque tenho em mãos uma investigação sobre a "Universidade de Coimbra", onde já encontrei a mesma informação repetida, tomei a iniciativa de te colocar a seguinte questão:

Citação encontrada: "A Universidade foi deslocada, em 1308, para Coimbra, em virtude da peste que assolara Lisboa..."

Confirmas esta "peste" na data acima? Ou será equívoco?

Não há pressas... Continuação do melhor "isolamento" possível.
Um abraço (virtual).
Jorge Araújo.



Tabanca Grande Luís Graça disse...

Camaradas:

Não sei se há um "humor alentejano" ou "humor português alentejano"... Mas estes versos humorístiscos que correm pelas redes sociais, e são já "virais", são bem um exemplo da "sabedoria alentejana", ou diria, "pachorra alentejana", em tempo de pandemia de COVID-19:

Nã venham pó Alentejo
Por Hlder Telo

Tô escrevendo aqui no monti
Um poema pós de fora,
Viver aqui na presta,
Vã-se mas é daqui embora.

As notis aqui sã frias,
Nã aguentas nem que te mates,
Três mantas nã te chegam
Até arreganha a pele dos tomates.

Os dias aqui sã tã quentes,
Às vezes até falta o ari,
50 graus n’ Amarleja,
Nem na rua podemos andari.

Na temos aventoinhas,
Com o calor nã se pode.
Os velhos usam samarra
E as velhas têm bigode.

Querem vir pá cá morari,
Nem sabem a bicheza que há aqui,
Gato bravo e Saca-rabos,
Raposas e javali.

As cinco da manhã tamos-se álevantar
Pa monde ir ver do gado,
Nem imaginam o que é andar
Com um pé todo cagado.

Na temos carro de praça
Nem sequer internet,
Uns andam aqui a pé,
Os outros na biciclete.

Nã temos praia perto,
E só se bebe aqui bagaço
Os sapos aqui sã tã grandes,
Espetam com cada cagaço…

As casas nã têm luz
E lume é no chão,
O gerador só faz barulho
Pá gente ver a televisão.

Já dizia a outra porca,
É nos montis ca gente móra.
Como já viram, isto na presta,
Vã-se mas é daqui embora.

Se antes era deserto,
Agora continua a ser,
Nem os queremos aqui tã perto,
Nem os queremos aqui a viver.

Podem vir visitar
Mas venham noutra altura,
Deixem se aí ficar
Enquanto está merda dura.

De um Alentejano que quer ajudar.
Helder Telo

Recolhido no blogue da historiadora Raquel Varela, em poste de 19/3/2020... Revisão e fixação de texto: LG, com a devida vénia ao autor e à blogger...

https://raquelcardeiravarela.wordpress.com/2020/03/19/na-venham-po-alentejo/

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Comentando estes deliciosos versos do Helder Teo...

Afinal, os lisboetas e outros que, face a um cenário opressivo de confinamento, na sequência da declaração do Estado de Emergência, por causa da pandemia de COVID-19, pensaram em fugir (ou chegaram a encetar a fuga) para as terra da antiga moirama (Alentejo e Agarve), no fundo só estavam a seguir as recomendações e as melhores práticas da Saúde Pública, de acordo com o espírito e a letra do aforismo da mítica Escola de Salerno, quando um cristão era confrontado com uma epidemia: "Cito, longe, tardo, fuge, recedde, reddi" (Foge depressa, vai para longe e volta devagar.)...

E afinal, não faziam mais do que seguir o exemplo das elites deste país (o rei, a rainha, os príncipes, a corte, a alta nobreza, o alto clero, os mercadores ricos...) que iam para os seus "montes", enquanto os guardas-mores fechavam as portas e os postigos da cidade: daqui ninguém sai, aqui ninguém entra, daui ninguém me tira!..., manda el-rei nosso senhor, por causa da peste (de que Deus nos livre!), ámen.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Olá, Jorge... Sobre a tua dúvida...

Os "estudos gerais" (universidade) andaram de cá para lá até ao reinado de D. João III... Instalam-se definitivamente em Coimbra no ano de 1537.

A data da fundação também não é rigorosa (entre 1288 e 1290, a UC considera o ano de 1290, pelo que este ano faz 730 anos).  É transferida de facto para Coimbra  para o Paço Real da Alcáçova,em  1308 ou 1309 (segundo os books que consultei), mas  essa transferência não pode ser imputada à Peste Negra, que é posterior (1348-1353)... Os historiadores falam, por vezes com imprecisão, em "fomes e pestes" (como as que ocorreram em 1310)...

É a partir de 1348 que temos a pandemia, e o ciclo de epedimias de peste (provocada pela bactéria Yiersinia Pestis) até  finais do séc. XVII... A seguir, só a do Porto, a peste bubónica de 1899!,,,Nos séc. XVIII e XIX os médicos portugueses nunca tinham visto nenhum "pestiferado": os problemas era outro, cólera, varíola, sífilis...

Na Europa, a última pandemia de Peste tinha sido sido no sec. VI, no império romano do oriente (Bizâncio), ao tempo do imperador Justiniano I. Terrivelmente, devastadora...Mas no Ocidente, a primeira peste bubónica é a de 1348-1353...

 Em 1338 a universdiade volta, então,  para Lisboa, e regressa a Coimbra em 1354, aí sim, muito possivelmente por causa das brutais consequências da Peste Negra, em que teremos perdido um 1/3 da nossa população...

Parece que ficou em Coimbra  até 1377... Permaneceu em Lisboa até 1537, data em que foi transferida definitivamente para Coimbra, com a reforma joanina ( D. João III).Mantenhas. Luís

Jorge Araujo disse...

Caro Luís,

Boa tarde, desde as Arábias.

Fico-te imensamente grato pelos apontamentos históricos acima.
Da sua leitura atenta, pode-se concluir que a transferência da UC, de Lisboa para Coimbra no ano de 1308, não ficou a dever-se a "peste que assolou Lisboa", mas a uma (outra ?) decisão tomada superiormente pelo reino (do nosso) El-Rei D. Dinis (n.1261-1325).

Por outro lado, são mais credíveis, então, aquelas investigações históricas que atribuem essa transferência a razões de "ordem pública", devido aos conflitos que os estudantes criavam com os habitantes da cidade.

Em suma, são estes pequenos detalhes que fazem com que a nossa "História" de nove séculos - do Condado Portucalense à República - continue em aberto.

Termino, com uma sugestão: sejam criativos em relação à "gestão da V. agenda diária", mas não se esqueçam de se protegerem do malvado "bicho".

Boa semana... e um grande abraço (virtual).

Jorge Araújo.