domingo, 12 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20851: Efemérides (322): O meu domingo de Páscoa de 1968 (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG)

Ressurreição de Cristo - Rafael


1. Em mensagem de hoje, dia 12 de Abril de 2020, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), lembra o seu dia de Páscoa de 1968.


O Domingo de Páscoa de 1968

Já estava na tropa desde Outubro de 67 quando no dia 10 daquele mês assentei praça na EPC em Santarém, de má memória, onde chumbei no CSM e mais 200 camaradas – sim chumbámos 201 em 360 - tendo passado para o Contingente Geral e no início do ano de 68 sido transferido para o RTM no Porto onde tirei a especialidade de Operador de Mensagens bem como a Escola de Cabos.

Mal acabada a especialidade, fui transferido para o BT na Graça em Lisboa, mas rapidamente colocado a prestar serviço na Delegação do STM – Serviço de Telecomunicações Militares – no Quartel General da 2.ª Região Militar, em Tomar.

Estava desarranchado, dormia num quarto com mais dois camaradas em três divãs separados, em casa do Cabo RD Almeida, como também ali dormiam noutros quartos mais camaradas de armas. Aquilo não era bem um quartel, mas principalmente de manhã, apesar de não haver toque de alvorada, todos nos movimentávamos bem e depressa.

Comia no Restaurante Diamante Verde, na Rua dos Arcos, por trás do Quartel General. Acho que o desarranchamento eram 500$. Do quarto pagava 120$ e do Restaurante pagava 500$. Mas como “matava” alguns serviços de camaradas que se podiam safar e pagar, a coisa compunha-se.

Todos estes serviços de “matança” eram “coordenados” pelo Sargento, chefe do Posto do STM.
O STM era nas águas furtadas do QG onde, para além do Centro de Mensagens (a minha especialidade), existiam a Central de Teleimpressores com contacto com o Batalhão de Telegrafistas em Lisboa e com o QG do Campo Militar de Santa Margarida, bem como com os outros Quartéis Generais do País e, claro, o Posto de Rádio, em grafia, que comunicava com as mesmas entidades.

Existia ali ainda um aparelho do tempo da 2.ª Grande Guerra, um fac-simile da altura, marca Siemens, que todos os dias era posto à prova com uma transmissão de exploração para o BT e a devida resposta. Aquilo era mesmo antigo. A técnica era baseada num cilindro onde se acoplava o documento a transmitir e ia rodando, depois de se fazer a ligação telefónica para transmitir o documento. Usava um tinteiro e um sistema com um aparo que ia impressionando o papel conforme a imagem do documento. Claro que por vezes borrava-se a pintura… mas aquilo tinha que ser posto à prova todos os dias como mandavam as normas.

No 1.º andar, para além dos Gabinetes do Brigadeiro Comandante da Região Militar e do Coronel Chefe do Estado-Maior e outras repartições, havia o Centro de Cripto onde, nós quando recebíamos alguma mensagem classificada, íamos ao postigo daquele Centro entregar a mesma por protocolo e eles, depois de fazerem a passagem a cifra, vinham ao postigo do nosso Posto entregá-la para ser encaminhada e transmitida para o ou os destinatários. Era assim o dia a dia.

No Rés do Chão, para além dos serviços do quartel General e as instalações da PM, havia a Central Telefónica do QG, com uma Central Civil e outra Militar que eram operadas por telefonistas do STM. Era dali que de vez em quando, sem grandes abusos, conseguíamos fazer uma ou outra chamada para casa, para dar notícias, ou para algum dos nossos vizinhos que tivesse telefone porque naquela altura esses aparelhos eram raros.

Era assim a vida dentro daquelas quatro paredes. Falta dizer que no Rés-do-Chão, virado para uma pequena parada interna, havia a Cantina muito frequentada por todo o pessoal do QG, do STM e da PM que ali estava instalada.

A comida no Restaurante não podia ser muita nem nós podíamos ser exigentes dado o preço que se pagava. Mas comia-se sempre uma boa sopa, um prato de peixe ou de carne, pouco abundante para se manter a linha, um jarrinho de vinho e algumas vezes uma peça de fruta.

Ora, no Domingo de Páscoa de 1968, estava de serviço e lá fui almoçar. A senhora D. Rosa avisou-me que havia rancho melhorado. De facto, veio uma canjinha de galinha apetitosa e depois arroz com frango corado no forno. O arroz estava muito bom, mas o frango ou a galinha vinha aleijado. Só havia patas e pescoços… pelo que perguntei se ela tinha ido comprar o frango ao Entroncamento que nessa altura estava na sua grande época dos fenómenos. Ainda bem que fiz aquela pergunta pelo que a senhora sempre me arranjou uns bocados de carne para ajudar a empurrar o arroz.

Coisas da tropa, neste caso passadas fora do Quartel, mas mesmo ali ao lado.

Boa Páscoa para todos os amigos e, já agora cuidem-se e não façam aventuras porque a Pandemia está bem viva, anda por aí cheia de força, a fazer a vida negra a uma população indefesa. Por isso temos que nos resguardar em casa, nada de visitas, nada de cumprimentos mesmo que ocasionais, porque todo o cuidado é pouco. Mas temos que ter esperança e esperar melhores dias porque depois da tempestade vem sempre a bonança. Esperamos que desta vez também seja assim. Mas, entretanto, toca a recolher em casa.

Um abraço colectivo para todos os amigos.

Carlos Pinheiro
12.04.2020
Domingo de Páscoa caseiro…
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20812: Efemérides (321): No dia 4 de Abril de 1970, saiu a CCAV 2721 do cais de Alcântara em direcção a Bissau (Paulo Salgado)

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Carlos. Obrigado pelos teus votos de boa Páscoa e bom confinamento. E parabéns pela tua excelente memória... São tempos que não voltam mais. Esse tal restaurante já não existe, mas há outros na Rua dos Arcos, em Tomar, e imediações. É uma terra bonita, que vale a pena visitar!...

Noutra ocasião tens que explicar porque houve tantos chumbos na EPC, no CSM, no teu tempo. Huve algum "motim" ?

Luís Graça

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Carlos, já há muito não via o termo "cabo RD", ou seja, cabo readmitido,o que metia o chico... E esta é outra expressão cuja expressão é obscura...

Veja-se aqui umconsulta ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e a respetiva respetiva resposta:


"'A origem da expressão «meter o chico» (Portugal)
 
Durante o tempo em que prestei serviço militar, era frequente designar por "Chicos" os militares do quadro permanente, e por «meter o chico» o acto de, após o serviço militar obrigatório, seguir a carreira militar.

Gostaria muito de saber a origem dessa expressão.

Muito obrigado.

José João Roseira (Vila Nova de Gaia)

'A expressão é de facto muito conhecida, com o sentido referido pelo consulente, mas infelizmente não encontro a sua origem comentada em nenhuma fonte. Talvez algum consulente nos possa dar uma pista.

Carlos Rocha 6 de setembro de 2010'

in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/a-origem-da-expressao-meter-o-chico-portugal/28744 [consultado em 13-04-2020]

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O vocábulo "desarranchamento" parece ser só usado no Brasil... LG
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desarranchado | adj.
masc. sing. part. pass. de desarranchar

de·sar·ran·cha·do
adjectivo
1. Excluído ou afastado do rancho.

2. Que não come do rancho (no quartel).

Palavras relacionadas: desarranchar.

de·sar·ran·char - Conjugar
verbo transitivo
1. Tirar do rancho.

verbo intransitivo
2. Separar-se do rancho.

verbo pronominal
3. Desfazer-se o rancho.

4. [Militar] Comer fora do quartel.


"desarranchado", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/desarranchado [consultado em 13-04-2020].

Tabanca Grande Luís Graça disse...

(...) Comia no Restaurante Diamante Verde, na Rua dos Arcos, por trás do Quartel General. Acho que o desarranchamento eram 500$. Do quarto pagava 120$ e do Restaurante pagava 500$. Mas como “matava” alguns serviços de camaradas que se podiam safar e pagar, a coisa compunha-se.(...=

Carlos, em 1968, 500 escudos equivaleria, a preços de hoje, a 166,81 €... Ao cabo lateiro, pagavas 40,03 €...pelo quarto ou subquarto...

Tempos que já lá vão (pu podem voltar)... O subaluguer era muito frequente em terras com guarnições militares, de Mafra a Tavira, das Caldas a Tomar...

Tabanca Grande Luís Graça disse...


(..." Estava desarranchado, dormia num quarto com mais dois camaradas em três divãs separados, em casa do Cabo RD Almeida, como também ali dormiam noutros quartos mais camaradas de armas. Aquilo não era bem um quartel, mas principalmente de manhã, apesar de não haver toque de alvorada, todos nos movimentávamos bem e depressa.

Comia no Restaurante Diamante Verde, na Rua dos Arcos, por trás do Quartel General. Acho que o desarranchamento eram 500$. Do quarto pagava 120$ e do Restaurante pagava 500$. Mas como “matava” alguns serviços de camaradas que se podiam safar e pagar, a coisa compunha-se.

Todos estes serviços de “matança” eram “coordenados” pelo Sargento, chefe do Posto do STM." (...)


"Matar um serviço": cá está outra expressão de que já não me lembrava... Mas escapa aos nossos dicionários...

matar | v. tr. e intr. | v. tr. | v. pron.

ma·tar - Conjugar
(latim vulgar *mattare, do latim macto, -are, honrar os deuses, consagrar, imolar uma vítima, punir, destruir, matar)
verbo transitivo e intransitivo
1. Tirar a vida a; causar a morte a (ex.: foi condenado por matar várias pessoas; a lei pune severamente quem mata; a guerra naquele país já matou milhares de pessoas).

2. Abater (reses).

3. Causar aflição ou sofrimento a. = AFLIGIR

4. [Brasil] [Jogos] Meter a bola de bilhar no buraco.

verbo transitivo
5. Causar grande dano ou prejuízo a. = ARRUINAR

6. Causar devastação ou destruição (ex.: as chuvas fortes mataram a plantação). = DESTRUIR

7. Causar grande sofrimento a. = AFLIGIR, MORTIFICAR

8. Importunar; molestar (ex.: vocês matam-me com tantas perguntas).

9. Fazer perder a qualidade ou o valor (ex.: as cores escolhidas mataram o conjunto das pinturas).

10. Fazer desaparecer. = EXTINGUIR

11. Saciar (ex.: matar a sede).

12. Passar (tempo) ociosamente (ex.: matou tempo a ler uma revista).

13. Levar à exaustão; causar grande cansaço.

14. Decifrar ou resolver (charadas, enigmas, passatempos, etc.).

15. [Brasil, Informal] Não comparecer (no trabalho, nas aulas, etc.).

16. [Informal] Esvaziar, gastar ou consumir totalmente ou até ao fim (ex.: perguntou-lhe se podia matar o cigarro).

17. [Futebol] Amortecer o impacto (ex.: matar a bola com o peito).

18. [Angola, Informal] Vender fora dos circuitos legais a preços elevados.

verbo pronominal
19. Tirar a própria vida. = SUICIDAR-SE

20. [Figurado] Sacrificar-se, cansar-se.

21. [Figurado] Entregar-se por completo a uma actividade; esforçar-se muito para alguma coisa (ex.: matou-se para ter boas notas na escola).


a matar
• Muito bem; na medida certa; na perfeição (ex.: essa roupa fica-lhe a matar).


"matar", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/matar [consultado em 13-04-2020].


Manuel Carvalho disse...

Relativamente às reprovações no C S M tenho ideia que no 2º turno de 67 de Abril a Junho/67 reprovaram cerca de 300 nas Caldas num total que eu julgo que eram de cerca de 700 instruendos.Na minha companhia na Guiné tinha-mos uns cinco ou seis militares reprovados no C S M. Uma das ameaças que nos faziam para nos aplicarmos era que ia-mos para o contingente geral e a seguir para a Guiné.
Um abraço

Manuel Carvalho

Hélder Sousa disse...

Caro Carlos Pinheiro

Este teu relato/efeméride tem muitos assuntos para abordar.
Para não me "perder" neles vou focar um ou dois, de passagem.

O primeiro tem de facto a ver com a questão dos "chumbos".
Realmente lembro-me de que essa "ameaça" que referes de "se não se aplicarem vão chumbar, passam ao Contingente Geral e vão para a Guiné" (aqui referida como uma ameaça terrível) também a apanhei no 3º Turno se 1969 lá na EPC, em Santarém.
Não tenho memória de quantos possam ter chumbado (se é que algum o foi). Sei que fui convidado a ir ao COM mas então já conhecia a minha especialidade de TSF e declinei.
Além disso tenho uma teoria (apenas isso, nada fundamentada) de que que o "engrossar" ou "adelgaçar" o Contingente Geral, o CSM ou o COM dependia muito das circunstâncias ditadas pelas necessidades de pessoal e em função também do que era disponibilizado para cada uma delas.
Sempre achei que na minha incorporação e ingresso no CSM houve a necessidade de "recuperar" algum défict de mancebos para essa categoria. Digo isto porque fui contemporâneo de vários que tinham o máximo de habilitações escolares e que faltava muito pouco para poderem ir para o COM. Como sabem o critério era ter habilitação pela via liceal ou, no meu caso, o 2º ano completo do Instituto Industrial.
Tive instruendos no meu pelotão de instrução que só lhe faltavam uma ou duas cadeiras para terem ingressado logo no COM, lembro que um deles só faltava "Filosofia".
No meu caso fiz os exames que o calendário escolar determinou na primeira quinzena de Julho mas não me foi autorizado ausentar-me da instrução para fazer os exames da segunda quinzena, já que fui incorporado a 15 de Julho, precisamente a meio.
Acredito que tinham excesso de COMs, que os CSMs tinham um maior número de refractários (por essa altura a contestação estudantil tinha subido de tom) e o Contingente Geral havia de se arranjar com menos dois ou três por pelotão.

O outro aspecto que quero referir é o de dar serviço "a matar".
A minha notificação de mobilização saiu a 2 ou 3 de Setembro de 1969.
Estava no RTm, no Porto, a dar instrução.
Saí de lá para cumprir os tais dez dias ao abrigo das Normas, que antecediam a indicação de embarque. Não me recordo quantos dias estive ainda no Porto, creio que foi praticamente logo de seguida. Digamos que a partir de 15 de Setembro fiquei na lista para embarque e fiquei adstrito aos Adidos. Como o embarque oficial foi a 26 de Outubro (embora na realidade só se tenha efectuado a 3 de Novembro), houve algumas vezes (não muitas, na verdade) em que estive escalado para fazer serviço de Sargento de Dia ou de Reforço ao Quartel de Adidos. Nessas ocasiões dei o meu serviço "a matar". Não me lembro quanto nem a quem, embora julgue recordar que "alguém" lá no Quartel tratava disso.
No entanto há sempre uma excepção.
Um dos meus camaradas de especialidade, um dos "Ilustres TSF" que vivia então entre Guimarães e Santo Tirso, foi escalado e não consegui arranjar "matanço" para ele, pelo que fui eu mesmo fazer o serviço.
Um episódio memorável, que não cabe aqui contar agora (espero ainda fazê-lo em artigo próprio) mas que meteu percevejos, treino de carteirismo, recusa de "ajudar" no descarregamento de contentor (qual a marca de rádio que quer? e um casaquinho de antílope, não quer?).
Enfim, como diria o "senador Briote".... "outras vidas".

Hélder Sousa