sexta-feira, 17 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20864: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
São reminiscências que vêm a propósito do reencontro com velhas imagens, jacentes num álbum esquecido, não foi felizmente para a Guiné, teria acabado em cinzas. E assim me vieram à mente os primeiros tempos que vivia por conta e risco, sem qualquer vínculo familiar, numa atmosfera de rocha vulcânica e com gente com apelidos para mim pouco frequentes ou completamente novos, como Arruda, Carreiro, Medeiros, Bettencourt, Ávila, Brum, ou Velho Cabral.
Na primeira recruta dada, tinha um intérprete para falar com a gente de Rabo de Peixe, era um falatório que não se entendia. Chegavam circunspectos e intimidados, estes mancebos, conversavam abertamente que se sentiam felizes, havia carne e peixe duas vezes por dia, agradaram-se do banho diário, cabelo cortado e barba a preceito. À noite, rezavam coletivamente o terço na Caserna.
Fiz amizades inquebrantáveis, dolorosamente, vão partindo, um grande amigo, o oftalmologista José Luís Bettencourt Botelho de Melo, que me consertou a vista depois de uma mina anticarro, está no ocaso da vida, depois de um grave acidente cardiovascular.
E a Maria Cremilde Tapia, uma autêntica missionária leiga, partiu recentemente para o lado direito de Deus.
Assim se lançou a semente à terra deste meu amor inconfundível por São Miguel.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

Mário Beja Santos

Um tanto familiarizado com a cidade de Ponta Delgada, e enquanto não recebo o acolhimento da família Teves Lemos, por conta própria procuro transportes rodoviários ao fim de semana, quero começar pela Lagoa das Sete Cidades. O autocarro (“a carreira”) sai ao amanhecer de sábado, mal chega à povoação, pouco mais de uma hora depois, descubro que só tenho transporte de regresso ao fim da tarde, e comer nicles, restaurantes ou casas de pasto já no pico do outono é coisa que não existia, lá se negociou com uma particular um pastelão de chouriço com arroz branco e uma sopa de grão com macarronete, almoço inesquecível, a low cost. O dia estava um tanto chocho, o céu com capacete (“forrado”), mas deu perfeitamente para ver na longa deambulação que era local edénico. O tempo passou, e mesmo quando esfriou, alguém nos acolheu até chegar o autocarro, bendita viagem por conta própria. À noite, no café Gil, indaguei junto dos aspirantes micaelenses qual o recanto mais formoso, aventaram-se múltiplas hipóteses, alguém advertiu que nada há de mais celestial que ver nascer o dia na Ponta da Madrugada. Será local que só visitarei décadas depois, confirmando que deve ter sido ali o local genesíaco aonde Deus desenhou a criação do mundo.

Miradouro da Ponta da Madrugada, São Miguel

Percorro nos fins de tarde os locais de devoção. O ponto culminante está no Convento do Campo de São Francisco, onde se guarda a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, o Padroeiro supremo na crença açoriana, um busto que nos deixa especados, há naquela escultura e nos traços fisionómicos do Filho de Deus um sofrimento inescapável mas algo nos seus olhos nos transmite a sua capacidade de amor pelos homens, é um sofrimento perpassado pela misericórdia do perdão. E bate à porta das igrejas nesses fins de tarde ventosos ou esfriados, há interiores de templo de opulência discreta e com profundo recolhimento, como esta Igreja de São Pedro, ao tempo já muito perto do fim da marginal, ali havia uma piscina frequentada por gente afoita que víamos nadar em dias ensolarados ou enevoados, nadadores intrépidos.

Interior da Igreja de São Pedro, Ponta Delgada

Momento inesquecível foi a visita que pude organizar para a minha mãe, em casa da família Tapia, deram-lhe cama e mesa e um apetecível itinerário turístico por alguns dos pontos mais retumbantes. A minha mãe aterrou no aerovacas, os mais novos devem pensar tratar-se de uma lenda, era um campo onde as vacas pastoreavam, a torre de controlo informava a hora de aterragem, as vacas eram acolhidas e o avião descia do campo de pastagem, isto num ponto relativamente central, em São Miguel. Eu continuava a dar recruta, estava com a minha mãe ao fim da tarde e fizemos um fim de semana em que se andou pela Bretanha, Mosteiros, Capelas, Lagoa das Furnas, onde não faltou o cozido. Muitos anos depois, a minha mãe ainda falava do passeio à Povoação, ao Faial da Terra, Nordeste e Nordestinho.

Com Cremilde Tapia e a minha mãe

Digo e repito que o mais importante que me aconteceu na mente e no físico graças às duas recrutas dadas nos Arrifes foi descobrir esse dado insólito que era a liderança, tudo genuíno e sem pavoneio, o que era necessário comunicar aos mancebos, desde a simples informação das horas de atividades até às corridas a corta-mato, a carreira de tiro, tudo deslizou sem gritaria nem palavrão, relações sempre aproximadas e festivas, assim emergia um nível de autoridade que foi decisivo em território guineense. Logo a preocupação com o bem-estar desses mancebos que gostavam da comida e das novas práticas de higiene, a afeição das crianças, a procura de atividades lúdicas para o pelotão e houve aquele ponto elevadíssimo que foi o Natal de 1969, em que os marienses ficaram retidos, com lágrima no olho, pois fez-se festa rija, houve missa cantada nos Arrifes e consoada que muitas famílias propiciaram e jamais esqueci essa bondade em hora tão delicada.

Uma nova amizade, o Gabriel calçado e o irmão descalço

Coube-me na rifa o discurso do Juramento de Bandeira, guardei esse papelucho que tanto me deu que fazer, o Comandante do Batalhão, Clodomiro Sá Viana de Alvarenga, de quem corria o rumor de ter estado associado ao golpe de Beja, leu-o previamente, era o que faltava que perante aquelas altas e baixas patentes houvesse o devaneio de dizer uma bojarda contra o regime, pois bem, leu e nada emendou desse meu discurso onde não se falava do regime, nem da guerra, nem do dever pátrio, falava-se do civismo republicano e de ser militar dentro dessa longa tradição de valores de civismo e da proteção da soberania. Aqui fica o registo desse dia e dessa hora, atrás de um megafone com tripé.

Juramento de Bandeira, Arrifes, dezembro de 1967

Tinha perdido o fio a esta imagem, no reverso está a dedicatória para a dama dos meus cuidados, e tem a data de 30 de julho de 1968, primeiro dia em Bissau, seguramente que fui aos CTT com a foto oferecida, e assim a expedi para Lisboa. Ainda estou bem descontraído, só chegarei ao palco da guerra, cinco dias depois, viajarei num barco da mancarra, passarei, já noitinha, e na escuridão total, por Mato de Cão, levo comigo todo o meu enxoval que se irá incendiar em 19 de março de 1969, um garrafão de água e uma ração de combate. Tudo quanto aprendera em Mafra, tudo quanto se exercitara nos Arrifes, tudo quanto fora a minha formação por três mulheres de eleição na formação da minha personalidade, ia ser posto à prova. Mas voltemos a São Miguel, aos amigos e às lides da tropa.

No Uíge, julho de 1968, a Guiné está à vista, e eu ponho o futuro nas mãos de Deus

(continua)
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Nota do editor

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