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sábado, 27 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27262: A Nossa Poemateca (11): "Aforismos", de Teixeira de Pascoaes (1877-1952)



Teixeira de Pascoaes (1877-1952) 



1. Mário Cesariny (1923-2006), expoente máximo do surrealismo português, editou um livrinho, "Aforismos, de Teixeira de Pascoaes". São umas escassas duas centenas e picos. Foram selecionados de 9 livros do poeta amarantino.  Apenas uma amostra. Tratava-se explicitamente de uma homenagem do Cesariny que, nos últimos anos de vida do peota, foi visita da Casa de Pascoaes

Para esta série, "A Nossa Poemateca" (*), eu próprio selecionei uns 20% do "corpus" do Cesariny, os mais lapidares, e que eu achei obras-primas do nosso poeta-filósofo da saudade. Naturalmente, com a devida vénia aos dois grandes nomes da cultura portuguesa... 

A "minha lista" está organizada por ordem alfabética (entre parênteses, o número da página do livro citado). 

São aforismos poético-filosóficos (**), "diamantes" do melhor quilate, como, por exemplo, este: "Só a nudez é luminosa". Não há nada aqui de panfletário: "O riso brota dos dentes que mordem"...E alguns são formulados na interrogativa: "A bondade não será crueldade reduzida ao mínimo ?"... Como se houvesse uma escala de intervalo para medir a crueldade, de 1 a 10, em que a bondade seria o pouco ou nada cruel  (1) e o 10 o máximo da crueldade...


A alegria dos mortos floresce a terra (p13)

A  bondade não será a crueldade reduzida ao mínimo ? (p32)

A ciência desenha a onda; a poesia enche-a de  água (p29)

A corrupção favorece as ideias novas (p18)

A esperança, a fé, a caridade, vivem do Matadouro Municipal, onde bois e vitelas, santos e anjos, são assassinados às centenas e repartidos, em bifes, pela macacaria darwinista (p34)

A ideia de água antece todas as fontes (p11)

A imagem das vacas tem maior nitidez que a das pessoas (p16)

A inocência é a auréola do crime (p22)

A luz dos olhos devora tudo. Ser visto é quase morrer. (p24)

A mentira insere-se na verdade (...) (p29)

A miséria ri-se das barrigas fartas e preside a todos os banquetes (p36)

A Natureza odeia a linha reta (p32)

A probabilidade perfeita ou absoluta representa-a um sim sobre um não (p34)

A vaidade é a sinceridade em pessoa (p20)

Agir é construir, destruindo (p32)

Andamos e não chegamos. O andar é tudo: princípio e fim. (p179

As coisas são possibilidades realizadas contendo inúmeras possibilidades realizáveis (p16)

Basta a miséria de um desgraçado, para que todos nós sejamos miseráveis (p14)

Como  é que um animal que fuma pode crer na imortalidade ? (p39)

De que serve ressuscitar ? Toda a gente continua a ver o morto.(p18)

Deus não sabe como se chama ! (p14)

Eliminem a palavra Humanidade e ficaremos cobertos de pêlo num instante (p31)

Em vida, o cárcere sem um postigo. No túmulo, a morte sem uma fresta. (p21)

Existir não é pensar: é ser lembrado (p19

Joaquim, eis o meu epitáfio! (p19)

Morrerás da tua beleza! (p25

Nascer, é pôr a máscara (p23)

O andar é uma hesitação que se desloca  (p23)

O berço e o túmulo não são para os olhos de quem neles está deitado (p15)

O cão ladra e uiva, é já sábio e poeta (p33)

O homem não vive; nasce e morre (p13)

O ideal da nuvem é o rochedo (p38)

O ladrar é literatura (p22)

O mar é a carne do planeta (p23)

O nome desfigura as coisas (p19)

O ódio brame como os tigres, o amor geme como os cães, a tristeza canta de sapo, e a alegria é uma bêbeda, ó Santa Mónica! (p35)

O pecado é mais fecundo do que a virtude (p20)

O português é indeciso e inquieto, como as nuvens em que as suas montanhas se continuam e as ondas emq ue as suas campinas se prolongam (p26)

O riso brota dos dentes que mordem (p28)

Os penedos não são felizes (...)  (p33)

Os velhos riem-se da velhice (...) (p22)

Quanto mais estranhos, mais íntimos (p23)

Sem a estupidez dos penedos, que seria do nosso espírito ? (p12)

Ser uma coisa evidente é ficar reduzido a quase nada (p31)

Só a nudez é luminosa (p21)

Todas as almas são perfeitas (p24)

Todo o enigma da vida está fechado na cabeça duma formiga (p29)

Um homem é ele e o mundo. Um boi é ele sozinho, armado de cornos contra os lobos (p14)


Fonte: Excertos de: Aforismos,  Teixeira de Pascoaes: seleção e organização de Mário Cesariny, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998,  39, pp  (Gato Maltês, 36).

_________________

Notas do editor LG:


(*) Último poste da série > 12 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27007: A Nossa Poemateca (10): Ovídio Martins (Mindelo, 1928 - Lisboa, 1999), um grande poeta cabo-verdiano bilingue

(**) A palavra portuguesa  aforismo vem do grego ἀφορισμός (aphorismós), que deriva do verbo ἀφορίζειν (aphorízein), significando “delimitar, definir, distinguir”:

(i) o prefixo ἀπό- (apó) = “separar de, afastar”;

(ii) a  raiz ὁρίζειν (horízein) = “traçar limites, definir” (a mesma origem da palavra “horizonte”=linha aparente, em que o céu e a terra ou o mar parecem encontrar-se)

Em grego,  aforismós significava originalmente  “definição” ou “enunciado que delimita com clareza”.

Recorde-se que é do grego Hipócrates (séc. V a.C.) a obra Aforismos, um conjunto de sentenças breves sobre a saúde, a doença e a arte de curar e de cuidar (a medicina). A palavra passou a designar uma sentença curta e precisa que condensa um princípio ou verdade.

Em poesia reduz-se muitas vezes a uma metáfora ou a um curto pensamento sincrético. Os aforismos aqui selecionados não são enunciados filosóficos,  não expressam um axioma, uma verdade, um conceito... Valem pela  sua capacidade de operar como uma metáfora, fundindo  uma ideia abstrata e uma imagem do real: "O nome desfigura as coisas" ou "Deus não sabe como se chama" ou "O mara é a carne do planeta".

sábado, 12 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27007: A Nossa Poemateca (10): Ovídio Martins (Mindelo, 1928 - Lisboa, 1999), um grande poeta cabo-verdiano bilingue


Ovídio Martins
(1928-1999)

1. Nos 50 anos da independência de Cabo Verde , temos de dar também a palavra aos poetas. Ovídio Martins (Mindelo, 1928 - Lisboa, 1999) é a nossa escolha para a série "A Nossa Poeemateca".

Ovídio Martins (1928-1999) é considerado um dos poetas cabo‑verdianos de referência do século XX.  Claro que há outros que teriam de figurar numa antologia da poesia de Cabo Verde. Citemos, por exemplo:

  • Baltasar Lopes da Silva  (pseudónimo Osvaldo Alcântara) (1907-1989): um dos fundadores da revista "Claridade", historicamente um marco na literatura cabo-verdiana ao procurar valorizar a identidade e a realidade das ilhas. Poeta, prosador, ensaísta, é uma referência maior da cultura cabo-verdiana do séc. XX: "Chiquinho" é um romance incontornável para quem se quiser iniciar na literatura cabo-verdiana.
  • Jorge Barbosa (1902-1971): também outro "Claridoso" (figura central do movimento "Claridade"),  a sua poesia faz-se da melancolia e do isolamento do arquipélago, mas também da esperança e da resiliência do povo cabo-verdiano.

  • Manuel Lopes (1907-2005): outro  cofundador da "Claridade",  explorou, em prosa e poesia, temas como a seca, a emigração e a vida rural em Cabo Verde.  Obras de ficção como "Os Flagelados do Vento Leste" e "Chuva Braba" são obras de referência do romance  cabo-verdiano, abordando a resiliência e o sofrimento dos ilhéus face às adversidades. Menos conhecida é talvez a sua obra poética:  "Poemas de Quem Ficou", "Crioulo e Outros Poemas" e "Falucho Ancorado"... Viveu grande da vida em Portugal, mas nunca cortando o cordão umbilical com a sua terra.

  • Corsino Fortes (1933-2015): já de outra geração, o autor de "Pão & Fonema" e "Árvore & Tambor", trouxe uma linguagem mais moderna e política para a poesia cabo-verdiana.
  • Arménio Vieira (n. 1941): Prémio Camões (2009), é o mais conhecido internacionalmente; voz muito original, também de outra  doutra geração,  explora questões mais  existenciais e metafísicas, afastando-se dos temas mais tradicionais e insulares da literatura cabo-verdiana, inaugurados com a "Claridade" (1936).

Com exceção de Jorge Barbosa e Arménio Vieira,  nascidos na Praia, os restantees são todos nados e criados na capital cultural de Cabo Verde, Mindelo, onde surgiu o movimento "Claridade" (a que Jorge Barbosa também está profundamente ligado). Desta revista literária, "Claridade", sairam nove números, entre 1936 e 1960.

E, en passant, não podemos esquecer o pai da morna, Eugénio Tavares (1867-1930), um dos primeiros a utilizar e valorizar o crioulo como língua literária. Nem o expedicionário em São Vicente, na II Guerra Mundial, o furriel miliciano, leiriense,  Manuel Ferreira (1917-1992),  que se irá tornar um grande apaixonado, estudioso, crítico e divulgador da literatura cabo-verdiana: tem 15 referências no nosso blogue;  mais tarde,  capitão SGE,  será também ficcionista, autor de "Hora di Bai" (romance) e de "Morabeza" (contos).

2. Mas voltando a Ovídio Martins... A sua poesia  é reconhecida pela força militante,  intervenção cívica, crítica ao colonialismo e  afirmação da  identidade cabo‑verdiana. Mas também pelo lirismo amoroso.  Foi um escritor bilingue (português e crioulo de São Vicente). Faz a transição entre a poesia militante e a afirmação da cabo-verdianidade. 

Sobre Ovídio Martins, importa referir algumas breves notas biográficas:
´
(i) nasceu em Mindelo, ilha de São Vicente,

(ii) fez o liceu Gil Eanes onde teve como o professor Baltazar Lopes;

(ii) frequentou o curso de Direito em Lisboa, entretanto interrompido por razões de saúde; na sequência do tratamento começou a sofrer de surdez:

(iii) empenhou-se na luta (política) pela independência, foi amigo de Amílcar Cabral, quatro anosais velho, e membro do PAIGC;

(iv) preso pela PIDE, exilou-se nos Países Baixos;

(v) voltou à sua terra, com o 25 de Abril, onde trabalhou no ministério da educação;

 (vi) morreu em Lisboa, em 1999, vítima de doença neurológia.

 
Principais obras:

  • Caminhada (Lisboa, 1962), primeira coletânea de poemas.
  • Tchutchinha (1962) – conto/novela, editada em Angola 
  • 100 Poemas – Gritarei, Berrarei, Matarei – Não vou para Pasárgada (1973) (reunindo poesia em ambas línguas, incluindo temas de resistência e exílio);
  • Independência (1983)(reflete o período pós‑independência)

Eis uma seleção nossa, de poemas da obra "Caminhada" (1963)

 
o único impossível 

Para Baltazar Lopes 

Mordaças 
A um Poeta? 

Loucura! 

E por que não 
Fechar na mão uma estrela 
O Universo num dedal? 
Era mais fácil
Engolir o mar
Extinguir o brilho aos astros 

Mordaças 
A um Poeta? 

Absurdo! 

E por que não 
Parar o vento
Travar todo o movimento?
Era mais fácil deslocar montanhas com uma flor 
Desviar cursos de água com um sorriso 

Mordaças 
A um Poeta? 

Não me façam rir!... 

Experimentem primeiro 
Deixar de respirar 
Ou rimar... mordaças 
Com Liberdade

desesperança

Cinco séculos depois
do
achamento de Cabo Verde


Sol ou mar
Chuva ou música
Sejas tu uma cadência
ou uma noite que se perdeu
Traz nos teus braços
a distância
que nos separa
do sonho impossível
Olhos cheios de secas
e de oceanos
Cheios de mornas
e de pouco milho
As promessas viraram cansaço
e já nem as luas acreditam
Sol ou mar
Chuva ou música
Para vós as glórias do achamento
Para nós os sonhos em ampulhetas



chuva em cabo verde


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
Soluçam os violinos choram os violões
nos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morena
dança mulata
menininha sabe como vocês não tem»
E elas sabinhas
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
Já tem milho pa cachupa
Já tem milho pa cuscus
Nas ruas
nos terreiros
por toda banda
as mornas unem os pares nos bailes nacionais
Mornas e sambas
mornas e marchas
mornas mornadas


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
que cantam e dançam e riem
e choram de contentamento
Soluçam os violinos choram os violões
nos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morena
dança mulata
menininha sabe como vocês não tem»
E elas sabinhas
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras



nôs môrte


Quem ê q’morrê
qond quel navio
desaparecê
na mar de canal?


Nós tude morrê um c’zinha

Quem ê q’morrê
qond quel bôte
tcheu de pêscador
perdê na nôte?

Nós tude morrê um c’zinha

E quel carta de lute
quem ê q’morrê
qond tchgá noticia de Son T’mê

Nós tude morrê um c’zinha


A nossa morte

Quem é que morreu
quando aquele navio
desapareceu
no mar do canal?

Todos nós morremos um bocadinho...

Quem é que morreu
quando aquele bote,
cheio de pescadores,
se perdeu na noite?

Todos nós morremos um bocadinho...

E aquela carta de luto,
quem é que morreu
quando chegou a notícia de São Tomé?

Todos nós morremos um bocadinho...


 


cretcheu


Calá, ca bô tchôra más 
’n ta tróbe um morninha 
que ta dobe ’ligria e paz 
que ta pobe sorrise na boca 

Calá ca bô tchora más 
nha amor ê forte carditá 
nha violão ê más doce 
q’cónte de seréna ta pintiá 

Calá ca bô tchora más 
bô ê morna morna ê bô 
e s’m perdebe mi era capaz 
de perdê tine perdê nha vida.

Cretcheu

Cala-te, não chores mais,
vou-te fazer uma morninha
que te traga alegria e paz
e te põnha  um sorriso nos lábios.

Cala-te, não chores mais,
o meu amor é forte, acredita,
e o meu violão é mais doce
do que um conto de sereia consegue  pintar.

Cala-te, não chores mais
tu és morna, morna és tu
e, se eu te perder, 
eu seria  capaz de perder o tino 
e perder a minha vida.

 


um r’bêra pa mar 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar... 
R’bêra sem ága 
má tcheu de dor e raiva 
de desuspêre e agonia 
El ta tcheu de sperança
 inganóde e de promessa inrolóde na fume 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar
R’bêra sem ága 
ma’l tem sangue 

Sangue daquês que morrê na terra-longe 
na traboi scróve 

Sangue daquês q’caí de rotcha 
pa ca morrê de fôme 

Sangue d’irmon que matá irmon 
pa inganá és dstine de séca 
dstine qu’ês marróne 
má dstine  que nó ca qrê 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar...



Uma ribeira para o mar

Há uma ribeira que corre para o mar...
Ribeira sem água,
mas cheia de dor e raiva,
de desespero e agonia.
Está cheia de esperança,
enganosa e de promessas enroladas em fumo.

Há uma ribeira que corre para o mar,
ribeira sem água,
mas que tem  sangue.

Sangue daqueles que morreram na terra-longe,
em trabalhos escravos.

Sangue daqueles que caíram dos penhascos
para não morrer de fome.
Sangue de irmão que matou irmão
para enganar esse destino da seca,
destino a quer estamos amarrados,
mas é um destino
que nós não queremos.

Há uma ribeira que corre para o mar...



morabeza 

’M tá gostá de bô ser 
um spêce de porte d’abrigue 
Qond tempôral b’tasse mim 
dum conte pa ote 
’m tá tem certéza 
na bô morabéza: 
dôs bróce quente pa quecême 
dôs oi monse pa serenóme 
e um boca doce pa calentóme


Morabeza


Gosto que tu sejas
o meu  porto de abrigo
Quando a tempestade me sacode
de um lado para o outro,
eu tenho a certeza
da tua morabeza:
dois braços quentes para me aquecer
dois olhos mansos para me acalmar
e uma boca doce para me acalentar



In:  "Caminhada". 1ª edição. Lisboa:  Casa dos Estudantes do Império. Colecção de Autores Ultramarinos,  1963 (disponível em https://www.uccla.pt/sites/default/files/caminhada.pdf )


(tradução para português europeu,   com recurso à IA, revisão, fixação de texto, pontuação, na coluna do lado direito: LG... E a generosa supervisão  do jornalist, radialista e escritor, e nosso camarada de Cabo Verde, Carlos Filipe Gonçalves)







Fonte: (1975), "Diário de Lisboa", nº 18807, Ano 55, Sábado, 5 de Julho de 1975, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_4405 (2025-7-12) (com a devida vénia...)


 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26536: A Nossa Poemateca (9): Cesário Verde (1855-1886): Excertos de "Nós", seguidos de "O sentimento de um ocidental"



Cesário Verde,
por Columbano (1887)
1. Não será preciso escrever muito para se ser um grande poeta da língua portuguesa: o lisboeta Césario Verde (1855-1886) é um dos meus poetas favoritos, teve uma vida curtíssima, morreu de tuberculose ...  (Uma verdadeira setença de morte,  a "tísica", na época: além do poeta, morreu também de turberculoso a sua irmã Maria Júlia e o seu irmão Joaquim.)

Escreveu meia centena de poemas.... Mas que poemas!... "O sentimento de um Ocidental"  é um das obras-primas da nossa poesia...

A sua genialidade só foi reconhecida "post-mortem", e logo por outros grandes poetas como o Fernando Pessoa.

Na primeira parte do poema "Nós", de que selecionei uns exertos,  Cesário Verde evoca o surto de febre amarela que atingiu Lisboa em 1857 que terá contagiado entre 16 a 17 mil pessoas (perto de 10% do total da população lisboeta) e provocado mais de 5 mil mortes.E dois anos antes, tinha havido  um o surto de cólera.

Se bem que o séc. XIX venha marcar o fim das grandes epidemias que, ao longo de séculos vitimaram as populações europeias, surgem novos problemas de saúde, com a industrialização e a urbanização da Europa.  

No nosso país, por exemplo, em menos de um quarto de século, e em duas ocasiões, a cólera irá fazer dezenas de milhares de vítimas mortias: cerca de 40 mil em 1833, em plena guerra civil,  um terço dos quais na capital (as valas comuns deram depois origem aos cemitérios dos Prazeres e do Alto de São João); e aproximadamente 9 mil em 1855-56.

Embora as estatísticas de mortalidade, na época, possam variar de autor para autor, de fonte para fonte, a cólera tornou-se a doença epidémica, por excelência nas cidades em grande expansão, resultantes do do desenvolvimento do capitalismo industrial. 

A cólera passara  a ser conhecida dos portugueses com a chegada à Índia onde era endémica. 

Já a febre amarela é originária da América Central. Há notícia de que  terá chegado a Portugal continental no ínício da década de 1720: a primeira epidemia de febre amarela ter-se-á manifestado em Lisboa, no Outono de 1723. Ao fim de três meses terá feito mais de seis mil vírimas mortais, nas zonas de maior densidade populacional. 

No caso do surto de febre amarela de 1857, as áreas mais afectadas em Lisboa  foram inevitavelmente as dos bairros populares (como Alfama, Mouraria, Madragoa, Bairro Alto), onde se concentravam as chamadas classes laboriosas, misturadas com o lumpen-proletariado, e onde continuavam a ser péssimas as condições de higiene e salubridade (sobrehabitação, falta de saneamento básico, de água potável, de recolha do lixo, etc.), agravadas pela subnutrição e sistema imunitário enfraquecido. 

Registam-se igualmente importantes surtos de febre tifóide e de tifo, embora estas doenças tendam a regredir a partir de 1865. Mas,  mesmo ainda em 1923, Ricardo Jorge considerava Lisboa, no seu estilo tão castiço e peculiar quanto hiperbólico, como "uma das cidades mais infectamente tíficas" (sic) da Europa...

A cólera continua a ser um grave problema de saúde em países como a nossa Guiné-Bissau. É endémica:  com a estação de chuvas (de maio a novembro), muitas áreas são  inundadas, em Bissau e outros aglomerados urbanos... Os poços enchem-se de de matéria fecal, disseminando rapidamente a doença pela população, vitimando sobretudo os mais novos e os mais frágeis.

Cesário Verde era bebé aquando da epidemia de febre amarela de 1857. Mas este acontecimento ficou na memória da família Verde, que era de origem italiana. O  seu pai, abastado agricultor e comerciante de ferragens na baixa lisboeta, fez aquilo que os ricos faziam na época: retirar a família para o campo. Neste caso, para a sua quinta em Linda-A-Pastora, hoje união das freguesias Carnaxide Queijas,  concelho de Oeiras. Aí Cesário Verde enamora-se pelas delícias do campo e dá-nos conta da modernização da agricultura da época.  
_______________

NÓS

I

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na "city", que desterros!

Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d' ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro! (...)


Excertos, NÓS - I, in "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886, posfácio e fixação de texto, António Barahona. Edição definitiva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 98-100. (Com a devida vénia...)


2, E depois do "Nós",  leia-se "O Sentimento de um Ocidental": longo poema, de 44 estrofes, dividido rigorosamente em 4 partes de 11 estrofes cada uma; cada estrofe, por sua vez, é composta por quadras (4 versos).

As rimas são, em geral, interpoladas e emparelhadas (segundo o esquema ABBA), com 12 sílabas métricas (alexandrino) e um verso de 10 sílabas (decassílabo) no primeiro verso de cada estrofe. 

As 4 partes do poema correspondem a menos de metade do dia (que vai do entardecer à noite cerrada):

  • Parte I: Avé-Marias;
  • Parte II: Noite fechada;
  •  Parte III: Ao Gás;
  • Parte IV: Horas mortas.

Com Cesário Verde, a poesia abre-se a (e celebra-se com) os cinco sentidos... Fica aqui uma amostra (para ler ou reler) (a primeira quadra de cada parte; e a IV parte - Horas mortas - completa).

O sentimento de um ocidental

I Avé-Marias 

Nas nossas ruas, ao anoitecer, 
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia 
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. (...)


II Noite Fechada 

 Toca-se às grades, nas cadeias. Som 
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! 
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças, 
Bem raramente encerra uma mulher de dom! (...)

III Ao gás

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus. (...)

IV Horas mortas

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos! 
Um parafuso cai nas lajes, às escuras: 
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, 
os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos. 

E eu sigo, como as linhas de uma pauta 
A dupla correnteza augusta das fachadas; 
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, 
As notas pastoris de uma longínqua flauta. 

Se eu não morresse, nunca! E eternamente 
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! 
Esqueço-me a prever castíssimas esposas, 
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis, 
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas! 
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, 
Numas habitações translúcidas e frágeis. 

Ah! Como a raça ruiva do porvir, 
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes, 
Nós vamos explorar todos os continentes 
E pelas vastidões aquáticas seguir! 

Mas se vivemos, os emparedados, 
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas 
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados. 

E nestes nebulosos corredores 
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas; 
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, 
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos; 
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos. 

E os guardas, que revistam as escadas, 
Caminham de lanterna e servem de chaveiros; 
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros, 
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas. 

E, enorme, nesta massa irregular 
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, 
A Dor humana busca os amplos horizontes, 
E tem marés, de fel, como um sinistro mar! 

(Bold, a vermelho, nosso: LG)


3. A versão completa do poema pode ser encontrada na Net, a conmeçar por aqui, mas por favor comprem  o livro em papel, "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886",   edição da Assírio & Alvim, Lisboa, 2004 (a grande casa editorial da poesia).

E  leiam-no de vez em quando em voz alta e...  a qualquer hora!.... E repitam, de preferência ao entardecer, no miradouro da Senhora do Monte, na Graça, em Lisboa,  mesmo a abarrotar de tuque-tuques e de turistas: 

"Se eu não morresse, nunca! E eternamente  / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! ")...
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Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar





José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985)

1. Foram-nos enviados dois poemas do José Gomes Ferreira,  pelo Mário Gaspar,  muito antes da pandemia ... Já transcrevemos o teor da mensagem  (*) em que o nosso camarada, ex-fur mil, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68), fala da sua intância e do meio operário em que foi criado, em Alhandra, e em que tomou o gosto pela leitura de  grandes escritores, neorrealistas, como o Soeiro Pereira Gomes e o Alves Redol... 


(...) Data: 29 de janeiro de 2017 às 04:16

Assunto: Dois Poemas de José Gomes Ferreira

(...) Que tal a figura de Soeiro Pereira Gomes, o "Gineto" ? Esse rapaz, de Alhandra e que nasceu numa bateira no rio que amo – o meu Tejo – "meninos que nunca foram meninos" e tinham de suportar o calor do tijolo e telha queimada sobre as costas. Os telhais existiram mesmo.

Estive lá. Pois o "Gineto", do livro "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, tornou-se no maior atleta da época, o nadador que venceu as ondas do Canal da Mancha, Joaquim Baptista Pereira foi meu amigo. Ainda é um grande Amigo.(...)

(...) Tanto que aprendi... Conheci um senhor da nossa literatura, Alves Redol. Reunia com ele (...).

(...) Mas dá gosto termos estes poemas. Portugal é pobre, mas rico na literatura. Grandes senhores e esquecidos. Cada dia mais um. José Gomes Ferreira foi outro que conheci. (...)

Aqui vão para a nossa série "Poemateca" (**). O Mário não cita a fonte. Procurámos colmatar essa lacuna. E ficámos a saber que o poeta nasceu em Santo Ildefonso, Porto. De qualquer modo, nesta série , os poetas e os poemas selecionados são sempre uma escolha pessoal e livre dos nossos camaradas. O Mário manda-nos regularmente poesia, e mandou-nos muita, durante a pandemia de covid-19. Não mo agradeco. Faço-o agora.



Viver Sempre Também Cansa!

por José Gomes Ferreira



O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...


In: José Gomes Ferreira - "Viver Sempre também Cansa" (publicado originalmente na "Presença, folha de arte e crítica", ,julho-outubro,1931)


Devia Morrer-se de Outra Maneira

por José Gomes Ferreira



Devia morrer-se de outra maneira. 
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens. 

Quando nos sentíssemos cansados, 
fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs, 
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite 
para o ritual do Grande Desfazer: 
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
 em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo, 
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, 
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. 
Ternura de calafrio.
 "Adeus! Adeus!" 

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, 
numa lassidão de arrancar raízes... 
primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... 
depois os cabelos... a carne, em vez de apodrecer, 
começaria a transfigurar-se em fumo... 
tão leve... tão subtil... tão pólen... 
como aquela nuvem além vêem? 

Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis… 


In: José Gomes Ferreira, "Poeta Militante I, II e III"  (
1978)

(Revisão / fixação de texto, notas: LG)


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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 21 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26410: A Nossa Poemateca (7): Adília Lopes (1960-2024): "Os amores / que não tive / (e foram muitos) /moeram-me / o juizo"...

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26410: A Nossa Poemateca (7): Adília Lopes (1960-2024): "Os amores / que não tive / (e foram muitos) /moeram-me / o juizo"...


Capa de "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, 1056 pp.




(i) Adília Lopes, pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira;

(ii) nasceu em Lisboa em 1960 e faleceu a 30 de dezembro de 2024;

(iii) frequentou a licenciatura em Física, na Universidade de Lisboa, que viria a abandonar já quase no final do curso;

(iv) começou a publicar a sua poesia no Anuário de Poetas não Publicados da Assírio & Alvim, em 1984;

(v) em 1983, tinha começado uma nova licenciatura, em Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(vi) o seu primeiro livro de poesia, "Um Jogo Bastante Perigoso", é publicado em edição de autor (1985);

(vii) tem uma extensa obra poética: Irmã Barata, Irmã Batata (2000), Manhã (2015), Bandolim (2016), Estar em Casa (2018), Dias e Dias (2020) e Choupos (2023), etc.

(viii) Dobra (2024) é a mais recente reunião da sua obra publicada, incluindo inéditos;

(ix) colaborou em diversos jornais e revistas, em Portugal e no estrangeiro, com poemas, artigos e poemas traduzidos.


Fonte: textos e fotos, adapt de Assírio & Alvim, a sua editora, com a devida vénia


1. Dobra (2024) foi a prenda de aniversário que deu hoje ao meu filho, tendo como dedicatória um poema da minha lavra, "A gramática de vida" (que tomei a liberdade de publicar no blogue).

Da Adília Lopes, que eu só conhecia superficialmente, escolhi dois poemas para a série "A Nossa Poemateca".    Temos grandes "vozes" femininas na poesia portuguesa. Adília Lopes é simplesmente portentosa. Reconhecia duas ou três fontes que a inspiravam, também três dos meus poetas preferidos; Sophia de Melo Breyner Andresen, Alexandre O' Neil e Ruy Belo. Dele Adília Lopes pode-se dizer que tinha a compulsão da escrita. Alguém disse que escrevia poesia para se salvar. Era, de resto, uma mulher crente. 

A sua poesia é um fantástico jogo de teatro de marionetes. Era uma perita a manipular as palavras, as imagens e as personagens que inventava e  povoavam a sua casa de Arroios. Ficará também na história da nossa literatura como  um dos  grandes poetas de Lisboa. Talvez o último de uma Lisboa que desapareceu ou está em vias de desaparecer, a dos bairros populares, das lojas, dos cafés e dos restaurantes de proximidade.

Lógica necrológica

Os amores
que não tive
(e foram muitos)
moeram-me 
o juízo

Também 
não tive 
muitos filhos
isto é
não tive
nenhum

Não me queixo

O que
não foi
(e foi muito)
dei-me 
muito trabalho
e muito

Fonte: "Capilé" (2016). In: Adília Lopes, "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, pág. 750.
 

No more tears

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
em uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar

Fonte: "O decote da dama de espadas"(1988). In: Adília Lopes, "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, pág. 125.
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26347: A Nossa Poemateca (6): Adeus, de Eugénio de Andrade ("Os Amantes Sem Dinheiro", 1950) (escolha de Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé,1967/69)
 

sábado, 4 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26347: A Nossa Poemateca (6): Adeus, de Eugénio de Andrade ("Os Amantes Sem Dinheiro", 1950) (escolha de Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé,1967/69)


Mário Gaspar
1, A escolha é do Mário Vitorino Gaspar,
(ex-fur mil art MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68); lapidador de diamantes reformado, cofundador e antigo dirigente da Associação APOIAR; ele próprio leitor e cultor de poesia, porque "ler poesia faz bem ao cérebro"; tem c. 140 referências no nosso blogue; ingressou na Tabanca Grande em 8/12/2013.


Adeus
por Eugénio de Andrade  






Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade
in "Os Amantes sem Dinheiro" (1950)


Eugénio de Andrade, pseudónimo literário de José Fontinhas (Fundão, 1923 — Porto, 2005). Tem mais de 40 títulos publicados, em poesia, em prosa e em obras de tradução. Um dos poetas maiores, portugueses, do séc. XX. Dos mais lidos e traduzidos, Entre muitos prémios, recebeu o Camões em 2001. Por razões profissionais ( era inspector administrativo dos Serviços Médico-Sociais da Caixa de Previdência, 1947-1983), adotou o Porto como a sua cidade, a partir de 1950.

Para saber mais, ver Biblioteca Digital Eugénio Andrade

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26335: A Nossa Poemateca (5): Romance de Tomasinho Cara-Feia, de Daniel Filipe (Ilha da Boavista, 1925-Lisboa, 1964 ) (escolha de Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689,1967/69)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26335: A Nossa Poemateca (5): Romance de Tomasinho Cara-Feia, de Daniel Filipe (Ilha da Boavista, 1925-Lisboa, 1964 ) (escolha de Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689,1967/69)


1. A escolha é do nosso amigo, camarada e grão-tabanqueiro Alberto Branquinho (n. 1944, Foz Coa), advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970, ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69); tem cerca de 150 referências no nosso blogue: é autor das notáveis séries "Contraponto" e "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo".

Comentário ao poste P26331 (*): "Aí vai um, do poeta Daniel Filipe, que é uma referência à diáspora caboverdiana. quarta-feira, 1 de janeiro de 2025 às 18:45:00 WET(*)

[ Poeta e jornalista, de origem cabo-verdiana, Daniel Damásio Ascensão Filipe, ou simplesmente Daniel Filipe, nasceu em 1925, na Ilha da Boavista, em Cabo Verde (donde saiu aos 2 anos, para nunca mais lá voltar. mas sem nunca ter cortado o cordão umbilical  que o ligará para sempre à sua terra ), e morreu em 1964, em Lisboa, muito precomente,aos 39 anos. Era filho de uma senhora da Ilha da Boavista e de um coronel médico, deportado. Na poesia destacou-se pela de denúncia e contestação, aliada a uma fina sensibilidade lírica. Foi perseguido e preso pela PIDE. Pelo menos dois dos seus livros foram proibidos pela censura: "O Manuscrito na Garrafa" (romance, 1960); e "Pátria, lugar de exílio" (poesia, 1963)... "A Invenção do Amor" (1961) é uma das suas obras mais conhecidas. Esperemos que em 2025 Portugal e Cabo-Verde decidam comemorar condignamente o 1º centenário deste grande poeta lusófono que tem hoje duas pátrias. LG]


ROMANCE DE TOMASINHO CARA-FEIA

Farto de sol e de areia
que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará.

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortunata, a mãe
que é velha e não tem ninguém,
chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta.
Deixou para sempre a horta
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-feia
(outro nome, quem lho dá?)
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

- E nunca mais voltará.


In: Daniel Filipe - Pátria Lugar de Exílio. Poesia em Tempo de Guerra. Lisboa:
 Presença, 1963.
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Nota de AB: A palavra "nha" em crioulo se bem que signifique "minha" em relação a pessoa, é "senhora".

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Nota do editor LG: