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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26536: A Nossa Poemateca (9): Cesário Verde (1855-1886): Excertos de "Nós", seguidos de "O sentimento de um ocidental"



Cesário Verde,
por Columbano (1887)
1. Não será preciso escrever muito para se ser um grande poeta da língua portuguesa: o lisboeta Césario Verde (1855-1886) é um dos meus poetas favoritos, teve uma vida curtíssima, morreu de tuberculose ...  (Uma verdadeira setença de morte,  a "tísica", na época: além do poeta, morreu também de turberculoso a sua irmã Maria Júlia e o seu irmão Joaquim.)

Escreveu meia centena de poemas.... Mas que poemas!... "O sentimento de um Ocidental"  é um das obras-primas da nossa poesia...

A sua genialidade só foi reconhecida "post-mortem", e logo por outros grandes poetas como o Fernando Pessoa.

Na primeira parte do poema "Nós", de que selecionei uns exertos,  Cesário Verde evoca o surto de febre amarela que atingiu Lisboa em 1857 que terá contagiado entre 16 a 17 mil pessoas (perto de 10% do total da população lisboeta) e provocado mais de 5 mil mortes.E dois anos antes, tinha havido  um o surto de cólera.

Se bem que o séc. XIX venha marcar o fim das grandes epidemias que, ao longo de séculos vitimaram as populações europeias, surgem novos problemas de saúde, com a industrialização e a urbanização da Europa.  

No nosso país, por exemplo, em menos de um quarto de século, e em duas ocasiões, a cólera irá fazer dezenas de milhares de vítimas mortias: cerca de 40 mil em 1833, em plena guerra civil,  um terço dos quais na capital (as valas comuns deram depois origem aos cemitérios dos Prazeres e do Alto de São João); e aproximadamente 9 mil em 1855-56.

Embora as estatísticas de mortalidade, na época, possam variar de autor para autor, de fonte para fonte, a cólera tornou-se a doença epidémica, por excelência nas cidades em grande expansão, resultantes do do desenvolvimento do capitalismo industrial. 

A cólera passara  a ser conhecida dos portugueses com a chegada à Índia onde era endémica. 

Já a febre amarela é originária da América Central. Há notícia de que  terá chegado a Portugal continental no ínício da década de 1720: a primeira epidemia de febre amarela ter-se-á manifestado em Lisboa, no Outono de 1723. Ao fim de três meses terá feito mais de seis mil vírimas mortais, nas zonas de maior densidade populacional. 

No caso do surto de febre amarela de 1857, as áreas mais afectadas em Lisboa  foram inevitavelmente as dos bairros populares (como Alfama, Mouraria, Madragoa, Bairro Alto), onde se concentravam as chamadas classes laboriosas, misturadas com o lumpen-proletariado, e onde continuavam a ser péssimas as condições de higiene e salubridade (sobrehabitação, falta de saneamento básico, de água potável, de recolha do lixo, etc.), agravadas pela subnutrição e sistema imunitário enfraquecido. 

Registam-se igualmente importantes surtos de febre tifóide e de tifo, embora estas doenças tendam a regredir a partir de 1865. Mas,  mesmo ainda em 1923, Ricardo Jorge considerava Lisboa, no seu estilo tão castiço e peculiar quanto hiperbólico, como "uma das cidades mais infectamente tíficas" (sic) da Europa...

A cólera continua a ser um grave problema de saúde em países como a nossa Guiné-Bissau. É endémica:  com a estação de chuvas (de maio a novembro), muitas áreas são  inundadas, em Bissau e outros aglomerados urbanos... Os poços enchem-se de de matéria fecal, disseminando rapidamente a doença pela população, vitimando sobretudo os mais novos e os mais frágeis.

Cesário Verde era bebé aquando da epidemia de febre amarela de 1857. Mas este acontecimento ficou na memória da família Verde, que era de origem italiana. O  seu pai, abastado agricultor e comerciante de ferragens na baixa lisboeta, fez aquilo que os ricos faziam na época: retirar a família para o campo. Neste caso, para a sua quinta em Linda-A-Pastora, hoje união das freguesias Carnaxide Queijas,  concelho de Oeiras. Aí Cesário Verde enamora-se pelas delícias do campo e dá-nos conta da modernização da agricultura da época.  
_______________

NÓS

I

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo)
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na "city", que desterros!

Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons d'inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de selva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste d' ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro! (...)


Excertos, NÓS - I, in "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886, posfácio e fixação de texto, António Barahona. Edição definitiva. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, pp. 98-100. (Com a devida vénia...)


2, E depois do "Nós",  leia-se "O Sentimento de um Ocidental": longo poema, de 44 estrofes, dividido rigorosamente em 4 partes de 11 estrofes cada uma; cada estrofe, por sua vez, é composta por quadras (4 versos).

As rimas são, em geral, interpoladas e emparelhadas (segundo o esquema ABBA), com 12 sílabas métricas (alexandrino) e um verso de 10 sílabas (decassílabo) no primeiro verso de cada estrofe. 

As 4 partes do poema correspondem a menos de metade do dia (que vai do entardecer à noite cerrada):

  • Parte I: Avé-Marias;
  • Parte II: Noite fechada;
  •  Parte III: Ao Gás;
  • Parte IV: Horas mortas.

Com Cesário Verde, a poesia abre-se a (e celebra-se com) os cinco sentidos... Fica aqui uma amostra (para ler ou reler) (a primeira quadra de cada parte; e a IV parte - Horas mortas - completa).

O sentimento de um ocidental

I Avé-Marias 

Nas nossas ruas, ao anoitecer, 
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia 
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. (...)


II Noite Fechada 

 Toca-se às grades, nas cadeias. Som 
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! 
O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças, 
Bem raramente encerra uma mulher de dom! (...)

III Ao gás

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus. (...)

IV Horas mortas

O tecto fundo de oxigénio, de ar,
Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;
Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,
Enleva-me a quimera azul de transmigrar.
Por baixo, que portões! Que arruamentos! 
Um parafuso cai nas lajes, às escuras: 
Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, 
os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos. 

E eu sigo, como as linhas de uma pauta 
A dupla correnteza augusta das fachadas; 
Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, 
As notas pastoris de uma longínqua flauta. 

Se eu não morresse, nunca! E eternamente 
Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! 
Esqueço-me a prever castíssimas esposas, 
Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis, 
Pousando, vos trarão a nitidez às vidas! 
Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, 
Numas habitações translúcidas e frágeis. 

Ah! Como a raça ruiva do porvir, 
E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes, 
Nós vamos explorar todos os continentes 
E pelas vastidões aquáticas seguir! 

Mas se vivemos, os emparedados, 
Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...
Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas 
E os gritos de socorro ouvir, estrangulados. 

E nestes nebulosos corredores 
Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas; 
Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, 
Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos; 
Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;
E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,
Amareladamente, os cães parecem lobos. 

E os guardas, que revistam as escadas, 
Caminham de lanterna e servem de chaveiros; 
Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros, 
Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas. 

E, enorme, nesta massa irregular 
De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, 
A Dor humana busca os amplos horizontes, 
E tem marés, de fel, como um sinistro mar! 

(Bold, a vermelho, nosso: LG)


3. A versão completa do poema pode ser encontrada na Net, a conmeçar por aqui, mas por favor comprem  o livro em papel, "O Livro de Cesário Verde: 1873-1886",   edição da Assírio & Alvim, Lisboa, 2004 (a grande casa editorial da poesia).

E  leiam-no de vez em quando em voz alta e...  a qualquer hora!.... E repitam, de preferência ao entardecer, no miradouro da Senhora do Monte, na Graça, em Lisboa,  mesmo a abarrotar de tuque-tuques e de turistas: 

"Se eu não morresse, nunca! E eternamente  / Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! ")...
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 10 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26482: A Nossa Poemateca (8): José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985), por Mário Gaspar





José Gomes Ferreira (Porto, 1900 - Lisboa, 1985)

1. Foram-nos enviados dois poemas do José Gomes Ferreira,  pelo Mário Gaspar,  muito antes da pandemia ... Já transcrevemos o teor da mensagem  (*) em que o nosso camarada, ex-fur mil, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68), fala da sua intância e do meio operário em que foi criado, em Alhandra, e em que tomou o gosto pela leitura de  grandes escritores, neorrealistas, como o Soeiro Pereira Gomes e o Alves Redol... 


(...) Data: 29 de janeiro de 2017 às 04:16

Assunto: Dois Poemas de José Gomes Ferreira

(...) Que tal a figura de Soeiro Pereira Gomes, o "Gineto" ? Esse rapaz, de Alhandra e que nasceu numa bateira no rio que amo – o meu Tejo – "meninos que nunca foram meninos" e tinham de suportar o calor do tijolo e telha queimada sobre as costas. Os telhais existiram mesmo.

Estive lá. Pois o "Gineto", do livro "Esteiros", de Soeiro Pereira Gomes, tornou-se no maior atleta da época, o nadador que venceu as ondas do Canal da Mancha, Joaquim Baptista Pereira foi meu amigo. Ainda é um grande Amigo.(...)

(...) Tanto que aprendi... Conheci um senhor da nossa literatura, Alves Redol. Reunia com ele (...).

(...) Mas dá gosto termos estes poemas. Portugal é pobre, mas rico na literatura. Grandes senhores e esquecidos. Cada dia mais um. José Gomes Ferreira foi outro que conheci. (...)

Aqui vão para a nossa série "Poemateca" (**). O Mário não cita a fonte. Procurámos colmatar essa lacuna. E ficámos a saber que o poeta nasceu em Santo Ildefonso, Porto. De qualquer modo, nesta série , os poetas e os poemas selecionados são sempre uma escolha pessoal e livre dos nossos camaradas. O Mário manda-nos regularmente poesia, e mandou-nos muita, durante a pandemia de covid-19. Não mo agradeco. Faço-o agora.



Viver Sempre Também Cansa!

por José Gomes Ferreira



O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.

O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...


In: José Gomes Ferreira - "Viver Sempre também Cansa" (publicado originalmente na "Presença, folha de arte e crítica", ,julho-outubro,1931)


Devia Morrer-se de Outra Maneira

por José Gomes Ferreira



Devia morrer-se de outra maneira. 
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens. 

Quando nos sentíssemos cansados, 
fartos do mesmo sol, a fingir de novo todas as manhãs, 
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite 
para o ritual do Grande Desfazer: 
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
 em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo, 
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, 
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes. 
Ternura de calafrio.
 "Adeus! Adeus!" 

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, 
numa lassidão de arrancar raízes... 
primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... 
depois os cabelos... a carne, em vez de apodrecer, 
começaria a transfigurar-se em fumo... 
tão leve... tão subtil... tão pólen... 
como aquela nuvem além vêem? 

Nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis… 


In: José Gomes Ferreira, "Poeta Militante I, II e III"  (
1978)

(Revisão / fixação de texto, notas: LG)


___________

Notas do editor:


(**) Último poste da série > 21 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26410: A Nossa Poemateca (7): Adília Lopes (1960-2024): "Os amores / que não tive / (e foram muitos) /moeram-me / o juizo"...

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26410: A Nossa Poemateca (7): Adília Lopes (1960-2024): "Os amores / que não tive / (e foram muitos) /moeram-me / o juizo"...


Capa de "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, 1056 pp.




(i) Adília Lopes, pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira;

(ii) nasceu em Lisboa em 1960 e faleceu a 30 de dezembro de 2024;

(iii) frequentou a licenciatura em Física, na Universidade de Lisboa, que viria a abandonar já quase no final do curso;

(iv) começou a publicar a sua poesia no Anuário de Poetas não Publicados da Assírio & Alvim, em 1984;

(v) em 1983, tinha começado uma nova licenciatura, em Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

(vi) o seu primeiro livro de poesia, "Um Jogo Bastante Perigoso", é publicado em edição de autor (1985);

(vii) tem uma extensa obra poética: Irmã Barata, Irmã Batata (2000), Manhã (2015), Bandolim (2016), Estar em Casa (2018), Dias e Dias (2020) e Choupos (2023), etc.

(viii) Dobra (2024) é a mais recente reunião da sua obra publicada, incluindo inéditos;

(ix) colaborou em diversos jornais e revistas, em Portugal e no estrangeiro, com poemas, artigos e poemas traduzidos.


Fonte: textos e fotos, adapt de Assírio & Alvim, a sua editora, com a devida vénia


1. Dobra (2024) foi a prenda de aniversário que deu hoje ao meu filho, tendo como dedicatória um poema da minha lavra, "A gramática de vida" (que tomei a liberdade de publicar no blogue).

Da Adília Lopes, que eu só conhecia superficialmente, escolhi dois poemas para a série "A Nossa Poemateca".    Temos grandes "vozes" femininas na poesia portuguesa. Adília Lopes é simplesmente portentosa. Reconhecia duas ou três fontes que a inspiravam, também três dos meus poetas preferidos; Sophia de Melo Breyner Andresen, Alexandre O' Neil e Ruy Belo. Dele Adília Lopes pode-se dizer que tinha a compulsão da escrita. Alguém disse que escrevia poesia para se salvar. Era, de resto, uma mulher crente. 

A sua poesia é um fantástico jogo de teatro de marionetes. Era uma perita a manipular as palavras, as imagens e as personagens que inventava e  povoavam a sua casa de Arroios. Ficará também na história da nossa literatura como  um dos  grandes poetas de Lisboa. Talvez o último de uma Lisboa que desapareceu ou está em vias de desaparecer, a dos bairros populares, das lojas, dos cafés e dos restaurantes de proximidade.

Lógica necrológica

Os amores
que não tive
(e foram muitos)
moeram-me 
o juízo

Também 
não tive 
muitos filhos
isto é
não tive
nenhum

Não me queixo

O que
não foi
(e foi muito)
dei-me 
muito trabalho
e muito

Fonte: "Capilé" (2016). In: Adília Lopes, "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, pág. 750.
 

No more tears

Quantas vezes me fechei para chorar
na casa de banho da casa da minha avó
lavava os olhos com shampoo
e chorava
chorava por causa do shampoo
depois acabaram os shampoos
que faziam arder os olhos
no more tears disse Johnson & Johnson
as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães
uma mãe lava a cabeça da outra
e todas têm cabelos de crianças loiras
para chorar não podemos usar mais shampoo
e eu gostava de chorar a fio
e chorava
sem um desgosto sem uma dor sem um lenço
em uma lágrima
fechada à chave na casa de banho
da casa da minha avó
onde além de mim só estava eu
também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar

Fonte: "O decote da dama de espadas"(1988). In: Adília Lopes, "Dobra: poesia reunida". Lisboa: Assírio & Alvim, 2024, pág. 125.
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26347: A Nossa Poemateca (6): Adeus, de Eugénio de Andrade ("Os Amantes Sem Dinheiro", 1950) (escolha de Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé,1967/69)
 

sábado, 4 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26347: A Nossa Poemateca (6): Adeus, de Eugénio de Andrade ("Os Amantes Sem Dinheiro", 1950) (escolha de Mário Vitorino Gaspar, ex-fur mil art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé,1967/69)


Mário Gaspar
1, A escolha é do Mário Vitorino Gaspar,
(ex-fur mil art MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68); lapidador de diamantes reformado, cofundador e antigo dirigente da Associação APOIAR; ele próprio leitor e cultor de poesia, porque "ler poesia faz bem ao cérebro"; tem c. 140 referências no nosso blogue; ingressou na Tabanca Grande em 8/12/2013.


Adeus
por Eugénio de Andrade  






Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade
in "Os Amantes sem Dinheiro" (1950)


Eugénio de Andrade, pseudónimo literário de José Fontinhas (Fundão, 1923 — Porto, 2005). Tem mais de 40 títulos publicados, em poesia, em prosa e em obras de tradução. Um dos poetas maiores, portugueses, do séc. XX. Dos mais lidos e traduzidos, Entre muitos prémios, recebeu o Camões em 2001. Por razões profissionais ( era inspector administrativo dos Serviços Médico-Sociais da Caixa de Previdência, 1947-1983), adotou o Porto como a sua cidade, a partir de 1950.

Para saber mais, ver Biblioteca Digital Eugénio Andrade

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Nota do editor:

Último poste da série > 2 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26335: A Nossa Poemateca (5): Romance de Tomasinho Cara-Feia, de Daniel Filipe (Ilha da Boavista, 1925-Lisboa, 1964 ) (escolha de Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689,1967/69)

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26335: A Nossa Poemateca (5): Romance de Tomasinho Cara-Feia, de Daniel Filipe (Ilha da Boavista, 1925-Lisboa, 1964 ) (escolha de Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689,1967/69)


1. A escolha é do nosso amigo, camarada e grão-tabanqueiro Alberto Branquinho (n. 1944, Foz Coa), advogado e escritor, a viver em Lisboa desde 1970, ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69); tem cerca de 150 referências no nosso blogue: é autor das notáveis séries "Contraponto" e "Não venho falar de mim... nem do meu umbigo".

Comentário ao poste P26331 (*): "Aí vai um, do poeta Daniel Filipe, que é uma referência à diáspora caboverdiana. quarta-feira, 1 de janeiro de 2025 às 18:45:00 WET(*)

[ Poeta e jornalista, de origem cabo-verdiana, Daniel Damásio Ascensão Filipe, ou simplesmente Daniel Filipe, nasceu em 1925, na Ilha da Boavista, em Cabo Verde (donde saiu aos 2 anos, para nunca mais lá voltar. mas sem nunca ter cortado o cordão umbilical  que o ligará para sempre à sua terra ), e morreu em 1964, em Lisboa, muito precomente,aos 39 anos. Era filho de uma senhora da Ilha da Boavista e de um coronel médico, deportado. Na poesia destacou-se pela de denúncia e contestação, aliada a uma fina sensibilidade lírica. Foi perseguido e preso pela PIDE. Pelo menos dois dos seus livros foram proibidos pela censura: "O Manuscrito na Garrafa" (romance, 1960); e "Pátria, lugar de exílio" (poesia, 1963)... "A Invenção do Amor" (1961) é uma das suas obras mais conhecidas. Esperemos que em 2025 Portugal e Cabo-Verde decidam comemorar condignamente o 1º centenário deste grande poeta lusófono que tem hoje duas pátrias. LG]


ROMANCE DE TOMASINHO CARA-FEIA

Farto de sol e de areia
que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará.

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortunata, a mãe
que é velha e não tem ninguém,
chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta.
Deixou para sempre a horta
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-feia
(outro nome, quem lho dá?)
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

- E nunca mais voltará.


In: Daniel Filipe - Pátria Lugar de Exílio. Poesia em Tempo de Guerra. Lisboa:
 Presença, 1963.
__________

Nota de AB: A palavra "nha" em crioulo se bem que signifique "minha" em relação a pessoa, é "senhora".

________

Nota do editor LG:

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26331: A Nossa Poemateca (4): Força de Crecheu, de Eugénio Tavares (1861 - 1930) (escolha de Luís Graça)


Cabo Verde > Ilha da Brava > 6 de novembro de 2012 > Estátua do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930)...

["Brava é uma ilha e concelho do Sotavento de Cabo Verde. A sua maior povoação é a vila de Nova Sintra. O único concelho da ilha tem cerca de sete mil habitantes. Com 67 km², Brava é a menor das ilhas habitadas de Cabo Verde, e tem uma densidade populacional de 101,49/km². A ilha tem uma escola, um liceu, uma igreja e uma praça, a Praça Eugénio Tavares". Fonte: Wikipédia]


Foto (e legenda): © João Graça (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Escolha do nosso editor Luís Graça, em homenagem ao país da morna e ao seu grande poeta (vd. no poste P20651 uma tradução para português de Portugal). É considerado também um protonacionalista, tendo sido obrigado a exilar-se, em 1900, nos EUA, donde regressa com a República (1910). Além de poeta, foi também um notável jornalista,  contista e até dramaturgo. Escreveu em português e em crioulo cabo-verdiano. Popularizou a morna e a poesia em crioulo (foi ele que lhe deu estatuto de língua literária).

Força de Crecheu

por Eugénio Tavares (1861-1930)



Ca tem nada na es bida
Mas grande que amor.
Se Deus ca tem medida,
Amor inda é maior...
Amor ainda é maior,
Maior que mar, que céu:

Mas, entre otos crecheu,
De meu inda é maior

Cretcheu más sabe,
É quel que é di meu.
Ele é que é chabe
Que abrim nha céu...
Crecheu mas sabe
É quel 
Qui q'rem
Se ja' n  perdel,
Morte ja bem

Ó força de crecheu,
Abri'n  nha asa em flor!
Dixa'n  alcança ceu
Pa'n bá oja Nós Senhor,
Pa'n bá pedil semente
De amor coma es de meu
Pa'n bem da todo gente
Pa todo bá conché ceu!

Eugénio Tavares


Fonte: Eugénio Tavares: poesia, contos, teatro. Recolha, org. e pref. Félix Monteiro; org. e introd. Isabel Lobo. Praia : Instituto Caboverdiano do Livro e doo Disco, 1996, pp. 111/112.
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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26328: A Nossa Poemateca (3): Adeus, irmão branco!, de Geraldo Bessa Victor (Luanda, 1917 - Lisboa, 1985) (escolha de Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26328: A Nossa Poemateca (3): Adeus, irmão branco!, de Geraldo Bessa Victor (Luanda, 1917 - Lisboa, 1985) (escolha de Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74)


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e 
Ponte do Zádi, Angola, 1972/74); membro da Tabanca Grande  desde 11 de novembro de 2018,  com o nº 780, tem 33 referências no nosso blogue.  Escreveu sobre o nosso blogue

 "O teu blog é um monumento. É de certeza absoluta o maior acervo que existe, na Internet e fora dela, sobre a guerra na Guiné. Está lá tudo, ou pelo menos assim parece. Não existe, para a guerra em Angola e em Moçambique nada que se lhe compare. Absolutamente nada. Zero vírgula zero zero zero. Neste aspeto, os antigos combatentes em Angola e Moçambique têm que se contentar com a pobreza franciscana dos grupos no Facebook, dos quais nem sequer sou membro (...) Tu e os camaradas que te acompanham nessa tarefa merecem, no mínimo, um reconhecimento público". (...)

Engenheiro, natural do Porto,  o Fernando Ribeiro é o administror do blogue "A Matéria do Tempo", que mantém ativo desde janeiro de 2006 até hoje. Um caso notável de longevidade. 


1. A escolha é do Fernando de Sousa Ribeiro (ou Fernando Ribeiro), nosso grão-tabanqueiro, que fez a guerra em Angola mas se intressa também pela da Guiné. É um homem de um cultura invulgar, e sem ofensa um grande "africanista". Sobre este poeta de origem angolana, mal conhecido e talvez pior amado em Angola, veja-se aqui o que o Fernando escreveu no seu blogue.



ADEUS, IRMÃO BRANCO!

por Geraldo Bessa Victor (1917-1985)


ADEUS, meu irmão branco, boa viagem!

Chegou a hora de você voltar
para a Europa, a sua terra.
Quando você chegar, há-de falar
dos encantos que encerra
esta África Negra, tão distante,
tão distante, irmão branco...
Pois eu quero, neste instante
da partida, pedir-lhe uma promessa:
- Não se esqueça da alma do negro,
não se esqueça!

Você há-de falar das terras africanas,
da mata e da cubata,
dos montes e das chanas;
mas não se esqueça da alma.
Você há-de falar do sol fogoso,
das caçadas e queimadas,
das noites que viveu em batucadas
no mais feiticeiro gozo;
mas não se esqueça da alma.

Vai falar do café, do algodão, do sisal,
da fruta tropical, enfim, de toda a flora;
mas não se esqueça da alma.
Você há-de falar dos negros no seu mato,
da negra tentadora
de corpo sensual,
mostrando até retrato;
mas não se esqueça da alma.

Adeus, meu irmão branco! Lá na Europa,
quando falar da tropical paisagem,
não se esqueça da alma do negro.

Adeus, meu irmão branco, boa viagem!


Geraldo Bessa Victor (1917-1985), poeta de Angola

"Obra Poética", Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2001
https://loja.incm.pt/en/products/livros-obra-poetica-no-20-1001652

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Nota do editor:

Postes anteriores da série:

29 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26323: A Nossa Poemateca (2): "Lágrima de preta" (1961), de António Gedeão / Rómulo de Carvalho (1906-1997) (escolha de Beja Santos, nosso crítico literário)

27 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26318: A Nossa Poemateca (1): "Ladainha dos Póstumos Natais" (1971), de David Mourão Ferreira (1927-1996) (escolha de Valdemar Queiroz, minhoto de criação, alfacinha por adoção)

domingo, 29 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26323: A Nossa Poemateca (2): "Lágrima de preta" (1961), de António Gedeão / Rómulo de Carvalho (1906-1997) (escolha de Beja Santos, nosso crítico literário)

1.  Poema que o nosso grão-tabanqueiro e crítico literário Mário Beja Santos partilhou com os seus amigos e camarada
s, em 24/12/2024, 16:42, e que achámos por bem incluir na nossa recente série, "A Nossa Poemateca".

Assessor, aposentado, da Direção Geral do Consumidor, reputado especialista de direito do consumidor , a nível nacional e internacional, foi alf mil, cmdt Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70); é autor de dezenas de títulos, incluindo, os mais recentes, sobre a experiência de guerra na Guiné, a história e a cultura da Guiné, a bibliografia da guerra colonial. Tem 3145 referêncvias no nosso blogue, de que é um dos "históricos".


A Nossa Poemateca (2) (*)

Lágrima de preta | António Gedeão


Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.


António Gedeão, "Máquina de Fogo" (1961) (**)
 
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 27 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26318: A Nossa Poemateca (1): "Ladainha dos Póstumos Natais" (1971), de David Mourão Ferreira (1927-1996) (escolha de Valdemar Queiroz, minhoto de criação, alfacinha por adoção)

(**) António Gedeão é o pseudónimo literário de Rómulo Carvalho, (1906 - 1997): licenciado em Ciências Físico-Químicas pela Universidade do Porto, foi  professor do ensino secundártio, pedagogo, poeta, autor dramático, cientista e historiador.

O poema "Lágrima de Preta" aparece no o livro "Máquina de Fogo" (1961). Seria depois musicado por José Niza, e cantado por Adriano Correia de Oliveira, em 1970. A canção foi proibida pela censura na altura. É considerado um hino contra o racismo e a xenofobia.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26318: A Nossa Poemateca (1): "Ladainha dos Póstumos Natais" (1971), de David Mourão Ferreira (1927-1996) (escolha de Valdemar Queiroz, minhoto de criação, alfacinha por adoção)


1. A escolha é do Valdemar Queiroz, que nos enviou no passado dia 19, às 14:25, este pungente poema de Natal, do David Mourão Ferreira (1927-1996), e que, ele, Valdemar, dedica a todos "os que estão sós, velhos e doentes (que às vezes me lembro ser o meu caso)". 

Com este poste inauguramos uma nova série, "A Nossa Poemateca".  

O nosso leitor manda-nos um poema de que gosta, da sua autoria ou de algum poeta lusófono (português, brasileiro,  cabo-verdiano, guineense, são tomense, angolano, moçambicano, goês, macaense, timorense, e por aí fora).  A gente em princípio publica (depois de uma primeira apreciação crítica). 

Temos de ter em atenção os direitos de autor: se o poema não for original, convém indicar a fonte: o autor,o título do livro, a editora, o local, a data, a página...

De qualquer modo, este  é um exercício de "blogoterapia" (ler poesia faz bem à saúde de cada um de nós  e ao moral das nossas tropas...),  mas também de divulgação dos nossos poetas lusófonos ("Do Minho a Timor", sem complexos de superioridade ou inferioridade, e muito menos sem  ressentimentos: afinal, a nossa Pátria é a nossa língua, é um território mais vasto que o delimitado pelas nossas fronteiras...).

O Valdemar Queiroz tem 195 referências no nosso blogue. Integra a nossa Tabanca Grande desde 16/2/2014. Foi fur mil art, CART 2479 / CART 11 (Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70). 

Minhoto de nascimento (Afife, Viana do Castelo), veio para Lisboa trabalhar, ainda menino e moço. A inspeção do trabalho nunca deu conta de nada... Afinal, era preciso ganhar para a bucha...Depois foi Valdemar Queiroz "Embaló" lá na zona leste da Guiné, em 1969 e 1970.

É doente crónico, portador de uma DPOC (Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica). Pai e avô, com filho e netos nos Países Baixos. É um lutador nato e um exemplo para todos nós. "Parte mantenhas" em crioulo com a vizinhança que passa sob a a sua janela: vive na Rua (multiétnica) de Colaride, Agualva-Cacém, Sintra. E é um leitor (e comentador) quotidiano do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Já lhe ofereceram um "pelouro": diz que não quer ser "corrompido"...


A Nossa Poemateca (1)

LADAINHA DOS PÓSTUMOS NATAIS

Por David Mourão Ferreira (1927-1996)


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito


David Mourão-Ferreira,
in "Cancioneiro de Natal" (Prémio Nacional de Poesia, 1971)
(Lisboa, Editorial Verbo, 1971)