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Ovídio Martins (1928-1999) |
Ovídio Martins (1928-1999) é considerado um dos poetas cabo‑verdianos de referência do século XX. Claro que há outros que teriam de figurar numa antologia da poesia de Cabo Verde. Citemos, por exemplo:
- Baltasar Lopes da Silva (pseudónimo Osvaldo Alcântara) (1907-1989): um dos fundadores da revista "Claridade", historicamente um marco na literatura cabo-verdiana ao procurar valorizar a identidade e a realidade das ilhas. Poeta, prosador, ensaísta, é uma referência maior da cultura cabo-verdiana do séc. XX: "Chiquinho" é um romance incontornável para quem se quiser iniciar na literatura cabo-verdiana.
Jorge Barbosa (1902-1971): também outro "Claridoso" (figura central do movimento "Claridade"), a sua poesia faz-se da melancolia e do isolamento do arquipélago, mas também da esperança e da resiliência do povo cabo-verdiano.
Manuel Lopes (1907-2005): outro cofundador da "Claridade", explorou, em prosa e poesia, temas como a seca, a emigração e a vida rural em Cabo Verde. Obras de ficção como "Os Flagelados do Vento Leste" e "Chuva Braba" são obras de referência do romance cabo-verdiano, abordando a resiliência e o sofrimento dos ilhéus face às adversidades. Menos conhecida é talvez a sua obra poética: "Poemas de Quem Ficou", "Crioulo e Outros Poemas" e "Falucho Ancorado"... Viveu grande da vida em Portugal, mas nunca cortando o cordão umbilical com a sua terra.
- Corsino Fortes (1933-2015): já de outra geração, o autor de "Pão & Fonema" e "Árvore & Tambor", trouxe uma linguagem mais moderna e política para a poesia cabo-verdiana.
Arménio Vieira (n. 1941): Prémio Camões (2009), é o mais conhecido internacionalmente; voz muito original, também de outra doutra geração, explora questões mais existenciais e metafísicas, afastando-se dos temas mais tradicionais e insulares da literatura cabo-verdiana, inaugurados com a "Claridade" (1936).
2. Mas voltando a Ovídio Martins... A sua poesia é reconhecida pela força militante, intervenção cívica, crítica ao colonialismo e afirmação da identidade cabo‑verdiana. Mas também pelo lirismo amoroso. Foi um escritor bilingue (português e crioulo de São Vicente). Faz a transição entre a poesia militante e a afirmação da cabo-verdianidade.
(ii) fez o liceu Gil Eanes onde teve como o professor Baltazar Lopes;
(ii) frequentou o curso de Direito em Lisboa, entretanto interrompido por razões de saúde; na sequência do tratamento começou a sofrer de surdez:
(iii) empenhou-se na luta (política) pela independência, foi amigo de Amílcar Cabral, quatro anosais velho, e membro do PAIGC;
(iv) preso pela PIDE, exilou-se nos Países Baixos;
(v) voltou à sua terra, com o 25 de Abril, onde trabalhou no ministério da educação;
(vi) morreu em Lisboa, em 1999, vítima de doença neurológia.
Principais obras:
- Caminhada (Lisboa, 1962), primeira coletânea de poemas.
- Tchutchinha (1962) – conto/novela, editada em Angola
- 100 Poemas – Gritarei, Berrarei, Matarei – Não vou para Pasárgada (1973) (reunindo poesia em ambas línguas, incluindo temas de resistência e exílio);
- Independência (1983)(reflete o período pós‑independência)
Eis uma seleção nossa, de poemas da obra "Caminhada" (1963)
Sol ou mar
Chuva ou música
Sejas tu uma cadência
ou uma noite que se perdeu
Traz nos teus braços
a distância
que nos separa
do sonho impossível
Olhos cheios de secas
e de oceanos
Cheios de mornas
e de pouco milho
As promessas viraram cansaço
e já nem as luas acreditam
Sol ou mar
Chuva ou música
Para vós as glórias do achamento
Para nós os sonhos em ampulhetas
Choveu
Festa na terra
Festa nas Ilhas
Soluçam os violinos choram os violões
nos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morena
dança mulata
menininha sabe como vocês não tem»
E elas sabinhas
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras
Choveu
Festa na terra
Festa nas Ilhas
Já tem milho pa cachupa
Já tem milho pa cuscus
Nas ruas
nos terreiros
por toda banda
as mornas unem os pares nos bailes nacionais
Mornas e sambas
mornas e marchas
mornas mornadas
Choveu
Festa na terra
Festa nas Ilhas
que cantam e dançam e riem
e choram de contentamento
Soluçam os violinos choram os violões
nos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morena
dança mulata
menininha sabe como vocês não tem»
E elas sabinhas
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras
Quem ê q’morrê
qond quel navio
desaparecê
na mar de canal?
Nós tude morrê um c’zinha
Quem ê q’morrê
qond quel bôte
tcheu de pêscador
perdê na nôte?
Nós tude morrê um c’zinha
E quel carta de lute
quem ê q’morrê
qond tchgá noticia de Son T’mê
Nós tude morrê um c’zinha
In: "Caminhada". 1ª edição. Lisboa: Casa dos Estudantes do Império. Colecção de Autores Ultramarinos, 1963 (disponível em https://www.uccla.pt/sites/default/files/caminhada.pdf )
Nota do editor:
Último poste da série > 28 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26536: A Nossa Poemateca (9): Cesário Verde (1855-1886): Excertos de "Nós", seguidos de "O sentimento de um ocidental"
7 comentários:
O crioulo de Cabo Verde é uma língua doce, que os poetas (incluindo os autores de letras da morna) elevaram a um patamar elevado, o de língua literária... Adoro ler poesia em crioulo, apesar de não falar o crioulo (tenho muita pena!)...
Eu, que sou apenas um "curioso", mas profundo amante da cultura cabo-verdiano, não quis arriscar traduzir palavras como "cretcheu" e "morabeza"... A IA náo tem essa sensibilidade. São dois termos identitários da cultura cabbo-verdiano, tal como a nossa "saudade"...
"Cretcheu" perde, em português, se for traduzido por "amor" ou "querido/a"... É um uma palavra, profundamente ligada à morna, que expressa mais do que amor: é paixão, um amor intenso, de fusão, um fogo quase sagrado, muitas vezes reservada ao casal que está apaixonado. Traduzir é amputá-lo da sua carga emocional e cultural.
"Morabeza", por sua vez, é mais do que sentido de hospitalidade, é aquele jeito muito especial, caloroso, acolhedor, de ser, estar, sentir e parecer do cabo-verdiano. É uma forma de empatia, mais do que simpatia, um forma única de receber o outro (em geral, que vem de fora, de outra cultura).
O crioulo de Cabo Verde é uma língua doce, que os poetas (incluindo os autores de letras da morna) elevaram a um patamar alto, o de língua literária... Adoro ler poesia em crioulo, apesar de não falar o crioulo (tenho muita pena!)...
Eu, que sou apenas um "curioso", mas profundo amante da cultura cabo-verdiano, não quis arriscar traduzir palavras como "cretcheu" e "morabeza"... A IA náo tem essa sensibilidade. São dois termos identitários da cultura cabo-verdiano, tal como a nossa "saudade"...
"Cretcheu" perde, em português, se for traduzido por "amor" ou "querido/a"... É um uma palavra, profundamente ligada à morna, que expressa mais do que amor: é paixão, um amor intenso, de fusão, um fogo quase sagrado, muitas vezes reservada ao casal que está apaixonado. Traduzir é amputá-lo da sua carga emocional e cultural.
"Morabeza", por sua vez, é mais do que sentido de hospitalidade, é aquele jeito muito especial, caloroso, acolhedor, de ser, estar, sentir e parecer do cabo-verdiano. É uma forma de empatia, mais do que simpatia, um forma única de receber, compreender e aceitar o outro (em geral, que vem de fora, de outra cultura).
Tenho umna visão algo "idealizada" de Cabo Verde, não conhecço (a não ser a placa do aeroporto da ilha do Sal...). A que me ficou das memórias de infâncias transmitidas pelo meu pai, Luís Henriques, expedicionário no Mindelo, São Vicente, em 1941/43... Mas, pelo que eu sei e vi nas fotos do álbum dele, não há lá nem rios nem ribeiros, mas... "ribeiras". Certo, meu amigo e camarada Carlos Filipo Gonçalves ?
"Flagelados do vento leste"... é um poema poderoso. Uma metáfora poderosa. E diz tudo. Porque é universal....
Carlos Filipe Gonçalves (by email) | sábado, 12/07/2025, 21:42
Olá, caro amigo e camarada:
Que bela surpresa esta festa dos 50 anos, no Blog e no FB, que agora até dá direito a uma página de poesia, com muitos mestres e poemas do nosso Ovídio que, embora mais muito mais velho, trabalhou comigo na Rádio Voz di Povo (1975) depois Emissora Oficial de Cabo Verde, até sensivelmente 1979… Ovídio, era um colaborador especial, que fazia textos de alta qualidade para a rádio, que constituíam o programa “Temas ao Acaso”, muito apreciado na época. Produzia também textos para o jornal Voz di Povo, onde estava, aliás, outro grande poeta e escritor, o Arménio Viera, que era o Chefe da Secção Cultural. Olha quem me lançou nas lides de artigos sobre música no jornal, foi o Arménio.
Volto a dizer, traduzes muito bem o crioulo para o português, já te tinha dito. Portanto apenas uma pequenas achegas:
Poema Cretcheu – a ideia que exprimiste em português, está certa até a certo ponto… mas, nesta frase - n ta tróbe um morninha –, a tradução literal seria: faço, ou componho uma morninha / que te b>dê alegria e paz / que te coloque (ou ponha) um sorriso nos lábios.
Outra frase: e nha violão ê más doce / q’cónte de seréna ta pintiá / Trad. Literal: e o meu violão é mais doce do que um conto de sereia consegue pintar
Calá ca bô tchora más... Cala-te, não chores mais
bô ê morna morna ê bô ...Tu és morna, morna és tu
e s’m perdebe mi era capaz... Se eu te perder, eu seria capaz
de perdê tine perdê nha vida... de perder o tino e perder a minha vida
destino que é amargo... destino a que estamos amarrados
mas é destino... mas é um destino
que nós não queremos...que nós não queremos
PS - Junto envio um podcast de uma palestra que apresentei sobre o Ovídio Martins, Jornalista. Publiquei no meu Canal no Youtube. É pena, o Youtube ter cortado algumas músicas do extracto do programa sobre o 1.º Aniversario da Independência, devido a questões de direitos de autor.
Agora uma pergunta, recebeste o email com a versão PDF do meu livro sobre a Rádio Barlavento?
Forte Abraço, Vida e Saúde
Carlos Filipe Gonçalves
Jornalista Aposentado
Luís Graça (by email)
sábado, 12/07/2025, 08:06
Meu bom amigo e camarada:
Quis fazer uma "brincadeira", de homenagem aos teus/nossos poetas, nos 50 anos da tua/nossa terra... Neste caso o Ovídio Martins... Vê lã se não dei grandes "pontapés na gramática"...Corrige-me por favor, se tiveres um bocadinho de tempo e vagar... Bem gostava de falar o teu crioulo, que adoro ler em poesia...
Mantenhas. Luís
Luís Graça
06:37 (há 1 hora)
para Carlos
Carlos, és um amor!... Recebi o pdf com o teu livro... Muito, muito obrigado. Tenho a obrigação de lhe dar, à obra e ao autor, o devido destaque, com uma "nota de leitura" (temos uma série própria)... Mas não tenho tido tempo... A festa dos 50 anos continua, até pelo menos ao fim do ano!...Portanto, a "nota de leitura" vai sair um dia destes, fica descansado... E este teu mail, se mo permitires, vai sair em poste na série dos 50 anos, com as tuas generosas e sábias achegas ao poste da série A Nossa Poemateca, e mais "confidências" das tuas vidas na rádio... O vosso crioulo é tão bonito que merece muito mais divulgação np nosso blogue... Claro, temos que saber temperar estas coisas, a poesia, a música e as merdas... da guerra!...
Um chicoração fraterno, Luís
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