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sábado, 12 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27007: A Nossa Poemateca (10): Ovídio Martins (Mindelo, 1928 - Lisboa, 1999), um grande poeta cabo-verdiano bilingue


Ovídio Martins
(1928-1999)

1. Nos 50 anos da independência de Cabo Verde , temos de dar também a palavra aos poetas. Ovídio Martins (Mindelo, 1928 - Lisboa, 1999) é a nossa escolha para a série "A Nossa Poeemateca".

Ovídio Martins (1928-1999) é considerado um dos poetas cabo‑verdianos de referência do século XX.  Claro que há outros que teriam de figurar numa antologia da poesia de Cabo Verde. Citemos, por exemplo:

  • Baltasar Lopes da Silva  (pseudónimo Osvaldo Alcântara) (1907-1989): um dos fundadores da revista "Claridade", historicamente um marco na literatura cabo-verdiana ao procurar valorizar a identidade e a realidade das ilhas. Poeta, prosador, ensaísta, é uma referência maior da cultura cabo-verdiana do séc. XX: "Chiquinho" é um romance incontornável para quem se quiser iniciar na literatura cabo-verdiana.
  • Jorge Barbosa (1902-1971): também outro "Claridoso" (figura central do movimento "Claridade"),  a sua poesia faz-se da melancolia e do isolamento do arquipélago, mas também da esperança e da resiliência do povo cabo-verdiano.

  • Manuel Lopes (1907-2005): outro  cofundador da "Claridade",  explorou, em prosa e poesia, temas como a seca, a emigração e a vida rural em Cabo Verde.  Obras de ficção como "Os Flagelados do Vento Leste" e "Chuva Braba" são obras de referência do romance  cabo-verdiano, abordando a resiliência e o sofrimento dos ilhéus face às adversidades. Menos conhecida é talvez a sua obra poética:  "Poemas de Quem Ficou", "Crioulo e Outros Poemas" e "Falucho Ancorado"... Viveu grande da vida em Portugal, mas nunca cortando o cordão umbilical com a sua terra.

  • Corsino Fortes (1933-2015): já de outra geração, o autor de "Pão & Fonema" e "Árvore & Tambor", trouxe uma linguagem mais moderna e política para a poesia cabo-verdiana.
  • Arménio Vieira (n. 1941): Prémio Camões (2009), é o mais conhecido internacionalmente; voz muito original, também de outra  doutra geração,  explora questões mais  existenciais e metafísicas, afastando-se dos temas mais tradicionais e insulares da literatura cabo-verdiana, inaugurados com a "Claridade" (1936).

Com exceção de Jorge Barbosa e Arménio Vieira,  nascidos na Praia, os restantees são todos nados e criados na capital cultural de Cabo Verde, Mindelo, onde surgiu o movimento "Claridade" (a que Jorge Barbosa também está profundamente ligado). Desta revista literária, "Claridade", sairam nove números, entre 1936 e 1960.

E, en passant, não podemos esquecer o pai da morna, Eugénio Tavares (1867-1930), um dos primeiros a utilizar e valorizar o crioulo como língua literária. Nem o expedicionário em São Vicente, na II Guerra Mundial, o furriel miliciano, leiriense,  Manuel Ferreira (1917-1992),  que se irá tornar um grande apaixonado, estudioso, crítico e divulgador da literatura cabo-verdiana: tem 15 referências no nosso blogue;  mais tarde,  capitão SGE,  será também ficcionista, autor de "Hora di Bai" (romance) e de "Morabeza" (contos).

2. Mas voltando a Ovídio Martins... A sua poesia  é reconhecida pela força militante,  intervenção cívica, crítica ao colonialismo e  afirmação da  identidade cabo‑verdiana. Mas também pelo lirismo amoroso.  Foi um escritor bilingue (português e crioulo de São Vicente). Faz a transição entre a poesia militante e a afirmação da cabo-verdianidade. 

Sobre Ovídio Martins, importa referir algumas breves notas biográficas:
´
(i) nasceu em Mindelo, ilha de São Vicente,

(ii) fez o liceu Gil Eanes onde teve como o professor Baltazar Lopes;

(ii) frequentou o curso de Direito em Lisboa, entretanto interrompido por razões de saúde; na sequência do tratamento começou a sofrer de surdez:

(iii) empenhou-se na luta (política) pela independência, foi amigo de Amílcar Cabral, quatro anosais velho, e membro do PAIGC;

(iv) preso pela PIDE, exilou-se nos Países Baixos;

(v) voltou à sua terra, com o 25 de Abril, onde trabalhou no ministério da educação;

 (vi) morreu em Lisboa, em 1999, vítima de doença neurológia.

 
Principais obras:

  • Caminhada (Lisboa, 1962), primeira coletânea de poemas.
  • Tchutchinha (1962) – conto/novela, editada em Angola 
  • 100 Poemas – Gritarei, Berrarei, Matarei – Não vou para Pasárgada (1973) (reunindo poesia em ambas línguas, incluindo temas de resistência e exílio);
  • Independência (1983)(reflete o período pós‑independência)

Eis uma seleção nossa, de poemas da obra "Caminhada" (1963)

 
o único impossível 

Para Baltazar Lopes 

Mordaças 
A um Poeta? 

Loucura! 

E por que não 
Fechar na mão uma estrela 
O Universo num dedal? 
Era mais fácil
Engolir o mar
Extinguir o brilho aos astros 

Mordaças 
A um Poeta? 

Absurdo! 

E por que não 
Parar o vento
Travar todo o movimento?
Era mais fácil deslocar montanhas com uma flor 
Desviar cursos de água com um sorriso 

Mordaças 
A um Poeta? 

Não me façam rir!... 

Experimentem primeiro 
Deixar de respirar 
Ou rimar... mordaças 
Com Liberdade

desesperança

Cinco séculos depois
do
achamento de Cabo Verde


Sol ou mar
Chuva ou música
Sejas tu uma cadência
ou uma noite que se perdeu
Traz nos teus braços
a distância
que nos separa
do sonho impossível
Olhos cheios de secas
e de oceanos
Cheios de mornas
e de pouco milho
As promessas viraram cansaço
e já nem as luas acreditam
Sol ou mar
Chuva ou música
Para vós as glórias do achamento
Para nós os sonhos em ampulhetas



chuva em cabo verde


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
Soluçam os violinos choram os violões
nos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morena
dança mulata
menininha sabe como vocês não tem»
E elas sabinhas
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
Já tem milho pa cachupa
Já tem milho pa cuscus
Nas ruas
nos terreiros
por toda banda
as mornas unem os pares nos bailes nacionais
Mornas e sambas
mornas e marchas
mornas mornadas


Choveu


Festa na terra
Festa nas Ilhas
que cantam e dançam e riem
e choram de contentamento
Soluçam os violinos choram os violões
nos dedos rápidos dos tocadores
«Dança morena
dança mulata
menininha sabe como vocês não tem»
E elas sabinhas
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras
dão co’as cadeiras



nôs môrte


Quem ê q’morrê
qond quel navio
desaparecê
na mar de canal?


Nós tude morrê um c’zinha

Quem ê q’morrê
qond quel bôte
tcheu de pêscador
perdê na nôte?

Nós tude morrê um c’zinha

E quel carta de lute
quem ê q’morrê
qond tchgá noticia de Son T’mê

Nós tude morrê um c’zinha


A nossa morte

Quem é que morreu
quando aquele navio
desapareceu
no mar do canal?

Todos nós morremos um bocadinho...

Quem é que morreu
quando aquele bote,
cheio de pescadores,
se perdeu na noite?

Todos nós morremos um bocadinho...

E aquela carta de luto,
quem é que morreu
quando chegou a notícia de São Tomé?

Todos nós morremos um bocadinho...


 


cretcheu


Calá, ca bô tchôra más 
’n ta tróbe um morninha 
que ta dobe ’ligria e paz 
que ta pobe sorrise na boca 

Calá ca bô tchora más 
nha amor ê forte carditá 
nha violão ê más doce 
q’cónte de seréna ta pintiá 

Calá ca bô tchora más 
bô ê morna morna ê bô 
e s’m perdebe mi era capaz 
de perdê tine perdê nha vida.

Cretcheu

Cala-te, não chores mais,
vou-te fazer uma morninha
que te traga alegria e paz
e te põnha  um sorriso nos lábios.

Cala-te, não chores mais,
o meu amor é forte, acredita,
e o meu violão é mais doce
do que um conto de sereia consegue  pintar.

Cala-te, não chores mais
tu és morna, morna és tu
e, se eu te perder, 
eu seria  capaz de perder o tino 
e perder a minha vida.

 


um r’bêra pa mar 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar... 
R’bêra sem ága 
má tcheu de dor e raiva 
de desuspêre e agonia 
El ta tcheu de sperança
 inganóde e de promessa inrolóde na fume 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar
R’bêra sem ága 
ma’l tem sangue 

Sangue daquês que morrê na terra-longe 
na traboi scróve 

Sangue daquês q’caí de rotcha 
pa ca morrê de fôme 

Sangue d’irmon que matá irmon 
pa inganá és dstine de séca 
dstine qu’ês marróne 
má dstine  que nó ca qrê 

Tem um r’bêra ta corrê pa mar...



Uma ribeira para o mar

Há uma ribeira que corre para o mar...
Ribeira sem água,
mas cheia de dor e raiva,
de desespero e agonia.
Está cheia de esperança,
enganosa e de promessas enroladas em fumo.

Há uma ribeira que corre para o mar,
ribeira sem água,
mas que tem  sangue.

Sangue daqueles que morreram na terra-longe,
em trabalhos escravos.

Sangue daqueles que caíram dos penhascos
para não morrer de fome.
Sangue de irmão que matou irmão
para enganar esse destino da seca,
destino a quer estamos amarrados,
mas é um destino
que nós não queremos.

Há uma ribeira que corre para o mar...



morabeza 

’M tá gostá de bô ser 
um spêce de porte d’abrigue 
Qond tempôral b’tasse mim 
dum conte pa ote 
’m tá tem certéza 
na bô morabéza: 
dôs bróce quente pa quecême 
dôs oi monse pa serenóme 
e um boca doce pa calentóme


Morabeza


Gosto que tu sejas
o meu  porto de abrigo
Quando a tempestade me sacode
de um lado para o outro,
eu tenho a certeza
da tua morabeza:
dois braços quentes para me aquecer
dois olhos mansos para me acalmar
e uma boca doce para me acalentar



In:  "Caminhada". 1ª edição. Lisboa:  Casa dos Estudantes do Império. Colecção de Autores Ultramarinos,  1963 (disponível em https://www.uccla.pt/sites/default/files/caminhada.pdf )


(tradução para português europeu,   com recurso à IA, revisão, fixação de texto, pontuação, na coluna do lado direito: LG... E a generosa supervisão  do jornalist, radialista e escritor, e nosso camarada de Cabo Verde, Carlos Filipe Gonçalves)







Fonte: (1975), "Diário de Lisboa", nº 18807, Ano 55, Sábado, 5 de Julho de 1975, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_4405 (2025-7-12) (com a devida vénia...)


 

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O crioulo de Cabo Verde é uma língua doce, que os poetas (incluindo os autores de letras da morna) elevaram a um patamar elevado, o de língua literária... Adoro ler poesia em crioulo, apesar de não falar o crioulo (tenho muita pena!)...

Eu, que sou apenas um "curioso", mas profundo amante da cultura cabo-verdiano, não quis arriscar traduzir palavras como "cretcheu" e "morabeza"... A IA náo tem essa sensibilidade. São dois termos identitários da cultura cabbo-verdiano, tal como a nossa "saudade"...

"Cretcheu" perde, em português, se for traduzido por "amor" ou "querido/a"... É um uma palavra, profundamente ligada à morna, que expressa mais do que amor: é paixão, um amor intenso, de fusão, um fogo quase sagrado, muitas vezes reservada ao casal que está apaixonado. Traduzir é amputá-lo da sua carga emocional e cultural.

"Morabeza", por sua vez, é mais do que sentido de hospitalidade, é aquele jeito muito especial, caloroso, acolhedor, de ser, estar, sentir e parecer do cabo-verdiano. É uma forma de empatia, mais do que simpatia, um forma única de receber o outro (em geral, que vem de fora, de outra cultura).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O crioulo de Cabo Verde é uma língua doce, que os poetas (incluindo os autores de letras da morna) elevaram a um patamar alto, o de língua literária... Adoro ler poesia em crioulo, apesar de não falar o crioulo (tenho muita pena!)...

Eu, que sou apenas um "curioso", mas profundo amante da cultura cabo-verdiano, não quis arriscar traduzir palavras como "cretcheu" e "morabeza"... A IA náo tem essa sensibilidade. São dois termos identitários da cultura cabo-verdiano, tal como a nossa "saudade"...

"Cretcheu" perde, em português, se for traduzido por "amor" ou "querido/a"... É um uma palavra, profundamente ligada à morna, que expressa mais do que amor: é paixão, um amor intenso, de fusão, um fogo quase sagrado, muitas vezes reservada ao casal que está apaixonado. Traduzir é amputá-lo da sua carga emocional e cultural.

"Morabeza", por sua vez, é mais do que sentido de hospitalidade, é aquele jeito muito especial, caloroso, acolhedor, de ser, estar, sentir e parecer do cabo-verdiano. É uma forma de empatia, mais do que simpatia, um forma única de receber, compreender e aceitar o outro (em geral, que vem de fora, de outra cultura).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tenho umna visão algo "idealizada" de Cabo Verde, não conhecço (a não ser a placa do aeroporto da ilha do Sal...). A que me ficou das memórias de infâncias transmitidas pelo meu pai, Luís Henriques, expedicionário no Mindelo, São Vicente, em 1941/43... Mas, pelo que eu sei e vi nas fotos do álbum dele, não há lá nem rios nem ribeiros, mas... "ribeiras". Certo, meu amigo e camarada Carlos Filipo Gonçalves ?

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Flagelados do vento leste"... é um poema poderoso. Uma metáfora poderosa. E diz tudo. Porque é universal....

Anónimo disse...


Carlos Filipe Gonçalves (by email) | sábado, 12/07/2025, 21:42

Olá, caro amigo e camarada:

Que bela surpresa esta festa dos 50 anos, no Blog e no FB, que agora até dá direito a uma página de poesia, com muitos mestres e poemas do nosso Ovídio que, embora mais muito mais velho, trabalhou comigo na Rádio Voz di Povo (1975) depois Emissora Oficial de Cabo Verde, até sensivelmente 1979… Ovídio, era um colaborador especial, que fazia textos de alta qualidade para a rádio, que constituíam o programa “Temas ao Acaso”, muito apreciado na época. Produzia também textos para o jornal Voz di Povo, onde estava, aliás, outro grande poeta e escritor, o Arménio Viera, que era o Chefe da Secção Cultural. Olha quem me lançou nas lides de artigos sobre música no jornal, foi o Arménio.

Volto a dizer, traduzes muito bem o crioulo para o português, já te tinha dito. Portanto apenas uma pequenas achegas:

Poema Cretcheu – a ideia que exprimiste em português, está certa até a certo ponto… mas, nesta frase - n ta tróbe um morninha –, a tradução literal seria: faço, ou componho uma morninha / que te b>dê alegria e paz / que te coloque (ou ponha) um sorriso nos lábios.

Outra frase: e nha violão ê más doce / q’cónte de seréna ta pintiá / Trad. Literal: e o meu violão é mais doce do que um conto de sereia consegue pintar

Calá ca bô tchora más... Cala-te, não chores mais
bô ê morna morna ê bô ...Tu és morna, morna és tu
e s’m perdebe mi era capaz... Se eu te perder, eu seria capaz
de perdê tine perdê nha vida... de perder o tino e perder a minha vida
destino que é amargo... destino a que estamos amarrados
mas é destino... mas é um destino
que nós não queremos...que nós não queremos

PS - Junto envio um podcast de uma palestra que apresentei sobre o Ovídio Martins, Jornalista. Publiquei no meu Canal no Youtube. É pena, o Youtube ter cortado algumas músicas do extracto do programa sobre o 1.º Aniversario da Independência, devido a questões de direitos de autor.

Agora uma pergunta, recebeste o email com a versão PDF do meu livro sobre a Rádio Barlavento?

Forte Abraço, Vida e Saúde

Carlos Filipe Gonçalves

Jornalista Aposentado

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Luís Graça (by email)
sábado, 12/07/2025, 08:06

Meu bom amigo e camarada:

Quis fazer uma "brincadeira", de homenagem aos teus/nossos poetas, nos 50 anos da tua/nossa terra... Neste caso o Ovídio Martins... Vê lã se não dei grandes "pontapés na gramática"...Corrige-me por favor, se tiveres um bocadinho de tempo e vagar... Bem gostava de falar o teu crioulo, que adoro ler em poesia...

Mantenhas. Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...


Luís Graça
06:37 (há 1 hora)
para Carlos

Carlos, és um amor!... Recebi o pdf com o teu livro... Muito, muito obrigado. Tenho a obrigação de lhe dar, à obra e ao autor, o devido destaque, com uma "nota de leitura" (temos uma série própria)... Mas não tenho tido tempo... A festa dos 50 anos continua, até pelo menos ao fim do ano!...Portanto, a "nota de leitura" vai sair um dia destes, fica descansado... E este teu mail, se mo permitires, vai sair em poste na série dos 50 anos, com as tuas generosas e sábias achegas ao poste da série A Nossa Poemateca, e mais "confidências" das tuas vidas na rádio... O vosso crioulo é tão bonito que merece muito mais divulgação np nosso blogue... Claro, temos que saber temperar estas coisas, a poesia, a música e as merdas... da guerra!...

Um chicoração fraterno, Luís