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sábado, 31 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23935: Antologia (88): Cabo Verde: história das suas forças armadas, constituídas a partir de um núcleo de antigos combatentes do PAIGC (excertos de artigo de Pedro dos Reis Brito, "Revista Militar", n.º 2461/2462, de fev / mar 2007)

1 Apesar de tudo, Cabo Verde está também no coração de muitos de nós; os pais de alguns de nós foram lá expedicionários durante a II Grande Guerra; temos camaradas naturais de lá, que estão inscritos na Tabanca Grande; um ou outro dos membros da Tabanca Grande fez lá também a sua comissão de serviço militar,  nalguns casos estiveram lá alguns meses, ou em trânsito para o CTIG, sobretudo no início dos anos 60...  

Cabo Verde é um país da CPLP sobre o qual temos falado pouco... Ou sobre o qual tem havido pouco que falar, aqui no nosso blogue, apesar da presença histórica de Portugal na região e nas ilhas desde meados do séc. XV. E pode vir a ser, num futuro próximo, um parceiro da NATO.

Bem, na realidade temos 470 referências sobre Cabo Verde, o que não é nada mal.  Temos falado pouco de Cabo Verde dos anos 60 para cá, como antiga colónia portuguesa e depois como país lusófono independente.  

Temos falado muito pouco sobretudo da sua discretíssima independência (mas nem por isso "pacífica", dados os interesseses geoestratégicos em jogo, com o PAIGC , pós-Amílcar Cabral, na altura claramente pró-soviético).  

Como temos falado pouco do golpe de estado de 'Nino' Vieira em 14 de novembro de 1980 que deu a machada final no "mito" da unidade Guiné-Bissau / Cabo Verde, tão acarinhado por Amílcar Cabral e um punhado de cabo-verdianos do seu partido e aceite, a contra-gosto, por muitos guineenses (alguns dos quais saudaram efusivamente o golpe, que teve consequências irreversíveis).

Não sou dos saudosistas que pensam que Cabo Verde hoje bem poderia ser uma região autómoma de Portugal  e estar plenamente integrada na União Europeia, tal como as Canárias, os Açores ou a Madeira. A escolha (política) do povo cabo-verdiano é/foi soberana.   

A memória é curta, pelo que é bom recordar  que "a 19 de Dezembro de 1974 foi assinado um acordo entre o PAIGC e Portugal, instaurando-se um governo de transição em Cabo Verde. Este mesmo Governo preparou as eleições para uma Assembleia Nacional Popular que em 5 de julho de 1975 proclamou a independência." (Sítio oficial do Governo de Cabo Verde > O arquipélago > História )

Mas nós aqui temos a natural curiosidade, como antigos combatentes,  em saber o que se passou até à independência, e mesmo depois sob o regime único do PAIGC / PAICV.  E vamos continuar a fazê-lo dentro do respeito do princípio da não-ingerência, dos antigos combatentes da guerra colonial,  na vida interna de Cabo Verde e da Guiné-Bissau (dois países que nos são queridos, além das demais antigas colónias portugueses, hoje países independentes). Além disso, a "morabeza" impõe...


2. Excertos de um artigo publicado na Revista Militar, n.º 2461/2462, fevereiro/março de 2007, "Os Quarenta Anos das Forças Armadas de Cabo Verde", do então tenente-coronel Pedro dos Reis Brito, na reserva, entretanto falecido (1953-2014).

Segundo o semanário Expresso das Ilhas, de 23 de agosto de 2015, este oficial das Forças Armadas de Cabo Verde que atingiria o posto de posto de coronel "entrou para a corporação após ter concluído o estágio de Comissário Político de Companhia, em junho de 1975 em Cuba"... Trata-se, pois, de um dos primeiros elementos a integrar as Forças Armadas da República de Cabo Verde.

Voltando à nossa fonte, "de julho a agosto de 1975, desempenhou as funções de comissário político da Companhia Manuel Monteiro do Comando da Primeira Região Militar, de agosto de 1975 a maio de 1976, desempenhou as funções de comissário político no Centro de Instrução Político Militar do Tarrafal; em 15 de maio de 1976 foi promovido ao posto de segundo-oficial, para a 4 de Janeiro de 1978, ser promovido ao posto de tenente" (...) e em 1995 foi promovido ao posto de capitão, tendo entretanto concluído, em novembro de 1995, "a licenciatura em Economia, por correspondência, na Universidade de Havana, em Cuba".

Era então tenente-coronel quando escreveu este artigo para a "Revista Militar", portuguesa. Desse artigo vamos selecionar com a devida vénia, alguns excertos com factos relevantes para a história das Forças Armadas de Cabo Verde. Vão em itálico e separados por parênteses curvos, os subtítulos são nossos.


As Forças Armadas, uma instituição que orgulha os cabo-verdianos

(...) Celebrar os quarenta anos de existência das Forças Armadas é, de facto, revisitar marcos históricos da Nação Cabo-Verdiana, alguns perdidos no tempo ou nos recônditos da memória, outros mais presentes. Para além da comemoração ser um dever da instituição é, simultaneamente, um tempo de festa - pelas realizações e êxitos conseguidos - e de análise e reflexão com vista a corrigir os erros, projectar melhor o futuro e agir com maior coerência no presente.
 
Trinta e um anos depois da conquista da sua independência, Cabo Verde - este país ilhéu e saheliano do Atlântico médio - deixa o grupo dos PMA (Países Menos Avançados) e ascende à condição de país de desenvolvimento médio. Mérito é, facto, do povo caboverdiano, mérito dos sucessivos governos e mérito das instituições, pequenas e grandes, que enformam o estado e a sociedade. O nível de desenvolvimento atingido nestas dez ilhas é fruto de trabalho árduo e de muitos sacrifícios, (...)


Nesses anos de construção sobressai uma instituição que orgulha os cabo-verdianos e que acaba de completar 40 anos: as Forças Armadas de Cabo Verde. A história das Forças Armadas, assim como a formação da Nação, precede a independência e confunde-se nas trilhas da luta emancipadora com o doloroso, sacrificante e honroso caminhar para a nova aurora.

O Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde - ver listagem completa no final do artigo - por circunstâncias e vicissitudes diversas - diria, quase, por imponderáveis do tempo histórico - é constituído em meados dos anos sessenta do Século XX e lá do outro lado do oceano.

Realmente, a necessidade de dar inicio à luta armada em Cabo Verde levou a direcção do PAIGC - movimento libertador das Ilhas e da Guiné - no fragor da luta a mobilizar um punhado de jovens de que faziam parte estudantes, camponeses e trabalhadores emigrantes, juntamente com outros militantes anteriormente mobilizados, e enviá-lo a Cuba, onde, em plena clandestinidade e nas montanhas dessa ilha, permanece cerca de dois anos, recebendo preparação militar que seria, posteriormente, continuada na União Soviética.

É a 15 de janeiro de 1967, ainda em Cuba, finda a preparação e em vésperas de partir que, perante Amílcar Cabral, a quase totalidade dos membros do Grupo, individualmente, prestou um juramento solene: “de fidelidade à luta pela independência de Cabo Verde 
[sic 
 ]  fosse em que circunstâncias fosse. Esses jovens, então, afirmaram-se, dispostos para o sacrifício supremo se necessário para se poder alcançar a liberdade da Pátria, mas também pelo seu desenvolvimento e engrandecimento”. (...)

Hoje, é com orgulho que se constata que se cumpriu o Juramento. Por isso, em 1988, o Governo de Cabo Verde no primeiro gesto de reconhecimento da importância deste facto, escolheu e fixou o dia 15 de Janeiro como “Dia das Forças de Cabo Verde” (...)

Em 1975 é nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP).


 Núcleo Fundador das Forças Armadas de Cabo Verde 

Por conseguinte, retomando, a trajectória iniciada nos anos sessenta, feita com perseverança e determinação, pode-se afirmar que, com certeza, se cumpriu, também, o destino. De facto, o Núcleo Fundador das Forças Armadas, após ter-se empenhado duramente em todos os sectores e frentes da luta pela independência, onde alguns dos seus integrantes tombaram no campo da honra, nas vésperas da independência nacional e nos anos que se seguiram, assume activamente a organização das Forças Armadas nacionais, integrando, preparando e dirigindo os jovens voluntários que massivamente se prontificaram em defender o país e prosseguiram edificando as Forças Armadas caboverdianas.

E não se limitaram à esfera militar, tendo-se registado uma vasta e qualitativa participação aos mais altos níveis de actividade do Estado de membros desse Núcleo. Assim, depois da proclamação da Independência Nacional, a Lei de Organização Politica do Estado atribui ao Ministério da Defesa e Segurança - criado pelo Decreto-Lei n.º 4/75 de 23 Julho - a responsabilidade pela defesa da independência, da soberania e integridade territorial, sendo nomeado Ministro o Primeiro-Comandante Silvino da Luz 3 e o Primeiro-Comandante Agnelo Dantas4 nomeado Comandante-Geral das então Forças Armadas Revolucionarias do Povo (FARP).

É o Decreto n.º 26/75 de 20 de Setembro, que cria o Comando-Geral das FARP e Milícias e o Comissariado Político Nacional das FARP, tendo este último à frente o Comandante João José Lopes da Silva. É esta, pois, a liderança - apoiada por vários oficiais, ainda sem postos definidos e sem patentes - que no dia-a-dia vai erigindo o novo “edifício militar” cabo-verdiano, em paralelo com a construção do novo Estado.

(...) Ao longo desses quarenta anos várias foram as gerações de cabo-verdianos que de uma forma ou de outra, viriam a dar o seu indispensável contributo para a formação das Forças Armadas, seguindo as peugadas do Núcleo fundador.  
 
(...) A sua estrutura orgânica sofreu adaptações aos momentos e contextos históricos vividos no país, mas como reestruturação de fundo registam-se: na década de oitenta, a aprovação de legislação estruturante, designadamente a Lei Orgânica, o Estatuto do Oficial e do Sargento, as Normas de Promoção e o Regulamento de Disciplina Militar (RDM); na década de noventa, que começa com introdução de novas missões para as Forças Armadas no quadro da Nova Constituição, a aprovação de leis decisivas destacando-se a Lei das Forças Armadas, a lei que define o estatuto da condição militar, a lei que define a organização global e efectivo das FA, o Estatuto dos Militares, o Estatuto Remuneratório, o Código de Justiça Militar e a revisão de várias outras normas jurídicas, onde sobressai o RDM; no período actual, convencionalmente enquadrado na reforma das Forças Armadas, a elaboração de importantes estudos conceptuais: o Projecto da Reforma das Forças Armadas e o Projecto de Conceito Estratégico da Defesa Nacional; e a adopção de dispositivos conceptuais e legais: as Grandes Opções do Conceito Estratégico da Defesa e Segurança Nacional, a Lei que estabelece o Regime Geral das FA e outros documentos importantes para organização sistémica e integrada da defesa nacional.

Se nos anos noventa se assistiu à criação da Guarda Costeira, composta por Unidades Navais e Unidades Aéreas e à formação da primeira Companhia de Fuzileiros Navais, depois de uma experiência que não vingou em finais dos anos setenta, este período que a instituição vive ressalta a sua reestruturação por forma a poder dar melhor resposta no que respeita, também, à segurança interna.

É assim que surge a Guarda Nacional, que será integrada essencialmente por Unidades de Policia Militar, de Fuzileiros Navais e de Artilharia e a Guarda Costeira, reorientada para os objectivos essenciais da sua constituição que são: a vigilância e fiscalização dos espaços marítimo e aéreo, bem como a sua preparação para acções de busca e salvamento, ao mesmo tempo que se forma a primeira unidade especial de reacção rápida para o enfrentamento das ameaças, sobretudo à segurança interna, de carácter mais violento.

Antes de abordar as realizações de vulto no seio das Forças Armadas, no transcurso de tempo decorrido, importa dizer que a perenidade da instituição deve muito ao seu papel que tem desempenhado e à sua utilidade na sociedade. Realmente, não obstante estar vocacionada e lhe seja cometida pela Constituição a “… defesa militar da república contra qualquer ameaça ou agressão externa.”, e ainda para missões com maior afinidade com a responsabilidade referida, aliás assumida em demais leis que enformam o corpo normativo da instituição, elas têm sabido dar uma contribuição de valor em várias outra frentes do desenvolvimento.

O testemunho da sua presença começa nas campanhas de arborização e protecção do meio ambiente e vai até ao apoio às populações em tempos de crise. No concernente a realizações, propriamente ditas, deve-se registar que o crescimento da instituição castrense cabo-verdiana foi acompanhado de um grande esforço no sector da formação de quadros. Desde o início as Forças Armadas preocuparam-se com a formação dos seus efectivos no domínio técnico-militar e no cultural, independentemente da sua condição de prestação de serviço, visto que a formação do homem é sempre um investimento no desenvolvimento.

É gratificante encontrar pelo país fora, nos mais diversos ramos de actividade, profissionais de níveis e especialidades mais díspares formados pelas Forças Armadas ou graças à sua acção e apoio. Eles são professores e músicos, médicos e enfermeiros, engenheiros e marinheiros, técnicos de construção civil, etc. Dificilmente, o nível de desenvolvimento e o estádio de organização seria atingido se não tivéssemos contado durante esses 40 anos com a colaboração internacional.

Com efeito, o crescimento das Forças Armadas, desde do primeiro instante teve na cooperação técnico-militar um elemento fundamental e o leque de apoiantes é extenso: países como a antiga União Soviética, os Estados Unidos da América, Portugal, a França, a Angola, a Alemanha, China, Cuba e Senegal têm sido excelentes parceiros nas várias etapas da vida das FA, tendo o Governo, através do Ministro da Defesa, na década de noventa do século passado, em sinal de reconhecimentos e agradecimento, agraciado algumas das suas representações aqui no país, com a Medalha Militar de Serviços Relevantes.

Mas a presença internacional das Forças Armadas não se tem limitado à cooperação, no plano operacional as tropas cabo-verdianas, nos últimos anos têm tido uma participação em vários exercícios internacionais, o que evidencia o bom nível de preparação das nossas tropas no total de treze exercícios militares multinacionais, no quadro da CPLP (...).

As Forças Armadas cabo-verdianas completaram, no passado dia 15 de Janeiro 40 anos de existência. A efeméride vem sendo comemorada desde o mês de Novembro, tendo o Programa iniciado com a cerimónia de condecoração de militares e civis que participaram com brilho no Exercício da NATO “STEADFAST JAGUAR 2006”, pela Ministra da Defesa Nacional.

O ponto alto da celebração aconteceu na Cidade da Praia no dia 14 em que foram homenageados os Membros do Núcleo Fundador da instituição. O Acto Central do 40.º aniversário das Forças Armadas de Cabo Verde foi assinalado no passado dia 14 de Janeiro - Domingo, presidido por Sua Excelência o Presidente da República, Pedro Verona Rodrigues Pires. O acto contou, também, com a presença do Primeiro-Ministro, Dr José Maria Pereira Neves.

Durante a cerimónia, carregada de simbolismo e emoção, foi homenageado o Núcleo Fundador das Forças Armadas, que recebeu do Chefe do Estado-Maior das FA a Medalha Estrela de Honra das Forças Armadas. A medalha colectiva foi recebida, em representação do Núcleo, pelo 1.º Comandante Agnelo Dantas, membro do núcleo, em seguida ela foi oferecida às Forças Armadas, sendo colocada no Estandarte das FA pelo Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas, Pedro Pires, então Líder do Núcleo Fundador.

Os membros do Núcleo presentes (14) receberam as correspondentes insígnias representativas da condecoração colectiva. Usaram da palavra no acto o 1.º Comandante Agnelo Dantas - ex-Chefe do Estado-Maior das FA, em nome do Núcleo para agradecer a homenagem recebida, a Ministra da Defesa Nacional, Dra Cristina Fontes Lima, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Coronel Antero Matos e o Presidente da República, Pedro Pires.

A cerimónia terminou com um desfile das Forças em parada, que integrou a Infantaria da Guarnição do Estado-Maior das FA, a Polícia Militar, a Artilharia de Campanha, a Defesa Aérea e a Banda Militar da terceira Região Militar e os Fuzileiros Navais da Guarda Costeira, num total de 300 militares. 

De ressaltar que enquadrado no Programa de comemorações que se prolongará até 18 de Março - Dia da Unidade “Justino Lopes”, do Comando da 3.ª Região Militar - foram realizados: o Exercício Militar “Zézé Aguiar”, levado a cabo nos Concelhos de Santa Catarina e São Miguel, na ilha de Santiago; os Jogos Militares Nacionais, em que a equipa da 3.ª Região Militar se sagrou vencedora; palestras alusivas à data em vários estabelecimentos de ensino do país; paradas militares nas sedes das 1.ª e 2.ª Regiões Militares; e encontros entre militares no activo e Combatentes da Liberdade da Pátria, na sua maioria militares e/ou Membros do Núcleo Fundador. (...)


MEMBROS DO NÚCLEO FUNDADOR DAS FORÇAS ARMADAS DE CABO VERDE

Primeira Unidade Combatente de Cabo-verdianos

1. Alcides Évora (Batcha)
2. Afonso Gomes*
3. Agnelo Dantas
4. Amâncio Lopes
5. António Leite
6. Armando Fortes
7. Armindo Ferreira
8. Estanislau João Ramos
9. Fernando dos Santos Rosa
10. Honório Chantre
11. Jaime Mota*
12. Joaquim Pedro Silva (Barô)
13. José Anselmo Corsino
14. Júlio César de Carvalho
15. Manuel Jesus Gomes
16. Manuel João Piedade
17. Manuel Maria dos Santos
18. Manuel Monteiro
19. Manuel Pedro dos Santos
20. Maria Ilídia C. Évora
21. Nicolau Pio*
22. Olívio Melício Pires
23. Osvaldo Azevedo
24. Pedro 
[Verona Rodrigues ] Pires**
25. Silvino Manuel da Luz
26. Sotero Nicolau Fortes
27. Wlademiro Carvalho*.

* Já faleceram (até à data da publicação do artigo)

** Líder do Grupo

*** (LG) Falecidos depois da data do artigo (2007): (i) Joaquim Pedro Silva (Baró) (2019)

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Linsk / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG. ] 

[ Não nos compete contestar ou apoiar a tese do autor, que já é de resto institucional, sobre a data de 15 de janeiro de 1967, em que um punhado de jovens cabo-verdianos jurou lutar pela libertação de Cabo-Verde, na presença de Amílcar Cabral, em Cuba,  no final do seu treimo e formação político-militares. O assunto já é do domínio da história e do seu contraditório, não devendo, por isso,  servir para degradar ainda mais  as relações entre antigos militantes do PAIGC e,  nomeadamente, entre guineenses e cabo-verdianos. ]
___________

Nota do editor:

Último poste da série > 22 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23905: Antologia (87): Apresentação do livro de Daniel dos Santos, "Amílcar Cabral: um outro olhar", pelo eng.º Armindo Ferreira, na Praia, em 5/9/2014

Vd. também poste de 20 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23899: Antologia (86): Excertos da entrevista de Daniel Santos, ao "Expresso das Ilhas" (15/9/2018): Amílcar Cabral e a "falsificação da história"

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23505: A nossa guerra em números (21): o esforço financeiro global, de 23 mil e 900 milhões de euros (em valores de 2008), dividiu-se por Angola e Moçambique (25%) e pela Metrópole (75%)

 


Vidas, ilustração digital (Luís Graça, 1999)


1. Algum dia saberemos ao certo quanto é custou a Portugal e aos portugueses (mas também aos angolanos, guineenses, moçambicanos, cabo-verdianos, são tomenses, macaenses e timorenses) a guerra do ultramar / guerra de África / guerra do Ultramar (1961/74) ? (*)

Acho que nunca o saberemos, para mais  se, aos custos diretos, acrescermos os custos indiretos e sobretudo os custos ocultos (anos de vida perdidos com as mortes de combatentes e de civis,  encargos com o tratamento e reabilitação dos feridos, stress pós-traumático de guerra, encargos financeiros dos empréstimo contraídos, quebra no investimento produtivo, danos para a imagem internacional do país, etc.)

Mas fiquemos só pelos custos diretos, os “encargos orçamentais”, com a guerra, a parte mais propriamente financeira, a que diz respeito, afinal,  ao "vil metal"... ou pelo menos por aquilo que se pode apurar da contabilidade nacional… 

Para esse efeito, vamos revisitar um artigo que já tem mais de uma dezena de anos, da autoria do tenente-general na situação de reforma Victor Manuel Mota de Mesquita (1932-2016), publicado na Revista Militar,  nº 2511, abril de 2011, pp.  O autor foi Director do Departamento de Finanças do Exército,  tendo passado também como militar pelos TO de Angola e Moçambique.

 Este artigo resultou de uma palestra proferida em 20 de fevereiro de 2009, no auditório do ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, integrada no Ciclo de Conferências da Cooperativa Militar. Está disponível no sítio da Revista Militar, em formato digital, sem numeração de página.

E o autor começa por dizer-nos aquilo que  no fundo é um segredo de Polichinelo, mas vai contra o mito, alimentado no Estado Novo, sobre as "contas limpinhas", a sacrossanta regra do equilíbrio orçamental, segundo a qual só se podia gastar o que se tinha: 

“ (…) Também não foi fácil a vida das Forças Armadas sob o ponto de vista financeiro, onde a coluna do débito foi sempre superior à do crédito e só artifícios de toda a ordem permitiram conduzir uma pesada cruz por caminhos cheios de dificuldades.”

Por outro lado, “no início da guerra em Angola, em 1961, as finanças militares encontravam-se estruturadas para a paz e, portanto, dispunham apenas dos meios indispensáveis à sua gestão normal.” (...)


2. Há ideias falsas sobre quem pagou a guerra… Ainda hoje há quem pense que Angola era tão rica que a sua riqueza chegava para pagar a guerra durante muitos e muitos anos. Claro que Angola também contribuiu para o esforço de gerra, tal como Moçambique, a Guiné e os demais territórios então sob admimistração portuguesa (e hoje países independentes, com exceção de Macau, que voltou à soberania da Cahina, tendo desde 1999 o estatuto de Região Administrativa Especial da República Popular da China). 

Por exemplo, o nosso querido amigo e camarada António Rosinha, o último dos africanistas, comentou, no poste P23462(*):

(…) “Uma guerra tão longa e desgastante ? Não era tão desgastante (economicamente) assim, Luís Graça.

No grande território de Angola seria saturante e entediante para os 24 meses de arame farpado dos praças e milicianos, mas não o desgaste (económico), porque este era compensado com as riquezas naturais que dali saíam: petróleo, diamantes e agriculturas diversas e pecuária e pescas.

“Notícia de última hora: foi encontrada um pedra na região do rio Lukapa uma pedra considerado o maior diamante bruto no mundo nestes últimos 300 anos. (Jornais, atenção que os angolanos têm a mania das grandezas.)

“Só essa região que era na Luanda, distrito do tamanho geográfico de 3 ou 4 Guinés, laborava-se sem proteção militar direta durante os treze anos de guerra.

“Estamos a falar da zona da Diamang. A Guiné era a Guiné, e Março de 61 Norte de Angola, foi o que foi e os dois últimos anos do norte de Moçambique foi o que foi.

“No meio disso tudo, falta contar ‘muito deixa andar’ em muitos Cus de Judas que iam desde a ilha de Luanda até às coutadas da Gorongoza.” (27 de julho de 2022 às 13:35).

3. Seria ocioso falarmos aqui, em detalhe, sobre os complexos mecanismos da gestão financeira da guerra. Mas há coisas que convirá sabermos, como esta,  mais que evidente: aquela guerra apanhou-nos de calças na mão, não foi planeada, programada, preparada (sob todos os pontos de vista).

(...) “Até ao ano de 1960 as forças militares em serviço no Ultramar, mais propriamente, as forças privativas de cada Província eram sustentadas pelos orçamentos das respectivas Províncias e as forças extraordinárias, ou de reforço, pelos orçamentos gerais da Metrópole, Orçamento Geral do Estado (OGE) como então se designava" (...)

A partir de 1960, a gestão financeira das forças privativas passou a ser da responsabilidade da Metrópole, através do Departamento da Defesa Nacional. Todavia, a gestão financeira das forças extraordinárias (que vão reforçar a tropa dos territórios ultramarinos), continua a ser   gerida pelo departamento de cada um dos três ramos, os quais são verdadeiros feudos, pensando e agindo como verdadeiras grandes corporações em copetição umas com as outras por recursos escassos…

Na prática, o Departamento da Defesa Nacional era “um ministro sem ministério”, dispondo, como “staff”, de um Secretariado Geral, criado para “coordenar” os três Ramos das Forças Armadas (Exército, Força Aérea e Marinha).

Esta descentralização financeira funcionou praticamemte durante toda a guerra, acabando por originar crescente endividamento das Forças Armadas, incapacidade para responder com prontidão às necessidades sobretudo logísticas, engenharias financeiras de toda a ordem, recurso a empréstimos bancários (Caixa Geral de Depósitos e outras fontes), criação de novos impostos, como o Imposto de Transações (na Metrópole), e, não menos grave, ao crescente protagonismo do Ministério das Finanças… Ou, por outras palavras, também na guerra o "economicismo" terá condicionado o desempenho operacional, e a mordernizaçao das Forças Armadas (e nomeadamente da FAP) não se pôde fazer "just in time"...

(...) “Só quem passou pelos problemas pode dar valor à luta travada com o Ministério das Finanças, que tudo subordinava à obediência a um sistema financeiro fiel à regra do equilíbrio orçamental, como se o País estivesse em tempo de paz.” (...) 

Como consequência, chegámos a ter uma situação financeira "de tal modo grave que as Unidades seguiam para o Ultramar com as suas dotações orgânicas reduzidas a 25%, e as que se encontravam em operações tinham, em muitos casos, dotações inferiores a 50%.” (...).

Só para dar mais um exemplo:

(...) "No ano de 1966, nas receitas do Orçamento Metropolitano, 36,03 % eram absorvidos pela guerra, enquanto em Angola representavam 11,07 % e em Moçambique 12,07 %.

(...) "Cabe aqui referir que neste ano de 1966 o Chefe do Governo [ António de Oliveira Salazar] desconhecia o custo das operações de guerra, nem tão pouco conhecia as dificuldades financeiras existentes.

"Até então os responsáveis pelo Departamento da Defesa não lhe davam conhecimento da situação, atitude para a qual não se encontrou explicação que não fosse esconder a realidade que se vivia". (...)

Mas fiquemos, por agora,  com  o resumo das contabilidade da guerra, segundo o autor acima citado (Mesquita, 2011):

  • Nos treze anos de guerra, Angola contribuiu com 12 milhões e 300 mil contos, o que corresponde, em valores actuais (2008, tendo o artigo sido escrito em 2009), a cerca de 3 mil e 300 milhões e 300 mil euros;
  •  e Moçambique com 10 milhões e 200 mil contos,  correspondendo, em valores actuais, a cerca de 2 mil 700 milhões e 600 mil euros;

(...) Podemos, pois, dizer que a valores actuais
[ 2008], o esforço financeiro das duas Províncias foi cerca de 6 mil milhões de euros (...), a que se juntarmos o que a Metrópole despendeu no montante de cerca de 17 mil e 900 milhões de euros (...), totaliza cerca de 23 mil e 900 milhões de euros (...) de encargos financeiros com a guerra no Ultramar. (***)

A estes valores haverá que acrescentar as despesas efectuadas em 1974 e 1975 com a saída das Forças Armadas dos três teatros de guerra, despesas estas que não me foi possível obter. (...)

Grosso modo, a contribuição ultramarina para o esforço financeiro de guerra foi de 25%, cabendo à Metrópole a fatia maior do bolo: 75%.

(Negritos: LG)

(Continua)
_________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 1 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23481: A nossa guerra em números (20): Meios e operações da FAP - Parte II: Armamento das aeronaves: o papel da OGMA e outras empresas portuguesas


(...) A estimativas das despesas para o caso da Guerra Colonial é de cerca de 21,8 mil milhões de euros, ou seja, 10,8% do PIB atual (2018). Este valor representa um custo médio anual de aproximadamente 1,6 mil milhões de euros. (...)

terça-feira, 24 de maio de 2022

Guiné 61/74- P23287: Documentos (40): A conferência do cor inf Hélio Felgas, proferida na Academia Militar, sem papas na língua, em 10/4/1970 (e depois publicada como artigo na Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-236), que o Amílcar Cabral leu e achou lisonjeiro para si e o seu Partido, citando-o no Conselho de Guerra de 11/5/1970


Revista Militar, nº 4, abril de 1970, pp. 219-237 (com a devida vénia...)


A LUTA NA GUINÉ (1)

Coronel HÉLIO FELGAS


(') Conferência incluída no Ciclo «A Luta  no  Ultramar», pronunciada pelo Autor na Academia Militar em 10 de Abril de 1970 [,  dez dias antes do "massacre do chão manjaco", e de cujo teor o Amílcar Cabral já tinha conhecimento, em 11/5/1970, quando presidiu ao Conselho de Guerra onde a "liquidação" dos 3 majores e seus acompanhantes foi abordada com algum detalhe  (*)]

Por motivos vários a nossa Guiné continua a ser mal conhecida na Metrópole. O objectivo do presente trabalho é por isso focar determinados aspectos da situação naquela Província.

1-0 Terreno

Assim como não se faz a guerrilha com qualquer população, também não se faz a guerrilha em qualquer terreno. A população necessita ser previamente trabalhada, endoutrinada, convencida, aliciada. O terreno precisa apresentar características especiais. Pode mesmo dizer-se que uma população bem trabalhada pode não ser capaz de levar a cabo uma guerrilha duradoura e frutífera se o terreno não a ajudar. 

Em nossa opinião esta afirmação é válida mesmo no momento actual em que parece nítida a tendência para duplicar ou substituir a guerrilha rural pela guerrilha urbana.

Afinal, esta tendência não é mais do que a confirmação de que a guerrilha tem absoluta necessidade de terreno apropriado. E este terreno tanto pode ser a selva e o mato, como as cidades superpovoadas. O que a guerrilha precisa, quanto a terreno, é de bons esconderijos, boas possibilidades de deslocamento, bons terrenos de culturas alimentares, boas condições para defesa própria e para reacção aos ataques das forças da ordem.

É evidente que estas características não se encontram nem nos desertos, nem nas selvas impenetráveis, nem nas áreas desabitadas ou improdutivas. Mas tanto se podem encontrar em regiões rurais como nas grandes cidades.

Na Guiné as condições ideais para a guerra de guerrilha encontram-se no mato da quase totalidade da Província. 

Terra plana e baixa, que na maré cheia o mar invade em um oitavo da sua superfície, a Guiné portuguesa é um território «sui generis» mas com certas semelhanças com o Vietname. As áreas alagadiças e pantanosas onde os nativos cultivam o arroz − as traiçoeiras «bolanhas» já hoje tão conhecidas dos nossos soldados − alternam com as matas fechadas onde o inimigo tem os seus refúgios e cujos escassos trilhos ele armadilha ou disfarça ardilosamente.

É nas «bolanhas» que os mil rios da Guiné se espraiam em fantasiosos meandros, tornando fatigante e extremamente longo o mais pequeno percurso. Para se avançar um escasso quilómetro é preciso por vezes andar dez ou mais. Ou então há que prosseguir com água e lodo não raro até ao pescoço.

O rendilhado destas margens lodosas e cobertas de tarrafo é substituído na zona interior por um mato espesso que se despenha sobre as estradas e quase sufoca os trilhos, facilitando a emboscada.

Junte-se a este esboço panorâmico um calor tórrido e uma humidade quase limite, e ter-se-á uma ideia das condições da luta na Guiné 
− favoráveis para um inimigo habituado ao clima e conhecedor do terreno, e desfavoráveis para o soldado acabado de chegar da Metrópole.

2-0 Inimigo

A partir de 1955, as autoridades inglesas e francesas dos territórios africanos,  sob sua administração, começaram a permitir a formação de partidos políticos pelos nativos daqueles
territórios. Assim sucedeu na Guiné Francesa de então e no Senegal, territórios que confinam com a nossa Guiné, respectivamente a sul e leste e a norte.

Compreende-se fàcilmente que os nossos nativos residentes naqueles territórios se sentissem também inclinados a formar partidos políticos. Mas enquanto na República da Guiné só um vingou (o PAIGC), no Senegal constituíram-se vários que rivalizaram uns com os outros durante anos até que se fundiram num só (a FLING).

O PAIGC ou «Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde» é constituído por guineenses e cabo-verdianos, embora estes sejam em minoria numérica. No entanto, o seu chefe é o engenheiro agrónomo cabo-verdiano Amílcar Cabral que se fez rodear de diversos conterrâneos.

Há conhecimento de rivalidades no seio do partido entre cabo-verdianos e  guineenses 
  o que não admira pois tais rivalidades são seculares, Em regra os guineenses queixam-se de ser colocados em posições subalternas.

No entanto, o indiscutível tacto político de Amílcar Cabral tem evitado dissidências importantes 
−  o que, como se sabe, não tem acontecido nos partidos angolanos e moçambicanos cujos dirigentes andam sempre envolvidos em disputas mútuas. Inclusivamente o PAIGC ainda hoje não formou oficialmente qualquer governo provisório, porque Amílcar Cabral deseja evitar invejas e descontentamentos que poderiam enfraquecer o partido.

Quanto à FLING, é constituída apenas por guineenses. Uma das pedras da sua propaganda para desacreditar o PAIGC, é mesmo fazer acreditar que os guineenses do PAIGC são dominados pelos cabo-verdianos.

Ambos os partidos declaram desejar a independência da Guiné Portuguesa e a transferência do poder para os nativos, sem que isso signifique a abolição da língua portuguesa ou a expulsão dos brancos. Mas enquanto a FLING pretende alcançar este objectivo por negociações, o PAIGC pôs de lado os meios pacíficos e escolheu a luta armada.

Uma outra diferença é que a FLING apenas deseja a independência da nossa Guiné. Mas o PAIGC pretende também a de Cabo Verde, constituindo a independência da Guiné apenas uma primeira fase da sua luta que deve conduzir à constituição de um Estado (talvez federal) englobando as duas Províncias.

O PAIGC é um movimento revolucionário de tendências sociocomunistas. A sua estrutura, imitada da do regime guineense de Seku Turé, baseia-se no sistema soviético da preponderância do partido sobre o governo.

Pelo contrário, a FLING é de tendência moderada ocidental e por isso teve o apoio, ainda que muito limitado, do governo senegalês de Leopoldo Senghor.

Desde o princípio que o governo de Conakry deu total apoio ao PAIGC
 o que não deve admirar pois trata-se de ideologias políticas idênticas.  Aliás foi a mesma identidade que levou o governo de Dakar a admitir a FLING. 

Simplesmente a FLING não conseguiu projecção alguma, dentro ou fora da nossa Guiné. E o PAIGC, há que admiti-lo, conseguiu. Não só a partir de 1964 passou a ser o único movimento armado actuando naquela Província, como o seu prestígio se foi cimentando no âmbito internacional e a tal ponto que o seu chefe já tem em conferências internacionais representado não só o seu partido como todo o movimento emancipalista africano.

Claro que a projecção alcançada pelo PAIGC não podia deixar indiferente o presidente senegalês Senghor, por um lado, pensou que, se acaso um dia o PAIGC viesse a tomar conta da vizinha Guiné Portuguesa, as relações com o Senegal seriam péssimas caso este país não tivesse ajudado o PAIGC na sua luta pela independência. 

Por outro lado, o presidente senegalês, apesar de todo o seu evidente ocidentalismo, sentiu que a sua própria posição pessoal estaria ameaçada, caso não mostrasse interesse pela luta de emancipação levada a cabo pelo PAIGC e apoiada por quase toda a Africa negra e árabe.

Estes condicionalismos políticos levaram Senghor, talvez até contra sua vontade, a prestar auxílio ao PAIGC, partido em quem o presidente senegalês não tinha muita confiança, primeiro por ser apoiado pelo governo de Conakry (cujas relações com Dakar nunca foram boas), e depois porque Senghor receava possíveis ligações entre o PAIGC e os elementos da oposição política senegalesa.

Foi então estabelecido o acordo de 1966 que «legalizou» a permanência e o deslocamento dos grupos armados do PAIGC em todo o Sul do Senegal,  fronteiriço com a nossa Guiné. Embora sem dar inteira liberdade ao PAIGC, este acordo facilitou enormemente o reabastecimento dos grupos actuando em toda a fronteira Norte da nossa Guiné e permitiu- lhes um refúgio seguro sempre que se sentiam mais apertados pelas nossas tropas.

Compreende-se que o aumento do apoio senegalês ao PAIGC correspondeu a uma ainda maior diminuição do interesse pela FLING cuja actividade cessou quase por completo.

Desta forma o PAIGC encontrou-se em condições ideais para prosseguir na sua actividade pois passou a contar com o apoio de ambos os Estados vizinhos da nossa Guiné. Além disso foi reconhecido pela Organização da Unidade Africana como o único movimento representativo daquela Província, sendo-lhe atribuída boa parte dos fundos do respectivo Comité de Libertação. 

Continuou a receber auxílio financeiro  em armamento e munições, não só da Rússia e seus satélites, como da China Popular. Aceitou médicos e quadros militares de Cuba e enviou centenas de guineenses para estágios e cursos em diversos países comunistas e socialistas. 

Recebeu auxílio financeiro de certos Estados nórdicos com destaque para a Suécia. Finalmente, estabeleceu intercâmbio com a própria Frente de Libertação do Vietname, sabendo-se que vários vietcongs já têm estado na nossa Guiné exercitando os grupos armados do PAIGC.

Em face de todos estes auxílios e apoios, a única coisa que nos parece que deve admirar é a relativa ineficácia da actividade militar do PAIGC. De facto na Guiné encontram-se trocadas determinadas características da guerra de guerrilhas. Quer em número quer em armamento, o inimigo apresenta-se muito mais forte e desenvolvido do que é vulgar atribuir-se a simples guerrilheiros.

Em especial o armamento, dos mais recentes modelos russos, checos e chineses, chega mesmo a levar vantagem sobre alguns tipos nossos, com destaque para os canhões sem recuo, morteiros e bazucas. Qualquer pequeno grupo inimigo dispõe destas armas em abundância e não faz a menor economia em munições.

Felizmente, porém, a eficiência pessoal dos combatentes é que é muito pequena. Falta-lhes treino, decisão, quadros. Armas esplêndidas como eles têm, são mal apontadas tornando o seu rendimento nulo ou quase. Não é raro o inimigo atacar um aquartelamento com canhões e morteiros disparando centenas de projécteis dos quais só dois ou três acertam no alvo. E já se têm apreendido aparelhos de pontaria isolados, simplesmente porque o inimigo desconhece a sua utilização e prefere apontar os canhões e os morteiros à vista.

Convém, no entanto, esclarecer dois pontos. O primeiro  que não podemos confiar em uma eterna inaptidão do inimigo para o combate. E o segundo é que, apesar do que dissemos, o PAIGC sabe perfeitamente o que está fazendo. Embora dentro das linhas gerais características da guerra revolucionária, o PAIGC actua de acordo com as condições peculiares da África e dos africanos.

Aliás, consideramos erro grave julgar que todas as guerras revolucionárias são idênticas quer na sua essência quer na sua concretização prática. Os dirigentes do PAIGC, embora ligados ao castrismo, ao sovietismo e ao maoismo, têm demonstrado uma originalidade própria que nos parece do maior interesse conhecer, para melhor lhe podermos fazer frente.

Dentro desta originalidade, o inimigo não deixa de dedicar a maior atenção à acção psicológica que é levada a cabo com notável sobreposição de meios. 

Esta acção exerce-se entre a população nativa por meio de agentes especializados. Exerce-se por meio de uma estação emissora que, em algumas áreas da Guiné, se ouve melhor do que a nossa Emissora de Bissau. Exerce-se por via diplomática nos diversos países africanos e não-africanos, chegando fàcilmente à ONU onde, como se sabe, tem a maís favorável audição.


3 - A População

A variedade étnica da população guineense é bem conhecida. Num espaço restrito encontram-se doze ou quinze tribos tão diferentes umas das outras como os espanhois o podem ser dos franceses, dos italianos ou mesmo dos ingleses.

Estas tribos são idênticas apenas na sua aparência física e no seu atraso socioeconómico. Mas são diferentes nos seus usos e costumes, na sua língua, na sua religião, nos seus trajes e, até, na forma como reagiram à subversão e ao terrorismo.

De facto, enquanto Balantas, Sossos, Nalús e Biafadas se deixaram aliciar com certa facilidade, Felupes, Baíotes, Banhuns, Papéis e Fulas repeliram energicamente toda e qualquer ideia subversiva. E enquanto os Bijagós se mantêm alheios à luta, os Mandingas, os Mancanhas e os Manjacos dividiram-se, colaborando uns com o inimigo e outros connosco.

Aliás esta diferenciação não é taxativa. Há, por exemplo, inúmeros Balantas que nos continuam fiéis e com eles formámos até excelentes grupos de contra-guerrilha.

Cada uma das tribos citadas atrás ("raças» como lhes chamamos na Guiné) tem o seu «chão», isto é, a região onde habitam em maioria. O «chão» felupe, por exemplo, é a noroeste, na área fronteiriça com o Senegal, ao lado dos Baiotes e dos Banhuns. Os Papéis têm o seu «chão» na ilha de Bissau. Os Balantas 
− a raça mais numerosa da Guiné − estendem-se numa faixa central, desde a fronteira com o Senegal, ao norte, à fronteira com a República da Guiné, ao sul. 

A grande mancha continental do leste é essencialmente povoada por Fulas, embora aqui e além surjam núcleos de Mandingas que, no entanto, vivem em maior número na faixa ao norte do Rio Geba separando Balantas de Fulas.

A localização das «raças» corresponde aproximadamente à área de actividade do inimigo. Por isso a região ao sul do Rio Geba, «chão» de Balantas, Biafadas, Nalus e Sossos, está afectada pela guerrilha. O mesmo se pode dizer da faixa central, povoada por Balantas e Mandingas.

Mas as ilhas atlânticas, a orla marítima ao norte do Geba e todo o leste estão por completo sob o nosso controle, o mesmo podendo afirmar-se da totalidade das povoações e seus arredores.

A fidelidade dos Fulas, já tradicional, é bem conhecida. Injustos seríamos, porém, com outras «raças» se, neste, aspecto, não as colocássemos ao mesmo nível dos Fulas. Há dezenas de aldeias (tabancas) que se defendem sozinhas ontra os ataques dos grupos inimigos. E há milhares de nativos encorporados voluntariamente nas forças armadas e batendo-se com o mesmo ardor e a mesma valentia dos soldados metropolitanos.

É esta participação voluntária da maioria dos nativos guineenses na luta contra o PAIGC, que confirma a inexistência de qualquer sentimento nacionalista verdadeiramente partidário da independência do território.

Não é difícil compreender que, se não tivéssemos do nosso lado a maior parte da população guineense, a nossa situação na Guiné seria hoje insustentável. 

A única dificuldade com que deparamos na Guiné, no que se refere a recrutamento de militares e militarizados, é exactamente não podermos aceitar todos os que se oferecem. Os voluntários excedem de longe os contingentes necessários. Se são precisos 500 homens,  aparecem 4 ou 5 vezes mais e os excluídos deploram vivamente a sua exclusão.

Homens já idosos metem empenhos para ir para a tropa ou para a ela voltarem. Se o inimigo ataca uma tabanca desarmada, a população foge e apresenta-s sistematicamente na unidade militar mais próxima pedindo armas para se defender.

Poder-se-a perguntar: mas então como conseguiu o inimigo aliciar e levar ou ter consigo alguns milhares de nativos?

O PAIGC conseguiu isso inicialmente, empregando o terror, a promessa sedutora ou o rapto. Além disso, nós não tínhamos o dispositivo militar que hoje temos e os nativos, sentindo-se desprotegidos, não tinham outra solução que não fosse seguirem os grupos armados inimigos.

Mas hoje a situação está praticamente estabilizada. Os nativos preferem até acolher-se à nossa protecção. E aqueles que foram com o inimigo para as matas ou para os países vizinhos, não voltam porque o PAIGC não os deixa, chegando a matar os que tentam regressar.

4 - As Nossas Tropas

Contam-se por muitos milhares os nativos guineenses que participam na luta contra o terrorismo, constituindo Companhias e Pelotões de Caçadores, Pelotões de Milícias e grupos de combate especiais, além de guarnecerem as tabancas em autodefesa e de servirem de guias.

As Companhias e os Pelotões nativos de Caçadores têm enquadramento metropolitano e são utilizados como quaisquer outras subunidades do mesmo tipo.

Os Pelotões de Milícias são constituídos por nativos a quem se dá uma instrução reduzida e que depois vão guarnecer determinadas posições e tabancas.

Os grupos de combate especiais actuam ou como os elementos dos Comandos ou como o próprio inimigo.

Os homens válidos das tabancas,  mais ameaçadas pelas infiltrações ou ataques inimigos, são por nós armados mas não têm uniforme nem recebem vencimento algum. São volutários que defendem o que é seu e que não são em geral empregues fora das suas tabancas.

Com esta variedade de elementos obtém-se uma apertada malha ofensiva-defensiva cuja eficiência parece aumentar cada vez mais. Talvez para isso contribua o facto de os melhores elementos irem sempre percorrendo uma escala hierárquica que cada vez lhes concede maiores privilégios e  garantias. Um nativo de uma tabanca que se distinga pode passar a milícia, daqui a soldado e por fim ingressar nos Comandos onde até mesmo os oficiais são guineenses sem necessidade de habilitações literárias especiais.

Compreende-se fàcilmente que desta forma os elementos africanos dos Comandos sejam nativos realmente bons no combate.

Claro que a envergadura do PAIGC não permite, pelo menos por agora, entregar a defesa da nossa Guiné apenas aos nativos guineenses. Daí que a Guiné disponha hoje de um certo número de unidades metropolitanas em reforço à sua guarnição normal.

A eficiência de combate destas unidades tem confirmado as tradicionais virtudes do nosso soldado, em especial no que respeita a coragem, poder de adaptação e espírito de sacrifício.

É evidente que nem todas as unidades apresentam a mesma rentabilidade. Posso porém afirmar que esta rentabilidade é melhor naquelas onde o espírito ofensivo está mais desenvolvido.

Uma norma que adoptei e com a qual não me dei mal,  foi exactamente ir ao encontro do inimigo em vez de o esperar enterrado nos abrigos. Ficamos com certeza fisicamente mais cansados mas mais vale viver cansado que morrer repousado.

E é curioso que o espírito atávico do nosso soldado leva-o em tempo de guerra a preferir a actividade ofensiva a um repouso enganador e perigoso. Vi muitas vezes a satisfação no rosto dos soldados que conduzi ao encontro do inimigo, que obriguei a montar fatigantes emboscadas nocturnas quase consecutivas, que levei a regiões consideradas na posse do inimigo desde o princípio da guerra.

A verdade é que, neste ou em qualquer outro tipo de guerra, só a ofensiva recompensa. E mal de quem pense o contrário. Inclusive as baixas são sempre menos numerosas nas unidades que procuram o inimigo do que naquelas que se limitam a aguardá-lo.

Evidentemente que este espírito ofensivo não pode ser conduzido com imprudência. Há que calcular o risco que se corre. Há que ter imaginação no desenvolvimento das operações. Não se trata de ir pura e simplesmente para a frente pois não só o inimigo é numeroso e está bem armado, como o próprio meio é hostil.

De facto, em muitas operações, são mais as baixas causadas pela insolação, pela sede, pelas abelhas e pelos rios, que as causadas pelo fogo inimigo. Há que preparar bem as acções, dando aos nossos soldados o maior número possível de condições e sem esquecer que eles são por vezes desleixados e imprevidentes.

Inúmeros pormenores têm que ser pensados antes de se lançar uma acção, seja pequena ou grande. A fase da Lua, a altura das marés, a verificação do armamento e do equipamento, o cálculo das rações de combate, tudo isto é apenas uma parte do que um comandante, seja qual for a hierarquia, tem de tomar directamente a seu cargo.

Não poucas vezes deparei com soldados que, por inconsciência ou por comodismo, não levavam o cantil cheio, se esqueciam das redes contra as abelhas, ou tentavam aligeirar-se transportando poucas munições ou pouca comida.

Em outras ocasiões notei a tendência para abrandar a atenção e a vigilância só porque já se estava próximo do quartel, no regresso de uma acção; ou para seguir pelas picadas e trilhos (que em regra estão armadilhados) em vez de progredir a corta-mato (que é mais cansativo mas mais seguro); ou para não sintonizar os postos-rádio antes da partida; enfim, para uma série de pequenos cuidados de que dependem muitas vezes o êxito ou o insucesso.

De uma forma geral, porém, o nosso soldado torna-se motivo da nossa maior admiração e da nossa maior estima. Quem tem a honra de o comandar em combate, é insensívelmente levado a reconhecer que Napoleão tinha razão ao classificar o soldado português como o melhor do mundo.

Convém salientar que as unidades metropolitanas de reforço não se limitam a combater. Elas contribuiram para a melhoria que, em todos os campos, se nota hoje na Guiné.

Após quatro anos de permanência na Guiné, sempre no mato que é onde se conhecem melhor os nativos, sou levado a chegar à conclusão que a Guiné progrediu mais nestes últimos 8 ou 9 anos que nos anteriores 5 séculos.

E empenho nesta afirmação um pouco do meu orgulho de militar pois é exactamente à presença dos militares que a nossa Guiné deve o seu actual impulso.

No campo sanitário, por exemplo, a cobertura hoje existente deve ser das mais completas de toda a África. Diariamente, os médicos e enfermeiros militares observam e tratam milhares de nativos civis. Os casos mais graves são transportados de avião ou helicóptero para Bissau, sistema que talvez em nenhum dos novos Estados africanos seja ainda usado.

A eficiência da assistência sanitária na nossa Guiné tornou-se rapidamente conhecida nos países limítrofes, sendo normal a afluência aos nossos Postos Sanitários fronteiriços de muitos nativos senegaleses e até da República da Guiné.

Sob o aspecto educacional, também a tropa tem desenvolvido muito favorável actividade não só devido às muitas escolas que tem montado e mantido no interior da Província, como também porque oficiais e até seus familiares preenchem hoje lugares de professor no Liceu e nas Escolas Técnicas de Bissau.

As unidades de Engenharia estão dando também o seu contributo à Província, construindo pontes, estradas e edifícios.

E os serviços próprios do Comando-Chefe, secundando o esforço do Comando Militar e em colaboração com o Governo da Guiné, estão reordenando as populações, criando-lhes novas e mais adequadas condições de vida.

5 - O desenrolar da luta

O terrorismo na Guiné começou em meados de 1961, no noroeste, junto à fronteira do Senegal. Foi porém uma actuação esporádica, a cargo do Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Renovada em 1963, esta actuação acabou no princípio do ano seguinte devido não só à eficiente actuação das forças armadas, corno também à falta de receptividade da população nativa composta por F'elupes, Batotes e Banhuns.

Em Janeiro de 1963, o PAIGC iniciou a sua actuação armada no sul da Província, conseguindo infiltrar os seus grupos até ao Rio Geba. Em Julho desse ano passou o rio e levou a insurreição à região florestal do Oio. No princípio de 1964 chegou a Farim e atingiu a fronteira norte.

No final de 1964 grupos inimigos lançaram o pânico entre as populações do nordeste e começaram a actuar no Boé. No princípio de 1965 tentaram passar do Oio para o ector dos Manjacos, a oeste, mas foram mal sucedidos.

É curioso que as características da actuação militar inimiga na Guiné foram distintas das observadas em Angola. Nesta última província o inimigo levou a cabo actos terroristas de extrema crueldade mas os seus grupos quase não dispunham de armas aperfeiçoadas. Só anos depois do início é que apareceram as metralhadoras e os morteiros; ainda hoje as bazucas e em especial os canhões sem recuo são raros.

Na Guiné não houve a crueldade de Angola. Ninguém cortou pessoas aos pedaços. Quando muito, algumas orelhas decepadas a um ou outro nativo que se recusou a deixar-se aliciar.
 

Em compensação os grupos inimigos nunca utilizaram catanas ou canhangulos ("longas» como se chamam na Guiné) mas, logo desde o início, pistolas-metralhadoras, granadas e espingardas de guerra. Sucessivamente e em ritmo acelerado foram aparecendo metralhadoras, morteiros, bazucas, espingardas automáticas, canhões sem recuo, etc., tudo em número excepcionalmente elevado.

E tão elevado que em algumas apreensões de armamento feitas na Guiné como consequência de operações militares, chega-se a apanhar mais material do que em Angola se apanha num ano.

Convém esclarecer que o alastramento da actividade inimiga atrás citado não correspondeu ao movimento ofensivo característico da guerra clássica. Traduziu-se sim por simples infiltrações de grupos armados que depois de realizadas umas tantas acções, recuavam novamente para as bases de partida em território estrangeiro para se reabastecerem e descansarem. 

Deixavam porém o vírus da subversão encontrando facilitada a sua actuação dada a falta de efectivos com que lutávamos. As populações nativas eram levadas a acreditar no PAlGC e, quando resistiam, eram compelidas a acompanhá-lo já que nós ainda não lhes podíamos prestar a devida protecção.

A partir de 1966, porém, a nossa malha militar apertou-se e a situação tendeu a estabilizar-se apesar do constante reforço do inimigo em homens e em armamento, e apesar do PAIGC ter passado a utilizar também o Senegal como base para os seus ataques.

Esta utilização facilitou, aliás, o alastramento da actividade inimiga para oeste, isto é, na direcção do importante sector dos Manjacos, e em toda a faixa fronteiriça do norte, desde Suzana até Cuntima. 

É, no entanto, curioso que a faixa fronteiriça da metade leste da Guiné tem vivido em completa calma - o que se deve ao facto das populações senegalesas fronteiriças serem também da raça Fula, não consentindo na presença dos grupos armados do PAIGC. Já as da faixa central são compostas por Balantas e Mandingas, favoráveis ou pelo menos permeáveis à propaganda inimiga.

em 1968 os grupos do PAIGC vindos do Sul e Sudeste procuraram infiltrar-se até à estrada Bambadinca-Bafatá-Nova Lamego-Piche mas foram repelidos. Mantiveram, porém, a pressão sobre a cintura de tabancas organizadas em auto-defesa, flagelando-as periodicamente mas nunca se atrevendo a ultrapassá-las com receio de lhes ser cortada a retirada.

6 - A situação actual

Por motivos vários entre os quais avulta a deficiência de informação pública, a situação na Guiné é em geral mal avaliada na Metrópole, havendo a tendência para se considerar muito pior do que na realidade está.

De facto, na maior parte da Guiné as populações fazem a sua vida normal não havendo sinais visíveis da guerra. É o que acontece em todas as ilhas atlânticas (incluindo a de Bissau), em grande parte do «chão» dos Manjacos e na quase totalidade da massa continental do Leste.

No resto do território o inimigo faz as suas incursões de surpresa mas regressa logo ou às bases que tem no Senegal e na República da Guiné, ou aos refúgios das matas mais espessas. 

Dentro da política que resolvemos seguir, as bases exteriores do PAIGC são verdadeiros santuários pois nós não as atacamos visto estarem em país estrangeiro. Mas os refúgios inimigos no interior da Província andam sempre a mudar pois as nossas tropas procuram-nos constantemente , quando os detectam, atacam-nos e destroiem-nos sistemàticamente.

Desta forma, é totalmente falso que o PAIGC ocupe realmente e em permanência qualquer parcela da Guiné. Nós vamos a qualquer ponto da província e só em pequenas áreas precisamos, para lá ir, de mais de uma Companhia.

Sem dúvida que o inimigo dispõe de numerosos grupos todos excelentemente armados. Sem dúvida também que a sua actividade é grande, especialmente em flagelações nocturnas a aquartelamentos e povoações, em colocação de minas anti-pessoal e anti-carro e em emboscadas contra as nossas forças, utilizando nestas acções um considerável potencial de fogo.

A verdade, porém, é que, como dissemos, a eficiência militar do inimigo é felizmente muito pequena - isto apesar de já ir possuindo um treino de sete ou oito anos. Regra geral o inimigo debanda após as suas acções, não conseguindo explorar qualquer sucesso inicial obtido pela surpresa. Casos há em que as nossas guarnições, depois de suportarem flagelações de duas e mais horas, ficam sem munições à espera de um assalto inimigo que, afinal, quase nunca se dá.

Por outro lado, os nossos soldados, pretos e brancos, adaptam-se fàcilmente à situação.

Não vamos aqui afirmar que a vida na Guiné de hoje, nas áreas contaminadas, seja boa. Tenho 4 anos dessa vida. Mas se uma unidade adoptar sistemàticamente um espírito ofensivo, as suas possibilidades de viver relativamente sossegada são grandes pois o inimigo passa a receá-la.

Se quisessem os resumir a actual situação militar na Guiné diríamos que o Inimigo:

a) Executa incursões de surpresa em quase todo o Sul, na faixa fronteiriça entre Suzana e Cuntima, e em parte da região entre os rios Cacheu e Geba;

b) Esforça-se por se infiltrar no enorme sector dos Fulas, exercendo pressão em especial a partir do Sul  Sudeste, mas sem que até agora tenha obtido qualquer êxito pois as populações, armadas em auto-defesa e reforçadas pelas nossas tropas, opõem-se abertamente aos seus desígnios;

c) Fazendo base em território estrangeiro, flagela as nossas povoações e aquartelamentos fronteiriços,embora quase sem nos causar baixas, dada a falta de eficácia dos seus fogos.

Quanto às nossas tropas:

a) Ocupam todas as povoações da Guiné e seus arredores;

b) Repelem com relativa facilidade todas as acções inimigas;

c) Impedem o alastramento da subversão e da actividade militar inimiga para fora das zonas inicialmente contaminadas;

d) Executam acções e operações ofensivas em toda a província.

7 - Perspectivas

Em face do que dissemos atrás, quais são então as perspectivas que antevemos para a luta na nossa Guiné?

Em nossa opinião, o PAIGC já deve ter compreendido que, a não ser que empregue meios, forças e tácticas diferentes, jamais poderá ganhar militarmente a guerra.

Por outro lado, nós também temos de compreender que, enquanto o Senegal e a República da Guiné constituirem santuários para o inimigo, nunca mais poderemos acabar com a guerrilha. Ainda que empurrássemos o PAIGC até às fronteiras, não poderíamos depois impedir que ele se infiltrassem novamente dada a característica especial dos grupos de guerrilheiros.

Portanto, no que nos respeita, o problema não é só militar, é também político: desde que consigamos levar os governos de Dakar e de Conakry a alterar a sua política de protecção ao PAIGC, este não terá quaisquer possibilidades militares de se manter.

 O difícil está porém em conseguir alterar a política do Senegal e da República da Guiné, países que estão solidamente integrados na engrenagem internacional de apoio aos movimentos subversivos.

Quanto ao PAIGC, ele sabe que conta com largo apoio internacional quer no campo político quer no auxílio financeiro, social e militar.

Sucede porém que, apesar de todo este auxílio, o PAIGC não pode, sem grave risco próprio, prolongar muito mais tempo a luta. As condições em que actuam os seus grupos armados são duríssimas, mesmo para nativos africanos habituados a poucas ou nenhumas comodidades. Falta-lhes comida, roupa, alojamento e remédios. Só o armamento e as munições são abundantes, embora sempre mal conservados.

Além disso quer os guerrilheiros quer a população que está sob seu controle, começam a dar sinais de saturação e de desilusão. Começam a não acreditar em Amílcar Cabral que todos os anos lhes promete ganhar a guerra, sem nunca o conseguir.

Com o cansaço físico e moral, surge mais nítida a secular rivalidade entre os guineenses e os cabo-verdianos que militam no PAIGC. Mais difícil se torna portanto a direcção do partido que tende a perder coesão.

Ora Amílcar Cabral sabe tudo isto. E sabe que ou acelera a luta ou a perde.

Admitimos por isso que o PAIGC esteja realizando ou vá realizar novos e mais profundos esforços no sentido de tornar insustentável a nossa posição na Província.

Estes novos esforços serão desenvolvidos em todos os campos desde o diplomátíco ao militar. O colapso repentino do Biafra não pode deixar de favorecer o PAIGC, em especial quanto a armamento. Outro tanto sucederá se a guerra do Vietname acabar pois os contactos entre o PAIGC e o Vietcong já se encontram estabelecidos, como dissemos,

No entanto, se por um lado temos obrigação de admitir o reforço da actividade geral do inimigo - tanto mais que sabemos ele estar sendo apoiado pela OUA e por grande
parte dos países membros da ONU -, por outro lado não podemos deixar de reconhecer as tremendas dificuldades com que o PAIGC vai continuar a deparar se insistir em cumprir o programa que se propôs.

De facto, em primeiro lugar, há que contar com a nossa determinação em defendermos o solo cinco vezes centenário da Guiné Portuguesa. Em segundo lugar, é natural que a um esforço maior do inimigo respondamos com outro esforço também maior. E em terceiro lugar, não vemos como, nos anos mais próximos, o PAIGC terá possibilidade de levar a Cabo Verde a guerra que nos move na Guiné, dadas as características para nós favoráveis que o arquipélago apresenta.

[Digitalização / revisão, fixação de texto e atualização ortográfica, e negritos, para efeitos de publicação neste blogue:  LG. ]



Major General Hélio Esteves Felgas (1920-2008): duas comissões na Guiné, um dos militares portugueses da sua geração mais condecorados, autor de dezenas de livros e artigos sobre a "luta contra o terrorismo", a guerra ultramarina... 

Foi comandante do Comando de Agrupamento n.º 1980 (Bafatá, 1967/68), como o posto de ten cor inf e do Comando de Agrupamento n.º 2957 (Bafatá, 1968/70), já com o posto de cor inf. A qui é de destacar o planeamento e  a execuação da Op Mabecos Bravios (evacução do aquartelamento de Madina do Boé, de trágicas consequências, sector do Gabu, 2-7 fev 1969) e a Op Lança Afiada (Sector l1, 8-19 de março de 1969). 

Mas antes tinha passado pelo comando do BCAÇ 239 (Bula, São Domingos e Farim, 1961/63), e ainda pelo BCAÇ 507 (Bula, 1963/65),  o que lhe permitiu conhecer bem o início da luta armada desenvolvida pelo PAIGC, sobretudo a partir de 23/1/1963. Passou ainda pelo comando do BART 1914 (Tite, 1967/69). Ao todo, esteve quatro anos no CTIG.

Comparou a Guiné ao Vietname. Também considerava que a solução para a Guiné não era militar mas política... Foi, todavia, um crítico de Spínola que lhe terá roubado, entretanto, a ideia dos reordenamentos (aldeias estratégicas). Um oficial intelectualmente brilhante, professor a Academia Militar,  mas controverso, dizem alguns dos seus pares, mais novos.

Condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, em 1970, foi passado compulsivamente à reserva, a seguir ao 25 de Abril de 1974. (Estava m Angola nessa altura; e sempre se considerou vítima de um saneamento político-militar.)

Tem meia centena de referências no nosso blogue.

Foto gentilmente cedida pela filha, dra. Helena Felgas, advogada, colega e amiga do nosso saudoso camarada Jorge Cabral, e com quem estive no funeral do pai (LG).
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Nota do editor:

(*) Vd. Último poste da série > 22 de maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23284: Documentos (39): Amílcar Cabral, a "honra militar" e o assassinato dos 3 majores e seus acompanhantes, no chão manjaco, em 20/4/1970: acta (informal) do Conselho de Guerra do PAIGC, Conacri, 11 de maio de 1970, um "documento para a história"

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20963: FAP (115): O último ano do Fiat G-91 - Parte I (José Matos)



Fig. nº 1  – Recuperação do Tenente Miguel Pessoa. 

Crédito fotográfico – Capitão Delgadinho Rodrigues 







Fig. nº 2 – Destroços do Fiat G.91 5419 pilotado pelo Tenente-Coronel Almeida Brito. Crédito fotográfico: Roel Coutinho 




1. Mensagem de José Matos:

Data - sábado, 25/04, 14:20


Assunto - Fiat na Guiné

Olá, Luís.

Acabou de sair um artigo meu na Revista Militar sobre o último ano Fiat na Guiné. Foi um ano terrível e envio-te o PDF da revista e também o artigo em word para publicar no blogue. Agradecia que divulgasses dado a temática.

Este ano vai haver mais algumas novidades, pois está para breve a saída do meu livro sobre o Estado Novo e a África do Sul na Defesa da Guiné.

Ab, José Matos


O último ano do Fiat G.91 na Guiné 

por José Matos 
,
[Publicado originalmente na 
Revista Militar N.º 4 – abril 2020, pp. 395-414-
Cortesia do autor e editor]



José Matos [, foto à direita]: Investigador independente em História Militar, tem feito pesquisas sobre as operações da Força Aérea na Guerra Colonial portuguesa, principalmente na Guiné. É colaborador regular em revistas europeias de aviação militar e de temas navais. Colaborou nos livros “A Força Aérea no Fim do Império” (Lisboa, Âncora Editora, 2018) e "A Guerra e as Guerras Coloniais na África Subsariana" (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019).

É autor, com Luís Barroso, do livro, a sair brevemente, "Nos meandros da guerra: o Estado Novo e a África do Sul na defesa da Guiné" (Lisboa, Editora Caleidoscópio, 2020).

É membro da nossa Tabanca Grande desde 7 de setembro de 2015, tendo cerca de 3 dezenas e meia de referências no nosso blogue]



O último ano do Fiat G.91 na Guiné foi o mais difícil com a perda de cinco aviões, três deles abatidos por mísseis terra-ar SA-7 “Strela”.

O impacto desta nova arma na actividade aérea foi considerável, mas rapidamente a Força Aérea Portuguesa (FAP) adaptou-se à nova ameaça continuando a voar nos céus da Guiné. Os G.91 da Esquadra 121 desempenharam, nesse âmbito, um papel importante na resposta à guerrilha, sendo o principal vector de ataque e de apoio táctico às forças portuguesas nos meses derradeiros da guerra.

No dia 25 de Março de 1973, ao começo da tarde, o quartel de Guileje, no sul da Guiné, é flagelado por fogo de artilharia. O ataque é desencadeado em plena luz do dia para provocar a reacção da Força Aérea[1] e os militares no quartel pedem apoio aéreo a Bissalanca, onde estão sempre dois Fiat G.91 de prontidão.

Passado pouco tempo, um G.91 pilotado pelo Tenente Miguel Pessoa está na área de Guileje. Voando a baixa altitude, Pessoa procura vestígios do inimigo na zona de Gandembel, um pouco mais a norte de Guileje, mas subitamente, uma explosão faz o Fiat estremecer. O piloto tenta, desesperadamente, controlar a aeronave, mas sem sucesso. O motor está morto, as superfícies de comando não respondem, e o solo aproxima-se velozmente. Pessoa puxa a alça de ejecção sobre a cabeça e sofre o impacto da ejecção, que o lança para cima e para longe, abandonado o avião condenado, que explode com o impacto no solo.[2]
 

Contudo, ejectara-se já muito tarde. Demasiado baixo para que o pára-quedas se abrisse completamente, caiu com violência entre as árvores, acabando com uma perna partida. Ninguém sabe se está vivo ou morto, mas, ao final da tarde, consegue disparar um very-light que é visto pelo Tenente-Coronel Almeida Brito que participava com um Fiat, nas buscas. [Fig. nº 1, acima]

Na manhã seguinte, desloca de Bissau um grupo de pára-quedistas, em dois aviões Noratlas e um avião Dakota, para a Aldeia Formosa com o objectivo de resgatar o piloto. Os pára-quedistas são depois helicolocados na mata e rapidamente encontram vestígios do piloto. São depois secundados por um grupo de comandos africanos que acaba por encontrar Pessoa, sendo este levado para Guileje de helicóptero e depois para Bissau.[3] 

Na altura, ainda não o podia saber, mas fora a primeira vítima dos novos mísseis terra-ar SA-7 Strela 2, de fabrico soviético e recentemente adquiridos pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde).

Três dias depois, a 28 de Março, outro Fiat, desta vez pilotado pelo Tenente-Coronel Almeida Brito é também abatido por um Strela, no sul da Guiné, provocando a morte do piloto [Fig. nº 2, acima]. 


Na manhã desse dia, o Centro de Operações da Base Aérea n.º 12 (BA12) intercepta uma mensagem proveniente da guerrilha que referia a presença de uma viatura na estrada de Ché Ché para Madina do Boé, no sul da Guiné, com uma individualidade importante do PAIGC. Dois G.91 em alerta na BA12 descolam e dirigem-se imediatamente para Ché Ché. A partir daí percorrem o trilho até Madina do Boé e continuam até próximo da base Kambera, já no território da Guiné-Conakry. Não tendo descoberto nada, os dois pilotos (Tenente-Coronel Almeida Brito e Capitão Pinto Ferreira) fazem o percurso inverso, a cerca de 500 pés de altitude. Na picada entre Gobije e Madina do Boé, a 3 km da fronteira, Almeida Brito dá conta a Pinto Ferreira de uma mata suspeita. Nesse mesmo instante, o avião de Brito explode no ar atingido por um SA-7. 


Um segundo míssil é disparado contra Pinto Ferreira, que faz uma manobra brusca, passando muito baixo sobre o terreno e, saindo assim, fora do alcance do míssil. Em seguida, sobe para os 10 mil pés para identificar o local do incidente e comunica à base o sucedido.[4] 


Além de Comandante do Grupo Operacional 1201 (GO1201), Brito era um oficial experiente e muito estimado pelos restantes pilotos. A sua morte provoca grande consternação em Bissalanca. Percebe-se depois que a mensagem interceptada era falsa e que se destinava apenas a atrair os aviões a uma armadilha. Com a morte de Brito, o comando do GO1201 passa para o Major Fernando Pedroso de Almeida.

O impacto do míssil na actividade aérea dos G.91 sente-se de imediato. O número de horas voadas pelos caças passa de 30 horas na última semana de Março para 22 horas na primeira semana de Abril e para apenas 9 horas na segunda semana desse mês, quando a ameaça do míssil ganha contornos dramáticos com o abate de 2 aviões Dornier DO 27 e um T-6. 
Porém, na semana seguinte, volta a aumentar para 22 horas e atinge novamente as 30 horas, na última semana de Abril, o que mostra que os “Tigres” se adaptaram à nova ameaça.[5] 


No entanto, a perda de dois jactos afecta também o quantitativo atribuído à BA12. De 11 aviões disponíveis, os “Tigres” passam para 9. A situação leva, em Junho, a que sejam atribuídos mais 2 Fiat à ZACVG (Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné) para compensar as perdas de Março, sendo o 5428, acabado sair de IRAN, cedido pela Base de Monte Real (BA5) e o 5434, ainda em IRAN, retirado da reserva nas OGMA (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico).[6] Os 2 aviões chegam à BA12 em meados de Julho.[7] 



Novas tácticas

O aparecimento do Strela leva a Força Aérea, logo em Abril, a informar-se sobre as suas capacidades e limitações de forma a adoptar contramedidas. Em Lisboa, a Direcção Geral de Segurança (DGS) obtém informação sobre o míssil através dos Serviços Secretos Alemães (BND), informação que depois é transmitida ao Secretariado-Geral da Defesa Nacional (SGDN) e às chefias militares, nos três cenários de guerra africanos.

A informação recolhida junto do BND indica que o SA-7 não tem capacidade de actuação acima dos 1500 metros de altitude (5000 pés) nem abaixo dos 50/60 metros (160/190 pés) - embora informações recolhidas mais tarde mostrem que o SA-7 podia actuar até aos 8000 pés (2400 metros)[8] - e que é possível evitar o míssil por meio de manobras evasivas e da adopção de altitudes de segurança. 


A informação da DGS refere também as características positivas e negativas do míssil salientando, nas positivas, o manuseamento e utilização fácil, além da alta velocidade e mobilidade da arma. Quanto às negativas, era referido que só são possíveis tiros de perseguição, e a impossibilidade de utilização em todas as condições meteorológicas, o alcance efectivo relativamente pequeno, os reflexos térmicos provenientes do solo que podiam confundir o sensor de infravermelhos, a fácil identificação pelo rasto de fumo e ainda o baixo peso da ogiva (1kg), que exigia o impacto directo do míssil para a destruição do alvo. [9]

Munidos desta informação, os “Tigres” passam então a usar novas tácticas de aproximação ao alvo e fuga, de forma a evitar os mísseis. As missões de ataque ao solo passam a ser feitas com altitudes de entrada e saída mais elevadas. 


Nas missões ATIP (Ataque Independente Planeado), o início da picada começa nos 10 000 pés com a largada de bombas a 6000 pés, sendo que o ponto mais baixo da trajectória não deveria situar-se abaixo dos 2500 pés. Nas missões ATAP (Ataque de Apoio Próximo), os Fiat podiam levar apenas bombas tendo que executar as missões nas mesmas condições de ATIP.[10] 


Além disso, a actuação em parelha passa a ser obrigatória, pois permite que um dos caças fique em posição de vigilância fora do alcance do míssil, perscrutando o solo e o espaço aéreo em torno do outro jacto, que efectua o ataque, com o intuito de detectar disparos do míssil e lançar, na frequência de intercomunicação, a mensagem de alerta de míssil. 


Relativamente ao disparo do SA-7 podia ser detectado tanto pela assinatura que deixava no terreno como também no ar. No terreno, a assinatura era caracterizada pelo aparecimento repentino duma bola de fumo muito branco, resultante da ignição e expulsão projéctil do tubo de disparo. No ar, a assinatura era formada pelo rasto de fumo da carga impulsora de combustível sólido, indiciando a trajectória do projéctil. Desta forma, quando um piloto visse um Strela a aproximar-se podia sair fora do alcance relativamente estreito do detector de infravermelhos através de uma rápida mudança de altitude e direcção.


As manobras evasivas 

A eficiência destas manobras é confirmada mais tarde, em Outubro de 1973, quando um atirador de mísseis do PAIGC, Armando Baldé, se entrega na guarnição de Tite às forças portuguesas. O ex-guerrilheiro revela então que os insucessos nos lançamentos do míssil contra o G.91 se deviam sobretudo à dificuldade do Strela em adquirir o alvo durante a picada do avião e também devido ao facto dos pilotos saírem dos passes de bombardeamento ou tiro, numa manobra de volta muito apertada, que superava as capacidades de manobra do míssil. [11] 

Esta táctica exigia, contudo, frieza e presença de espírito da parte do piloto, para executar a manobra mantendo o mais correcto equilíbrio entre a aceleração e a ascensão. Se apertasse demasiado (na gíria aeronáutica “se aplicasse muitos Gs”) o avião perdia velocidade e razão de subida, muito rapidamente. A geometria da volta passava a ser rectilínea quando olhada do solo. Caso enfrentasse um atirador de Strela experiente e calmo, podia ser abatido se o atirador atrasasse o disparo do míssil, na expectativa de que o piloto cometesse o erro descrito.

Outra excelente manobra de evasão era metralhar a picar e sair dos passes de tiro a descer em volta até ao nível um pouco acima do topo das árvores. Com esta manobra expunha-se muito menos a fonte de emissão de infravermelhos do avião, o cone de escape, à leitura do sensor de infravermelhos do míssil, comparativamente ao que acontecia quando se faziam saídas de ataque a subir, onde essa exposição era maior. A possibilidade de sobrevivência aumentava muito, conferida tanto pela velocidade como pela protecção oferecida pela baixa altitude, onde o calor irradiado pelo solo suplantava o emitido pelo avião. 


Este procedimento tinha, todavia, o problema da última aeronave a sair do passe de tiro não ter a vigilância e o aviso do outro avião, quanto a um eventual disparo do míssil. Desta forma, quando praticada, esta manobra exigia um cuidadoso planeamento da saída do último caça do passe de tiro. Com o decorrer do tempo, alguns pilotos praticaram este procedimento.[12]

 
As grandes ofensivas da guerrilha 

Sabe-se hoje que as primeiras acções com o míssil visavam sobretudo preparar o terreno para duas grandes ofensivas da guerrilha contra duas guarnições de fronteira: Guidage e Guileje.[13] [Fig. nº 3]

Em primeiro lugar, os guerrilheiros atacam e isolam o quartel de Guidage, perto da fronteira com o Senegal. O primeiro bombardeamento a Guidage acontece a 6 de Abril e aproveitando a evacuação de um ferido em DO-27, os guerrilheiros abatem dois aviões destes, além de um T-6, que participa, mais tarde, na operação de busca dos aviões abatidos.[14] O quartel fica praticamente isolado durante todo o mês de Maio. As vias de comunicação são minadas e as colunas de reabastecimento caem várias vezes em emboscadas. 


A situação leva as forças portuguesas a montar uma operação em grande escala (Operação Ametista Real), contra a base de Kumbamori, no Senegal, para a qual é mobilizada uma força de 450 comandos com o apoio de meios aéreos. A Esquadra 121 participa na operação com seis aviões Fiat, cada um equipado com duas bombas de 750 libras. Logo ao começo da manhã do dia 20 de Maio, os “Tigres” levantam voo de Bissalanca, mas um dos aviões pilotado pelo Capitão Pinto Ferreira é obrigado a regressar devido a uma colisão com um pássaro, que lhe danifica o motor. Para aterrar em segurança, o piloto larga as bombas com as cavilhas de segurança, no rio Geba. 


Entretanto, os outros cinco jactos entram em acção e bombardeiam a zona onde se supunha estar situada a base.[15] As bombas atingem alguns paióis de munições provocando rebentamentos violentos.[16] A base é depois atacada pelos comandos, que se envolvem num longo combate com os guerrilheiros. Só ao início da tarde, após duros combates, os comandos retiram da zona com o apoio da Força Aérea. A manobra de retirada é lenta e difícil e é pedido apoio de fogo aéreo e os Fiat, que tinham ficado em alerta na BA12, voltam a descolar rumo a Kumbamori para apoiar a retirada.[17] Nenhum avião é atingido, embora existissem na zona mísseis Strela. 






Fig. nº 3 – As grandes ofensivas da guerrilha na Guiné em 1973. Infografia: cortesia de Paulo Alegria.



Guidage resiste com grande custo ao cerco da guerrilha, sendo visitada, a 13 de Maio, pelo General Spínola, que desceu de helicóptero na povoação sitiada.[18] Spínola incita os militares a resistirem e sob o comando do Tenente-Coronel Correia de Campos, a guarnição aguenta o cerco até ao final de Maio, nunca abandonando a posição.[19] 

Depois de Guidage é a vez de Guileje, no sul da Guiné. Este quartel ficava situado numa zona vital da rota de reabastecimento da guerrilha e o seu abandono seria uma vitória importante para o PAIGC.

A guarnição de Guileje é sujeita a violentas flagelações, entre os dias 18 e 21 de Maio. Nesta última data, o quartel é bombardeado com intensidade e fica sem comunicações rádio com Bissau e com as Unidades mais próximas. 


Nessa altura, a 22 de Maio, o comandante da guarnição, Major Coutinho e Lima, decide abandonar Guileje com tudo o que lá havia, permitindo a entrada do PAIGC no quartel, três dias depois, sem qualquer resistência. A guerrilha permanece no quartel apenas algumas horas retirando de seguida. Os militares e a população de Guileje refugiam-se em Gadamael Porto, mas os guerrilheiros, motivados pela vitória alcançada, atacam de seguida Gadamael. 


Os primeiros bombardeamentos começam no dia 31 de Maio e prolongam-se pelos dias seguintes de forma intensa provocando grandes estragos no quartel e também a fuga de muitos militares.[20] Os Fiat actuam logo nos primeiros dias, bombardeando as posições de artilharia do PAIGC, na vizinha República da Guiné.[21] 


Quanto a Gadamael, resiste graças à intervenção de duas companhias de tropas paraquedistas enviadas para a defesa do quartel.[22] 
Depois da perda de Guileje, o comando militar em Bissau, não podia perder mais nenhum quartel no sul da Guiné, daí o empenho na defesa de Gadamael. 

Como se pode ver, mesmo no pico da crise militar, os Fiat de Bissalanca continuam a voar actuando tanto a norte na zona de Guidage e Binta, como a sul em Guileje e Gadamael, sendo flagelados algumas vezes quer por mísseis terra-ar, mas sem consequências,[23] quer pelas armas antiaéreas de Kandiafara nos ataques que fazem a esta base da guerrilha no país vizinho para aliviar a pressão sobre Gadamael. [24]

O número de horas de voo dos “Tigres” [Fig. nº 4] sobe assim de 83 horas em Abril para 128 horas em Maio. Como se pode ver pelo gráfico seguinte, a exploração operacional dos G.91 aumenta a partir de Agosto/Setembro mantendo uma média mensal de 150 horas até ao final do ano. A média dos 10 meses é, no entanto, de 130 horas mensais.[25] [Fig. nº 5]




Fig. nº 4 - Linha da frente em Bissalanca. 
Crédito fotográfico: Alberto Cruz





Fig. nº 5 - Exploração operacional: horas de voo (1973)


 

 A saída de Spínola 

A difícil situação militar leva Spínola a escrever, a 22 de Maio de 73, ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), General Costa Gomes, e ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, pedindo um reforço de meios para a Guiné “não tanto em ordem à obtenção do sucesso militar, mas tão-somente à prevenção de um colapso a prazo mais dilatado.” [26] 

Spínola alerta Costa Gomes e Silva Cunha para a possibilidade de um colapso militar na Guiné, o que provoca grande preocupação em Lisboa. É então decidido enviar o CEMGFA à província para se inteirar da situação.[27] Costa Gomes desloca-se à Guiné a 6 de Junho e fala com os diversos sectores militares para diagnosticar a situação. 


No fim da visita, a 8 de Junho, preside a uma reunião no quartel-general em Bissau, com a presença de Spínola e dos principais comandantes militares no território. Durante a reunião, os oficiais presentes, defendem que a situação militar exige um retraimento do dispositivo que evite o aniquilamento das guarnições de fronteira e concentre meios na zona mais interior da província de forma a “ganhar tempo e consolidar um reduto final que “in extremis” ainda possa permitir uma solução política do conflito.”[28] 


Outra preocupação manifestada na reunião é a possibilidade da guerrilha usar meios aéreos e Spínola alerta para a “extrema gravidade que se revestirá um ataque aéreo a Bissau, dada a vulnerabilidade dos órgãos essenciais de apoio logístico.”[29] 


Face a esta análise, Spínola salienta a necessidade urgente de novos meios de combate na Guiné capazes de contrabalançar o crescente poderio militar do PAIGC. Para a Força Aérea são pedidos 8 aviões de transporte Skyvan, 12 caças Mirage, 5 helicópteros e 1 radar de detecção. A este pedido acresce ainda mais homens e material para o Exército, além de lanchas para a Marinha. No fecho da reunião, Costa Gomes refere que não é possível, por absoluta falta de meios, reforçar o teatro de operações com os pedidos feitos por Spínola, mas concorda com a remodelação do dispositivo no sentido da retracção das unidades de fronteira.[30]

A impossibilidade de fornecer novos meios de combate e a alteração no dispositivo levam Spínola a escrever uma nova carta ao ministro do Ultramar manifestando a sua discordância quanto à retracção do dispositivo militar e ao abandono de certas áreas geográficas junto às fronteiras deixando à sua sorte as populações aí residentes, solução com a qual não se identificava, embora a considerasse necessária perante a falta de meios.[31] Desiludido com a política seguida pelo Governo, Spínola terminava a carta pedindo a sua substituição, o que só aconteceria em Setembro, com a chegada à Guiné, do General Bettencourt Rodrigues.

É já com Bettencourt Rodrigues que as forças portuguesas na província recebem algum reforço militar em homens, material AA de 94 mm (obsoleto como arma antiaérea) e um navio patrulha, mas nada que permita aumentar substancialmente o potencial de combate na Guiné.[32] 


A 24 de Setembro, numa cerimónia na região do  Boé, o PAIGC proclama, perante um grande número de convidados estrangeiros, a independência da Guiné-Bissau, mas esta nova situação não tem impacto no desenrolar da guerra.

A FAP tenta recuperar a iniciativa aumentando as missões de ataque assim como o espectro de actuação das aeronaves empenhadas. Além das missões diurnas, a Força Aérea começa também a desenvolver missões nocturnas usando para esse efeito, o G.91 e um C-47 adaptado a missões de bombardeamento.
 

(Continua)

[Revisão / fixação de texto para efeitos de publicação no blogue: LG}
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Referências:

[1] Hernández, Humberto Trujillo, El Grito del Baobab, Editorial de Ciencias Sociales, Havana, 2008, p.114.
 

[2] Pessoa, Miguel, Um Fiat Abatido in a Guerra de África de José Freire Antunes, Volume 2, Círculo de Leitores, 1995, pp. 987-990.
 

[3] Rebocho, Manuel Godinho, Elites Militares e a Guerra de África, Roma Editora, 2009, p. 306
 

[4] Estado Maior da Força Aérea, Processo n.º 1242 de Averiguações por Acidente em Serviço, de José Fernando de Almeida Brito, Bissalanca, 3 de Abril de 1973, Serviço de Documentação da Força Aérea/Arquivo Histórico (SDFA/AH).

[5] Análise dos SITREPS Circunstanciados n.º 13, 14, 15, 16 e 17/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Arquivo da Defesa Nacional (ADN) /F2/SSR.002/87.

[6] Informação nº 198 da 3ª Repartição do Estado-Maior da Força Aérea, Assunto: Atribuição de Fiats à ZACVG, 6 de Junho de 1973, SDFA/AH-SEA/Guiné 1964-1974/Fiat Processo 430.121.

[7] Análise dos SITREPS Circunstanciados n.º 28 e 29/73 do COMZAVERDEGUINÉ, ADN F2/SSR.002/87.

[8] Relatório imediato da Delegação em Moçambique da DGS, Assunto: Míssil solo-ar Strela 2, 3 de Novembro de 1973, ADN/F3/1/1/1.

[9] Informação Suplementar do Secretariado Geral da Defesa Nacional, Assunto: União Soviética: Míssil Terra-Ar individual GRAIL (SA-7), Fonte: DGS, 9 de Abril de 1973, Lisboa, ADN SGDN/5681/7.

[10] Directiva 20/73 do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, Bissau, 29 de Maio de 1973, Arquivo Histórico-Militar AHM/DIV/2/4/228/2.

[11] Fraga, Luís Alves, A Força Aérea na Guerra de África (1961-1974), Editora Prefácio, Lisboa, 2004, p. 113 e Relatório Imediato nº 5641/73/DI/3/SC da DGS sobre o míssil solo-ar Strella-2, 31 de Outubro de 1973, ADN/F3/1/1/1.

[12] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

[13] Calheiros, José Moura, A Última Missão, Caminhos Romanos, Porto, 2010, p. 634.

[14] SITREP Circunstanciado n.º 14/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/87 e José Moura Calheiros, op., cit. p. 439.

[15] Catarino, Manuel, Operação Ametista Real in As Grandes Operações da Guerra Colonial, Volume 10, Presselivre, Imprensa Livre SA, Lisboa, 2010, pp. 47-52 e José Moura Calheiros, op., cit. p. 433.

[16] Relatório da Operação Ametista Real, Bissau, 26 de Julho de 1973, Arquivo Histórico Militar AHM/DIV/2/4/133/2.

[17] Catarino, op., cit. p. 54.

[18] Entrevista de António Spínola a Manuel Bernardo in Marcelo e Spínola: A Ruptura – As Forças Armadas e a Imprensa na Queda do Estado Novo, 1973-1974, 3ª Edição, Edium Editores, Porto, 2011, p. 209.

[19] Calheiros, op., cit. pp. 437-463.

[20] Calheiros, op., cit. pp. 516-521.

[21] Informação prestada ao autor pelo TGen. Martins de Matos.

[22] Calheiros, op., cit. pp. 513-545.

[23] Análise dos SITREPS Circunstanciados n.º 19, 20, 21, 22, 23, 24 e 25/73 do COMZAVERDEGUINÉ, Bissau, ADN/F2/16/87.
 

[24] Calheiros, op. cit., p. 543.

[25] SITREPS circunstanciados do COMZAVERDEGUINÉ, ADN/F2/SSR.002/87 e 88.

[26] Spínola, António, País Sem Rumo, Editorial SCIRE, 1978, p. 56.

[27] Cunha, Silva, O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril, Atlântida Editora, Coimbra, 1977, p. 53.

[28] Acta da reunião de Comandos de 8/6/73, Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Processo n.º 2202, Pasta A, ADN F3/17/34/4.

[29] Ibidem.

[30] Ibidem.

[31] Spínola, op., cit. pp. 60-62.

[32] Estudo do CCFAG sobre a área do Boé, Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Processo n.º 2202, Pasta A, ADN F3/17/34/4.

[33] Informação prestada ao autor pelo General Fernando de Jesus Vasquez.

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Nota do editor:

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