Guiné > Bissau > Avenida marginal > c. fevereiro / abril de 1970
Foto (e legenda): © Jaime Machado (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O Carlos Filipe Gonçalves, de alcunha Kalu Nhô Roque (como consta na sua página no facebook) nasceu em 1950, no Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde. É uma figura conhecida na sua terra: radialista, jornalista, historiógrafo musical, e escritor, vive na Praia, a capital.
É membro da nossa Tabanca Grande desde 14 de maio de 2019, sentando-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 790. Tem mais de 2 dezenas de referências no nosso blogue.
Estamos a reproduzir excertos das suas recordações, a publicar eventualmente em livro, do seu tempo de tropa, que cumpriu, nos serviços auxiliares, como fur mil amanuense, na Chefia dos Serviços de Intendência (CHEFINT) 1ª Rep, QG/CTIG, Santa Luzia, Bissau, 1973/74.
Na Metrópole, durante a recruta, a especialidade e a mobilização em rendição individual para o CTIG, passou por Tavira, Vendas Novas, Leiria e Lisboa.
A fonte que utilizamos é a página do Facebook da Tabanca Grande.
Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) (*)
Parte III: Chegada e colocação em Bissau
(i) O fim da viagem
Os dias foram passando naquela rotina de banhos de sol, comer, dormir, ver a jogatina à batota, ver filmes à noite, etc. Agora, sentia-se cada vez mais calor, um sol abrasador fustigava a pele branquinha dos meus camaradas… As faces começaram a ficar vermelhas, o suor escorria, andava-se despido nos camarotes, os blusões esquecidos nas maletas, andámos agora em camisa de manga curta, alguns de calções e meias altas.
Na segunda-feira de manhã apresentamo-nos na 1.ª Repartição do QG onde trabalhava o tal furriel veterano que estava empolgado com a minha chegada. Mandaram-nos subir para o auditório no primeiro andar, onde decorriam os «briefings» do Estado-Maior. Todos sentados, em silêncio ouvimos as boas-vindas por um oficial de alta patente. O meu amigo furriel veterano, veio ter comigo e tranquilizou-me: “Vais ficar em Bissau de certeza! Mas, olha, descobri que afinal o meu periquito não és tu!”
Depois de uma preleção sobre o dever para com a Pátria, o sentido de disciplina, a prontidão para o combate, etc. etc. , teve início a chamada dos nomes e indicação das colocações. Alto e bom som, o oficial chamou: “Fulano de tal! Colocado em Pirada!”
E assim vou tendo contacto com esta linguagem de siglas, vejo que o QG é um enorme complexo com vários quartéis (todos cercados com muros de protecção e porta de armas); do lado de fora, moradias para oficiais superiores, vários alojamentos para oficiais e sargentos, interligados por ruas alcatroadas…
(*) ÚLtimo poste da série > 20 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26819: Recordações de um furriel miliciano amanuense (Chefia dos Serviços de Intendência, QG/CTIG, Bissau, 1973/74) (Carlos Filipe Gonçalves, Mindelo) - Parte II: De Lisboa a Bissau, no T/T Uíge
Os dias foram passando naquela rotina de banhos de sol, comer, dormir, ver a jogatina à batota, ver filmes à noite, etc. Agora, sentia-se cada vez mais calor, um sol abrasador fustigava a pele branquinha dos meus camaradas… As faces começaram a ficar vermelhas, o suor escorria, andava-se despido nos camarotes, os blusões esquecidos nas maletas, andámos agora em camisa de manga curta, alguns de calções e meias altas.
O Gabarolas deixou de me atrapalhar, parece que me esqueceu, depois daquela descompostura que lhe dei logo no início da viagem. Na sexta-feira de manhã cedo, avistamos terra, o mar azul deu lugar a uma água castanha, cheia de troncos e ramos de árvores, toda a espécie de detritos vinha na corrente: sapatos e roupa velha, garrafas de plástico e os objectos mais incríveis!
Não há dúvida, chegamos à Guiné! Estamos a subir o rio Geba. Lá pelas 10 da manhã entramos no porto de Bissau, logo avistamos o casario e carros a passar na marginal, o pessoal que tinha rádio sintonizou uma emissão e começamos a ouvir música, locutores a falar… ouvia-se música Pop em moda… de repente, passa música de Cabo Verde! Uma surpresa! Ouço o cantor Bana… depois o conjunto Voz de Cabo Verde… o som inconfundível do clarinete, ou o sax do Luís Morais! O navio Uíge fundeou ao largo e recebemos a informação que o barco só atracaria no dia seguinte.
(ii) Desembarque e colocação em Bissau, na CEFINT, 1ª Rep QG/CTIG, em Santa Luzia
Sábado de manhã, 3 de março de 1973 teve início o desembarque. Logo depois de pisar o cais, ouvi alguém a chamar: “Quem é o Carlos Filipe Gonçalves!” Fiquei surpreendido, mas, respondi logo: “Sou eu!”
Era, um furriel veterano, abraçou-me e disse: “Bem-vindo meu periquito! Há meses que estou à tua espera!"
O recém-chegado à Bissau era logo identificado, pela farda nova de um verde impecável, cara avermelhada de tanto calor, pele de um branco alvo, desajeitados... Por isso, o “maçarico” na metrópole, era aqui chamado «periquito», porque essa ave típica da Guiné, tem uma penugem verde intensa e um andar desajeitado. Os militares mais antigos tinham a farda desbotada e a tez mais escura. Claro, que quanto a mim, só se evidenciava a farda novinha de um verde intenso, afinal eu era «chocolate» e estava orgulhoso disso.
Depois de uma breve conversa que não fazia sentido para mim, pois, eram problemas que ele enfrentava e ainda por cima explicados numa linguagem de siglas e na gíria da tropa local, aquele furriel veterano volta-se para mim e diz: “Como vais de Berliet, encontramo-nos no QG ! Estarei lá à tua espera!”
Fomos transportados nos camiões para o Quartel-General em Santa Luzia, onde logo encontro o tal furriel veterano em final de comissão e que estava todo feliz, porque finalmente ia regressar à Metrópole depois de seis meses a mais, desde o final da comissão de dois anos! Ele começou logo a me explicar o funcionamento da repartição do QG onde trabalhava, porque ele tinha planos para partir o mais tardar na próxima quarta-feira. Claro, eu ouvia, mas não percebia nada…
Fiquei então alojado num pré-fabricado coberto de telhas de zinco, sem quaisquer condições a que os veteranos chamavam: "Biafra"! Havia apenas beliches, numa pequena camarata sem nada, nem armários, nem cadeiras. Nada! Com o aproximar do meio-dia, havia um Sol abrasador, o calor era intenso, o "Biafra" ficava insuportável! A porta estava sempre aberta, não havia chaves…
Fomos almoçar na messe de sargentos ali em frente, o furriel veterano, agora meu guia, não me largava um minuto, dizia empolgado: “Vamos tomar uma cerveja! … Vamos fazer isso e aquilo etc.” Naquela tarde veio ter comigo e disse: “Vamos a Bissau, para eu te mostrar a cidade!” E logo explicou: “Há um serviço de autocarros da tropa, de hora a hora!”
E lá fomos, ele sempre a mostrar, a descrever, enfim, foi um acolhimento de primeira. Constatei então que Bissau era uma cidade muito maior que a minha Mindelo, na Ilha de S. Vicente, com muitas árvores, ruas direitas e longas, casario baixo do tipo vivendas, com alpendres e pátios envolventes, cheios de plantas.
Apesar de ser sábado à tarde, havia muito movimento nas esplanadas e cafés, todos repletos de militares «brancos». Há muitos indígenas vestidos tradicionalmente, são os «djilas», vendedores dos produtos mais esquisitos e quinquilharia: pulseiras, colares, objectos em pele de crocodilo ou de cobra, artesanato, etc. etc.; há ainda as «badjudas» e rapazinhos, que vendem mancarra (amendoim) e caju, ou então, veludo e alfarroba (frutos secos tipo amêndoas felpudas), uma novidade para os meus colegas, mas que eu já conhecia desde a minha infância em Cabo Verde.
Estes vendedores são insistentes, mesmo depois de um não, continuam a propor o produto, fazem novas ofertas de preço, elogiam os produtos… Vejo-os a discutir com outras pessoas: “São tantos pesos… posso baixar! Toma por tantos pesos!”
O furriel, meu guia, diz-me: “Não ligues pá! Tens de acostumar e não levar esses gajos a sério!”
Eu estava cansado da viagem, por isso regressei cedo ao quartel em Santa Luzia. Mais um banho e fui dormir.
Naquela noite aconteceu a habitual brincadeira para amedrontar os “periquitos”: depois das 22 horas, os veteranos, lançaram um «ataque» ao "Biafra"! Atiravam garrafas vazias de cerveja sobre o telhado de zinco do alojamento onde estavam os recém-chegados. Era um barulho medonho a que se juntaram gritos e um alarido. O pessoal recém-chegado pensou logo que se tratava de um ataque dos «terroristas» … logo saíram a correr, outros deitavam-se no chão a rastejar… Os veteranos às gargalhadas e a gozar com o espectáculo! Essa era uma cena que se repetia, sempre que chegava um novo grupo de "periquitos"!
Na segunda-feira de manhã apresentamo-nos na 1.ª Repartição do QG onde trabalhava o tal furriel veterano que estava empolgado com a minha chegada. Mandaram-nos subir para o auditório no primeiro andar, onde decorriam os «briefings» do Estado-Maior. Todos sentados, em silêncio ouvimos as boas-vindas por um oficial de alta patente. O meu amigo furriel veterano, veio ter comigo e tranquilizou-me: “Vais ficar em Bissau de certeza! Mas, olha, descobri que afinal o meu periquito não és tu!”
Pensei logo: outra vez, não me querem numa repartição sensível! Os corações batiam de ansiedade, pois avizinhava-se o momento das colocações. Sabíamos que embora nos serviços auxiliares, podíamos ser colocados numa CCS algures no mato onde havia «porrada», como se dizia na gíria militar, quando se referia aos ataques e emboscadas.
Depois de uma preleção sobre o dever para com a Pátria, o sentido de disciplina, a prontidão para o combate, etc. etc. , teve início a chamada dos nomes e indicação das colocações. Alto e bom som, o oficial chamou: “Fulano de tal! Colocado em Pirada!”
Ouviu-se logo um resmungo baixinho, eu diria, um choro disfarçado…. Pudera! Pirada era uma localidade na fronteira… Desde sábado que os «periquitos» ouviam relatos dos veteranos sobre os quartéis mais perigosos no mato. Pirada, já se sabia, era constantemente flagelada pelos «turras».
E continuou o oficial: “Passe pela secretaria, para tomar a guia de marcha e saber do seu transporte para a unidade!”
E, assim, prosseguiu a chamada de nomes e indicação das colocações. Logo depois da indicação de cada localidade ou unidade de colocação, ouvia-se/sentia-se, ou um resmungar de aflição, ou… expressões de alegria!
Quando, chegou a minha vez, o oficial indicou a minha colocação: “Chefia da Intendência!”
Fiquei ali parado sem saber o que fazer, pois não sabia onde era, nem o que era! O amigo furriel veterano que estava ao meu lado disse-me logo: “Vai-te embora, pá, antes que mudem de ideias! É mesmo aqui ao lado!”
Saí a correr, cheguei à «parada», desorientado perguntei onde ficava a tal repartição, alguém respondeu: “CHEFINT? Passe pela porta de armas, vire à esquerda, siga em frente pela rua, à direita encontra uma outra porta de armas, entre. No rés-do-chão é o BINT , a CHEFINT é no primeiro andar!”
E assim vou tendo contacto com esta linguagem de siglas, vejo que o QG é um enorme complexo com vários quartéis (todos cercados com muros de protecção e porta de armas); do lado de fora, moradias para oficiais superiores, vários alojamentos para oficiais e sargentos, interligados por ruas alcatroadas…
Havia ainda as messes de oficiais e sargentos, uma piscina, um cinema ao ar livre e diversos serviços (como a Chefia de Contabilidade, Tribunal Militar etc.) a funcionar em instalações que antes teriam sido alojamentos; todo este conjunto, cercado / circundado, por uma enorme e longa cortina de arame farpado! Só há duas portas de entrada/saída para o exterior, todas também com casa da guarda e sentinelas!
Mais tarde, ouvia de vez em quando, umas explosões… Ouço dizer que para lá do arame farpado havia uma área minada… As explosões, diziam-me, eram devidas a bovinos e outros animais que, deambulando na pastagem, entravam na área minada e… BUM! Mas, nunca lá fui, nem nunca vi de perto esse local.
Verdade ou não, o que me diziam era evidente, porque havia uma guerra, ouvia-se a guerra, sobretudo à noite! Bissau, era cercada de campos de minas e tinha dois ou três «checkpoints” que controlavam as entradas e saídas!
Ao me apresentar na Chefia de Intendência (CHEFINT), foi uma alegria para o chefe, um tenente-coronel, homem já de meia-idade. Mal entrei no gabinete, bastante frio, devido ao ar condicionado, ele riu-se e disse-me logo: “Seja bem-vindo, oh nosso furriel! Estamos a lutar com falta de pessoal! Venha, vou-lhe mostrar a sua secção e o que tem a fazer!”
Saímos do gabinete fresquinho, passamos pelo corredor, um verdeiro forno, entramos numa sala mesmo ao lado, todo mundo levantou-se e ele diz: “Oh nosso alferes, aqui tem um reforço! Desta vez temos de acabar com esse atraso na resolução dos autos. Têm três meses para resolver todos os pendentes!” E retirou-se.
O alferes apresenta-me então o pessoal da “Secção Autos de Víveres e Artigos de Cantina”, aponta e comenta: “Militares, aqui, agora somos três, eu, aqui o nosso furriel e você. Temos três civis!” E aponta: “O Demba, o Issa e o Claudino!”
Cumprimento os civis; logo noto, que o furriel veterano, é dos serviços auxiliares, pois tem uns óculos de míope com lentes muito mais grossas que as minhas! Ele mostra-me, todo ufano, um gráfico de barras com os 24 meses da comissão! Vejo que, ele assinala cada mês que passa, preenchendo uma coluna com lápis azul! Constato logo, que para ele, já cantam, um ano e um mês de comissão. Vendo a minha curiosidade ele sugere: “Posso arranjar-te um gráfico destes, toda malta tem um!” Respondi logo: Contar os meses? Não tenho pachorra para isso! Comigo pensei: isso é uma tortura, prefiro deixar o tempo correr e quando a comissão chegar ao fim… pronto, acabou-se!
Embora espantado com a minha reacção, o agora meu colega de serviço não comenta, volta-se para mim e diz: “Estás a ver aquela estante aí cheia de pastas de arquivo? Pois é, naquele monte de papéis, estão mais de mil autos que temos de resolver! Ouviste o que disse o chefe? Temos três meses para acabar com isso tudo! Portanto, ao trabalho!”
(Revisão / fixação de texto: LG)
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Nota do editor: