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segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25071: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (7): etnomedicina na região de Libolo e elogio da cidade de Luanda, com cerca de 20 mil habitantes no final da I República





Legenda: "Como se curam as pneumonias na região de Libol" 


Libol ou Libolo,  hoje  município da província do Cuanza Sul, que tem a sua sede na cidade e comuna do Calulo( ou Kalulo): nesta região de Libolo  existe a  "pedra escrita" que representa um símbolo da resistância, em 1917, à penetração da colonização portuguesa, e que ficou conhecida como a "revolta de Libolo".

Em relação a estes aspetos da etnomedicina (ou medicina popular),  angolana de há 100 anos atrás, atrevemo-nos a acrescentar (não sendo nós médicos) que, e pelo que a imagem sugere, se tratava já de uma forma muito empírica de ventosaterapia (usada em medicinas tradicionais como a chinesa, por exemplo): a utilização de "copos de vácuo" (neste caso, recipientes cónicos em barro fresco, parece-nos, ou talvez chifres de vaca) que ajudavam a aumentar a circulação sanguínea (LG)...


Capa da "Gazetas das Colónias, Ano II, nº 40, Lisboa, 25 deoutubro de 1926. Director: Veloso de Castro; editor: Joaquim Araújo; preço: série de 12 números: 20$00. Cortesia de Hemeroteca Digital de Lsoa  Câmara Municipal de Lisboa

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1.  Para os nossos "africanistas", como o nosso "colón" António Rosinha, mas também o Patrício Ribeiro, e outros leitores, aconselha-se a leitura neste número (o penúltimo da "Gazeta das Colónias", que irá encerrar com o nº 41, de 25 de novembro de 1926, já em plena Ditadura Militar, instaurada com o golpe militar de 28 de maio de 1926), de um artigo sobre Luanda, da autoria do maj inf  e africanista Veloso de Castro, que era o diretor da publicação, 


Fotografia panorâmica de Luanda, de há 100 anos: Legenda: "Loanda: panorama da cidade baixa, que é a parte comercial, e vista da bahia". Imagem da Secção Fotográfica do Exército, coleção de Veloso de Castro.  (Gazeta das Colónias, ano II, nº 40, Lisboa, 25 deoutubro de 1926, pp. 14.15

Veloso de  Castro, neste artigo sobre "As nossas gravuras" (sic), faz o elogio da localização e da benignidade do clima da cidade de Luanda (escrevia-se então "Loanda", capital da "Província de Angola", considerada como "a melhor fundação da colonização europeia na costa ocidental do continente Africano"(sic), formando com Lourenço Marques (na costa oriental) e Capetown (na ponta do sul) "a base triangular da colonização africana para baixo do equador".

Este e outros militares que atingiram o auge da sua carreira na República, eram defensores indefetíveis do império colonial, e dedicaram o melhor da sua vida à causa do Portugal ultramarino. 

Recorde-se que a cidade de Luanda foi fundada a 25 de Janeiro de 1576 pelo fidalgo e explorador português Paulo Dias de Novais, sob o nome de "São Paulo da Assunção de Loanda". (Sobre a história de Luanda, ver a entrada da Wikipedia.)

Segundo Veloso de Castro,  a cidade tinha então , no final da I República, cerca de 20 mil habitantes, e conhecia uma fase de expansão e modernização. Em próximo poste iremos publicar excertos do artigo.

Lê-se no sítio do Arquivo Histórico-Militar (AHM) que o coronel José Veloso de Castro "prestou serviço como militar durante cerca de quatro décadas em África, sobretudo em Angola, terminando a sua carreira como Major de Infantaria em 1924."

"Durante a sua passagem por Angola dedicou-se não só às operações militares, como também à fotografia, deixando-nos um valioso legado fotográfico onde são retratadas não só a fauna e a flora angolanas, como também a sociedade, cultura e elementos geográficos desse mesmo país. É ainda autor de livros técnicos militares e, também, de história militar do Ultramar."

A sua coleção fotográfica (1904-1914), doada ao AHM, é constituída por "1 álbum com 2355 positivos fotográficos e 7 caixas de negativos em vidro".
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24978: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (6): Moçambique: monumento aos heróis de Magul (8 de setembro de 1895)... Guiné: o rio Grande a que aportaram as caravelas portuguesas em 1446 não era o Casamança mas o Geba: nele foi observado o fenómeno do macaréu

Vd, primeiro poste da série > 15 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24958: Capas da Gazeta das Colónias (1924-1926) (1): Os "angolares", indígenas de São Tomé

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24919: Notas de leitura (1644): Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro (1931-1939) - Parte IV: Angola, Luanda, fotogaleria, c. 1930


Foto nº 3 > Câmara Municipal ou Governo Provincial de Luanda [São Paulo de Luanda] (vd, enquadramento histórico e urbanismo),


(...) O edifício da Câmara Municipal de Luanda começou a ser construído em 1890, segundo projeto de Artur Gomes da Silva, concluindo‐se a obra em 1911. 

O edifício apresenta fachada de expressão classicizante, com frontão central e vãos de arco circular. Segue a tradição dos edifícios públicos com estrutura de pré‐fabricado de ferro. Ergue‐se sobre a Praça da Mutamba, numa relação com o terreno que lhe confere imponência e monumentalidade. 

A planta desenvolve‐se à volta de um pátio interior com iluminação zenital, de onde nasce uma majestosa e escultórica escadaria interior, toda em ferro fundido, elemento decorativo mas também distributivo, coberto por uma estrutura de pilares e arcos metálicos ogivais que lhe dão singularidade, elegância e leveza. Foi classificada como Monumento Nacional, por despacho publicado no Diário da República n.o 205, de 31.08.1981. Continua a exercer a mesma função.Isabel Martins (Fonte: HPIP - Património de Influência Portuguesa) (com a devida vénia...)


Foto nº 2 > Memória a Paulo Dias de Novais, fundador da cidade de Luanda


("A cidade foi fundada em 1575‐1576, quando Paulo Dias de Novais e suas gentes ancoraram na Ilha das Cabras que era, na época, uma possessão do rei do Congo. (...) Fonte: HPIP, com a devida vénia)


Foto nº 1 > Luanda: homenagem a Salvador Correia, o restaurador de Angola

(...) A urbe de 1900 lê‐se numa planta de Alves Roçadas, executada para a Câmara Municipal. A cidade teria uns 15.000 habitantes em 1910, cerca de 30.000 em 1923, e já 50.000 em 1930, dos quais 6.000 brancos e 5.500 mestiços. (...) Fonte: HPIP, com a devida vénia)



Foto nº 4 > Luanda. estação do caminho de ferro Luanda - Malange

(... "O terminal ferroviário da linha Luanda‐Malanje é um modesto edifício de dois pisos de adobe e cobertura de telha, situado na zona central da cidade a comprovar o seu papel relevante. A sua construção decorreu entre 1905 e 1909.Aida Freudenthal. (...) Fonte: HPIP, com a devida vénia.. 



Foto nº 6 > Luanda: avenida do hospital Maria Pia (construído em 1865.1883), hoje Josina Machel, (Esta avenida hoje deve a do 1º Congresso do MPLA. seria a Av dos Combatentes, no temo colonial?)


Foto nº 5 > Luanda; trecho da Av Salvador Correia


Foto nº 7 > Luanda: fachada da Sé,antiga igreja de N. Sra. dos Remédios

(...) Esta igreja localiza‐se na Cidade Baixa, antiga Rua da Praia, e foi construída devido ao desejo que os comerciantes e demais moradores da Cidade Baixa tinham de competir com a Cidade Alta, onde se localizavam os principais templos religiosos.

 A sua construção iniciou‐se em 1651 e terminou em 1670. Cadornega descreve‐a como "edificio sumptuoso de boa fabrica, confraria e irmandade do Corpo de Deos, e a invocação de nossa Senhora dos Remédios que servem os cidadoens e moradores com muito dispendio de suas fazendas". 

A primitiva igreja evidenciava um estilo barroco na fachada, constituída por três portas encimadas por pequenos frontões triangulares, terminando num frontão aproximadamente triangular com enrolamentos em cada vértice e um óculo bastante elaborado. Desenvolvia‐se numa planta retangular, com uma ampla nave, transepto inscrito, altar‐mor e colaterais. A composição da fachada terminava em duas torres sineiras elevadas e quadrangulares, encimadas por coruchéus piramidais. Encontrava‐se em ruína total em 1877.

 Em 1897, um restauro deu‐lhe o aspecto que hoje apresenta, transformando‐a numa tipologia de um só tramo com três portas e frontão redondo. Nos finais dos anos 1940 foi considerada um valor a preservar, sendo por isso classificada Imóvel de Interesse Público pela portaria n.o 6718 de 25.05.1949. Serviu de sé catedral entre 1828 e 1850, tendo atualmente voltado a ser a Sé Catedral de Luanda.Isabel Martins. (Fonte: HPIP, com a devida vénia...)
 


Foto nº 8 > Luanda: Fachada do Hotel Paris


Foto nº 9 > Luanda: à hora da sesta... Ao fundo,  hotek Paris...



Angola > Luanda > c. 1930 > Fotogaleria




Angola é um descritor com 544 referêcncias no nosso blogue. E é um país que também está no coração de alguns de nós. Daí o destaque que tanbém lhe damos, de vez em quando. Comparem-se as imagens dos anos 30  com estas imagens dos anos 50/60 (Cortesia do Facebook "Luanda - Imagens dos Velhos Tempos")


Luanda > Sé (antiga Igreja de N. Sra.dos Remédios)


Luanda > Hotel Paris


Luanda > Fachada do edifício da Câmara Municipal, anos 60


Luanda > Rua (e não avenida) Salvador Correia, 1968


Luanda > Av Combantes, anos 60


Luanda >  Hospital Maria Pia, anos 50


Composição dos Caminhos de Ferro de Angola, linha Luanda-Malang

Fonte: Página do Facebook "Luanda - Images«ns dos Velhos Tempos" ("Espaço de recordações para quem nasceu ou viveu em Luanda antes de 1975") (com a devida vénia...)
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Notas do editor:


Último poste da série de 4 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24916: Notas de leitura (1643): "Era Uma Vez na Tropa, Rescaldos da guerra em desfile de memórias", por Ireneu de Sousa Mac; Europa Editora, 2022 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23601: Notas de leitura (1492): "Diário Pueril de Guerra", por Sérgio de Sousa; Editoral Escritor, 1999 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
O diário de Sérgio de Sousa centra-se em Sagal, Moçambique, há emboscadas, muitas minas anticarro e muito sofrimento com as minas antipessoal. É um diário que dura menos de um ano, irá culminar com um acidente brutal que deixará este alferes-miliciano com incapacidade. O autor chamou-lhe inicialmente Diário de Guerra. O semanário O Jornal publicará em 1981 dois excertos. Assume o documento como um diário íntimo, não encontrei, em tudo quanto li até hoje, ninguém a ler tanto, a comentar tanto, a desnudar-se, tinha medo, como ele escreverá, da desintegração da personalidade, falará sempre mais de si, descurando gentes e ambientes. Quando, décadas depois, publica o que escrevera meticulosamente, e numa caligrafia arredondada e bem legível, dirá que já não é a mesma pessoa, como se fosse possível fazermos cisões de tal modo brutais em que os tempos de juventude deixassem de fazer parte do que prossegue na maturidade e na velhice. Mas reconheça-se que Sérgio de Sousa não tem rival nos diários de guerra.

Um abraço do
Mário



Um caso ímpar na literatura diarística da guerra colonial (1)

Mário Beja Santos

Intitula-se "Diário Pueril de Guerra", seu autor é Sérgio de Sousa, Editoral Escritor, 1999. Sérgio de Sousa pertencia à CART 2718, que partiu para Moçambique em 20 de maio de 1970, seguiu para Sagal, a sua unidade militar dependerá do BART 2918. O que cativa neste documento de um jovem de 23 anos, assumidamente snob, ledor compulsivo, que viajou por Franças e Araganças, é o olhar que lança, em permanência, para o que deixou do seu círculo de afetos, como este mesmo círculo de afetos o ajuda a urdir o grau de resignação como ele vive a guerra. Irá penitenciar-se no posfácio, escrito décadas depois, que perpassa o seu documento um desesperado egocentrismo, sobretudo pelo que ali é omitido, pouco ou nada saberemos de Sagal, é parcimonioso nas referências às operações, no entanto não deixa de empolar os múltiplos incidentes e acidentes. “E não há nenhuma referência à paisagem do planalto onde vivi durante meses e que, como se presumirá, era avassaladora. Nem a um espetáculo único que então presenciei, quando atravessei uma parte da floresta que tinha ardido, enterrando os pés nas cinzas quentes, e a nossa movimentação fazia mexer o ar parado, provocando a queda das árvores que se mantinham eretas, carbonizadas, até que a nossa passagem as fez cair, desfeitas. Não me detive quase a falar das pessoas com quem convivi. Em contrapartida, anotei uma série de temas que na altura pensava interessarem-me, e que não me parece hoje que tivesse o valor que lhe atribuía”.

Temos o embarque no Niassa, observa o que os outros leem, nota que os soldados dormem em beliches apinhados nas cobertas. Doze dias depois, chegam a Luanda, para ele é uma cidade ocupada pela tropa, entra nas casas de espetáculos, a viagem prossegue, lê Roger Vailland; os Dez Dias Que Abalaram o Mundo, do John Reed, a 13 de junho saem à noite de Lourenço Marques, seguramente que o impressionou pois fala dela com alguma abundância:
“Nascida sobre uma prancheta de desenho, Lourenço Marques parte dos caraterísticos edifícios coloniais, de dois pisos, de madeira, sendo o inferior recuado, de modo ao passeio ficar coberto pelo outro piso, varanda ou telhado, assente em finas e espaçadas colunas de ferro, implantadas na borda do passeio. Assim nas três ou quatro ruas estreitas, junto ao porto.
Depois vêm, nas longas avenidas do centro, os bons edifícios não muito altos, onde se aloja o melhor comércio e os bancos. E já os prédios com mais de uma dezena de andares conquistam espaços na baixa e se difundem, ao longo das rasgadas avenidas que ganham uma periferia, de vivendas antiquadas para o interior, modernas e luxuosas ao longo da costa.
No caminho para o aeroporto, os bairros indígenas, imensos, no meio de um deles uma lixeira municipal. Situam-se à porta da cidade branca, para o interior, sendo as habitações mais próximas as mais decentes, segue-se a favela; algumas fábricas erguem-se por ali.
O urbanismo de Lourenço Marques vinca a sua realidade racista. Na cidade racionalizada, elegante, luxuosa, só penetram os negros dos serviços que se apresentam limpos e decentemente vestidos. Além dos serviços, nada mais há na vida da cidade branca que lhes seja acessível. Os brancos nada têm que fazer nos bairros indígenas, por isso não entram lá”
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Também não perdeu a oportunidade de entrar nos cabarés laurentinos. A viagem prossegue pela beira até chegar a Nacala, depois Porto Amélia, finalmente Mocímboa da Praia. Já ouviu várias vezes falar na Operação Nó Górdio, ele irá participar nela. A sua unidade parte de Mocímboa da Praia para Diaca, e chega-se a Sagal, considera que as instalações são bastante razoáveis, pertenciam a uma antiga exploração algodoeira. A casa senhorial é ocupada pela messe de oficiais.

Já se respira a Operação “Nó Górdio”, como ele escreve no seu diário:
“Consiste num cerco a uma região onde o inimigo se encontra, e intervenções de limpeza no interior desse cerco. A picada fica a constituir parte do limite da área cercada; ao longo dela as nossas tropas hão de emboscar-se e executar patrulhamentos (…) Levámos grande parte da manhã e toda a tarde para percorrer os seis quilómetros de picada nova aberta três dias antes; nela foram detetadas e rebentadas dez minas anticarro e removidos bastantes abatises. Numa das vezes em que, ao ser detetada uma mina fizemos reconhecimento pelo fogo para, prevendo a hipótese dela ser comandada, afugentar o acionador, o inimigo respondeu com fogo de presença”.

No início de julho, Sérgio de Sousa sai com o seu grupo de combate para montar uma emboscada em Chindorilho. A “Nó Górdio” já está a decorrer. A Berliet que seguia à frente estrondeia, segue-se uma emboscada, caíram na zona de morte o Unimog, uma Fox e um Granadeiro. Finda a emboscada retiram da Fox o condutor, tinha uma perna perdida, fora uma bazucada que lhe acertara. “Juntei os meus homens e fomos fazer uma batida ao local de onde partira a emboscada. Encontrei a uns trinta metros da picada, o capim pisado e um cadáver cuja cabeça terminava no maxilar inferior, daí para cima não restava nada. Devia tratar-se de um rapaz. Vestia calções curtos verdes e uma camisola às riscas brancas e azuis, calçava alpercatas e tinha ao lado uma Simonov e sob o corpo, presa à cinta, uma granada de bazuca”. A emboscada dura vários dias, regressam a Sagal. Deixa no diário a ideia de que o inimigo se está a escapar ao cerco, são largas as malhas por onde pode passar. Dias depois parte para nova operação, também relacionada com a “Nó Górdio”, nada de especial acontece. Durante os dias em que se manteve emboscado leu a Guerra Revolucionária, de Mao Tsé Tung. ´

A operação dura já quinze dias, começa-se a falar dela, há poucas ilusões do seu sucesso:
“Segundo as imprecisas notícias que chegam até aqui, comando do cerco norte, as bases foram tomadas, mas nelas apenas se capturou material, os ocupantes fugiram; quanto à pretendida desorganização, não foi atingida. Os guerrilheiros continuam a contornar a população. Perspetivas: a operação termina, os guerrilheiros reabastecem-se de armamento em pouco tempo e caem-nos em cima com toda a forma da organização que não lográmos destruir”. Lê, chegam-lhe jornais, cartas do pai e dos amigos, dá nota dos filmes estreados, da vida musical, de uma exposição de Vieira da Silva, da morte de Elsa Triolet. E confidencia: “O autor deste diário é um indivíduo tímido. Por isso faz gala em ser pedante, antipático, descortês. Ostenta um certo luxo e finge que não conhece alguns conhecidos, socialmente desfavorecidos. Para os colegas arvora um ar superior, polido, frio; para os mais íntimos e familiares mostra-se indelicado. Amigos, tem muito poucos e é-lhes extremamente sincero, deixa-os partilhar de toda a sua verdade; gosta de abrir-se. De si mesmo procura esconder o bluff que é; na realidade, opina sobre livros, teorias, ideologias, conceitos, acontecimentos de que apenas sabe o nome; tem muito medo de ser desmascarado”.

A Operação “Nó Górdio” chega ao fim, Sagal deixou de ser a pior zona, agora é Nangololo, escreve. E a 30 de julho regista uma nova perda, o Furriel Rocha pisa uma mina antipessoal. Deixa um comentário no seu diário: “Pertence a uma família remediada, é eletricista, os seus horizontes são uma vida pacata, no emprego, ao lado da moça de quem gosta e em contacto com a família. Para realizar este futuro foi-lhe imposto como condição realizar a presente guerra. Ele jogou a sua sorte e perdeu. Se a mim me acontecesse a desgraça que o vitimou, eu merecia-o. Porque sei o crime que cometo empenhando-me numa guerra colonial. Tal como as cadências aceleradas e os acidentes de trabalho são exemplos da violência da classe exploradora sobre a trabalhadora, também os estropiados e mortos desta guerra colonial são casos da violência da classe que a quer, sobre aquela que é obrigada a fazê-la”.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23599: Notas de leitura (1491): Monumenta Missionaria Africana – coligida e anotada por António Brásio; Agência – Geral do Ultramar - Lisboa / MCMLXV (1) (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23409: A(r)didos e mal pagos: histórias pícaras da nossa guerra (4): peripécias de um aspirante miliciano, no Depósito de Adidos de Luanda, um mês e tal à espera de transporte para o CTIG (João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt, PTE / BENG 447, Brá, 1967/71)

1. Mensagem do João Rodrigues Lobo, ex-alf mil, cmdt do PTE (Pelotão de Transportes Especiais) / BENG 447 (Bissau, Brá, dez1967/fev1971)


Data - 4 jul 2022, 15h06
Assunto - Passagem por Depósito de Adidos

Ao ler artigos interessantes de camaradas nos Depósitos de Adidos (em Lisboa, Bissau e Luanda) comecei a relembrar alguns episódios (pícaros?), que espero tenham  interesse para publicação Talvez sim, talvez não, conforme comentários que li no Blog. (Mas aqui vão.) (*)

Estive no Depósito de Adidos de Luanda um mês e tal. (Novembro/Dezembro de 1968). Estava no QGA (Quartel General de Angola) quando fui mobilizado e fui imediatamente para o Depósito de Adidos a aguardar transporte para a Guiné. (Que não havia directo!)

Solução era  vir a Lisboa e daí para Bissau, mas quando?!... E em navios fretados, quanto tempo mais?

E, enquanto lá permanecesse, continuava como aspirante miliciano pois só seria promovido (a alferes) à data do embarque.

Solução: Lá arranjei uma “cunha” na Força Aérea, tendo conseguido lugar num avião que vinha para Lisboa e com escala na ilha do Sal. Dificil,  pois estava lotado para o destino Lisboa. 

Além disso ainda consegui trazer a minha mala com um pouco mais do peso permitido. Mesmo assim tive de vir com as botas calçadas para aquela não pesar mais... Enfim, mais uma semanita e tal na ilha do Sal, onde na messe me roubaram uma boa camisola, no dia da partida, até me levarem para Bissaslanca num avião de carga da FAP, entre caixotes e demais material.

No Depósito de Adidos, em Luanda, a situação era sempre diferente e interessante, pois por lá passavam todos os camaradas em deslocações, à espera de transportes, para consultas, etc, muitos deles “pirados” e outros muito “pirados”.

Assim, eu embora tenha conseguido não dormir nem comer lá (e raramente lá estava durante o dia), sempre tinha de fazer serviços e nesses dias por lá ficava.

Alguns episódios que recordo:

Todos os dias era recebido pelo Oficial de Dia um telefonema do QGA  (não me recordo do nome da secção, seria ComLad?), para saber da situação no DA. (Esse telefonema era de horário aleatório.)

Certa noite, estando eu lá a dormir, por estar de serviço juntamente com  um Alferes, foi recebido o tal telefonema do QG, o Alferes dormia e ressonava e por mais barulho que fizesse não acordava. Resolvi então atender e, logo do outro lado, o militar disse a senha, à  qual eu teria de responder com a contra-senha. Mas qual contra-senha? 

Não notei que ficasse muito admirado por eu não saber. (Porventura já seria habitual naquele DA.) Lá me explicou que eu teria de ver um cartão (que ainda demorei a encontrar) e, consoante a senha, ver no quadriculado como havia de responder. 

Lá fiz isso e dei-lhe a contra-senha errada! Perguntou-me de imediato o nome e quem eu era, ao que respondi de imediato. Qual o meu espanto quando ele se identificou como capitão e disse que me conhecia muito bem, pois tinha estado comigo no QG. Após alguma boa cavaqueira, “perdoou” o lapso, lá se despediu e me poupou uma provável “porrada”.

Era habitual, todas as noites, haver uma ronda de jeep por algumas unidades de Luanda, com passagem e apresentação aos oficiais ou sargentos de dia das mesmas. Normalmente a ronda era feita por sargento ou furriel e praças. 

Bela noite, estando eu de serviço, o alferes, o sargento e alguns praças escalados já não se encontravam no DA, uns por entretando terem tido transporte, e outros se encontrarem “desenfiados”. Resolvi fazer a ronda sozinho, conduzindo o jeep, o qual consegui, e sendo “compreendido” pelos camaradas das outras unidades. Correu bem, nada se passou no DA,  nem na ronda e regressei ao DA, tudo calmo, nada se passou...

Outra noite, também de serviço e também sem o alferes, fui acordado por um camarada pois nas traseiras de uma casa civil com muro para o quartel, um homem gritava a bom som, pedindo ajuda porque o queriam matar. Com uma escada que encontrámos, trepei até ao cimo do muro e vi-o muito exaltado dizendo que à frente da casa estava um individuo a ameaçá-lo, por causa da mulher, e se nós poderiamos ajudar. 

 Lá lhe disse que era assunto civil e que chamasse a polícia, mas ele dizia que tinha medo de entrar em casa pois o outro poderia estar também a tentar entrar pela frente. Lá ficou mais sossegado quando eu lhe disse que iria mandar o jeep de ronda passar à frente da casa dele. O jeep passou, mas não foi visto homem nenhum, nem mais vimos ou ouvimos o fulano, nem nessa noite nem nunca mais, e também porque nunca mais passei frente à casa dele.

E, por agora é tudo, até ao próximo post.

Abraço, 
João Rodrigues Lobo.
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sábado, 19 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23094: A galeria dos meus heróis (44): O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... Um filho de pai ausente, que foi quase tudo na vida, não se achava mau ator de todo mas que, afinal, não sabia como sair de cena... (Luís Graça)

 

Angola > Luanda > Ilha de Luanda > Esplanada do famoso Restaurante Coconuts > 19 de Setembro de 2004 > Em cima da praia, praticamente privativa. Com seguranças, em todos os lados. O apartheid do dinheiro, como em qualquer outra parte do mundo não inclusivo.  Um ou outro russo, com dentes de ouro... Dos cubanos, não se dá conta...Um almoço de peixe grelhado com vinho ficava então, no mínimo, entre 40 a 50 dólares (o equivalente ao salário mínimo na função pública, em Angola nessa época!)... Estive em Luanda, pela primeira vez,  em setembro de 2003.  Ainda no tempo das "vacas gordas": 1 dólar equivalia a c. 85 kwanzas. O cacete (tipo de pão) custava cerca de 20 kwanzas (julho de 2004). Hoje, em 19 de março de 2022,  1 dólar equivale a 455,99 kwanzas (5,4 vezes mais). E 1 euro vale 504,07 kwanzas. Nesse tempo ainda eram raras as caixas de multibanco. Comprávamos  kwanzas na rua às  quínguilas que puxavam um maço de notas sebentas do farto peito que servia de cofre. A grande maioria da população activa de Luanda (três quartos) estava então na economia informal ou paralela.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2004). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O autor, em Contuboel, c. junho/julho de
 1969.  Foto: Luís Graça

A galeria dos meus heróis >  O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial

por Luís Graça


– O que é que se leva desta vida ?!... Boa pergunta, a tua, mas, se queres que te diga, não sei, não sei mesmo responder-te... Assim, de chofre, tenho dificuldade em responder-te… Enfim, para te dar uma resposta, digamos, que não seja politicamente correta...

– Prazeres terrenos, coisas boas da vida que não haja no céu… Não é a tal pergunta de um milhão de dólares!...


– Sim, mas... o que me apetecia logo responder-te é aquilo que me parece mais óbvio: não levas nada, "mô camba" [meu amigo], fica cá tudo!… Mas tudo mesmo!... Casas, chácaras, automóveis, iates, contas bancárias, amantes, mulheres, filhos, netos, amigos, camaradas, memórias, vaidades, tainadas... 

E deu uma das suas saudáveis gargalhadas, que me vieram confirmar que aquele era mesmo o "mô camba" Jorge Levi

 Eh!, mano, lembrei-me dos iates, mas ficas a saber que não tenho (nem quero ter) nenhum.

– Talvez a pergunta seja cretina… E, depois, a verdade é que...ainda não saiste de cena, como tu gostas de lembrar!

Aí o Jorge,  um "caluanda" de alma e coração,  deu um murro na mesa, querendo talvez, com esse gesto (que não era de irritação),  exprimir um misto de espanto e de alívio, e quase fazendo saltar as chávena do café e os respetivos pires mais os balões da aguardente DOC Lourinhã:

– Porra, ainda não morri, nem sequer arrumei as botas!...É verdade, estou vivo e ainda sou capaz de vir contigo à Ericeira comer uma caldeirada... Já não vinha cá, ao "Puto", há muitos anos!... Sou mais velho do que tu, mas ainda não me acho com idade para encerrar para balanço, fazer o deve e o haver da puta da vida...


Infelizmente ele tivera  de voltar à terra dos seus avós não pelas melhores razões, mas sim por motivos de saúde... 


– Bem, ainda sou cidadão português... e europeu. Às vezes esqueço-me deste privilégio, que em Angola ou no Brasil vale ouro... Eu costumo dizer, tenho o melhor de dois mundos...Nasci em África, o berço da humanidade...  

Procurei tranquilizar o meu amigo, o "caluanda", com quem convivera no Seminário Maior, durante dois anos, antes de irmos para a tropa e depois, para a guerra na Guiné. Voltara a encontrá-lo em Luanda, há uns largos anos atrás, em 2004. E, mais recentemente, em Lisboa, onde ele, de passagem,  me procurou no sítio onde eu trabalhava.


Em 2015, ele viera expressamente de Luanda, onde também tem casa, na Maianga,   para ouvir em Lisboa a opinião de um reputado urologista, que o tranquilizou, relativamente à gravidade do seu carcinoma da próstata,  e o encaminhou para uma conhecida clínica em São Paulo. Embora reservado, o prognóstico não era assim tão mau quanto se temia no início. 

– Não vou morrer desta merda, mas tenho que submeter-me a  um tratamento rigoroso em São Paulo  – disse-me ele,  descontraído, nesse fim de semana, já não me lembro qual, do mês de setembro de 2015, no fim do verão, em que o convidei-o para almoçar comigo. 

Escolhi uma coisa que eu sabia que ele gostava, uma caldeirada de peixe em terras do Oeste estremenho, na Ericeira, que tinha a vantagem de ficar às portas de Lisboa, e que ele conhecia do tempo da tropa, quando passara por Mafra, no Curso de Oficiais Milicianos. No dia seguinte, ou no princípio da semana, partiria para São Paulo (onde, de resto, já residia a maior parte do tempo e tinha o grosso dos seus negócios).

Quis, também, de certo modo, retribuir a hospitalidade com que ele me recebera na ilha de Luanda, nesse ano já distante de 2004. Eu estava alojado numa casa de hóspedes, ternurenta, de estilo colonial, dos anos 20 do séc. XX, a Soleme, dirigida por umas simpatiquíssimas e adoráveis senhoras, manas de um conhecido general, próximo do Edu. Mas foi na rua, na Maianga, no sítio mais inverosímil do mundo, que eu me cruzei com o Levi, e foi ele que, espantosamente, me reconheceu.

– Bolas, estás na mesma! – interpelou-me ele, descaradamente.

– Só com... quarenta anos a mais!

– Dá cá um "candando", um abraço do tamanho da distância que nos separa no tempo e no espaço! 

Agora na Ericeira,  com o grande oceano Atlântico à nossa frente, retomámos a nossa  longa conversa na ilha de Luanda.  
 
– O que é que se leva desta vida ?... Perguntas tu, e bem, e eu volto a responder-te: Nada. 

– Se ainda fosses cristão... – acrescentei eu.

– Sim, se eu ainda fosse cristão, remeteria isso para o juízo final. Aí, sim, todos temos de prestar contas, crentes ou não crentes. E eu já tenho o bilhete comprado para a última 
viagem... Só não fiz a mala... nem pus de lado os mantimentos para a viagem, como faziam os antigos egípcios.

Não tinha perdido  o sentido de humor que eu sempre lhe conhecera, apimentado com o gosto da linguagem vernácula. E eu retorqui-lhe:

– Temos todos bilhete comprado ou reservado para o barco de Caronte... Mas acreditas nessa, do além ?


– Já não tenho idade para voltar a acreditar... Perdi a fé, na altura de ir para a tropa... Ou fizeram-ma perder.  Fui batizado, em criança,  por força do lóbi materno, com grande desgosto do meu avô e do meu pai, que eram militantemente ateus ou agnósticos, nunca soube qual era a diferença...

– Somos todos cristãos, de uma maneira ou de outra, até os ateus e os agnósticos. Todos temos uma matriz cristã... Não há como fugir ao nosso caldo de cultura judaico-cristã... Gosto de repetir que somos todos cristãos, 
 socioantropologicamente falando, uns "cristãos velhos", outros "cristãos novos"... E tu deves ser "cristão nivo", pelo apelido de família... Vá lá,  responde  à pergunta... – disse-lhe eu, em tom de mais de  galhofa do que de proviocação.

– Não  me conheces o suficiente, tivemos muitos anos afastados. E eu mudei, como todo o mundo... E mudei muito, Hoje sou como a enguia, refugio-me em subterfúgios, silogismos, desculpas mal esfarrapadas... Se calhar sou demasiado cobarde para te responder com franqueza…

E aí contemporizei eu, mais uma vez:

− Também não quero ser o teu confessor. Se invertêssemos os papéis, eu também ficaria  à rasca para te dar uma resposta brilhante, sincera e sobretudo convincente... Iria refugiar-me, como tu, nos lugares comuns... Mas hoje sou eu o entrevistador. Ou o santo inquisidor, se preferires...

E acrescentei, para lhe lisonjear o ego que eu sabia que era bem maior do que o meu:


− De qualquer modo, quero aqui deixar expresso o meu agradecimento pelo tempo de antena que me concedes... ainda por cima num mau momento da tua vida que, felizmente,  há de passar...  Sei que abriste uma exceção... no ano [, 2015,] em que fazes os setente anos e decides tirar uma sabática... Passas os teus negócios a um dos teus filhos "brasileiros", é isso ?!...


− Mais brasileiros do que angolanos ou portugueses, os meus filhos. Nenhum deles conhece Portugal, para desgosto meu... E de Angola, só Luanda e o Mussulo.... Nisso, fui um mau pai, os meus filhos pouco ou nada  sabem das minhas raízes... Tive pouco tempo para eles....

E depois de um gole da aguardente DOC Lourinhã, acrescentou: 

− Quanto aos meus negócios, no Brasil, estão agora limitados ao imobiliário, em S. Paulo, onde investi umas massas valentes na boa altura. Com a crise,  é bom ter património.  E se tens grana, compra... Quanto à minha sabática, se queres que te diga,  é apenas uma forma de ganhar tempo ao tempo, como se tal fosse possível... É uma corrida onde estou em desvantagem.

− Estamos todos em desvantagem, Jorge,  na corrida contra o tempo!...

E eu prossegui, explicando-lhe uma das razões de ser do nosso "almoço de trabalho"... A outra razão era de "saudade" e de "amizade".

− Acredita, estás aqui por uma boa causa... E alguém há de pagar o almoço... Já te expliquei, por email, a natureza do meu trabalho de investigação sobre histórias de vida de gente que andou no seminário e fez a guerra colonial...

– Pois seja, como queres. Mas não vejo onde e a quem o meu caso possa interessar.  Sou um caso atípico, deixa-me prevenir-te. De resto, continuo a ser um gajo porreiro, mesmo acabado, ou à beira do fim de prazo de validade... 

– Qual quê ?!... Somos velhos amigos, condiscípulos e só depois camaradas de armas, se bem que eu não goste da expressão. Por outro lado, nunca nos encontrámos na Guiné. Espantoso: vamo-nos encontrar em Luanda, estava eu a caminho do Hospital Josina Machel / Maria Pia, aonde eu fazer uma visita de estudo. Estava em Luanda num curso de administração hospitalar... Lembras-te  do nosso encontro ?!

Ele fez que sim com a cabeça, e eu prossegui:

– É verdade... São demasiadas cumplicidades para uma conversa íntima sobre o sentido último da vida... Passei grande parte da adolescência à volta desta estúpida questão existencialista... Anos que, afinal, não vivi!... Mas tu é que foste o sortudo, tu é que tiveste uma vida aventurosa, cheia de emoções, em pelo menos três continentes, entre o Velho e o Novo Mundo...

Depois de uma breve pausa, para molhar os lábios com a nossa aguardente DOC Lourinhã, no final da refeição, o Jorge Levi disparou:

– É muita bondade tua. Dás-me uma dica. Vou começar por aí... Nunca tinha pensado nisso, se calhar vivi uma vida por empréstimo, esta vida que eu vivi talvez não fosse minha mas dos personagens que criaram para mim… 

– Quem ? O destino ?

– Não sei quem, só sei que tudo  é teatro, afinal, citando o Machado de Assis do "Dom Casmurro"...

– Como assim ?!... É verdade, todos temos várias máscaras, desempenhamos vários papéis, podemos até ter vários heterónimos, como o pobre diabo do Fernando Pessoa que ouvia vozes e acabou por morrer a falar sozinho, entre duas bicas e um bagaço…

– Quero eu dizer: não escolhi, foram mais as vezes que eu segui a única picada que me apareceu pela frente. Noutras deixei-me levar pelas circunstâncias. A única exceção terá sido a entrada no seminário, na altura em que nos conhecemos...  

– Exceção ?... – perguntei-lhe eu. – Sempre me pareceste muito autodeterminado, mais seguro do que eu dos "caminhos do Senhor"... De resto, no Seminário Maior, eras o nosso herói, secreto, invejado: uma "vocação tardia", algo de muito bem amadurecido, e ainda por cima vinhas de um meio social favorecido... Até se dizia, ao ouvido, que o "caluanda" (a tua alcunha) era afilhado do Cerejeira... Havia gajos que te invejavam por detrás e adulavam pela frente... Muito mais importante para nós, “sotainas negras”, tinhas mundo, tinhas viajado, tinhas conhecido gajas... Nenhum de nós tinha mundo, e seguramente a maior parte eram virgens...

– Fazes-me rir!... 


– Mais tarde, muito mais tarde, voltei a encontrar-te, em Luanda, homem de negócios, até então de sucesso no plano empresarial, profissional, social e até amoroso... E ainda bem que não chegaste a padre, tinhas estragado muitas famílias... Sempre foste um sortudo com as gajas...

– Não me lixes! – intimou-me o Jorge. – São mais as vozes que as nozes. E depois não confundas sucesso com dinheiro. Ganhei muita grana com os negócios no Brasil e até em Angola, no tempo das vacas gordas... Mas também perdi, estupidamente, muito dinheiro... Calotes, casinos, festas, investimentos errados, desvalorização da moeda, subornos, luvas, prendas, "gasosa"... Sobretudo muitas luvas e muitas prendas. Sou realista, dirás tu que sou cínico:  o dinheiro compra tudo, menos a felicidade...

– Por favor, não digas isso aos pobres... E os negócios do coração ?

– Da cama, queres tu dizer... Vou-te ser franco, tenho pouco a esconder nesta altura do campeonato: tive gajas porque tinha dinheiro...

– ... E lábia!... Muita lábia, disseram-me!

– Seja, dinheiro e lábia ! – concordou o Jorge.

– Não é preciso mais – anui eu. – E alguma "tusa", vamos lá...Mas até isso agora se compra na farmácia.


– "Cumbú", dinheiro,  graveto, meu menino, sobretudo dinheiro para poder sustentá-las!... Não há "fodas" de borla, só por amor... O meu avô paterno, que eu ainda conheci bem, era um mulherengo, eu segui-lhe o rasto... Mas só gosto de brasileiras, dengosas, com cheirinho a cravo e canela...

– "Gabrielas"?!... Mas, já agora, quem era esse teu avô ?

E lá fomos mergulhar na história da família paterna... Esse avô, esse "pretoguês",  era um alentejano de Elvas, “um português das Arábias”:

– Levou o meu pai, aos quinze anos, a Badajoz, aos touros e às "putas"... Não fiques chocado: eram outros tempos... Estamos a falar do início da década de 1930. E pôs ao meu pai o nome de Amato Lusitano... Ainda estou a tentar saber porquê... mas cheira-me que tenha a ver com a sua, nossa, costela de judeus sefarditas, e depois cristãos-novos à força...

– O Amato Lusitano foi o médico português mais famoso do séc. XVI, João Rodrigues de Castelo Branco, descendente de judeus sefarditas, nascido em Castelo Branco, ao tempo de Dom Manuel I, o "Venturoso"... 

Falou-me com afeto e admiração desse avô, republicano dos quatro costados,  com quem ele ainda conviveu, em vida, em Angola, e que era "o seu ídolo de infância". Quando era "candengue", miúdo, viveu algumas temporadas com esse avô paterno em Nova Lisboa.

Esse avô era um homenzarrão, de barba pelo peito, e grande bigodaça, maçónico, anticlerical, professor primário. Deixara crescer a barba quando foi mobilizado para Angola, durante a I Grande Guerra. Participou nas "campanhas de pacificação do sul de Angola", onde foi ferido.

O Jorge sabia pouco desse período, sabia que o avô tinha estado integrado nas forças expedicionárias, sob o comando do general Pereira d’Eça (1852-1917), que combateram e derrotaram não só os alemães como o rei dos cuanhamas, o célebre Mandume (1894-1917) cuja bravura e carisma ele, de resto, passou a admirar. A sua paixão por Angola viria, ao que parece, desse tempo.

– O que te lembras mais desse teu avô ?

– Era uma rabo de saia, tinha olho azul como eu, impetuoso como eu, ainda mais garanhão do que eu, seguramente muito mais feliz e otimista do que eu... Melhor ser humano, seguramente, do que eu. Um homem com princípios e valores, que eu tentei seguir, mas que perdi ou atropelei nas trapalhadas da vida...

– ...Portanto, posso concluir que os amores são daquelas coisas que se levam desta vida...

– Amores e desamores – atalhou o Jorge. – Acho que não tive nenhum grande amor na minha vida... Nem as mães dos meus filhos... Gajas, sim, mas cansava-me delas depressa... porque eram possessivas, ciumentas, intriguistas, sacanas...

– Todavia, casaste ?!...

– Sim, como quase todo o mundo… Não há cão nem gato que não se case e descase... Em Angola, tal como no Brasil, é de bom tom ter uma "legítima" e uma amante. Ou duas, porque a uma delas  já estás a pòr os patins... Mas eu suportava mal a rotina do casamento e das relações estáveis... Ao fim de quinze dias a comeres bife, com batatas fritas e ovo a cavalo, já suspiras por umas ostras ao natural com um bom champanhe francês ou por uma feijoada mineira, acompanhada de umas caipirinhas...

– Tudo na vida é rotina! – comentei eu. – E o casamento tem muitas armadilhas, ao retardador.


– Casamento ? O casamento mata a paixão e o amor, e gera o ciúme... O casamento é só para dares uma mãe e um pai ao teu filho... 

– Ou é o preço que se paga para reproduzires os teus genes egoístas ?!...

– Ou isso !... No meu caso, de vez em quando voltava a casa, tipo caixeiro viajante, para "marcar o ponto"... pelo menos, na época em que viajava muito, França, Brasil, Angola, África do Sul... Por favor, não graves isto... E desculpa-me esta linguagem rude, franca, machista, como diriam as feministas, portuguesas ou brasileiras, mas eu sou desse tempo...

– Ficou por Angola, o teu avô Levi ?...


– Não, foi ferido, no célebre "quadrado de Mongua" em agosto de 1915 e penosamente evacuado para Luanda, onde se restabeleceu. Milagrosamente... 

– Regressou  a Lisboa, não ?!

 Sim, sim... Dedicou-se depois ao ensino e á divulgação do mutualismo e do cooperativismo. Assistiu, entretanto, com grande desgosto, à progressiva decadência da República e ao triunfo da Ditadura Militar em 1926 e à consagração do Estado Novo, já com Salazar. Por desgosto ou saudade, ou as duas coisas, retorna a Angola, instala-se em Nova Lisboa [hoje Huambo], como professor primário, na primeira metade dos anos 30. A minha avó ficará, nos primeiros anos,  na capital do Império com as raparigas. Era também professora. O meu pai era o único rapaz, o mais velho…

– Fala-me do teu pai…

– Esse seguiu também as peugadas dos meus avós. Depois do curso do magistério primário, foi para Barcelona tirar belas artes. Era o artista da família... Em 1936, com 22 anos, alistou-se nas milícias da República. Era anarquista. Louco. 


– Esteve na guerra civil espanhola ? – indaguei eu.

– Sim, e foi ferido. Ironicamente, não em combate contra os franquistas, mas sim numa "rusga" punitiva realizada pelos comunistas, imagina!... Matavam-se uns aos outros, aqueles filhos da mãe! 

– Safou-se ?

– Por um triz! – continuou o meu interlocutor. – Escapou à justiça dos "rojos" e dos "blancos"... Antes da queda de Barcelona, e logo depois dos bombardeamentos aéreos da cidade, o meu pai, que tinha passaporte português, pirou-se para França, creio que por volta de abril ou maio de 1938. Daqui para a Bélgica e depois depois Holanda e finalmente Angola. Eu nasceria seis anos mais tarde, já no final da II Guerra Mundial, em 1945.

– Passou incólume pela teias da PIDE ? 


– Não me perguntes como... A PIDE ou a sua antecessora (tinha outro nome, de que eu já não me recordo)...

– A "Pevide", até 1945, a PVDE, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado.

– Olha, não sabia... Tinha pouca ou nenhuma implantação em Angola, essa "Pevide",  à época do meu avô... E mesmo a PIDE. Isto antes da guerra colonial... O território era vasto e os do "reviralho", sobretudo brancos e mestiços, mas também os negros "assimilados", estavam dispersos... e não incomodavam ninguém. Lisboa ficava bem longe. Alguns eram velhos desterrados por razões políticas ou de delito comum. Olha, tens o exemplo do Zé do Telhado, ainda hoje lembrado com respeito em Angola...

– A prova é que PIDE não previu nem preveniu, como lhe competia, os trágicos acontecimentos de 1961...

E eu emendei:

– Prever, devia ter previsto. Prevenido, era mais difícil, não era tarefa que llhe competisse.

– De resto, havia mais liberdade em Angola, que era uma colónia,  do que na capital do Império... – acrescentou o meu amigo.
– E éramos mais liberais nas ideias e nos costumes.

– O teu pai chega a Angola, quando ?... – pergunto eu.

– Talvez em finais de 1938 ou princípios de 1939, já não posso precisar. Em Amesterdão, apanhou um navio inglês, misto de carga e passageiros, que fazia a rota do Cabo. Os avós maternos do meu pai, que viviam em Lisboa, com alguns meios de fortuna própria (o sogro do meu avô era médico, também republicano), devem-lhe ter mandado dinheiro, "cumbú",  depois que fugiu de Barcelona. 

– Chega a Angola... e depois ?

– Desembarcou em Luanda, onde o navio inglês se reabastecia, e foi visitar os pais, em Nova Lisboa, decidindo depois percorrer Angola, de lés a lés, de Cabinda ao Cunene.

O Jorge conta-me que o pai, Amato Lusitano, para sobreviver e custear a expedição, fez de tudo um pouco: fotografia, pintura, ilustração, jornalismo. E até safaris. Era um bom aguarelista. Ganhou dinheiro a vender aguarelas e retratos a carvão aos fazendeiros ricos e até aos sobas, aos administradores, aos caçadores profissionais e aos missionários, que só conheciam a sua região. 

– Pelo caminho teve várias ocupações de ocasião, fez contactos e amizades.  E se calhar filhos... Era um sedutor nato. Conheceu a minha mãe numa fazenda de café do Uíge. E cantou-lhe a canção do bandido... Foi caçador no Leste, mestre escola em missões protestantes no Sul, capataz de fazendas de café no Norte , e boémio em Luanda. Acabou por se perder em Luanda... Álcool, sexo, droga, sabes como é... A decadência.

Enfim, escreveu para jornais em Luanda e até em Lisboa, sob pseudónimo, notas etnográficas sobre os usos e costumes dos diversos povos de Angola. Havia então uma grande curiosidade sobre a África negra, que viria a ser reforçada, em 1940, com a Exposição do Mundo Português, "de que foi comissário um grande africanista, o capitão Henrique Galvão, se não estou em erro, e que o meu avô conheceu", acrescentou o Jorge.

Depois da eclosão da II Guerra Mundial, o pai do Jorge, o Amato Lusitano, fixou-se em Luanda, na Maianga. Como tinha o curso do magistério primário, e havia falta de professores, não lhe foi difícil arranjar emprego. Mas não gostava de ensinar.

– Era uma homem de ação, e um gajo da noite, o meu pai. Não tinha pachorra para os putos da escola nem para os inspetores escolares  nem muito menos para os filhos. Por outro lado, amava os grandes espaços, as chanas e os desertos... Eu nasci, como te disse, antes do final da guerra…

– Um pai ausente ?!... – insinuei eu.

– Sim, em boa verdade, cresci sem pai, sem o afeto, o colinho, de um pai. A minha mãe sofreu muito com as escapadelas e as infidelidades dele... Ela, sim,  era uma verdadeira matriarca, uma mulher de forte personalidade, uma verdadeira angolana... Fiz o 7º ano no antigo Liceu Salvador Correia. E depois vim para Lisboa, para casa dos meus tios-avós maternos, que tinham um palacete na avenida da República, e que eram muito católicos. Viviam bem. Um deles era cónego da Sé e muito influente junto do Cardeal Cerejeira. Em contacto com a malta do colégio Pio XII e da JUC, aproximei-me da Igreja. E, de repente, no meu 2º ano de agronomia, tive uma coisa parva, daquelas que não têm explicação, uma crise mística, senti que Deus me chamava para padre e me confiava a grande missão de salvar a humanidade...

– Porra, uma vocação tardia?!... – interrompi eu.

– Sim, se quiseres... Entrei com facilidade no Seminário Maior, com a bênção do tio-avô cónego e do Cardeal Cerejeira, que me tratava por "meu filho"... Ainda me lembro de ter ido lá ao palácio dele, o palácio do patriarcado,  ali no Campo de Santana,  se não erro,  fui ao beija-mão com o meu tio-avô cónego...

– Mas foi sol de pouca dura, não ?!... Refiro-me à crise mística...

– Fiz dois anos de teologia, como sabes. Nas férias grandes, não resisti ao pecado da carne. Andei enrolado com uma gaja francesa que, ainda por cima, me pregou um valente "esquentamento". 

– Acontecia aos melhores. E depois ?...

– Já não era o primeiro, para quem, como eu, nascera e  crescera em África... Lá havia maior liberdade de costumes. Ou, se quiseres, maior promiscuidade sexual... Andava-se nos musseques com segurança, pelo menos até ao final de 1960...Enfim, perdi a vontade de salvar a humanidade, deixei de ouvir a voz de Deus a chamar-me, senti-me expulso do Paraíso como o  Adão,  ao ver o meu diretor espiritual a apontar-me o dedo e a por-me fora do seu gabinete... Fiquei especado no meio do corredor!... Ingénuo, havia lhe contado tudo, desculpando-me que  a carne era fraca, que eu era pecador, para mais impenitente, incapaz de mostrar arrependimento.... 

– Estou a imaginar a cena!... Foi aí que saíste.

– Não me expulsaram, tinha boas cunhas. Eu é que tomei a iniciativa de sair, fiz as malas e nem disse adeus àquele ninho de lacraus, de mentes perversas e falsos moralistas... Foi aí, que começou a debandada, poucos do meu tempo chegaram a padre, se é que chegou algum, com os ventos do Vaticano II a soprarem já forte. Claro, passei por uma crise de identidade, andei na noite de Lisboa e, para curar-me, acabei por ir para a tropa e alistar-me como voluntário nos paraquedistas. Mas chumbei. E foi um duro golpe na minha autoestima...

– Abreviando a história, foste para a Guiné como alferes miliciano...

– De cavalaria, imagina!

O Jorge, depois de mais um gole, da segunda rodada de aguardente DOC Lourinhã, explicou-me o que eu já adivinhava: o tio-avô cónego, a rogo da sua avô materna (em Lisboa) e da sua mãe (em Luanda), conseguiu "dar um jeitinho", através de capelão-mor das Forças Armadas.

– Afinal, cunhas sempre as houve... – atalhei eu.

– Acabei por ir, em rendição individual, não já para um esquadrão de cavalaria, que era em Bula ou Bafatá, não me lembro, e ficar no Quartel Geral, na Amura, a lidar com mapas e papéis... Um tédio, como deves imaginar, para um gajo que sonhava com os paraquedistas!... O que me valia era a 5ª Rep, o Café Bento, onde passava uma boa parte do dia... Ainda te lembras, do Bento, junto à Amura ? Era o maior "mentidero" da Guiné...

E continuou a sua narrativa:

– Fui de férias em julho de 1970, e aproveitei para dar um salto a Luanda, para matar saudades da minha cidade, da minha mãe, restante família e amigos, incluindo alguns dos antigos condiscípulos do liceu, que ainda restavam, poucos, por lá, e que eu não via há vários anos, desde que fora para Lisboa estudar... Uns estavam na tropa, outros na guerra, de um lado ou do outro... Um ou outro, mestiço, iria  chegar mesmo a general nas FAPLA na segunda guerra da independência.

Bissau, comparada com Luanda, nessa época, era uma vilória. Luanda crescera com a guerra e sobretudo com o notável desenvolvimento económico dos anos 60, coincidindo com a guerra (que não chegava lá). Era das cidades mais prósperas e animadas de toda a África...


– Devias ter conhecido Luanda nessa altura!...– fez-me ele inveja.

Foi então que o Jorge Levi travou conhecimento com uma brasileira do Rio de Janeiro (ou de São Paulo, já não posso precisar), a Zinha, que tinha vindo de Paris, com o Maio de 68 no currículo. E um curso de ciências sociais, creio que etnologia, mal tirado na Sorbonne.

Embora fosse filha de "coronel" (o pai era um grande fazendeiro no Nordeste), a Zinha lutava contra a ditadura militar, como de resto muitos dos jovens universitários, artistas e intelectuais brasileiros dessa época. Em trânsito por Luanda, a brasileira queria viajar para o sul de Angola e para a Namíbia, para fazer um trabalho de pesquisa sobre os ovambos, com uma tradição histórica de resistência à colonização europeia, alemã,inglesa e portuguesa... Mas as autoridades portuguesas e sul-africanas cortaram-lhe as asas e as veleidades…

– Mal a conheci, fiquei seduzido pelo seu "canto de sereia". Passei com ela um mês maravilhoso na ilha de Luanda e no Mussulo... Chamava-lhe a "garota de Ipanema", estava então na moda a canção do Tom Jobim e Vinícius de Morais... 

– Estou a ver o filme... Acabadas as férias...

– Quando chegou a hora de voltar a Bissau e ao tédio da minha Rep, na Amura, ela conseguiu convencer-me a acompanhá-la até Durban, onde dizia que tinha amigos, de origem indiana, ativistas políticos. Queria conhecer o pulsar da luta contra o apartheid... Tomámos um avião e acabámos por aterrar... no Rio de Janeiro, onde ela possuía um apartamento, ainda do tempo de estudante. 

Pôs a mão na testa, e exclamou:

– Porra, eu devia estar muito bêbado!... E estava. Sem me dar conta, acabava de me tornar desertor do exército colonial... Que leviandade!... Há amigos e familiares meus que nunca acreditaram nesta história do arco da velha, e continuam a pensar que eu desertei por razões políticas.

– A sério ?!... Não tiveste noção da gravidade dessa tua levi...andade ? Durban ou Rio de Janeiro, a distância era a mesma de Bissau.


– Em boa verdade, eu era um puto mimado... nesse tempo. Acredita, não tinha qualquer intenção de desertar, nem tinha razões para isso: estava em Bissau, no bem-bom, na chamada guerra do ar condicionado... Nunca tinha saído de Bissau, fora de Bissau só conhecia a estrada para Bissalanca... Nem sequer cheguei a ir a Nhacra comer ostras e camarões...

– Em conclusão,  um acidente de percurso.

– Nem mais: enganei-me no avião!

– E os teus pais e restante família ?

 Claro, a minha mãe, quando o soube, ficou fula comigo. O meu pai, esse, nem chegou a saber. Estava já separado da minha mãe e era-lhe indiferente saber o que eu fazia ou deixava de fazer. Recordo-me de ele me dizer quando fiz os meus 18 anos: "Agora és maior e vacinado, toma bem conta de ti, que eu não duro para sempre".  

E prosseguiu:

– O meu avô, paterno, esse, teria ficado radiante, se ainda fosse vivo. O meu avô materno, por seu lado, mal o conhecia, pouco íamos à fazendo dele no Uíge, por causa da distância... Deixámos de lá ir depois de 1961, com a guerra... O meu avô vinha a Luanda, uma vez por outra, mas aborrecia-se logo. Ele não era da cidade, era um homem do mato. E tinha, à boa maneira angolana, várias famílias... e eu terei ainda, seguramente, por lá, largas dezenas de tios e primos...

– E como foi depois a vida no Brasil ?

– Um ano depois, ou nem tanto, a minha fogosa companheira passou à clandestinidade... Desapareceu, pura e simplesmente... Deixou-me um bilhetinho na porta da geladeira: "Amo-te muito, mas mais a liberdade do meu Brasil. Ti cuida. Ciao”.

– Tiveste que ir à vida... ou melhor, ir à procura doutra  "garota de Ipanema"...


– Não gozes, tem pena de mim... Tive uma enorme dor de corno, porque o PCB, o Partido Comunista Brasileiro,  roubara-me a namorada... Talvez tenha sido..."a mulher da minha vida", se bem que eu nunca casaria com ela... A pobre da Zinha será encontrada, mais tarde, penso que já em 1973, morta com um tiro na nuca, nua, violada, na lixeira de uma favela... Pelo que consegui apurar, mais tarde, fora executada por um esquadrão da morte.

– Porra, lamento muito!... 

E depois de uma pausa:

– Foi então que te mudaste para São Paulo...

– Mudei de ares, e em boa verdade precisava de ganhar dinheiro... O
 patacão da guerra e a mesada da mamã (na realidade do avô do Uige, que cedo recuperou a fazenda depois dos trágicos acontecimentos do 15 de março de 1961 e montou um grupo de milícias de autodefesa)  haviam-se acabado há muito... Mudei-me para São Paulo... Lá conheci gente, portugueses, que se opunham ao regime do Estado Novo e à guerra colonial, incluindo alguns marinheiros que haviam desertado em França... Um deles abriu-me as portas do mundo dos computadores..., coisa de que eu nunca ouvira falar.

Nessa altura estava já em grande expansão, a mecanografia, as "main frames" e a informática de gestão. O Jorge Levi encontrou emprego numa conhecida multinacional, de origem francesa. Depressa aprendeu o essencial do negócio ... Acabou por abrir uma empresa de importação de equipamentos informáticos... Mais tarde, negociaria também em armamento, e em equipamentos eletrónicos para fins militares (carros de combate, transmissões, sistemas de defesa anti-aérea, etc.). Tudo de origem francesa. 

   Um salto de gigante, Jorge, temos de concordar.

Não se abriu comigo sobre esse período mais "obscuro" da sua vida, em que, segundo me deu a entender, terá chegado a vender a alma ao diabo... Pudor ? Má consciência ? Sigilo ? 

– Sabes como é, o segredo é a alma do negócio e em países como Angola os negócios de guerra são segredo de Estado... Posso só acrescentar que fiz algumas coisas que envergonhariam o meu avô paterno (para não falar do meu pai, que esse deixou cedo, em Barcelona,  a bandeira preta da revolução, o gajo era anarquista, como te disse)... Negociei com ditaduras militares latino-americanas... mas também com os cubanos, os angolanos, os franceses e por aí fora...

Muitos anos depois, vou encontrá-lo, ao Jorge Levi,  no centro de Luanda, por um bambúrrio, por um feliz acaso da sorte.  Combinámos um encontro no Coconuts, no outro  dia  
As suas feições não tinham mudado muito, apesar do tempo decorrido...

– Como o Mundo é Pequeno!...

Dessa vez, na praia à frente ao Coconuts, pus-me a mirá-lo de perfil, e reconhecê-lo por detalhes como o  nariz aquilino e o olho azul, de judeu sefardita, com provável ascendência holandesa… Os seus antepassados, cristãos-novos, terão ido para Amesterdão no séc. XVII. Alguns, poucos, ainda regressariam a Portugal, duzentos e tal anos depois, na segunda metade do séc. XIX, com o triunfo do liberalismo...


Embora discreto nesta matéria, dava então a entender que tinha bons conhecimentos no MPLA e até na "entourage do Edu" (ou do "nosso mais velho", como se dizia respeitosamente nessa época, em Luanda)... Tinha também boas ligações aos franceses e até aos russos, depois da queda do muro de Berlim. Não tinha, de resto, grandes preconceitos, de natureza político-ideológica, cultural, ética ou religiosa, quando se tratava de "negócios... sujos", mas "chorudos" como os da indústria da guerra.

– Que o meu avô me perdoe!– e levantava as mãos aos céus, esquecendo-se que o avô era ateu ou agnóstico..


Nunca mais voltara a Portugal, a não ser a seguir ao 25 de Abril, para regularizar a sua situação militar e pedir um passaporte. Beneficiou da amnistia aos refractários e desertores. Tinha tripla nacionalidade, angolana, portuguesa e brasileira... Era tratado como VIP na terra onde, de resto, nascera... 

Fez questão de lembrar que dois generais, que se notabilizaram na tal segunda guerra da independência, andaram inclusive com ele no liceu Salvador Correia... Um deles ajudou-o a recuperar a casa da mãe, na Maianga, ocupada a seguir à Independência ou ao 27 de Maio de 1976...

No dia seguinte ao nosso encontro, ele ia deslocar-se ao Huambo para prestar uma discreta homenagem ao seu saudoso avô. Apesar da guerra, e da destruição da cidade, os seus ossos ainda lá estavam, no cemitério local. Mandara compôr e ajardinar a campa que, milagrosamente, escapara à sanha dos homens da UNITA. Tinha lá um antigo empregado que zelava pela boa memória do patrão Levi...

– Ele era do MPLA, o teu avô ?

– Se sim, nunca mo disse abertamente... Era um nacionalista, isso sim.  Se quiseres, era o que se chamava um "compagnon de route", um companheiro de estrada... Mas como era branco, "tuga", e era funcionário público,com uma boa casa e uma boa horta, e tinha uma família numerosa para sustentar, incluindo criados (que ele considerava como parte integrante da família), nunca tomou posições públicas que o comprometessem aos olhos das autoridades portuguesas, e nomeadamente da PIDE, que certamente o vigiava, embora discretamente, em Nova Lisboa. Claro, apoiou Norton de Matos, Humberto Delgado...

E esclareceu:

– Nunca fui (nem já irei) à Torre do Tombo, tendo estado a viver fora de Portugal estes anos todos, mas é bem possível que o meu avô tivesse ficha na PIDE... Apesar de ser um herói da I Guerra Mundial, com uma cruz de guerra... Mas era amigo de muitos futuros nacionalistas angolanos... Ele ensinou a ler e a escrever a alguns dos melhores quadros e dirigentes, da região do planalto, não só do MPLA como da UNITA...

Em tom de desabafo, e com toda a sinceridade, o Jorge confidenciou-me:

– O meu querido avô não chegou (e ainda bem) a conhecer a independência da terra que ele tanto amava e que fez sua. Muito menos passou pela provação da devastadora guerra civil que se seguiu...  Morreu cedo, ia fazer setenta anos, em 1965. Teria morrido de desgosto, se visse os angolanos a matarem-se uns aos outros, com russos, cubanos e sul-africanos pelo meio. E se soubesse que o seu neto querido também havia contribuído, indiretamente, para isso...

– E o teu pai ? Os teus pais ? 


– Do meu pai perdi-lhe o rasto, disseram-me que se tinha radicado na África do Sul, logo a seguir ao 25 de Abril ou já depois da Independência, ninguém me soube dizer ao certo. Vivia com uma "cabrita"... As nossas relações sempre foram distantes, para não dizer difíceis. Para mim, morrera há muito... Na realidade, ele  já morreu  há uns bons anos atrás
, na África do Sul, mais ou menos com a idade que eu tenho hoje...  Nem sequer o vi, quando estive de férias da Guiné, em 1970. A minha mãe, essa, é retornada, não é assim que vocês dizem, aqui no "Puto" ?!... Ainda é viva, com 90 anos feitos, vive com uma das filhas... Uma grande senhora! Eu chamava-lhe a "rainha do Congo"... Portuguesa dos quatro costados, saudosa do império, salazarista, católica, apostólica, romana!... Mas uma santa, com lugar garantido no céu!

– E tu ?... Afinal, o que vais levar desta vida ? Ou contar ao São Pedro, à hora de lhe bateres à porta ? 
– insisti eu, com humor e ironia.

– Depois da nossa conversa, longa mas agradável, aqui à beira-mar, na Ericeira (de que já não me lembrava de nada), e depois da tua aguardente, que não fica atrás do "cognac" dos franceses, cheguei a esta conclusão definitivamente provisória ou provisoriamente definitiva....

– Fiquemos pelo definitivamente provisório...

– Como queiras... Eu é que não consigo imaginar outro guião para o filme da minha vida. Fui de tudo um pouco: santo e canalha, herói e cobarde, místico e safado, rico e pobre... Já não sou o gajo que  tu conheceste nos anos sessenta e tal, e que voltaste a encontrar em 2004 ... Depois disso, a vida tem-me corrido mal, a começar pela saúde, pelo amor e pelos negócios... Se a história fosse outra, eu hoje não saberia dizer quem sou ou quem fui... Estaria no divã do psiquiatra, com uma tremenda crise de identidade... É pena que um gajo não tenha uma segunda oportunidade...  Aí juro-te, que seria santo!

 Afinal, a vida é uma peça de teatro  e não somos nós que a escrevemos – tentei eu amenizar a conversa.

 –  E eu, sem nunca ter sido um gajo genial, acho que até nem  fui mau ator de todo...

– Não, não fostes nenhum canastrão! – arrematei eu. – A não ser porventura daquela vez em que foste levado pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... O maior problema de pessoas como tu, com uma vida 
– como eu hei de dizer ? 
,  tão cheia, tão preenchida, é como saber sair de cena, sair do palco e das luzes da ribalta, com dignidade, discrição, estilo, humanidade... e humildade.

E em jeito de conclusão, ainda meti a minha colherada:

Aliás, é o nosso problema, meu e teu: como é que a gente aprende a despedir-se, com tempo e vagar, da Terra da Alegria, para citar o meu poeta preferido, o Ruy Belo, que também era das Católicas, acho até que foi da "Opus Dei" ?!...

– Não concluis nada, porque esse vai ser privilégio meu... Não me levas a mal, mas eu faço questão de pagar  a conta, mesmo estando tu na tua casa, que também é minha... Foi a conversa mais agradável e inteligente que eu já tive nestes últimos anos. E a caldeirada estava deliciosa. Estou-te muito grato por isso!  Deste-me vida e ganas de voltar a viver.

E não esteve com meias medidas, sem me dar tempo de reagir, puxou de um maço de notas, gesto que eu já tinha  visto em 2004, no Coconuts, pagou a conta e deixou uma boa gorjeta. 

Não voltei a vê-lo, ao Jorge Levi. E o meu último mail, enviado para a caixa de correio da sua conta no Brasil,  foi devolvido há uns largos meses atrás, sinal de mau augúrio. Onde quem quer que ele agora esteja,  espero que ainda me possa ler, e se ria das "baboseiras" que aqui escrevi a seu respeito, uns anos depois... 

Mas juro que é a verdade e só a verdade, mesmo que nomes de pessoas e de lugares possam eventualmente estar trocados, para respeitar o direito,  do  "mô camba", meu amigo, condiscípulo e camarada Levi, ao esquecimento... É o último direito, que ele e eu temos, o direito ao esquecimento.

© Luís Graça (2022)

Lourinhã, agosto de 2019. 
Revisto, 3 de março de 2023.
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22497: A galeria dos meus heróis (43): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte (Luís Graça)