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terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21811: (Ex)citações (385): A família Soncó, o Regulado do Cuor e a situação da Guiné-Bissau (João Crisóstomo / Mário Beja Santos)

1. Mensagem enviada pelo nosso camarada João Crisóstomo ao outro nosso camarada Mário Beja Santos com conhecimento ao Editor Luís Graça, datada de 22 de Janeiro de 2021:

Caro Beja Santos,
Tentei fazer/escrever um comentário ao teu post P21795[1], de hoje, 22 de Janeiro, mas nesse comentário não consegui incluir cópia duma carta, que acho pertinente ao assunto/pergunta de que queria falar.

Por isso envio-te este comentário por E-mail, com conhecimento ao comandante de todos nós, Luís Graça, na esperança de que ele te faça chegar este comentário, pois me parece que raramente lês os meus E-mails, o que é mais que compreensível, pois assim como sucede com o Luís Graça, eu não sou capaz de imaginar como vocês têm tempo para tantas coisas sobre que escrevem e em que estão envolvidos todos os dias. Mas o facto de eu não ter capacidade para tanto não quer dizer que outros não a tenham e vocês os dois são disso prova. E, como diz o ditado: “contra factos não há argumentos”, embora o ex-presidente “trump" (letra pequena) e muitos dos seus crentes seguidores tenham tentado provar que não é bem assim. Mas com ele fora de circulação, esperemos que volte o bom senso e “ditados" como este voltem a ter a devida aceitação.

Mentiria se dissesse que leio tudo o que escreves; mas porque andaste por terras que a ambos nos ficaram no coração e ainda hoje nos são queridas, sempre que vejo menções destas, especialmente Missirá e Porto Gole não deixo de ler essas tuas memórias. Por vezes, como sucedeu hoje, essas descrições memórias são fortes demais para mim e tenho de me socorrer do lenço de bolso para controlar estas emoções.

Hoje foram algumas fotos deste post que começaram por chamar a minha atenção: as fotos a "subida da palmeira” ; a "panorâmica da velha Tabanca de Bambadinca”; a foto do “local em Mato Cão onde se fazia a vigilância das embarcações” …Que saudades e emoções me fizeram logo sentir! E depois comecei a ler:

“foi um grande choque encontrar Bissau a caminho do descalabro, as ruas esburacadas, os prédios em ruínas, a Guiné a viver da ajuda internacional, a classe dirigente enriquecida e o povo muito pobre.” e… à entrada do hospital “viste chegarem os familiares dos doentes com colchões, havia camas nas enfermarias, mas os colchões estavam literalmente podres. Tu sentias uma infinita tristeza com um espetáculo tão deplorável.”

O ponto alto dessa estadia foi a visita a Missirá,… “tu entraste em transe, a procurar reconhecer os locais que percorrias com tanta assiduidade, ficaste impressionado por ter voltado vida a Cancumba, durante a guerra não havia vivalma, e a alegria do reencontro com amigos, registei o abalo que sentiste quando abraçaste Bacari Soncó, que será mais tarde régulo do Cuor, a conversa havida com a população,… Antes, tu percorreras Missirá sempre a soluçar, à procura de vestígios do passado, a despedida foi um sofrimento ainda mais penoso, até porque foi nesse momento que chegou Cherno Suane, o teu guarda-costas, alguém fora de bicicleta chamá-lo a Gambiel, e quando o viste foi outro choro irreprimível, porque ele logo disse que sabia por Deus que um dia o virias buscar, um irmão ajuda sempre o seu irmão, era para ele impensável que eu não o trouxesse para Portugal, fora castigado porque pertencera aos Comandos,…”

Como não hei-de ficar abalado? Descrições como esta fazem-me sempre imaginar coisas: neste momento esta pessoa que tu descreves sou eu, voltando à Guiné procurando saber o que é feito de tantos que eram meus amigos… especialmente do meu guarda-costas… quem sabe não faz parte das muitas vítimas do abandono a que foram sujeitos depois da independência e da vingança dos “vencedores" que logo se seguiu… 

Como posso eu deixar de sentir mágoa e revolta… gostaria de um dia voltar lá; mas ao mesmo tempo sei bem que não sou capaz.

Antes, no mesmo texto leio: “Regressas a Lisboa em 1970, tens vários militares feridos, uns a pôr próteses, outros em tratamento. Outra gente da Guiné ia aparecendo, é o caso do Abudu Soncó, o filho mais novo do régulo, que apareceu em 1996,”

E aqui eu fiquei confuso: Eu conhecia o filho do régulo de Missirá, de nome António Eduardo Quebá Soncó, ferido um dia em combate, mesmo ao meu lado; o destino da bala podia ter sido eu, mas foi ele que a apanhou, numa operação em que tomei parte. Na minha mente jamais o esqueço e o seu grande sorriso permanente e contagioso. Era ele, assim se dizia, que ia um dia suceder a seu pai como régulo de Missirá. 

 Eu pensei que ele era o filho mais novo do régulo. Ferido, teve de ser evacuado para Bissau e daí foi para Portugal. Em 1966 eu vim de férias a Portugal e fui-o ver no hospital; e no dia seguinte voltei lá com uma mala que ele me disse precisava para as suas coisas pois ia ser enviado para a Alemanha, para lhe porem uma perna artificial. Ele queria conhecer Lisboa antes de partir; e no mesmo momento apesar do seu estado peguei nele e levei-o a visitar diversos pontos da cidade. Ele jamais esqueceu isso; quando voltou à Guiné escreveu-me de Bambadinca, que já tinha visto a família etc. Foi a última carta dele. Esta carta e outras que recebi dele guardo-as com o mesmo carinho com que guardo outras cartas de minha família e amigos cuja amizade muito enriqueceram a minha vida.

Como falas do "Abudu Soncó, filho mais novo do régulo” que apareceu em 1966… depreendo que eu estava enganado: então o Quebá Soncó não era o filho mais novo; muito menos sabia que o irmão dele tivesse conseguido ir/ficar em Portugal e o Quebá nunca me ter falado dele. Ou pelo menos eu não me lembro. Talvez esta minha confusão seja resultado da idade que nos faz destas…

Obrigado pelas muitas memórias que me fazer sempre reviver. Não esqueço que foi graças a ti - e a este blogue - que consegui encontrar e ainda ver o meu/nosso querido amigo Zagalo, antes de ele nos deixar.

A Vilma, (de nome “Knapič," não esqueças… e portanto ainda tua distante familiar e compatriota eslovena,) quis saber a quem eu estava a escrever e pede para a não esquecer o abraço, por enquanto apenas virtual, é portanto de nós dois. Vamos a ver se quando formos a Portugal tu arranjas tempo para um abraço mesmo como deve ser!

João e Vilma

********************

2. Resposta de Mário Beja Santos enviada ao João Crisóstomo, no dia 25 de Janeiro, com conhecimento ao Blogue:

Meu estimado João, 

Votos de muita saúde, tanto para ti como para a Vilma e restante família.
Aqui me tens pronto a satisfazer a tua curiosidade relativamente à família Soncó. Antes, porém, permite-me que te dê uma explicação quanto a silêncios. Cada um de nós reparte-se por causas, deveres auto-instituídos ou por imperativos de vária ordem. No ano passado, fui forçado a alterar rotinas, vendi a casa de Pedrógão Pequeno, seguiu-se o tormento do recheio. 

No Natal de 2019, a Cristina entrou no hospital entre a vida e a morte, um mês e meio depois, já num quadro de dependência e com grandes atribulações na mente, foi para um lar, onde está a minha irmã, vítima de AVC. Tive que ajudar a minha filha a tratar da papelada e a pôr ordem na casa, a todos os títulos é a coisa menos agradável do mundo. Acresce que mantenho quatro colaborações semanais no blogue, diferenciadas, e pretendo mantê-las com alguma exigência de qualidade. 

A despeito da pandemia, tenho prosseguido o meu trabalho à volta de um livro em construção "Guiné, Bilhete de Identidade", uma antologia cronológica dos textos fundamentais da Guiné, entre o período dos Descobrimentos do século XV até Sarmento Rodrigues, é um tamanhão de trabalho. A pandemia requer novos ritmos e não é fácil adaptarmo-nos na nossa idade a comunicar pelo computador e pelo telefone, pertencemos a uma geração em que nos encontrávamos, tínhamos vida associativa presencial e o mais que se sabe. 

Havia que encontrar antídotos para as longas permanências em casa, atirei-me às limpezas, a redecorar paredes, a cozinhar. E a ter tempo para ler como nunca tive, já que o televisor parece estar organizado para nos causar angústia e roubar o futuro. Dentro dessas opções, tu e muitos amigos foram afetados pela falta de comunicação, a ver se me emendo. E vamos às questões que me pões, Quebá Soncó e Abudu Soncó.

Quebá Soncó, que tu conheceste e combateu ao teu lado, era o filho mais velho do régulo Malam Soncó, foi ferido na região de Madina, veio para Portugal e esteve na Alemanha onde se adaptou a uma prótese. Deficiente das Forças Armadas, nunca renunciou à nacionalidade portuguesa, voltou para Missirá depois da independência, obviamente que não podia ser régulo, em 1990, quando o visitei em Missirá na companhia de Maria Leal Monteiro e Francisco Médicis, recebeu-me calorosamente e apresentou-me ao seu tio régulo que eu não conhecia, passou todo o período da guerra no Senegal. 

Quebá vinha muitas vezes a Lisboa e encontrávamo-nos, o seu filho Bacari Soncó telefona-me com uma certa regularidade, trabalha na construção civil em vários países. 

Pois foi nesse encontro de janeiro de 1990 que voltei a ver Abudu Soncó, já homem, falando um português impecável, era professor primário, veio para Portugal em 1996, era insuportável estar dez meses sem receber e com vários filhos para sustentar. Atirou-se à construção civil, foi um daqueles muito enganados por patrões que tiravam dinheiro para a Segurança Social e que efetivamente não o depositavam nos cofres do Estado, já sofreu dois enfartes do miocárdio e daqui não pode sair, não há um cardiologista na Guiné, e tem medicação obrigatória. 

Nesse mesmo ano de 1990 e no ano seguinte, tive a alegria de reencontrar o valoroso tio de Quebá e Abudu, Bacari Soncó. Como podes ver nas fotografias, o jovem Abudu, fotografia que lhe tirei em Missirá e a fotografia de Bacari, que tenho no meu escritório. Em 2010, quando voltei a Missirá nos preparativos do meu livro "A Viagem do Tangomau" visitei o seu túmulo, era um amigo muito querido.

Creio que estão esclarecidos os Soncó, o régulo atual chama-se Karambá, através do Abudu faço-lhe chegar os livros que escrevo. Confesso-te que tenho saudades sem fim das pessoas e do chão, se o futuro reservar oportunidade de ainda ter saúde para voltar àquela terra onde me tornei homem, acontecerá nova romagem, a despeito daquela dor que provoca a miséria, a mão estendida, o perguntar por A, B ou C, e responderem-me que partiram para as estrelinhas, já assim aconteceu em 2010. Mas um Soncó volta sempre.

Abraço-vos, diz à minha prima eslovena que a Fátima e eu rejubilamos pela vossa felicidade, e a despeito de toda esta ausência, guardo-te no coração com a admiração que bem sabes,
Mário

Abudu é o 2.º menino a contar da direita, distinguia-se pela sua grande cabeça e o seu bonito sorriso
Bacari Soncó e Lãnsana, dois filhos de Quebá Soncó, quando fomos visitar a sepultura de Malam Soncó
Bacari Soncó, régulo do Cuor, tio de Quebá Soncó
_____________

Notas do editor:

[1] - Vd. poste de 22 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória

Último poste da série de 23 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21798: (Ex)citações (384): A evacuação do capitão paraquedista Valente dos Santos, no decurso da Op Grande Empresa (Manuel Peredo, ex-fur pqdt, CCP 122, 1972/74 / Moura Calheiros, ex-maj pqdt, 2º cdmt, BCP 12, 1972/74)

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20394: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (66): O nome do atual régulo de Canquelifá / Buruntuma (Jorge Ferreira / Cherno Baldé / Patrício Ribeiro)


Capa do do livro de fotografia "Buruntuma: 'algum dia serás grande', Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016).] (*): o fotógrafo, em 1961, ao lado do então régulo Sene Sané, que era tenente de 2ª linha. junto ao marco fronteiriço ("República Portuguesa: Província da Guiné"), na fronteira com a República da Guiné. Cortesia do autor.

O autor, Jorge Ferreira, ex-alf mil da 3ª CCAÇ (Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63), é membro da nossa Tabanca Grande, é um fotógrafo amador com mais de meio século de experiência, tem um página pessoal no Facebook, além de  um sítio de fotografia, Jorge da Silva Ferreira; as suas fotos de Buruntuma inserem-se na categoria da etnofotografia.


1. No passado dia 26 de novembro, mandei aos nossos amigos, em Bissau, Cherno Baldé e Patrício Ribeiro, duas mensagens, em separado, com o seguinte pedido de informação:

Cherno: lembrei-me de ti, que conheces bem o leste do teu país, o chão fula, a região de Bafatá e também a região de Gabu. (...)

Patrício: lembrei-me de ti, que andaste a "espalhar a luz" pelo leste, e em especial na Região do Gabu. (...)

(...) Temos um camarada, o Jorge Ferreira, que publicou um livro, notável, de fotografia sobre as gentes de Buruntuma, à data de 1961, quando ele lá esteve, como alferes miliciano da 3ª Companhia de Caçadores, sediada em Nova Lamego. "

Em Buruntuma tornou-se amigo inclusive do régulo Sene Sané, do regulado de Canquelifá, que abrangia o triângulo Buruntuma, Bajocunda e Piche, área de intervenção das forças comandadas pelo alferes Jorge Ferreira.

Acontece que o Jorge vai mandar, pela mala diplomática da embaixada portuguesa, dois exemplares do seu livro, autografados, um para o Centro Cultural Português, em Bissau, e outro para o régulo de Canquelifá / Buruntuma, que é (ou pensa ele que é) filho do Sene Sané... Ele precisa de saber o nome dele, para lhe fazer uma dedicatória. As fotografias têm um grande significado para aquelas populações, conforme o Jorge Ferreira já pôde comprovar.

(...) Tu, Cherno,precioso colaborador permanente do nosso blogue, deves por certo poder ajudar-nos... Vê então se consegues saber o me do atual régulo de Canquelifá / Buruntuma.

(...) Tu, Patrício, que conheces a Guiné como ninguém, poderás ajudar-nos... Vê então se consegues saber po nome do atual régulo de Canquelifá / Buruntuma.

2. No dia seguinte, com pouca diferença de tempo, recebemos, para felicidade do Jorge Ferreira, a informação pretendida: o nome do atual régulo de Canquelifá / Buruntuma (**)



(i) Cherno Baldé, 27/11/2019, 10h43:

Caro Luis Graça,

Falei há instantes com um colega de escola nos anos 70/80 e que depois se formou em Portugal nos anos 70/80, de nome Bacar Djanté, natural de Buruntuma, que me informou que o actual régulo de Paquessi ou Pakessi que abrange as aréas de Canquelifa, Camajaba e Buruntuma, é o Bacar Sané, um dos filhos do velho régulo dos anos 60.

Com um abraço amigo, Cherno Baldé


(ii) Patrício Ribeiro, 27/11/2019, 18h12

Boa tarde, desde os 34 graus de Bissau.

Fizemos alguns contactos para o Leste (sim, essa é uma das das nossas muitas zonas de trabalhos) , com pessoas nossas conhecidas.  Falamos com filho mais velho, do antigo régulo Sene Sané, José Bacar Sané, telemóvel nº  00254...119, morador em Canquelifa, é o actual régulo de Canquelifa e Buruntuma, já com alguma idade. (Foi antigo militar português do grupo de Marcelino do Mata).

Nomeou o seu irmão mais novo, Mama Sané ( telemovel nº 00 245...330), residente em Buruntuma, seu representante do seu regulado em Buruntuma.

O Regulado de Piche é desempenhado pelo marido de Djana Embaló, residente em Dara.

Em Piche, não há nenhum régulo.

Abraço, Patrício Ribeiro
Impar Lda - Energia, Bissau

(iii) Comentário do Jorge Ferreira [, foto de 1961, ao lado]: 

Obrigado, amigos e camaradas. Bem  hajam!

É caso para dizer: "O mundo é pequeno e a nossa Tabanca...é Grande!".
____________

Notas do editor:

 (*) Vd. postes de :

5 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19071: Vídeos de guerra (17): "Buruntuma, algum dia serás grande", de Jorge Ferreira, no You Tube, com música de Mamadu Baio

(**) Último poste da série > 14 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19783: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (65): Pedido de autorização para citações a inserir no livro sobre a guerra colonial, de Carlos Filipe Gonçalves, jornalista, cabo-verdiano, que foi fur mil, na chefia da Intendência em Bissau, de março de 1973 a agosto de 1974

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18248: Efemérides (268): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte II



Brasão da CART 1659 (Gadamael, 1967/68), "Zorba". Lema: "Os Homens Não Morrem"


Guiné > Região de Tombali > CART 1659 (1967/69 > Ganturé em 1967

Foto (e legenda) : © Mário Gaspar (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


Passaram 51 Anos: Chegada ao Largo de Bissau, 17 de janeiro de 1967 - Parte II (*)

por Mário Vitorino Gaspar



“… Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca…”

Álvaro de Campos
Gadamael Porto, 19 de Janeiro de 1967
(continuação)

“Não sou eu nem o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro”.

Mário de Sá-Carneiro

(...) Árvores de alguma altura abundavam, a população civil aproximava­‑se, querendo conhecer os novos vizinhos, enquanto um alferes se apre­sentava. Tinha ido em rendição individual e ficaria ainda com a nossa companhia, segundo afirmado pelo próprio. Um militar, praticamente sem farda, que também ficaria connosco, aproximou­‑se de mim:
– Meu furriel,  quer comer uns borrachos fritos?

Olhei­‑o admirado. Afinal aquilo não era assim tão mau. Até existiam uns pombinhos para comer!
– Onde estão eles?
– Ó furriel, venha comigo!

Olhei por cima dos meus ombros e vi as divisas camufladas. Retirei­ as mesmas e coloquei-as no bolso do camuflado. Enquanto reparava que aquele 1.º cabo que se tornara meu amigo,  não vestia nenhuma roupa do exército. Estava com uns calções de banho e uns chinelos de enfiar nos dedos.

Fritou os borrachos e umas batatas, Iniciei a minha primeira refeição em terras de África. Que pitéu! Não sabia a razão da escolha ter recaído sobre mim. Admirado para o tamanho das cervejas. Ouvi da sua boca:
– Essas são de seis decilitros.

O 1.º cabo confortava­‑me:
– Os borrachos não che­gavam para todos.

Estavam a tratar de fazer o jantar: – bacalhau com grão. Fora um milagre, uma bênção. Após a fome, a primeira fartura, porque estava disponível para trincar a bacalhoada, logo que estivesse pronta.

Começámos a instalar­‑nos e o alferes miliciano que ficara connosco – era de rendição individual – ia esclarecendo-nos. Fiquei numa barraca encostada ao abrigo onde ficou a minha secção, coberta com chapa zincada. Era decerto um forno. Havia uma cama e um caixote de munições que funcionaria como mesa-de-cabeceira, sobre a qual via uma garrafa de cerveja cheia de gasolina com um pavio enfiado no buraco da carica. Era a iluminação da minha nova moradia.

O furriel miliciano que eu substituía,  deixara ficar dois isqueiros Zipp  avariados com a inscrição “Movimento Nacional Feminino”. Nenhum dos isqueiros funcionava. Abri a mala e coloquei sobre o caixote que serviria de mesa-de-cabeceira, quatro livros:

“Os Cavalos Também se Abatem”, de Horace McCoy;
“Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes;
“A Fanga”, de Alves Redol; e
"Zorba o Grego”, de Nikos Kazantzákis.

Este último tinha muito a ver com a sigla da CART 1659: “ZORBA” – “Os Homens não Morrem”.

Começava a sentir cada vez mais o calor naquele clima doentio. Mesmo os atletas, não o eram. Não se respirava. Também era verdade que o fumo dos cigarros fumados tinha criado um autêntico nevoeiro naquele que era o meu quarto. O alferes Póvoa, o sargento Dores, eu e os furriéis miilicianos Jorge e Alves tínhamos ficado espalhados pelo aquartelamento, cada um com determinada missão defensiva.

Dei uma volta ao pequeno aquartelamento depois de despir o camu­flado e vestir uns calções, fiquei em tronco nu. Comido o bacalhau, prato do dia, fomos até ao bar, se é que aquilo era algum bar. Bebi e conversei com todos aqueles soldados­‑amigos­‑irmãos.

A população civil, por não nos conhecer, estava talvez indecisa, o que era normal, olhando-nos com um ponto de interrogação estampado no rosto. Tive o primeiro sorriso da bajuda que passava. O Alferes Miliciano Santarém ia-nos informando. Estávamos portanto no Setor S2, ficando a CART 1659 ligada para efeitos operacionais ao BCAÇ 1821, com sede em Buba.

Há uma via norte-sul ligando Aldeia Formosa com Cacine. Depois do Cruzamento de Ganturé – na mesma via – estão os aquartelamentos de Sangonhá, Cacoca e Cameconde, seguindo-se Cacine. No chamado Cruzamento de Guileje, há uma bifurcação para Mejo e Guileje. O terreno é plano, com cursos de água, sendo alguns deles de grande caudal.

A população insta­lada nas tabancas de Gadamael Porto, cerca de 400.  e em Ganturé (sede do Regulado), cerca de 200 indivíduos são beafadas. Existem ainda fulas, tandas, mandingas, landumas, bagas, nalús, sossos etc. Dedicam-se principalmente ao cultivo do amendoim, arroz e à caça e pesca principalmente para o abastecimento da tropa. As Praças “U” [, recrutamento local], pertencentes à Companhia, eram 31, existindo ainda 45 Caçadores Nativos.

Ficámos portanto junto da fronteira com a República da Guiné, Guiné ex-Francesa. Não estávamos preparados para aquele clima e éramos desconhecedores da cultura e língua daquelas gentes. Repetia-se a situação, era raríssimo ouvir­mos uma frase em português. Palavrões, sim.

Enquanto todos jantávamos, o dito bacalhau, ouviu-se o arrancar do motor e acenderam-se as luzes. Estávamos já instalados, e de serviço a tempo inteiro – 24 horas por dia – em terras da Guiné. A partir daquele momento tínhamos que estar preparados para tudo, até para termos que ouvir alguém gritar:
– Não estou aqui para enganar ninguém, estou aqui porque a casa quer e a casa manda!

Era bem verdade que a grande casa guiada por Salazar queria e ordenava.

Cansados, dormimos, os que não foram destacados para os primeiros serviços. De manhã seria um outro dia. Logo tivemos o primeiro grande problema: – não tínhamos um Padeiro na Companhia. Fui eu que solucionei essa enorme falha. Era filho e neto de Padeiro, tinha trabalhado desde muito pequeno, depois de deixar de estudar fora Padeiro, tinha inclusive a Carteira Profissional de Ajudante de Padeiro. Acompanhei o fabrico do primeiro pão de Gadamael Porto e Ganturé. Não era complicado fazer bom pão, a farinha era de boa qualidade e oriunda de França. Aliás toda a população civil fazia propaganda diária da moagem francesa, muita da roupa que vestiam era feita do pano de sacas de farinha.

Começámos a conhecer os hábitos daquelas gentes, acordando diariamente com o troar do pilão que desfazia miolos e as ideias. Verdade que, por vezes, escutasse o toque do clarim, mas por pouco tempo. Fiquei cativo, o único pensamento, mesmo cativo. Agrilhoado. Tinha de libertar dessa ideia.

Iniciou-se uma nova fase das nossas vidas depois de todos instalados. Ficaria connosco o alferes miliciano que deixara de fazer parte da Companhia que havíamos rendido, e que esperava nova colocação. Continuavam as desigualdades. Uma Messe com 2 alferes mili­cianos (o tal que entretanto esperava colocação,  o alferes Póvoa, comandante das tropas destacadas), 1 sargento e 3 furriéis milicianos.

Começam a surgir inúmeros boatos, postos a circular pelo PAIGC, focando ataques e destruições nas nossas tropas, criando-nos não só a nós como às populações uma certa insegurança. Queria acreditar que sofrer seria natural, as bonitas flores também sofrem. O meu grande problema era não gostar de arroz.

Como se tinham refugiado na República da Guiné muita população desde 1963, a nossa Companhia começou a exercer, quando estes visitavam a família, ações tendentes a persuadi-los a regressarem a Ganturé e Gadamael Porto, iniciando-se logo um aumento da população. A diminuta população existente dedicava-se ao cultivo de mancarra e à caça e pesca. O peixe denominado por nós da bolanha servia para o abastecimento próprio e para venda à nossa tropa. Portanto íamos começando a conhecer aquelas gentes, adaptámo-nos, melhorando progressivamente o espaço, que seria a nossa terra.

Na Messe tínhamos um gira-discos, que ali ficara e somente um disco. Este era – «Sony and Cher» – “I got you Babe”. Parecia mais estarmos nos "rangers", em Lamego, massacrados com as músicas “O sambinha chato” e “Et maitenant”.

Havia um refeitório para as praças, com mesas feitas de caixotes de munições e bancos improvisados.  As primeiras avionetas começaram a aterrar em Gadamael Porto, visto em Ganturé não existir uma pista, e a ansiedade do correio começou por ser natural. Tínhamos que ir à sede da Companhia buscar o correio: a carta e o aerograma com a notícia da família. Também o contacto com a namorada, noiva e madrinha de guerra. Quando avistávamos a avioneta, inventávamos desculpas para ir buscar o correio.

Como especialista de minas e armadilhas, após ordens do capitão que nos visitou [,em Ganturé,] comecei a rebentar, com petardos de trotil, aqueles monumentos enormes, construídos pelas formigas, chamados de bagabagas, que eu nunca tinha visto. As formigas construtoras de betão armado eram o exemplo vivo da unidade, a mesma união que pretendíamos no futuro para nós militares. Eram potenciais abrigos para o PAIGC em futuros ataques ao aquar­telamento, não muito longe da fronteira.

Mais tarde concluímos que não era bem verdade esta opinião, porque os bagabagas serviam também para nossa defesa. Começava a ambientar-me, e o trotil que inicialmente utilizara, depois de umas tantas mordidelas das formigas que assistiam não pacifi­camente à invasão das suas casas, foi substituído pelas granadas, colocadas nas fendas, e com uma corda não esticada, puxava junto da paliçada.

Esse trabalho, depois de milhares de mordidelas daquelas formigas que depois de arrancadas à pele, e amputadas das cabeças, continuavam a morder, foi a primeira grande experiência. Começara já a fazer o estrangulamento do cordão lento com o detonador, com os dentes (em lugar de utilizar o alicate estrangulador), como era ensinado no Curso de Explosivos de Minas e Armadilhas, em Tancos. Havia aprendido a fazer o estrangulamento, nome dado ao acto de ligar o detonador ao cordão lento, na direção das costas. Isto para não sermos atingidos no rosto, e principalmente nos olhos.

Lembrei as pragas bíblicas: – As águas convertidas em sangue; as rãs; os mosquitos; as moscas venenosas; a peste nos animais; as úlceras; o granizo; os gafanhotos; as trevas e o anúncio da 10.ª praga. Eram as primeiríssimas pragas que anunciavam outras. Cortou-se o capim (capinar) em toda a zona entre a paliçada construída com chapas de bidões e terra batida no meio, e o arame farpado. Começámos por limpar a zona mais à frente, cortando a vegetação e queimando-a. Já tínhamos uma visão mais ampla de toda a zona circundante do aquartelamento.

Os abrigos foram melhorados, consoante aquilo que os militares consideravam ser mais cómodo, e aqui e acolá iam surgindo uns pequenos luxos para o local. Tudo obra executada nos intervalos das primeiras patrulhas, estas bem perto dos aquartelamentos. Existiam furriéis milicianos em Guileje e Mejo, que tinham estado comigo noutras unidades na metrópole. Quando se abasteciam em Gadamael, passavam por Ganturé. Sempre que os encontrava bebíamos umas cervejolas. A cerveja era também camarada.

Todos os dias eram nomeadas equipas para trazerem água, sempre necessária, havia de ser transportada para o aquartelamento, puxada com um motor para bidões. Era utilizada para alimentação e a higiene de cada um. Não havendo casas de banho apropriadas, o banho era com um púcaro improvisado, feito de uma qualquer lata com uma asa de arame, que derra­mava aquele líquido precioso sobre o corpo. Outra equipa ia à lenha.

Os copos eram feitos de garrafas partidas com óleo queimado com um ferro em brasa. Depois de golpes na boca, concluímos ser importante raspar as arestas nas pedras ferrosas, visto a zona ser rica em minério de ferro. A água para beber  tinha que ser tratada com pastilhas e, mesmo assim,  sabia mal. Ao fim de poucos dias em terras da Guiné fizemos uma patrulha até à fronteira da República da Guiné, num dia de altíssimas temperaturas. Não estando preparados, após termos bebido toda a água, enchemos de novo os cantis num charco existente e colocámos pastilhas. A sede era demais e bebemos este líquido sem que as pastilhas fizessem efeito.

Logo de seguida Tropas “U” e Caçadores Nativos mijavam para o charco. Perdi o controlo, senti vontade de esmurrá-los. Bebera mijo, ou para ser mais claro, todos bebemos mijo. Prometi nunca mais beber água na Guiné, nem a filtrada. Esta experiência ajudou-me a saber como lidar com aquelas gentes.

Ouvíamos constantemente os rebentamentos na área, e nos intervalos o matraquear do pilão vivia também ali e depressa ficou a fazer parte das nossas vidas. Enquanto a grande parte das mulheres com as mamas escor­rendo até à cintura batiam com o pilão com um toque cadenciado a quem se juntavam as bajudas, algumas com a mama firme, nós aproximávamo-nos sorrateiramente destas últimas, procurando uma pequena oportunidade para lhes tocar no corpo. Éramos jovens.
– Mim cá nega! – respondiam após o primeiro toque nos corpos nus.

Habituámo-nos a respeitar esta vontade, que por vezes não era a delas. Visto Ganturé ser a Sede do Regulado, onde o Abibo Injassó era o régulo, também rei, que não permitia que as mulheres e bajudas tives­sem qualquer tipo de relações sexuais com os militares, muito embora se tentasse sempre que existisse uma oportunidade, principalmente com as lavadeiras. As operações sucediam-se, principalmente as patrulhas de apoio às companhias de Mejo, Guileje e Sangonhá, o abastecimento era descarregado em Gadamael Porto.

O régulo era o elo de ligação entre a nossa unidade e os informadores. Criou-se uma rede de Informação. O informador era um pau de dois bicos, para nós positi­vamente, muito embora algumas vezes se colocasse em causa a informação. Tínhamos assim conhecimento da movimentação do PAIGC na zona. O informa­dor era pago pela informação, e se ela fosse verdadeira, recebiam mais.

A nossa tropa ajudava a população civil, facultando por exemplo a utilização das viaturas para o transporte de cargas pesadas. Também existia algum emprego para os naturais, nomeadamente nas obras dos aquartelamentos e com o contributo das lavadeiras na lavagem da roupa. Fomentou-se o cultivo do arroz, mandioca, batata-doce, milho, árvores de fruto.

De Gadamael tivemos conhecimento que os reabastecimentos para a zona far-se-iam pelo dito cais do aquartelamento, que continuava a ser uma caixa de uma GMC. Tarefa ingrata essa visto que corria a CART 1659, o risco de passar a comissão a descarregar toneladas e toneladas de mercadoria, que caiam na água e se enterrava no lodo. Cada barco para descarregar era um problema, e a nossa tropa tinha que inventar para não se afundar na lama com um saco às costas ou uma caixa de cerveja. Muitas caixas ficavam perdidas no rio. Íamos a Gadamael Porto, principalmente para falarmos com os amigos. Tirávamos fotografias, algumas demonstrativas das más condições que possuíamos. De várias viaturas conseguíamos montar uma.

Fizemos a primeira Operação ao famoso “Corredor da Morte”, também denominado “Corredor de Guileje”.

_____________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18247: Efemérides (267): Faz 51 anos que chegámos a Bissau, no T/T Uíge, partindo depois numa LDM e num Batelão BM-1 para Gadamael (Mário Gaspar, ex-fur mil, CART 1659, Gadamael, 1967/68) - Parte I

quinta-feira, 9 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17119: (De) Caras (60): Buruntuma, 1961: o enfermeiro Cirilo e o professor primário Timóteo Costa... (Jorge Ferreira / Mário Magalhães)


Guiné- Bissau > Bissau > 2000 > O Hospital Nacional Simão Mendes (, antigo enfermeiro da época colonial, militante do PAIGC, morto em combate no Morés, e sobre o qual se sabe muito pouco).


Foto: © Albano Costa (2000). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Jorge Ferreira (ex-alf mil da 3ª CCAÇ,  Bolama, Nova Lamego,  Buruntuma e Bolama, 1961/63), autor do livro "Buruntuma: algum dia serás grande!... Guiné. Gabu, 1961-63" (ed. autor, Oeiras, 2016).

Data: 8 de março de 2017 às 17:04
Assunto: Buruntuma


Caro Luís:


Estou neste momento reunido com Mário Magalhães,  puxando pelos "neurónios", uma vez que a questão que levantas nos obriga a recuar mais de 50 anos. (*)

Quanto ao enfermeiro  Cirilo (???) o único facto a relatar é que (anteriormente à minha deslocação para Buruntuma), estando à frente do destacamento o Furriel Mário Magalhães [MM]. houve um acidente com arma de fogo casual e,  ao ser requisitado os serviços do Cirilo,  o seu comportamento
foi verdadeiramente exemplar (MM dixit).

O poderoso régulo de Canquelifá, que morava
 em Buruntuma, Sene: c. 1961/62.
 Cortesia de Jorge Ferreira (2016)
Não se deve ignorar que os enfermeiros [civis] tinham uma actividade extremamente nómada pois
diariamente visitavam as nabancas com enfermarias onde permaneciam os doentes com "doença do sono" ou "lepra". Convirá referir que a Missão do Sono da Guiné era uma estrutura sanitária altamente prestigiada cuja acção era relevada pela OMS [Organização Mundial de Saúde]..

Não há registo de qualquer acção "suspeita" do enfermeiro. quer durante a permanência em Buruntuma do MM ou de mim próprio.

Quanto ao dito professor Timóteo [Costa]  (???) não se pode ignorar que as nossas instalações eram frontais à escola, junto a ela funcionavam as nossas instalações sanitárias, e existia uma morança habitada por um português que tinha sido deportado por "razões políticas" e que se tinha "cafrealizado", vivendo com uma mulher nativa e vários filhos.

Por outro lado, não se deve ignorar que a Escola era frequentada diariamente pelos militares que não estavam envolvidos em "operações de nomadização" ou "escalas de serviço",  na sua função de apoio escolar.

Por tudo isto parece-nos que o professor  não tinha condições para se dedicar a actividades subversivas. Não se deve ignorar que o próprio Corpo de Guardas do Régulo  [Sene Sané] exercia uma importante acção de vigilância que muitas vezes pôs em causa a "lealdade" dos informadores do
responsável pelo posto da PIDE.

Já após o regresso do MM a Portugal, talvez por volta de 1966 (???), este foi abordado em
Lisboa pelo professor de modo muito cordial ...

E é tudo quanto se nos oferece dizer (MM / JF) sobre as questões que levantas no teu / nosso Blogue.

Saudações-

JF / MM


ET -  O MM manifestou todo o interesse em aderir à Tabanca Grande !!!


2. Comentário do editor LG:

Caros Jorge Ferreira e Mário Magalhães:

Como eu já tinha dito em comentário ao poste P17108 (*),  o resumo do teor do documento em causa, feito pelos técnicos da Fundação Mário Soares,  parece-me "ambíguo" ou "confuso": (...) "Assunto: Transmite um recado do enfermeiro Cirilo, que se encontra em Buruntuma como professor, sobre o trabalho em prol da luta de libertação."

Timóteo Costa, que é o remetente, transmite a Marcelo Ramos de Almeida ("Marcel", para a família e amigos mais íntimos...), representante do PAIGC em Koundara, Guiné-Conacri, um recado do Cirilo, enfermeiro, que está em Buruntuma, a fazer trabalho político para o PAIGC, ao mesmo
tempo que é enfermeiro pago pela administração portuguesa...

Sem dúvida que, e à falta de médicos, os enfermeiros da administração colonial tiveram um papel importantíssimo na luta contra a doença do sono, a lepra e outras doenças tropicais, bem como no apoio sanitário às populações, antes da guerra. Também é verdade que houve, de resto, vários enfermeiros aliciados pelo PAIGC (ou melhor, PAI) nesta época (1961)... O Simão Mendes é um deles. (Morreu em combate, e deu o nome ao antigo hospital central da época colonial, em Bissau)

Conclui-se, do vosso depoimento que o tal Cirilo, enfermeiro, era conhecido das NT e fez inclusive tratamentos a um militar ferido, num acidente com arma de fogo, da CCAV 252,  quando o  fur mil cav Mário Magalhães comandava o destacamento de Buruntuma, ainda antes da chegada do Jorge Ferreira (em outubro de 1961).

O Timóteo Costa é que é o professor que acaba de chegar a Buruntuma (em 1961, não sabemos em que dia e mês)... O Mário Magalhães tê-lo-á conhecido em Buruntuma, em 1961, e reconhecido em Lisboa, por volta de meados dos anos 60. Devia ser cabo-verdiano, (**)

Ficamos gratos a ambos pelo vosso depoimento e felizes pelo facto de o veterano Mário Magalhães (mais antigo que o Jorge Ferreira em Buruntuma, talvez dois ou três meses!...) aceitar o convite para integrar a nossa Tabanca Grande...

De facto, é uma "preciosidade" encontrar camaradas de 1961 (!) com "cabeças ainda frescas" como vocês, Jorge Ferreira e o Mário Magalhães!.. E mais do que isso: prontos a partilhar com os seus camaradas as memórias (boas e más) de há 50 e tal anos atrás!

Recorde-se que a CCAV 252 foi a primeira companhia de cavalaria a ser mobilizada para a Guiné (agosto de 1961 / outubro de 1963), tendo como unidade mobilizadora o RC 3. O Jorge Ferreira, por sua vez, foi mobilizado para o TO da Guiné em maio de 1961, estebve a dar instrução no CIM de Bolama, foi para Nocva Lamega, para a 3ª CCAÇ, e ao fim de 3 meses, é colocado no destacamento de Buruntuma, onde esteve 11 meses.  Antes de acabaer a comissão, em junho de 1963, ainda voltou ao CIM de Bolama.

________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 5 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17108: A guerra vista do outro lado... Explorando o Arquivo Amílcar Cabral e outros / Casa Comum (21): O professor primário e o enfermeiro de Buruntuma, em 1961... Trabalhavam para o PAICG na cara da PIDE ?!...

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Guiné 63/74 - P16182: Memória dos lugares (340): Gadamael, 1974: foto dos régulos de Ganturé e de Gadamael... O de Ganturé chamava-se Abibo Injassó (Carlos Milheirão, ex-alf mil, CCAÇ 4152/73, Gadamael e Cufar, 1974)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 4152/73 ( Gadamael e Cufar, 1974)  > 1974 > Régulos de Ganturé e de Gadamael... O de Ganturé chamava-se Abibo Injassó.

Foto: © Carlos Milheirão (2016). Todos os direitos reservados.




1. Mensagem de Carlos Milheirão [ex-alf mil, CCAÇ 4152/73, Gadamael e Cufar, 1974]


Data: 9 de junho de 2016 às 00:02


Assunto: Foto de Gadamael


Olá, caro Carlos Vinhal

Porque li um "post" em que alguém falava do régulo de Ganturé, lembrei-me de que tenho uma foto onde estão os dois (o de Ganturé e e o de Gadamael). Não me lembro de quem é quem mas lembro-me que o de Ganturé se chamava Abibo [Injassó].(*)

Abraço,

Carlos Milheirão (**)

 ________________

Notas do editor:



(...) A CART 494, comandada pelo então Capitão de Artilharia Alexandre Coutinho e Lima, embarcou em Lisboa, no navio Niassa, em 17 jul 63, tendo desembarcado em Bissau em 24 jul.

Esteve em Ganjola  (Norte de Catió), desde 17 set 63 (, desembarcámos às 11H00, ) até 15 dez 63, sendo a primeira tropa portuguesa a ocupar aquela localidade.

O baptismo de fogo foi no dia da chegada, em pleno dia (16h30); um grupo inimigo (IN) atacou com grande intensidade de fogo, aproximando-se a cerca de 3 metros, nas poucas zonas onde já estava instalado.

O IN teve 4 mortos confirmados, encontrados no meio do capim, com as respectivas armas: 2 Espingardas Mauser, 1 carabina e 1 pistola metralhadora PPSH. As nossa tropas (NT) não tiveram a mais pequena beliscadura; foi um dia de muita sorte.

Desde 17 set 63 até 28 mai 65, ocupou Gadamael, sendo a primeira Companhia naquela localidade. Neste período, construiu, a partir do zero, dois aquartelamentos: a sede da Companhia e o destacamento de Ganturé.

Realizou uma intensa actividade operacional, no sector que lhe foi atribuído, bem como a abertura e manutenção dos respectivos itinerários. Gadamael foi uma verdadeira plataforma logística, pois no seu “porto” desembarcavam os reabastecimentos para a Companhia e para as guarnições de Guileje, Mejo e Sangonhá/Cacoca, que davam origem às respectivas colunas, para os levar ao destino.

A Companhia realizou uma permanente acção psicossocial, no sentido de fazer regressar as populações, que se traduziu pelo regresso a Ganturé do seu Régulo Abibo Injassó e de 108 elementos da população.

Desde 28 mai 65 até 18 ago 65, esteve no sector de Bissau, onde desenvolveu acções de patrulhamento, acção psico social e assistência sanitária às populações.

A Companhia regressou a Lisboa em 18 ago 65, a bordo do navio Uíge; seguimos para o Regimento de Artilharia Pesada nº. 2, em Vila Nova de Gaia, onde o pessoal foi desmobilizado. (...)


domingo, 15 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15371: Álbum fotográfico de Alfredo Reis (ex-alf mil, CART 1690, Geba, 1967/69) (1): Eu e o meu pelotão em Cantacunda (Parte I)


Foto nº 1 > O Alf mil Alfredo Reis




Foto nº 2


Foto nº 3 > P Alf mil Alfredo Reis, ao centro


Foto nº 4  > O régulo e uma das esposas. [Julgo que o regulado era o de Manganã, 



Foto nº 5



Foto nº 6


Foto nº 7


Foto nº 8



Fotos: © Alfredo Reis / A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]


1.  As fotos são do ex-Alf Mil Alfredo Reis que, tal como o António Moreira, o Domingos Maçarico e o A. Marques Lopes, era da CART 1690.

Os quatro figuram na lista dos membros da nossa Tabanca Grande. O Alfredo Reis é veterinário, reformado, vivendo em Santarém.

As fotos chegaram-nos por intermédio do A. Marques Lopes. (Não é claro, para os editores, quem é autor das legendas, mas esperamos que o A. Marques Lopes ou o Alfredo Reis nos esclareçam posteriormente).

Além da sede (Geba), o Alfredo Reis esteve nos destacamentos, alguns dos quais, como Banjara e Cantacunda, eram os piores "buracos" do CTIG na época.  (LG)





Lisboa > Jantar de Natal 2007 > Os quatro magníficos da CART 1690, todos eles alferes milicianos... Ao fundo, estão o Domingos Maçarico, à esquerda, e o Alfredo Reis, à direita. Em primeiro plano, está o António Moreira, à esquerda, e o António Marques Lopes, à direita. Com os quatro juntos, a CART 1690 faz o pleno em matéria de alferes milicianos... (LG)


Foto: © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.


(,,,) Mensagem, de Janeiro de 2008, do nosso querido camarigo A. Marques Lopes, ex- Alf Mil At Inf, CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro) (1967/69) (*):

(...) Tenho-vos falado muitas vezes da CART 1690, sobre a qual há alguns postes no blogue da Tabanca Grande. Já fiz também referência aos alferes que por ela passaram. Mas quero, agora, falar-vos mais em pormenor destes gloriosos alferes, que é como nós próprios nos designamos, porque a nossa glória é continuarmos juntos. É bom que os conheçam pessoalmente. Aqui estão eles, num jantar do Natal de 2007, em Lisboa:

(i) O Domingos Maçarico (ainda um parente afastado do Luís Graça...), nascido na Praia de Mira, é engenheiro agrónomo e membro da Administração do Grupo Espírito Santo;

(ii) o Alfredo Reis, de Santarém, é veterinário e está reformado (embora pratique ainda);

(iii) o António Moreira, de Idanha-a-Nova, é advogado em Torres Vedras e [fez parte, no triénio de 2008/2010] do Conselho Geral da Ordem dos Advogados;

(iv) o A. Marques Lopes é, como sabem, coronel reformado [, fazendo parte dos primeiros cinco primeiros membros da nossa tertúlia, hoje Tabanca Grande: eu, o Sousa de Castro, o Humberto Reis, o A. Marques Lopes e o David Guimarães, por esta ordem cronológica]...

Como todos, também temos a nossa história.

Jovens e estudantes - o Domingos Maçarico no, então, Instituto de Agronomia de Lisboa (conheceu lá o Pepito), o Alfredo Reis no Instituto de Veterinária de Lisboa, também assim chamado então, o António Moreira na Faculdade de Direito de Lisboa e o A. Marques Lopes na Faculdade de Letras de Lisboa - fomos apanhados para frequentar, em Janeiro de 1966, o Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra.

De lá saímos, em Julho desse ano, como Atiradores de Infantaria. Andanças por vários lados, a seguir (Lamego, Amadora...), e tornámos a encontrar-nos no RALIS (Regimento de Artilharia de Lisboa), que nos mobilizou para a Guiné, a 4 de Dezembro de 1966.

De 6 de Dezembro deste ano a 23 de Fevereiro de 1967 estivemos no GAGA2 (Grupo de Artilharia Contra Aeronaves n.º 2) a dar a especialidade aos soldados da que foi designada CART 1690, e que foram connosco para a Guiné.

Passámos, depois, pelo RAC (Regimento de Artilharia de Costa) de Oeiras, Carregueira, IAO... e embarcámos em 8 de Abril. Mas, antes, grandes patuscadas e farras tivemos juntos nos bares e baiúcas de Lisboa, acompanhados pelo capitão da companhia, o Guimarães [morto aos 29 na estrada de Geba-Banjara ...] Nessa fase cimentou-se a nossa amizade.

Desembarcados do Ana Mafalda para LDG, começou a Guiné, rio Geba acima. E ficámos em Geba. Eu fiquei na sede da companhia, às ordens do capitão e do Comando do Agrupamento. Eles foram distribuídos pelos destacamentos, por onde também passei, mas por pouco tempo. Já há coisas no blogue sobre Geba.

Em 21 de Agosto de 1967, fui ferido na estrada de Geba para Banjara e fui, uma semana depois, evacuado para o HMP, em Lisboa. O Domingos Maçarico foi ferido em 21 de Setembro de 1967, sendo igualmente evacuado para o HMP. O Alfredo Reis foi ferido na mesma altura, mas esteve apenas vários dias no hospital em Bissau. O António Moreira nunca foi ferido. Ele e o Reis estiveram sempre na companhia, em Geba e destacamentos, até Outubro de 1968.

O Maçarico não voltou à Guiné. Eu voltei em Maio de 1968, mas fui colocado na CCAÇ 3, em Barro.

Depois da minha evacuação para o HMP, fui substituído na companhia pelo alferes Fernando da Costa Fernandes, que foi dado como desaparecido em campanha em 19 de Dezembro de 1967, durante a operação Invisível em Sinchã Jobel: O alferes Fernandes foi, depois, substituído pelo alferes Carlos Alberto Trindade Peixoto, que foi morto em 8 de Setembro de 1968, durante um ataque ao destacamento de Sare Banda.

O Domingos Maçarico, depois de evacuado, foi substituído pelo alferes Orlando Joé Ribeiro Lourenço. Este voltou à metrópole são e salvo, mas nunca alinhou, nem nos encontros da companhia.

Somos nós os quatro, os sobreviventes, como também dizemos, que nos mantemos unidos entre nós e com os elementos da companhia. Com alguns intervalos, e eu explico a seguir.

Entre 1969 e 1974, os meus amigos e camaradas que estão comigo na fotografia, dedicaram-se a acabar os seus cursos e, depois, à vida pofissional, mantendo, embora, contactos entre si. Mas eu estive afastado deles durante esses anos (...).

(...) Há cerca de trinta anos que estes quatro ex-alferes, camaradas e amigos na Guiné, e antes dela, se encontram pelo menos quatro vezes por ano, além dos encontros da companhia. Temos ideias muito diferentes sobre certas coisas, cada um disparando, agora, para seu lado, mas a amizade cimentada na juventude e na guerra mantém-se e está acima de tudo. (...)

domingo, 7 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14708: (Ex)citações (276): Sexo em tempo de guerra... De Ganturé ao Pilão (Mário Gaspar, ex-fur mil At Art, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)



Guiné > Região de Tombali > Canturé > CART 1659 (166/68) > Foto nº 1  > A bajuda mais linda de Ganturé



Foto nº 2


Foto nº 3



Foto nº 4


Foto nº 5


Foto nº 6  > A primeira, do lado esquerdo, foi minha lavadeira


Foto nº 7


Guiné > Região de Tombali > Canturé > CART 1659 (1967/68) > Beldades de Canturé.


Fotos (e legendagem): © Mário Gaspar (2015). Todos os direitos reservados Edição: LG]



1. Texto enviado ontem pelo Mário Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68; e, como ele gosta de lembrar, Lapidador Principal de Primeira de Diamantes):



Assunto: Filhos da guerra



Caros Camaradas

Já enviei um texto sobre o tema, oara publicação … Nós nunca poderíamos ser "santinhos", nem ponho a hipótese de violações. A verdade é que o Soldado português era Homem.

Exibicionismo? Nunca assisti! No mínimo dos mínimos o que se fazia era pela calada da noite, naquilo que conheço.


Cumprimentos

Mário Vitorino Gaspar


2. Sexo em tempo de guerra: de Ganturé ao Pilão

por Mário Gaspar



O nosso Camarada Jorge Cabral disse,  no Cinema São Jorge no dia 22 de Maio último sobre o tema “Filhos da Guerra”: (i) que defendia a honra do soldado português na Guiné; (ii) que " não éramos emprenhadores compulsivos”; (iii) que 80 a 90% dos soldados portugueses na Guiné não tiveram relações sexuais…”;  e (iv) que "a prostituição organizada se restringia a Bissau…”. (*)

Por aqui fico. Estou totalmente de acordo com o Camarada, acrescento novamente:  aqueles que “não estavam virados do avesso” – não gosto dessa gente – tinham necessidades normais para a idade. Os soldados portugueses eram,  na grande maioria,   virgens e alguns perderam a virgindade na véspera da despedida da namorada ou noiva. Existem estudos sobre o tema e participei nos debates. É mesmo verdade. E estive lá, na Guiné, e fico pasmado com os camaradas que percorreram aquelas paragens e que contestam.

No meu Livro “0 Corredor da Morte”, no Capítulo 9 (“O Rebentamento Durante o Batuque”), pode-se ler:
Estamos em Ganturé, 4 de Julho de 1967 (…). Do outro lado,  uma das mulheres do régulo – a mais nova – dono e senhor da população e colaborador da nossa tropa, com o posto de tenente de 2.ª linha Abibo Injasso, dirigia-se para a habitação fronteiriça, com um aspecto bem diferente das outras, como se fosse a rainha. (…). A mulher mais nova daquele rei,  de olhos escuros e seios grandes e firmes, que se soltavam do corpo gracioso quando caminhava. Era esbelta. Vestia um pano com cores berrantes, enrolado da cintura até aos joelhos. Sorri-me, notando­‑lhe os lábios carnudos rompendo-lhe o rosto. Atraía-me aquela mulher, que há bem pouco pilava, como se de uma dança se tratasse. 

(…). Ouvia-se o batuque. Aquele som, era diferente, bem diferente dos bailes em Alhandra, normal­mente aos sábados. A música vinha com eles do ventre. Eram sons vivos e ritmados que convidavam à dança. A mulher mais nova do régulo avançava, seguramente em direcção do batuque. O enrolar da saia, aquele acto de enrolar, assemelhava-se decerto ao ritual do toureiro, quando veste o seu traje de luzes, enrolada da cintura para baixo, deixando ver um palmo acima do joelho, e antevendo-se o nu do corpo escuro e brilhante. Uma volta, e outra, que com o andar, deixavam ver as pernas bem torneadas, não no torno das oficinas da Fábrica Grande, mas no do nascimento. As ancas carnosas sentiam-se roçando, num movimento ligeiro e cadenciado, o tecido multicolor. Seguiam-se uns seios harmoniosos, espetados, com os bicos tenros ainda, de rosas. Era aquilo que nós chamávamos naquelas terras: - de “mama firme”. 

As relações sexuais eram impensáveis. Se o Abibo soubesse! Toda a que fosse apanhada com o branco, era severamente castigada, depois de sujeita a um “julgamento”, em que participavam “os homens grandes”. Funcionava o chicote, tal e qual como nos filmes de histórias da escravatura dos americanos. As madeiras das traves que sustentavam o alpendre daquela tabanca luxuosa, que não era luxo, serviam para amarrar as “pecadoras” que cometessem adultério. Depois funcionava o chicote. Eram os usos e costumes daquele povo onde o Abibo era rei e senhor. (…). 

Mesmo em frente lá estava o centro das atenções daquela festa, o famigerado batuque. Os ouvidos ficaram repentinamente presos ao corpo. Mulheres e crianças em círculo, rodeavam os músicos munidos de tambores artesanais. As mulheres grandes e as bajudas dançavam, quase todas, com os seios descobertos – existindo excepções – a alegria transmitida por aquele ritmo trepidante fazia lembrar ciganos nas danças dos seus acampamentos e até em feiras. Os seios, ora rijos da juventude, flácidos outros e grandes movimentavam-se acompanhando as notas musicais, não existindo parte alguma daqueles corpos que não trepidasse. 

Os movimentos dos corpos faziam-me vibrar. Eram escuros, com um brilho envernizado. Luz quase inexistente, quase somente a claridade do luar batia meigamente nos corpos de miúdas de palmo e meio, que enfeitavam o quadro. Avançavam como que desafiando as mais velhas que sorriam. Uma fotografia para recordar aqueles momentos? Talvez não fosse necessário porque jamais esqueceria aqueles momen­tos. Os homens do centro batiam com força nos tambores molhados do suor que escorria das suas faces. Não haviam frequentado qualquer escola de música mas fabricavam o som que fazia tremer o meu corpo. Aprenderam decerto com os pais, os avós e, recuando gerações, de escravos quem sabe, transportados para longínquas paragens em naus para os cinco cantos do mundo. No futuro seriam eles os professores dos filhos. Poucos eram os militares presentes. Pretendiam envolver-se na dança, notei-lhes nos olhos quando o círculo se alargou e o 1.º cabo, olhando-me com um sorriso gaiato, afirmou com convicção.
– Tão boas...Que mamas,  minha mãe!... E as bundas?
– Daqui não levas nada, só com os cinco dedos da mão! Podes apro­veitar o balanço e faz-me uma, pode ser com a canhota ou com a irmã dela! – Ouvi da boca do soldado.
– Olha-me esta merda?! Dou-te uma tampona, que estás uns tempos que não vês o que tens entre as pernas... Vai mas é mijar que isso passa. É tesão de mijo. Podes agarrar-te àquelas de tetas grandes, deixa as bajudas para mim!

Logo de seguida afastaram-se ambos sorrindo, quando avistei a filha do régulo. Magra e bem esculpida, de seios pequenos. Os olhos escuros brilhavam no escuro do rosto onde sobressaía um nariz também pequeno. O pai vendia-a, segundo diziam os militares pretos, por três mil patacões (três mil escudos).

Ela olhou-me e riu-se.
– Meu furriel...

Imaginei estar encostado à sua bunda arredondada que trepidava com a música e colocar-lhe os braços em redor da cintura estreita, subindo as mãos até aos seios rijos de 20 anos. Afastou-se de mim. Embora não dan­çasse, balanceava com os pés presos ao chão, ao sabor dos tambores. Não entendia o que se estava a passar comigo. Sonhava que lhe tocava em todo o corpo. Parece que adivinhava o que eu pensava:
– Mim, cá nega!

Ao mesmo tempo que soltou dos seus lábios carnudos a pequena frase, bateu com o interior do cotovelo na sua cintura e lançou o braço para a frente, repetindo e voltando a repetir.
– Mim, cá nega!... Mim, cá nega! Furriel!

Depois de a escutar só me restava uma solução: - Sair daquele local. (…).


Pois este é um exemplo daquilo que sucedia. Todos jovens e ávidos de sexo. Não o faço por acaso. No Livro naturalmente não existem personagens com rosto, os diálogos que passo são resumos de factos que assisti.

Aquilo que descrevo era a realidade. No final de comissão, em Bissau andava com um camarada Furriel Miliciano e vimos duas cabo-verdianas muito bonitas, e decidimos averiguá-las, responderam “que eram mulheres para Oficiais, e não para Furriéis”. Considerámos que não era assim e procurámos encontrá-las, o que veio a suceder. Batemos à porta indicada e vem atender-nos um homem grande e bem grande, a quem elas tratavam de “paizinho”. A sala grande quase sem mobília: um frigorífico no meio da parede do fundo; a cadeira onde se sentou o “paizinho”, a mesa e mais duas cadeiras.

O “paizinho” tratava as lindas moças por “filhinhas”, e nós incrédulos. O “paizinho” vendia e a bom dinheiro as “filhinhas”.  Depois do “paizinho” dar uma cerveja a cada um de nós, resolvemos deixá-los em paz.

Esta é uma entre muitas – até algumas no Pilão – há que não ter receio de contar: “O nudismo em Gadamael Porto” e “Nudismo em Mejo”; As “Meninas do Movimento Nacional Feminino”; “Meninas dos Correios de Bissau”, e que tal o apetite sexual de uma mulher branca por um Furriel Miliciano? São temas.

São algumas bajudas de Ganturé. Tenho mais fotos. Aquilo que relato no livro sobre as “bajudas” é o exemplo que dou e foi escrito em 1996. Não escondo de ninguém. Se como disse “não virei”, sou sempre um potencial candidato a um coração, só que em Ganturé e Gadamael Porto não existiam possibilidades, decerto um ou outro caso surgiu. Em Mejo, Guileje, Sangonhá, Cacoca, Cameconde e Cacine com certeza eram locais onde existiam outras liberdades.

Recordo que em Bissau quando vim de licença, fui com camaradas ao Pilão, e à noite.

E os filhos desses encontros e desencontros:

a) Existe uma criança e o pai desconhece;
b) Existe uma criança e o pai sabe mas não assume;
c) Existe uma criança e a mãe diz ser “x” o pai, mas este nega, por saber que ela andava com outros;
d) Existe uma criança e o pai assume pretender tomar conta dela, mas a mãe não autoriza e
e) Outros

Defendo um mundo de Amor.

Cumprimentos

Mário Vitorino Gaspar

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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14177: Notas de leitura (673): “O Império da Visão, fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, organização de Filipa Lowndes Vicente, Edições 70, 2014 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2015:

Queridos amigos,
As imagens com guineenses publicadas neste assombroso empreendimento de investigação que dá pelo nome de “O Império da Visão”, com organização de Filipa Lowndes Vicente, faz-nos meditar sobre as expedições científicas e a surpreendente aliança de políticos nacionalistas portugueses com o credo maometano.
A Guiné tinha um peso específico no imaginário imperial: um surpreendente mosaico étnico num espaço tão exíguo; a fidelidade dos Fulas e dos Mandingas depois das operações de pacificação, que se prorrogou até à independência; e o facto de ter sido a primeira colónia europeia dos tempos modernos. Isto para já não falar do sentimento associado ao derramamento de sangue, tudo custou sangue, dor e doença, basta pensar na construção da Fortaleza de S. José de Bissau.

Um abraço do
Mário


Fotografia no contexto colonial português: o caso da Guiné(*)

Beja Santos

“O Império da Visão, fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, organização de Filipa Lowndes Vicente, Edições 70, 2014, é um extraordinário empreendimento historiográfico que coloca a imagem fotográfica em lugar cimeiro das fontes de investigação no nosso tempo. Como se escreve na contracapa: “A fotografia não foi uma mera ilustração das colónias. A fotografia criou experiências coloniais. Os estudos recentes sobre colonialismo reconhecem como, ao lado da documentação escrita, as imagens são determinantes para se compreenderem e estudarem os impérios. É por isso que esta aventura visual sobre o império português permite um ousado entrelaçamento de olhares: a fotografia como um instrumento inseparável dos vários saberes científicos que usaram as colónias como laboratório, da história natural com a antropologia ou à medicina; a fotografia como prova de violência ou de intimidação, afirmando o poder durante as guerras coloniais; a fotografia apropriada pelos sujeitos colonizados, mas também por europeus anticolonialistas, enquanto forma de resistência, no forjar de identidades nacionais”.

Falámos anteriormente da leitura da fotografia vista por pessoas que se combateram durante uma terrível guerra como foi a da Guiné: gente do PAIGC e gente que se pôs debaixo da bandeira portuguesa. Agora pretendem-se duas incursões bem distintas, olhar para fotografias da missão antropológica e etnológica da Guiné (1946-1947) e apreciar imagens de guineenses ou de muçulmanos que passaram por Portugal a pretexto de exposições coloniais, de prémios ou de viagens de muçulmanos a Meca.

O professor Mendes Corrêa era um dos mentores de uma antropologia que hoje está totalmente desacreditada. Ele escreveu um livro que teve sucesso no tempo, Raças do Império, que foi divulgado pela Editora Portucalense em fascículos colecionáveis, num total de 625 páginas, entre 1943 e 1945. Mendes Corrêa acreditava no caráter distintivo das raças e não escondia a sua convicção na superioridade dos brancos. Ele chega à Guiné num período científico febricitante: a missão Geo-Hidrográfica, Zoológica, Antropológica e Etnológica da Guiné, entre 1944 e 1946. Bissau acolhera a Semana do Império, em 1943, o V Centenário dos Descobrimentos da Guiné tiveram o seu epicentro em Lisboa mas comemoraram-se com distinção em Bissau, em 1946; a 2.ª Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, em 1947, são algumas dessas manifestações. Isto para significar que quando Mendes Corrêa chega à Guiné havia investigação e divulgação científica, contactos com organismos internacionais, e aspirava-se à constituição do Museu da Guiné Portuguesa. Da sua viagem à Guiné publicou-se um livro Uma jornada científica na Guiné Portuguesa, onde ele fala do estudo das etnias locais, recorreu a equipamento antropométrico transportado de Lisboa. O cientista pretendia realizar investigações de Pré-História, também. O resultado final foram clichés ilustrando indivíduos, masculinos e femininos, em duas poses invariáveis (frontal e de perfil), imagens estáticas. Como observa o autor do artigo, estas fotografias assumem, perigosamente, uma dimensão cenográfica passível de interpretações erróneas, o que limita a leitura do que efetivamente se pretendia captar.

Missão de Mendes Corrêa em Canhabaque, Bijagós, 1946

Os guineenses começam por ser acontecimento noticiado na I Exposição Colonial do Porto, em 1934. Aparecerão no Parque Eduardo VII poucos anos depois e desfilarão em 1947 na avenida da Liberdade no cortejo dos municípios, surgem escoltando o “Carro do Império”. O régulo Baró Baldé dirigiu-se ao Ministro das Colónias, capitão Teófilo Duarte, em nome dos régulos e teria dito: “Somos pretos da Guiné mas bons portugueses” e o Ministro das Colónias concluiu estar “em presença dos representantes das elites negras da Guiné, dos homens que são auxiliares preciosos da nossa tarefa civilizadora”. As elites negras a que o ministro aludia eram Fulas e Mandingas, procurava-se no fundo de uma aliança com os amigos dos portugueses que eram muçulmanos, outros políticos já tinham referido que os muçulmanos negros possuíam uma certa superioridade relativamente aos outros negros. Em 28 de Abril de 1953, Salazar concede uma receção aos muçulmanos da Guiné. E o jornal O Século escrevia que “Salazar apertou a mão e falou a todos eles, interessando-se por conhecer os seus nomes e indagando acerca das localidades onde desempenham as suas funções de direção de importantes aglomerados populacionais”.

Salazar cumprimenta régulos da Guiné em 28 de Abril de 1953

O autor do artigo refere que desde finais dos anos de 1950 que a política do Estado colonial se orientava para os muçulmanos da Guiné e assentava em duas práticas de “conquista das populações”: o financiamento da construção e da restauração de locais de culto e o patrocínio de peregrinações a Meca. A cobertura oficial destas últimas teve início em 1959 e até 1972 elas realizaram-se de forma regular todos os anos. Não há, evidentemente, ilusões dos intuitos de apoio a estas peregrinações, havia que mostrar ao mundo a realidade ecuménica da Guiné portuguesa. Estas peregrinações tinham um caráter turístico, havia que criar uma imagem de uma certa portugalidade: “Em 15 de Janeiro de 1971 partiu para Meca, via Lisboa, um grupo de 38 muçulmanos que ali vão em peregrinação. O grupo voltará a Lisboa em meados de Fevereiro, visitando na Metrópole os locais de maior interesse histórico e turístico, a convite da Agência Geral do Ultramar”.

Peregrinos guineenses a Meca junto da Torre de Belém, 1970

A lógica imperial há muito que firmara o conceito, de simbiose identitária que foi igualmente uma das retóricas desenvolvidas na nossa preparação militar, parecia um facto consumado: “Do Minho a Timor, homens de raças e crenças diversas comungam o mesmo sentimento de júbilo nacional, todos conscientes de que é do esforço comum que se obtém o êxito nacional”. A imagem da Guiné pesava muito: a pacificação e o sentido da ordem e daí o prémio em se ter transformado numa colónia modelo; a carga de exotismo, ver aqueles régulos como cavaleiros aprumados, na dianteira do Carro do Império, no Cortejo dos Munícipios, empunhando espadas erguidas na vertical. E aliança tácita que se estabelecerá entre o poder político, estruturalmente católico, e as etnias de pendor islâmico, tratava-se de uma aliança crucial, uma imagem de propaganda que se tinha que dar ao mundo naqueles tempos em que Portugal estava orgulhosamente só.
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 19 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14163: Notas de leitura (671): “O Império da Visão, fotografia no contexto colonial português (1860-1960)”, com organização de Filipa Lowndes Vicente, Edições 70, 2014 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14166: Notas de leitura (672): Do livro "Família Coelho", edição de autor, 2014, de José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (4): Como era Alcobaça nos tempos dos primeiros Coelhos