Guiné > Buba > Maio de 1969 >Fotografia tirada de helicóptero
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José Teixeira (2005)
II parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).
Transferência para Guilege
Nos primeiros dias de Julho de 1967 recebemos ordem para marchar para Guileje, a fim de rendermos a CCAÇ 1477.
Nas conversas do Café Bento, em Bissau, apelidado de
5ª repartição por ser ali que se sabiam todos os acontecimentos ocorridos na Província, o nome de Guileje era citado frequentemente como uma região onde havia
porrada da grossa.
As contingências da sorte ditaram que a CART 1613 fosse verificar
in loco a veracidade das informações veiculadas na dita
repartição.
Carregando apenas o armamento individual e o meu caixote da papelada deslocámo-nos para Buba onde embarcámos numa das barcaças civis
Correias com destino a Gadamael Porto. Dali fizemos, em coluna auto, os dezassete quilómetros mais compridos do planeta até à tabanca fortificada que ia ser
o nosso lar durante cerca de um ano.
No dia 19 de Agosto, ao fim da tarde, fomos delirantemente recebidos pelo pessoal da companhia que íamos render.
A tradição de pregar uns sustos aos
maçaricos (o que não era bem o caso) foi terrível, de muito mau gosto e até propício a qualquer acidente. Quando se fechou a noite o gerador eléctrico não funcionou porque, dizia o
velhinho, estava avariado. Desde tomar a 3ª refeição à luz de archotes e fogueiras até andar pela tabanca aos tropeções e escorregadelas nas valas e entradas de abrigos, de tudo sucedeu.
Perante a nossa insistência em ir verificar o estado do gerador, o cabo que lidava com ele lá condescendeu em deixar-nos dar uma olhadela no trambolho instalado numa cabine de alvenaria semi-enterrada.
Não foi preciso muito tempo para o Furriel Baroeth, o nosso mecânico, descobrir que o tirante de descompressão do motor Diesel estava bloqueado propositadamente. Por mais que dessem à manivela, nos cilindros não havia compressão, pois as válvulas de escape mantinham-se abertas. Era assim que se parava o motor.
Depois de retirado o taco de madeira sabotador, com prenúncios de agressões ao
engraçadinho, duas maniveladas chegaram para as luzes se acenderem, mas isto já perto da meia-noite.
Como não havia sobreposição, a CCAÇ ia embarcar na barcaça que nos trouxera, pelo que no dia seguinte foi a lufa-lufa das entregas e recepções de materiais, não sem alguns
barretes a que já estávamos habituados e que contávamos vir a enfiar um ano depois a quem nos substituísse… A lei da vida obrigava-nos a estes truques.
O
barrete maior era que, como não apareceu ninguém em Colibuia e Cumbijã (1) para receber os nossos materiais, a minha companhia passou a ter a responsabilidade de duas cargas completas.
Em Colibuia ficou uma secção com o 2º Sargento S... a tomar conta dos tarecos amontoados nas arrecadações improvisadas. O mais problemático era o depósito de géneros alimentícios, cujos produtos estavam sujeitos a deterioração, como é compreensível.
Por mais notas que mandássemos para a sede do Batalhão, e até para a delegação da Manutenção Militar de Bissau, ninguém tomava uma atitude. Irrisoriamente, o comandante do batalhão sugeriu, via rádio, que vendêssemos os géneros às populações. Está-se mesmo a ver os nativos, muçulmanos, a comprar-nos latas de chouriço, barricas de carne de porco em salmoura, barris de vinho tinto e outras delícias da nossa da nossa
bárbara dieta!!!
O S... lá foi vendendo uns quilos de farinha, de arroz, umas latas de fruta e coisas assim, mas a sua gerência da
mercearia foi desastrosa. Quando, uns meses depois, entregou a tralha a outra companhia que lá apareceu, veio para Guilege, trazendo uma
resma de papéis com apontamentos que nem ele era capaz de destrinçar. As guias de entrega de materiais, padronizadas, vinham repletas de observações de deficiências, faltas ao completo e outras incapacidades.
Levei semanas, com o meu competentíssimo cabo escriturário, o Ramiro, a fazer autos de ruína prematura e de extravio, sempre com a justificação de “exposição às intempéries por falta de recinto adequado à sua conservação” ou “efectivo exíguo para a vigilância e evitar a subtracção, por parte dos nativos, de componentes de ferro com que improvisavam alfaias agrícolas” e outras patranhas que, em Bissau, eram engolidas a contra-gosto, mas… entre os autos aprovados e os que exigiam mais esclarecimentos para apreciação superior, tive um
petisco que durou até ao meu último dia na Guiné.
Quanto aos géneros alimentícios a coisa foi mais radical porque o S... não encontrava, ou não tinha feito, a relação dos produtos que mandou enterrar por se terem estragado e que deveriam ser objecto de pedido de abate, e respectivo crédito, a que a MM não punha objecções de maior.
Ainda por cima disto vim a saber que ele tinha mandado vir a esposa para Bissau, aonde se deslocava com alguma frequência, em consultas externas sabe-se lá de quê e em boleias da Força Aérea, a partir de Aldeia Formosa.
Olhos nos olhos, confrontei-o com o montante do depósito de géneros deixado em Colibuia, pois constava dos documentos de prestação de contas, com a pequena parcela deixada aos substitutos, com o dinheiro que me entregava proveniente das vendas aos nativos e faltavam cerca de dez mil escudos.
Isto a juntar ao prejuízo trazido de S. João já rondava os trinta contos e era preciso fazer muita
ginástica para recuperar tanto dinheiro. E, meu amigo:
- O senhor foi negligente e comodista. Vai entregar na companhia cinco mil escudos, metade do prejuízo, ou apresento o caso ao nosso Capitão.
Nem pestanejou. Só pediu para lhe descontar em cinco prestações. Concordei e, se não perdi um amigo, ganhei um inimigo. Metade dos sargentos de Artilharia daquele tempo ouviu do S... uma história retorcida em que eu o ludibriei em cinco contos.
A tabanca de Guileje, habitada por cerca de trezentos nativos de etnia fula (marcados a fogo, à nascença, com dois traços verticais no prolongamento exterior das pálpebras) situava-se a pouco mais de quatro quilómetros da fronteira com a Guiné Conacri e servia de tampão e base de lançamento de operações no celebérrimo Corredor de Guileje.
Este corredor era a via natural de penetração dos
turras para o interior sul do território, a partir do seu
santuário do outro lado da fronteira.
De traçado rectangular, cerca de 250 x 200 metros, era fortificada com taludes e abrigos semi-enterrados, estes cobertos por
cibos (troncos de palmeira) de quase impossível penetração por projécteis de tiro curvo.
As palhotas cónicas onde vivia a população civil espalhavam-se em quatro fileiras irregulares, separadas por três
avenidas onde até parecia que havia o Metro, mas em boa verdade eram as entradas para os abrigos subterrâneos. Ao fundo, do lado oeste, erguia-se a residência do Régulo, de traçado rectangular com varandim, a mesquita e escola (árabe) construídas em madeira.
Por detrás destas últimas construções e do alto talude que as protegia, fora da área fortificada, situavam-se os espigueiros, engenhosamente feitos de bambu e barro sobre estacas. Ainda mais para oeste, na orla da picada do Mejo, havia um aldeamento fantasma, muito bem feito e alinhado, mas, compreensivelmente, desabitado. Tinha sido construído pelo Governo pouco antes do conflito.
Era ainda cercada por duas filas de arame farpado, com garrafas de cerveja vazias penduradas aos pares, para retinirem se os arames mexessem e, no terreno desmatado circundante estavam implantadas cerca de setecentas minas, fornilhos e armadilhas devidamente fichadas e verificadas periodicamente. Enquanto lá estivemos estes últimos artefactos só serviram para matar gazelas.
Havia ainda uma pista que permitia a aterragem e descolagem de aviões ligeiros. Estes aviões, na sua maioria Dornier da Força Aérea, eram chamados de
Biela, não sei porquê.
Mal se ouvia o som do motor dum avião, até os pretitos gritavam:
-Olha a biela!!!
Os dois pontos fracos daquela fortaleza eram cruciais e, agora é fácil dizê-lo, nunca foram bem explorados pelo nosso inimigo.
O primeiro era obtenção de água. O riacho onde a íamos colher ficava a oitocentos metros do aquartelamento, para o lado da fronteira, o que nos obrigava a empenhar, diariamente, dois Grupos de Combate para montar segurança na zona e três ou quatro viaturas, com bidões de 200 litros, para o transporte.
A única emboscada ali montada pelo IN foi feita às tropas da companhia anterior que tiveram vários feridos e um morto.
O segundo fraco era o reabastecimento de víveres, combustíveis, munições e outros materiais pesados que eram transportados por via marítima até Gadamael Porto e dali trazidos pelas nossas colunas auto.
Nos já referidos dezassete quilómetros rara era a coluna que não era emboscada pelo IN e, como era minha função contabilizar para efeitos de prémios, lembro-me que foram levantadas vinte e duas minas anti-carro na picada.
Graças à notável equipa de
picadores, elementos das milícias nativas que usavam varas ponteagudas para detectar os engenhos e aos nossos furriéis especializados na montagem e neutralização dessas armas traiçoeiras, nunca sofremos os seus efeitos.
Não faço favor nenhum em prestar homenagem a esses heróis esquecidos cujos nomes saliento:
(i) Cá Missá (
Camisa, para a malta), Cabo milícia que chefiava os picadores e diziam que tinha na cabeça a configuração, os pequenos relevos e a vegetação de cada centímetro da picada;
(ii) Furriéis António Martins, Amílcar Almeida, Arclides Mateus e Manuel Pernes a quem a Pátria pagou mil escudos por cada uma das vinte e duas vezes que se despediram dos colegas para irem à sua função de desmontar as minas.
Na modesta epopeia que estas colunas auto representaram saliento uma emboscada em que os
turras usaram abelhas dentro de caixas de sapatos, penduradas nas árvores, as quais eram soltas, à distância, por intermédio dum cordel quando abriam fogo. Na primeira vez o
estrago foi notório e deu muito trabalho aos enfermeiros, mas depois tiveram de desistir porque a nossa tropa passou a transportar dezenas de potes de fumo que eram accionados ao grito de
abelhas!. Os insectos afastavam-se e iam ferrar os seus amigos.
Outro pormenor foi a adopção da camuflagem sonora. A saída das colunas era sempre de madrugada e o Capitão Corvacho (2) desconfiou que a barulheira das viaturas a aquecer os motores para iniciar a marcha era audível no outro lado da fronteira e um bom aviso para o IN vir, nas calmas,
chatear o pessoal na picada.
Então pôs em prática o sistema de, a espaços de tempo desencontrados, os condutores se levantarem mais cedo, irem dar as aceleradelas do costume e voltarem para a cama.
É óbvio que a intenção era criar a confusão nas hostes contrárias e o certo é que as
visitas diminuíram.
Cabe aqui também o reconhecimento, que não passa pela cabeça de muitos
estrategas de pacotilha, aos abnegados Condutores Auto. Eram os mais expostos ao fogo inimigo, como é evidente.
A guarnição era composta pela (i) minha companhia, (ii) o Pelotão de Reconhecimento Fox nº 1165 (Pel Rec Fox 1165) sob o comando do Alferes Miliciano de Cavalaria Michael, (iii) o Pelotão de Caçadores Nativos nº 51 (Pel Caç Nat 51) (3) , comandado pelo Alf Mil de Infantaria Perneco e (IV) o Pelotão nº 138 da Companhia de Milícias nº 12 (o Pel. Nº 139 da mesma companhia estava no Mejo), comandado pelo 2º Sargento Milícia Ussumane Sila.
Estas duas últimas subunidades, irregulares, tinham efectivos variáveis, pois eram compostas por naturais ou residentes nas respectivas tabancas, que se alistavam ou demitiam a seu bel-prazer. Não necessitavam de instrução militar porque, desgraçadamente, qualquer garoto de 9, 10 anos desmontava e montava uma espingarda automática G-3 com os olhos fechados. Eram eles que, por avença, limpavam as armas do nosso pessoal quando isso era requerido, facto que sempre me causou alguma preocupação, porque não me agradava o
vício da guerra que tal ganha-pão inculcava nessas crianças.
Portanto, não contando com o armamento pesado, GuileJe tinha muito perto de trezentas armas prontas a disparar. A minha era única e a mais pequena: uma pistola-metralhadora FBP. Mas fartei-me de disparar… a máquina fotográfica.
Constituía assim um bastião avançado de que o IN raras vezes de aproximava. Apesar das contingências do estado de guerra, a população convivia alegremente connosco e havia uma apertada vigilância para que os nossos militares respeitassem, não só os usos e costumes, mas também as pessoas em si. Um ou outro desaguisado foi prontamente saneado pelo nosso Capitão em consonância com o Régulo.
O Régulo Suleimane era um homem razoavelmente inteligente e compenetrado da sua posição algo magestática. Falava muito bem português e o seu porte altivo infundia uma distância no relacionamento que os soldados depressa aprenderam com os nativos a respeitar.
A certa altura eu passei a ser o intercultor preferido dele porque chegamos à conclusão de que tínhamos um ponto em comum. Ambos estivemos em Macau. Ele tinha feito parte duma companhia de tropas da Guiné, como soldado do nosso Exército, que foi destacada para Macau no fim da II Guerra Mundial.
A única maneira de lhe ver um sorriso era a falarmos de Macau. Ele contava as suas lembranças dos bons tempos que lá passou e eu retocava os pormenores com a descrição dos progressos daquele torrão português.
A população era agradável no trato, muito trabalhadora e, sobretudo, bastante asseada, não obstante o facto de que obtinham a preciosa água nos charcos junto das
lavras que cultivavam na área contígua ao fundo da pista de aterragem.
Foi nessas
lavras que se deu o maior mistério da nossa estadia nessas paragens. A CAÇ 1622, de Gadamael, foi fazer uma operação ao Corredor, a partir do nossoaquartelamento.
Quando regressou foi dado como desaparecido, numa emboscada que sofreram, um soldado que só me lembro de ser de Carregal do Sal, ou dali perto.
Durante três dias foram lançadas patrulhas de busca formadas nas unidades da área que bateram todo o terreno onde se dera a emboscada, reforçadas por apoio e observação aérea e não foi encontrado o mais leve indício da presença do desaparecido.
Passados onze dias, um nativo de Guilege foi encontrá-lo nas terras encharcadas das
lavras vivo, mas extremamente depauperado, transportando a sua G-3. Trouxe-o para o aquartelamento onde foi imediatamente socorrido e feita a comunicação do seu aparecimento à CCAÇ 1622.
Pelo menos a nós não conseguiu explicar como tinha sobrevivido e, o mais incrível, porque razão não se encaminhou para um dos aquartelamentos, Guileje ou Mejo, que, pelo menos de noite, eram fáceis de localizar devido à iluminação eléctrica. Ou tentasse dar sinal de si aos aviões que sobrevoaram a zona.
Soubemos que o CTIG teve de o mandar à Metrópole para convencer os familiares de que estava realmente vivo e de boa saúde, pois já lhes tinha sido comunicado o seu desaparecimento em combate.
Lembro-me que o Furriel Figueiredo, do Pelotão Fox, conhecia o rapaz. Para adensar o mistério não consigo encontrar as quatro ou cinco fotografias que fiz na altura em que estava a ser assistido no posto de socorros.
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(1) Duas povoações na zona de Aldeia Formosa (Quebo) sem quaisquer instalações militares para onde mandaram a minha companhia “para encher chouriços” enquanto faziam os reajustamentos ao dispositivo do subsector à responsabilidade do meu batalhão (BART 1896).
(2) Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho.
(3) Este Pelotão era composto por praças do recrutamento guineense e enquadrados por furriéis e um subalterno metropolitanos, todos milicianos. As praças pertenciam a várias etnias, com uma pequena predominância de
balantas. A disciplina militar não era suficiente para estabelecer uma coesão aceitável entre eles. O aspecto diversificado das suas culturas chocava amiúde entre eles e mormente com os
fulas, sem dúvida mais civilizados.
Era-lhes abonada a alimentação em numerário (a dinheiro) por impossibilidade de lhes satisfazer as suas dietas tradicionais. Mais do que uma ajuda ao esforço da campanha, eram um caldeirão de problemas. O Capitão Corvacho evitava atribuir-lhes missões que implicassem saídas com algum risco porque a sua eficiência não era famosa.