domingo, 8 de janeiro de 2006

Guiné 63/74 - P411: A retirada de Madina do Boé (José Martins)

Texto de José Martins, ex-furriel de transmissões da CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70):

1. Caro Afonso Sousa

Obrigado pelo facto de, sem nos conhecermos e apenas tendo em comum o facto de sermos combatentes, como se não fosse "qualidade" mais do que suficiente, me pedires a opinião sobre a retirada de Madina do Boé.

A minha "ligação" a Madina é pequena mas muito intensa.

Por agora apenas envio um texto escrito em 2000 (trinta anos após o meu regresso)de um livro, não editado, que escrevi e escrevo, pois que todos os dias surgem histórias e estórias que faz desta compilação de emoções um livro nunca acabado.

Um abraço do camarada
José Martins


2. A retirada de Madina do Boé (por José Martins)

O mês de Fevereiro de 1969 tivera inicio há poucos dias quando passou, no aquartelamento de Canjadude (1), uma coluna cuja missão era retirar a Companhia de Caçadores nº 1790 do seu destacamento de Madina do Boé. Paralelamente a guarnição do posto do Cheche, pertencente à Companhia de Caçadores nº 5, também retiraria e juntar-se-ia à nossa companhia em Canjadude.

Esta operação cumpria, da Directriz nº 1/68 do Comandante-Chefe, apenas na retirada desta martirizada e heróica companhia da sua isolada posição. A base inicialmente prevista para a região do Cheche, ficar-se-ia pela reunificação da Companhia de Caçadores nº 5 no seu aquartelamento em Canjadude, ficando esta a ser o posto militar mais avançado, no leste, desde Nova Lamego até á zona do Boé.

Esta operação contava com cinquenta e seis viaturas, uma vez que a retirada de Madina envolvia a recolha e transporte de todo o material que fosse possível recuperar.

Em 6 de Fevereiro, as tropas até então estacionadas em Madina do Boé e as das companhias que tinha escoltado o comboio de viaturas, iniciavam o regresso. Estava, assim, consumado o abandono do local.

Chegados à margem sul do Rio Corubal, do lado oposto ao Cheche, tinha de se utilizar uma jangada constituída por um estrado assente em três grandes canoas e auxiliado, na travessia, por um barco com motor fora de borda.

A operação era perigosa, dado que as viaturas tinham de descer uma rampa em direcção ao rio, entrando na jangada utilizando pranchas e, após a travessia, sair de novo sobre pranchas e subir a ravina que partia do rio.

Eram cerca das seis da tarde quando se iniciou a travessia, que se estendeu por toda a noite e pela manhã do dia seguinte.

As companhias estacionadas em Canjadude (CCAÇ 5 e CART 2338) estavam em alerta e preparadas para prestar todo o apoio necessário e possível a esta operação. Havia que estabelecer um controlo para o parqueamento das viaturas dentro do perímetro do arame farpado e, em conjunto com os comandantes das companhias empenhadas na operação, indicar-lhes os locais em que deviam pernoitar, estas sim, em zonas em redor do destacamento e aldeamento.

Na operação estavam envolvidos dezenas de efectivos e, sendo conhecedores de que na região não havia água, foi destacada, para a estrada entre Canjadude e Cheche, uma viatura com cerca de quinze bidões de água, para que os soldados fossem abastecidos.

Tocou-me o comando da escolta a esta viatura, tendo-me posicionado a cerca de cinco a sete quilómetros de Canjadude. Quando começaram a passar os militares que vinham na frente da coluna, notei que algo de estranho se tinha passado. Os soldados passavam cabisbaixos e praticamente ninguém aproveitou para se abastecer de água. Constatara, também, que havia um silêncio rádio, apesar de ter entrado na frequência da operação.

No regresso ao aquartelamento, soube que tinha havido um desastre na travessia do Rio Corubal, com um elevado número de mortes. As causas ainda eram muito obscuras. O necessário era providenciar apoio aos militares das companhias que tinham sofrido as baixas, alguns dos quais ainda se encontravam em estado de choque.

Fui, na qualidade de furriel de transmissões [da CCAÇ 5], encarregado de saber, interrogando os graduados das companhias atingidas, os nomes e patentes das vítimas, afim de ser dado conhecimento aos escalões superiores, nomeadamente ao Quartel General, em Bissau.

Fui anotando, um a um, os nomes das vítimas. Entrecortados por soluços, os nomes foram sendo recordados pelos camaradas e, terminada a pesquisa, contei quarenta e sete nomes: quarenta e seis militares – dois furriéis, sete cabos, trinta e três soldados metropolitanos, quatro do recrutamento provincial - e um milícia (2).

Era um dia negro. Sentei-me no Centro Cripto, peguei no livro de codificações rápidas e transcrevi, para o impresso de mensagem, o texto cifrado que indicava que os nomes a seguir pertenciam aos militares mortos no acidente.

Procurei o comandante do destacamento, Capitão Pacífico dos Reis e, em silêncio, entreguei-lhe a mensagem para assinar, sendo esta devolvida sem que fosse trocada qualquer palavra.

Momentos depois, no mais profundo silêncio possível, no posto de rádio, a voz pausada e comovida do radiotelefonista lançava ao ar, via VHF, os quarenta e sete nomes, como se fosse um toque a finados.

Pouco tempo depois, como que impulsionados por uma mola, começaram a chegar ao Centro de Mensagens pedidos de envio de telegramas para a Metrópole, em que os remetentes diziam estar de boa saúde, embora cheios de saudade.

Pretendiam com isto serenar os seus familiares, para que ao receberem o telegrama soubessem que estavam bem e de saúde. Esses telegramas não foram emitidos. Não valia a pena. Na metrópole só muito mais tarde se soube deste desastre, e, se os telegramas saíssem da companhia, decerto que os escalões seguintes nunca lhes dariam seguimento.

Mais de vinte e cinco anos depois, o Diário de Notícias editou uma cassete vídeo, com uma reportagem no local, em que intervinham o tenente coronel José Aparício e o jurista Gustavo Pimenta (3), ao tempo capitão e alferes miliciano da CCAÇ 1790.

Já não era o primeiro vídeo que via sobre a Guerra do Ultramar, mas este falava de algo que eu tinha vivido, este reproduzia uma fase da minha própria vida de militar, e não me trazia boas recordações. Só nessa altura soube que a queda desordenada na água de muitos dos militares que se encontravam na jangada estava relacionada com o som de uma saída de morteiro, não identificado nem localizado, que tinha lançado o pânico.

Entretanto o meu filho mais velho, o Tiago, entrou na sala e respeitou o que viu. Eu estava a chorar. As lágrimas corriam-me pela face sem as poder conter. Pelo ecrã corriam os nomes que, anos antes, no desempenho das minhas funções de sargento de transmissões, tinha manuscrito em mensagem.

Os heróis de muitos combates tinham morrido afogados e, ainda hoje, os onze que foram recuperados três semanas depois, descansam lá longe, em país agora estrangeiro, nas ravinas que servem de margem ao Rio Corubal (4).

José Martins, 3 de Setembro de 2000
_____________

Notas de L.G.

(1) A sul de Nova Lamego, na estrada que vai pai Cheche e Madina do Boé (vd. carta geral da Província da Guiné, 1961)

(2) Vd post de 24 de Outubro de 2005 > Guiné 63/64 - CCLVII: A contabilidade dos mortos na operação de retirada de Madina do Boé

(3) Vd post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)

(4) Vd post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (6 de Fevereiro de 1969)

2 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Dei volta ao baú.
Vim visitar a 1ª série do blogue.
Encontrei a minha primeira participação.
Foi ontem, mas já passaram 5 anos!
Estavamos em Janeiro de 2006 e o blogue, de acordo com as datas expressas, tinha começado em Abril de 2004.
Agora só nos resta uma coisa: continuar em frente, para que a memória não se apague.
Esta é uma tarefa colectiva.
Contem comigo.
Um abraço ao Editor-pioneiro e á restante equipa.

Carlos Pinheiro disse...

O desastre do Cheche marcou-me desde a primeira. Aliás mo Cmgs/QG tivémos a noticia em primeira mão mas nunca foi comentada como era regra. Mas depois, quando as coisas começaram a serenar, recebemos dois sovreviventes da CCAç 1790 no nosso serviço. E foram eles que nos disseram que uma das canoas que suportava a jangada já estava partida quando foi feito o embarque que resultou na tragédia. Mas até hoje só tenho ouvido falar que a jangada era suportada só por bidões. Afinal, e passo a reproduzir:"Chegados à margem sul do Rio Corubal, do lado oposto ao Cheche, tinha de se utilizar uma jangada constituída por um estrado assente em três grandes canoas e auxiliado, na travessia, por um barco com motor fora de borda." Afinal, dizia eu, eram três canoas o suporte e uma delas parace que estaria partida.
Ao fim destes anos todos resta-nos recolher em silêncio, em respeito por todos aqueles que morreram de forma tão trágica e bem assim por todos os outros que também já se libertaram da lei da vida. Paz às suas almas.