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sábado, 3 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 - P9134: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (5): A atribuição de Cruz de Guerra e apresentação de quadros diversos

1. Finalizamos hoje a apresentação de "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.


PORTO DE ABRIGO - V

Medalha da Cruz de Guerra

A Cruz de Guerra foi criada pelo Decreto n.º 2870, de 30 de Novembro de 1916, para premiar actos e feitos de bravura praticados em campanha. Esta condecoração recebeu notoriedade durante a I Guerra Mundial e durante a Guerra Colonial Portuguesa. Divide-se em 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classe, por ordem decrescente de importância.

A Cruz de Guerra, levemente inspirada na Croix de Guerre francesa (principalmente nas cores da fita de suspensão), teve, ao longo da sua história, três tipos ou modelos diferentes, respectivamente legislados em 1916, 1946 e 1971.

O desenho desta medalha (desde 1971) na sua 1.ª Classe, é o seguinte:
- Relativamente ao anverso, ou face, é uma cruz templária, em ouro, tendo sobreposto, ao centro, um Emblema Nacional.
- O reverso tem, ao centro, um círculo carregado de duas espadas antigas passadas em aspa, cercadas de duas vergônteas de louro, frutadas e atadas nos topos proximais com um laço.
- A fita de suspensão é de seda ondeada, com fundo vermelho, cortado longitudinalmente por cinco filetes verdes de 0,0015 m de largura e equidistantes entre si e das margens da fita; largura de 0,03 m; comprimento necessário para que seja de 0,09 m a distância do topo superior da fita ao bordo inferior da condecoração, por forma a obter o alinhamento inferior das diferentes insígnias; ao centro, uma miniatura da cruz de guerra, cercada de duas vergônteas de louro, tudo de ouro.

Durante a Guerra Colonial Portuguesa, foram entregues as seguintes medalhas da Cruz de Guerra:

- Exército: 2634
- Armada: 68
- Força Aérea: 273

OBS: - Texto e imagens retirados da Wikipédia, com a devida vénia.


Que mentira!
Que iniquidade!


Esta condecoração que me foi aposta ao peito por um dos mais altos dignitários da nação naquele dia de Portugal, passado algum tempo perdeu a cor do Ouro. Seria mesmo ouro aquela medalha que lá está para casa com uma cor parecida com o aço?

Acima de tudo
Os homens passam.
As instituições ficam e podem sempre melhorar.
Que viva Portugal

FUR. MIL. DE INFANTARIA
CARLOS LUÍS MARTINS RIOS

Condecorado com a Cruz de Guerra de 1ª classe, porque tendo tomado parte em numerosas acções de combate, como comandante da Secção do Grupo de Combate Especial, para o qual se ofereceu, se revelou um graduado com excelentes qualidades de Comando e de combatente. Marchando normalmente a sua secção na testa das forças empenhadas, exposto portanto a maiores perigos, soube o Furriel Rios incutir-lhes confiança, pelo ardor combativo que demonstrou nas acções de fogo, pelo exemplo que constantemente lhes deu e pelo entusiasmo com que cumpria as missões que lhe foram dadas, mesmo nas situações mais críticas. É digna de realce a acção deste militar em diversas operações nomeadamente «Ferro», «Estopim» e «Espetro».
Tomou parte na operação «Ferro» voluntariamente, pois encontrava-se inferiorizado fisicamente e accionou uma armadilha durante a progressão para o objectivo o que em nada contribuiu para alterar o optimismo com que sempre encarou as acções de combate.
Detectadas as nossas tropas nas proximidades do objectivo, lançou-se o Furriel Rios, de rompante, com a sua Secção sobre a base inimiga onde elementos blindados abrigados reagiam ao assalto, com volumoso fogo de armas automáticas e bazucas, desalojando-os e pondo-os em debandada, com baixas. Destruído o objectivo e já no regresso ao Aquartelamento, foi a cauda da força flagelada com volumoso fogo, quando atravessava um descampado. Acorreu prontamente o Furriel Rios à retaguarda incentivando a reacção das nossas tropas, e conseguiu que a parte do Grupo flagelado manobrasse com rapidez sobre o inimigo, que perante a ameaça de envolvimento debandou, furtando-se ao contacto. Mostrou assim serena energia debaixo de fogo, coragem, sangue-frio e desprezo pelo perigo.
Durante a operação «Espectro», em que tomou parte também voluntariamente, foi o Furriel Rios vitima da sua dedicação e espírito de combatividade ao ser gravemente ferido à queima-roupa quando tentava capturar um elemento inimigo que avistara em fuga, elemento esse que explorado convenientemente certamente contribuiria para um melhor cumprimento da missão. Pelos motivos apontados, considera-se o Furriel Rios como um militar voluntarioso, abnegado, corajoso e cumpridor dos seus deveres, pelo que se tornou digno da maior consideração pela parte dos seus superiores e admirado pelos seus subordinados, constituindo assim um exemplo vivo do Soldado Português.



Apresentação de quadros diversos



Para que as gerações futuras repudiem as guerras e não esqueçam!
Em Carnaxide, 11 de Março de 2011
Carlos Rios

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Nota de CV:

Vd. postes da série de:

23 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9082: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (1): Dedicatória, início da vida militar e viagem para a Guiné

26 de Novembro de 2011> Guiné 63/74 - P9097: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (2): A nossa estada em Fulacunda

29 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9112: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (3): A nossa estada em Bissorã e Mansoa, e as baixas em combate
e
1 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9124: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (4): Troca de mensagens

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9112: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (3): A nossa estada em Bissorã e Mansoa, e as baixas em combate

1. Terceiro episódio de "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.


PORTO DE ABRIGO - III

A nossa estada em Bissorã e Mansoa, e as baixas em combate

Bissorã era uma vila já com bastante população em que havia alguns estabelecimentos comerciais, muito deles já abandonados, mas ainda assim com um ou outro em funcionamento (os pertencentes a libaneses), perdi a sensação de tremendo isolamento que me tinha acompanhado durante a permanência em Fulacunda, tendo em vista que a vila tinha ligações por estrada, com Mansoa, Barro, Olossato e Mansabá, para esta última através do assustadora mata do Morés, considerado um refugio do IN, daqui a que desde que fosse assegurada a necessária desminagem e segurança se fizessem colunas. Ficamos durante alguns meses em conjunto com a Companhia 1419 e aparte os patrulhamentos e observações nas tabancas limítrofes, apenas têm relevância no plano militar dois acontecimentos que vieram abalar o contingente: em primeiro lugar junto à pista de aterragem rebentou uma mina antipessoal que provocou a amputação do querido amigo Lageira – 1.º Sargento da 1419. À posteriori o 2.º Sarg Sarrico por descuido deixou rebentar no bolso do camuflado uma granada de fósforo que o queimou e estropiou bastante. Vim encontrá-lo com sofrimento tremendo já no Hospital da Estrela onde foi horrivelmente tratado, quando da minha evacuação por ter sido atingido a tiro, e já fortemente estropiado. O Sarrico veio a falecer depois com uma cirrose hepática.

As condições em Bissorã já eram mais aceitáveis, sendo que inclusive tomávamos refeições de boa qualidade num estabelecimento do exterior, e um grupo de furriéis, em que me incluía, alugou uma casa também no exterior do quartel para pernoitar e repousar. Era realizado sistematicamente pela população um tradicional mercado ao ar livre. Existiam dentro da vila, em tabancas separadas e nos arredores, diversos grupos e sub-grupos étnicos, nomeadamente fulas, mandingas, biafadas, alguns balantas e um curiosíssimo sub-grupo, os saracolés que teciam e produziam os panos azuis, que as mulheres dos diversos grupos usavam a servir de saias. Havia alguns artesãos habilidosíssímos que criavam em pau-santo belas peças das quais adquiri alguns exemplares que hoje possuo, mas o artigo para mim mais interessante é um corta papeis em feitio de punhal manufacturado a partir do bronze do invólucro das balas e do alumínio das caixas de outra munição que não me lembro já hoje e que de certeza utilizei tendo em linha de conta que andei dezenas de vezes aos tiros com todo o tipo de armamento. Junto à casa do administrador de Posto chamou-me a atenção uma viçosa horta que produzia permanentemente durante todo a ano alfaces, tomate etc. Aqui não há os períodos de inverno ou verão, basta regar todos os dias como verifiquei ser feito por elementos da população, não sei contratados como. Também aqui me chamou a atenção um enorme monte de mancarra, (amendoim) que veio depois a ser transportado para Bissau (Casa Gouveia - Sucursal local do Grupo CUF) e com o monopólio da exportação de todo o amendoim da Guiné para Portugal..

A casa do Administrador.

A tasca do senhor Maximiano. A nossa messe em Bissorã

Rua com duas bombas de gasolina à direita


Terminado este período de aparente acalmia, mais uma vez nos deslocamos em viatura pela estrada para ficarmos localizados em Mansoa, ainda nos deslocamos algumas vezes a Bissorã com colunas de abastecimentos.

A igreja católica vista de frente.

A mesquita com os seus crescentes nos minaretes

Nesta vila onde pensávamos terminar a nossa comissão de serviço com menos tensão, veio a ser a zona de maior desgaste e com momentos mais angustiantes e onde sofremos os mais dramáticos e terríveis acidentes de guerra e onde viemos a ter as mais traumáticos situações e tropelias. Por aqui passava a estrada alcatroada que vinha de 10Km, (andava em construção – atribulada é certo - o pessoal de Engenharia envolvido era frequentemente atacado – também várias vezes fizemos a segurança aos mesmos e entramos em combate com o IN desfazendo as ferozes emboscadas feitas à estrada, que estava planeada para servir de ligação entre Bissau e Bafatà. Era também já uma vila com vida própria com alguns comerciantes, principalmente libaneses e raros portugueses um posto de Correios, onde algumas vezes telefonei para casa, a sede do Os Balantas, clube de futebol onde existia uma ampla esplanada e um cinema ao ar livre. Tinha também um administrador que aqui residia com a esposa e que eram assíduos frequentadores do cinema, o único inconveniente é que todos os filmes pareciam ser de guerra, porquanto milhares e milhares de melgas que pejavam o chão no fim de cada sessão, voavam permanentemente na frente do projector parecendo no ecrã uma enfiada de balas tracejantes.

O centro com o café e esplanada.

A Estação dos Correios

Quartel de Mansoa visto do cimo do depósito da água

O quartel era já de grande dimensão porquanto era aqui o comando de um vasto sector. Aqui chegados e instalados, veio, depois de algumas incursões dolorosas no mato sob o Comando (digamos que nos acompanhou) o verdadeiro comandante era já o Rui Ferreira, o Cap. Capador, um ineficaz que só atrapalhava, convenhamos que saía mudo escondia-se por todo o buraco que aparecia e regressava calado sendo que foi neste período que tivemos os mais duros contactos com o inimigo e tivemos diversos feridos. Foi a companhia desmembrada, sendo que ao nosso pelotão/grupo foram destinadas as funções de guarnições em destacamentos avançados, (mais uma vez o isolamento e a solidão), e que eram Braia, um bunker na estrada a caminho de Bissorã, nada existia para além do bunker e o arame farpado a toda a volta e onde foi colocada a primeira a Secção comandada pelo sensato, responsável e corajoso, José Monteiro, e Cutia em que existia dentro da cerca de arame farpado algumas moranças e onde exceptuando o refeitório tudo o resto eram abrigos debaixo de terra e cibes onde dormíamos e que ficava na estrada a caminho de Mansabá. Aqui fui colocado com o Ameixa e o resto do pelotão e onde mais tarde se veio juntar um alferes em substituição do Rui, que entretanto tinha sido ferido em combate em operação durante o tempo que permanecemos como companhia de intervenção em Mansoa.

O fortim para defesa da ponte. No chão, feito com garrafas de cerveja enterradas, pode ler-se: “Piratas do Oio 1420″.

Vista parcial da tabanca, dentro do arame farpado, e do Destacamento, onde se vê a bandeira na Porta de Armas.

Perdidos na memória do tempo os nomes dos diversos locais onde sofremos cruéis emboscadas, e procuramos e atacamos acampamentos e casas de mato do IN, apenas me marcam profundamente aquelas onde viemos a sofrer mortos e feridos.

Inscrição na parede de uma caserna.

Choveu copiosamente no percurso para o assalto a uma casa de mato, só participei nela porque ali ia o meu extraordinário grupo e era comandado pelo grande Rui, fui de chinela de praia porque nesse mesmo dia o meu Camarada Carolino (o enfermeiro da companhia) me tinha extraído uma unha arreliadoramente encravada, no meio da aterradora escuridão tropecei no fio de um fornilho que felizmente, eventualmente por causa da chuva, só rebentou o detonador o que não diminui o ânimo do pessoal, não sei exprimir o que senti. Chegamos de madrugada e ao sermos alvejados irrompemos pela casa de mato provocando a sua destruição pondo o IN em fuga desesperada com feridos e capturando diversas armas; no regresso dois elementos já longe do local dedicavam-se à pesca, obrigamo-los a acompanhar-nos para o Quartel, nunca soube de mais nada. Em nova incursão para a mesma zona somos recebidos a partir da berma de uma pequena mata por imensa metralha, no afã de desalojar o IN e porque seguia como de costume no inicio da coluna, avançámos o mais abrigado possíveis naquele sentido, pedindo eu aos dois bazukeiros, o Feijões e o Antunes, que se aproximassem da minha linha de fogo para melhor alvejarem o IN, assim fizerem o que resultou no desalojar dos mesmos mas, como ainda hoje me dói e me faz amiúde sonhar com o acontecimento, na morte de Antunes com um tiro na carótida. Foi dramática a evacuação daquele camarada transportado, aos nossos ombros, em maca improvisada até um local que o helicóptero pudesse pousar.
Pouco tempo após este acontecimento, vim de férias a Portugal, tendo regressado a Mansoa no mesmo dia que era inaugurada a primeira ponte sobre o Tejo. Acho graça a esta coincidência, para um revoltado permanente sem saber porquê.

Durante o período de férias recebi em casa, carta do meu amigo Rui onde me transmitia que uma secção do 4.º Pelotão tinha sofrido uma tremenda emboscada em que uma bazookada tinha atingido a viatura que se dirigia o destacamento da ponte de Uaque para levar a alimentação tendo morrido o 2.º Sargento Monteiro e havido diversos feridos de entre eles o mais grave era o nosso amigo Raimundo (o puto) entre a malta que era a vedeta futebolística da companhia e que faz o favor de ser um meu grande amigo. Era oriundo de uma família de pescadores da Costa da Caparica onde ainda hoje reside já em local diferente. Ficou e está completamente estropiado numa das pernas e num dos braços além do estropiamento ainda ficou amputado de parte dos dedos. Poucos dias passados e ainda de férias recebo nova carta do Rui que me comunica que o nosso pelotão tinha sofrido uma emboscada vindo o nosso amigo Augusto Palhais a ser atingido e ia ser evacuado para a metrópole. Fui visitá-lo ao Hospital onde constatei que tinha sido atingido por uma bala que lhe tirou uma vista. Este jovem, o único casado e já com um filho era a responsabilidade e ponderação que muito nos fazia falta e nos ajudava, está também entre os amigos, quase a generalidade, que se reúnem periodicamente para confraternizar. Originário de Mira – Aveiro ali se radicou.

Vindo de Cutia em trânsito por Mansoa com destino ao Hospital de Bissau para ser observado pelo facto de ter dado uma violenta queda que me provocava fortes dores no peito e tive a alegria de encontrar já recuperado o meu amigo Rui que aguardava transporte para se juntar a nós, em quem notei imediatamente um sentimento de revolta e inconformismo. Então não é que, por que o Comandante do 4.º Pelotão que se encontrava ausente para Bissau e estando aquele grupo para sair com a missão de avançar para o mato para o desalojamento e eliminação de alguns focos referenciados, o Comando de Batalhão, o tinha indigitado para comandar aquele grupo ao que ele reagiu acabando no fim praticamente por ser coagido a aceitar a missão; de imediato abandonei a ideia de ir para o hospital e lhe transmiti: se vais eu também vou, assim já seremos dois a aguentar o barco! Oh diabo, voaram mosquitos por cordas; não penses nisso, nem em sonhos, se for preciso proíbo-te de ires porque sou teu superior, era um poço de humanidade e brincalhão este Rui, depois de acesa discussão com este teimoso lá verificou que não merecia a pena insistir, pelo que lá nos juntámos aos camaradas do 4º. Pelotão. Depois de diversas peripécias no atravessamento de imensas bolanhas aproximamo-nos de uma tabanca isolada na extremidade de uma pequena mata, indo como de costume na frente da coluna, avistei em fuga em elemento, pelo que impetuosa e impensadamente me lancei em sua perseguição, vindo a ser gravemente ferido quando um grupo, emboscado estrategicamente, disparou diversas rajadas de metralhadora atingindo-me duas balas que me provocaram perfuração intestinal e o esmagamento de diversos ossos da bacia que me condenaram ao estropiado que hoje sou. Felizmente não houve mais feridos, porquanto vinham ligeiramente mais atrasados e puderam abrigar-se e eliminar aquela frente de fogo.

Fui em pouco tempo evacuado de helicóptero para Bissau, vindo ao fim de 15 dias para o HMP e posteriormente para a semi-clausura do Anexo vindo a terminar no DI no largo da Graça, locais de onde guardo a mais confrangedora das recordações. E assim termina a saga africana deste anónimo labrego.

No dia 10 de Junho de 1968, ainda andava em bolandas pelas instalações hospitalares donde só saí em Março de 1972, fui condecorado com a Cruz de Guerra, assunto que não pretendia aludir mas que devido a um facto acontecido me obriga a abordar e que anexo no fim.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2011> Guiné 63/74 - P9097: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (2): A nossa estada em Fulacunda

sábado, 26 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9097: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (2): A nossa estada em Fulacunda

1. Segundo episódio de "Porto de Abrigo", as memórias passadas a escrito pelo nosso camarada Carlos Luís Martins Rios*, ex-Fur Mil da CCAÇ 1420/BCAÇ 1857, Mansoa e Bissorã, 1965/66.


PORTO DE ABRIGO - II

A nossa estada em Fulacunda

Durante o tempo de permanência na colónia tivemos contacto com a tremenda realidade de uma guerra no que do pior pode acontecer. Enterrámo-nos nas bolanhas, dormimos em buracos escavados à pressa, abrigámo-nos à sombra das árvores esguias e altas, bebemos a chuva escorrida entre as folhas ou chupámos as gotas de um punhado de lama amassada, bem como em muitas operações ao romper da madrugada lambíamos a humidade acumulada nas folhas do capim, tal era a sede, fome e cansaço acumulados por longas e tremendas caminhadas feitas sob o efeito da ansiedade e do medo, porque não dizê-lo; chegámos a caminhar 36 horas consecutivas alimentados a ração de combate e sendo diversas vezes flagelados por emboscadas do IN; o nosso sangue para além de ser derramado em profusão por alguns queridos camaradas, foi ainda sugado pelos mosquitos; o paludismo foi contraído por alguns de nós; o nosso suor e algumas vezes, as nossas lágrimas ajudaram a molhar a terra ressequida. Andámos dezenas e dezenas de quilómetros em picadas ou abrindo clareiras na mata espessa com o nosso próprio corpo; conhecemos as tabancas; falámos com as pessoas e entendemo-las num português incipiente, com ajuda de meia dúzia de expressões na língua local e até através da linguagem universal do gesto; pegámos ao colo tantas crianças, ajudámos a matar a fome de tantos homens e mulheres. Mas também matámos. Também morremos, e principalmente sofremos com a omnipresença da nossa vida dos nossos entes queridos; quanta nostalgia!
Sim! Porque as coisas mais lindas ou horríveis que nos marcam ou emocionam não podem ser vistas ou tocadas mas sim sentidas pelo coração.

Deslocados para o Quartel de Santa Luzia, ali recebemos directamente o armamento de outra Companhia que estava de regresso a Portugal, ali se entrecruzaram dois grupos de homens cujos estados de espírito eram perfeitamente antagónicos; enquanto entre nós reinava a ansiedade e a contrariedade, nos nossos camaradas vivia a descompressão e a expectativa do regresso.

Ainda me lembro das palavras ditas em tom de grande amizade pelo furriel que me antecedeu e me entregou a arma: - Toma lá oh periquito, aqui tens a formosa, vê se a tratas bem porque vai ser a tua melhor amiga.

Por entre a vozearia ouvia-se a espaços: vai pró mato periquito.

Começava a tomar contacto com um infindável e curioso léxico novo e utilizado pelo pessoal durante o tempo ali passado a par com imensas frases e palavras do crioulo e de dialectos gentílicos.

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Embarcados em lanchas LDM ou LDG, não tenho já a certeza, lá partimos para o nosso local de destino. É o primeiro contacto com a realidade da misteriosa e esmagadora mata, a viagem pelos canais circundantes e por último pelo rio Corubal. Além da intranquilidade interior e ansiedade permanente, a viagem decorre tranquilamente numa linda paisagem envolvente até que chegamos ao porto de desembarque localizado a 4 quilómetros, por uma assustadora picada em péssimo estado até Fulacunda, onde se encontra instalado o Quartel, um rectângulo rodeado por arame farpado com edifícios da antiga colonização – é uma sede de circunscrição – onde foram instaladas e construídos abrigos subterrâneos e postos de sentinela em pontos estratégicos da cerca. Ainda há um Posto de Correio e um comerciante branco – o Sr. Pires – que vive sozinho. Existe no exterior bastante população, e a sensivelmente 100 metros, uma pista de aterragem, onde está instalado um posto avançado apetrechado com uma metralhadora Breda e que está permanentemente ocupado por uma Secção. As únicas ligações são o já falado porto de embarque, onde curiosamente vem carregar e descarregar uma barcaça com todo o tipo de géneros para nós e a população, da qual alguns elementos também se fazem transportar naquele meio e o aeródromo. Nas chegadas e partidas da mesma um Pelotão da Companhia monta a segurança, francamente, não creio, o barco nunca teve o mais pequeno problema, haver necessidade da mesma. O único problema havido teve a ver com um militar nosso que se meteu no rio e ia a ser levado pela maré, valeu-lhe a generosidade e valentia do recém-chegado Alf. Mil. Rui Ferreira que o resgatou às águas já a mais de 50 metros do local onde se encontrava. Começava a aparecer a valentia, voluntariedade e humanidade de um líder nato. A população dedicava-se nos limites da zona capinada envolvente ao quartel, ao cultivo de mancarra (amendoim) e proliferava a pesca; enfim um conjunto de actividades que francamente nunca entendi.

O chefe da tabanca (aldeia) era Tenente de 2.ª Linha, havia muitos pela Guiné, Não participava em nenhuma actividade em que estivéssemos envolvidos, limitando-se como todos os que vim a conhecer, a passear pela tabanca e arredores uma ridícula fardeta. Creio hoje que era um método criado pela administração de subornar e dividir as populações já tribalizadas e em conflitos. Havia na Guiné mais de trinta etnias, grupos e sub-grupos. Estes creio que eram mandingas e islamizados, praticando a poligamia. O nosso amigo Tenente tinha mais de uma dezena de mulheres.

Junto à saída para Lamane, local onde nunca nos deslocámos porquanto, segundo a Companhia de açorianos que fomos render, era local de perigoso acesso devido às fortes forças do inimigo, tanto na tabanca como em todos os acessos. Existia uma palhota pequena circular colocada no sitio mais agreste do aquartelamento onde se encontrava um elemento que também segundo os mesmos era um perigoso terrorista. Não sabia ou não queria pronunciar uma única palavra de português ou crioulo, segundo vim a saber, porque nunca me aproximei do local. Abaixo se vê imagem do local onde se manteve inamovível o elemento referido durante todo o tempo que aqui me mantive.

Durante a estadia aqui em Fulacunda dá-se o desaparecimento em combate da Alf. Nil. Vasco Cardoso e de mais cinco praças conforme explicito noutro local. Aqui perfeitamente angustiado e deprimido ouvi pela primeira vez, a canção de Zeca Afonso “Os vampiros” pela bela voz do meu camarada Ernesto Fernandes. Pela primeira vez também ouvi falar da coisa politica.


No porto um barco de cabotagem chegou. Depois da segurança montada um pequeno bote faz o transbordo de pessoas e mercadorias. A altura é aproveitada para umas banhocas.


Eis a barcaça que refiro e o local de onde o 610 foi arrastado pela corrente e o Rui Ferreira o foi pescar 50 metros mais abaixo. Na altura excedi-me e proferi uma série de imprecações dirigidas aos nossos rapazes sobre a sua imberbidade e falta de sentido de responsabilidade que punham em risco as suas vidas e dos seus camaradas. A intervenção do Rui foi de uma dificuldade e perigosidade extremas. Só quem conhece a força das águas na vazante naquele local pode aquilatar. Pouco tempo depois numa das correntes patrulhas feitas na estrada que conduzia a S. João, um dos nossos Pelotões sofreu uma tremenda emboscada que provocou o primeiro morto na nossa Companhia. Um sentimento de tremenda angústia e impotência me assaltou. Apenas me lembro que o corpo do desditoso camarada ficou toda a noite em improvisada câmara ardente. Poucos tiveram a coragem de o acompanhar. Os olhares de amargura eram visíveis não recordo mais qualquer actividade, que de facto houve.

Aspecto geral da tabanca.

O interior do aquartelamento em dia de grande temporal.

Assim se ia passando o tempo num isolamento total no coração de uma mata que já se apresentava hostil e perigosamente condicionante. Neste ambiente doentio na nossa pequena e isolada Fulacunda em situação de permanente angustia e omnipresente desconforto, o mais singelo desvio da rotina é acontecimento marcante, que preenche as conversas de vários dias. Talvez por isso mesmo, a importância que ganhava tudo o resto.
Foi-nos comunicado ser possível ver cinema o que parecia ousado admitir, mas em África muitas vezes é possível o impensável.

Tinha chegado, nunca soube como, uma figura típica, o sr. Machado, um septuagenário de longas barbas brancas que se dedicava a levar o cinema às povoações mais recônditas da Guiné, e dezenas e dezenas de anos de África já o tinham feito praticamente esquecer o seu cantinho natal em Trás-os-Montes. Personalidade forte que se propunha apresentar uma sessão de cinema ao ar livre para que toda a população também pudesse assistir. Nem mesmo a eclosão da guerra impedira que o sr. Machado continuasse a levar a sétima arte aonde quer que meia dúzia de pessoas pudesse pagar um bilhete. Isso acontecia, naturalmente, nas concentrações da tropa portuguesa. O Sr. Machado fazia questão em que se soubesse que ele não percebia nada de guerra nem de política. Ao princípio da noite, reforçada a vigilância e o patrulhamento da povoação, lá íamos para o cinema, muitos de nós sem sequer sabermos o nome ou o género de filme que íamos ver. O filme apresentado era já bastante antigo, mas qualquer um era susceptível de dispor bem um punhado de homens isolados há tempo nas matas africanas. Depois das peripécias da entrada no recinto, marcada pela preocupação do bom sr. Machado de assegurar que ninguém ia ver o seu filme à borla, eis-nos instalados a esmo pelo chão o que para a população era trivial, e à soldadagem permitia uma maior aproximação às bajudas, na esperança de que a animação na tela desviasse a atenção do barulho infernal do gerador ali muito perto. Poucos minutos depois do inicio da sessão e após um pequeno intervalo, levanta-se um coro de protestos, alguma coisa acontecera uma vez que não se entendia a historia que tinha começado muito expectante e deixara de fazer sentido. Não havia dúvida de que o bom do sr. Machado trocara as bobinas do filme e o que estávamos a ver não era sequencial. Aumentaram os protestos, forçando à interrupção do filme. Mas ele, teimoso, enfrentando a plateia, garantia que a sequência estava correcta, que já tinha passado dezenas de vezes aquele filme e que nós é que não percebíamos nada de cinema. É claro que a partir daí a história do filme perdera todo o interesse e alguns começaram a sair. O sr. Machado, que então já admitia o seu engano, esforçava-se por convencer que a troca não tinha importância, porque agora é que era mais bonito. Realmente só as circunstâncias e acompanhamento podiam explicar a razão porque uma percentagem dos homens ali se manteve até final! Passados que foram alguns meses depois de termos sido confrontados com a série se acontecimentos traumáticos a que faço alusão nas cópias de alguns blogues e de sentir na pele os efeitos dum clima de tremenda humidade e calor potenciadores de possíveis doenças, sujeitos muitas vezes em plenas bolanhas ou na misteriosa selva a apocalípticos vendavais, onde a chuva caía em cascatas e os relâmpagos ininterruptos em centenas de metros iluminavam a tremenda escuridão com uma claridade inacreditável. Lá emalámos novamente as nossas embembas e fomos embarcados com destino a Bissorã.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9082: Porto de Abrigo (Carlos Rios) (1): Dedicatória, início da vida militar e viagem para a Guiné