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quarta-feira, 2 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26976: Historiografia da presença portuguesa em África (488): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927, o novo governador é o major Leite de Magalhães (42) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2925:

Queridos amigos,
São tempos de penúria, os que vivem o país e particularmente a Guiné. Já estou a ler o Boletim Oficial de 1928 e antes de chegar o providencial a ministro das Finanças os seus antecessores retiraram 40% aos vencimentos e pensões e mandaram fechar todo o ensino universitário, não se aceitaram as negociações do empréstimo com a Sociedade das Nações. O encarregado do Governo começa por ser o capitão Saldanha, chegará depois como governador o major Leite de Magalhães. Foi promulgada a Carta Orgânica da Guiné, a estrutura administrativa também mudou. Dá-se aqui atenção à nova legislação sobre as missões católicas, é merecedor de leitura o preâmbulo e a natureza da missão civilizadora, é bom recordar que este texto tem um século. A Direção dos Serviços e Negócios Indígenas produziram um questionário de inquérito sobre as raças da Guiné e seus caracteres étnicos, pretende-se conhecer os caracteres morfológicos, a vida material, as organizações familiar, económica e social, o trabalho recai sobre os administradores de circunscrição, quem desobedecer à resposta ao questionário será punido. Deixamos esta matéria para o texto seguinte.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927, o novo governador é o major Leite de Magalhães (42)


Mário Beja Santos

Partiu o governador Vellez Caroço em dezembro de 1926, o ministro João Belo nomeou como encarregado do Governo o capitão António Saldanha. Vivendo-se em condições financeiras drásticas e num quadro de relativo apaziguamento, o que sobressai é a procura de organização administrativa. No suplemento ao Boletim Oficial n.º 4, de 28 de janeiro, publica-se a Carta Orgânica da Colónia da Guiné. A divisão administrativa da colónia contempla sete circunscrições civis e os concelhos de Bolama e Bissau; as circunscrições civis têm as sedes em Cacheu, Canchungo, Farim, Mansoa, Bafatá, Buba e Bubaque. A nível da ditadura militar, vão sendo tomadas medidas que irão ter projeção na colónia. É o caso do decreto 12.485, publicado no suplemento ao Boletim Oficial n.º 11 de 19 de março. É uma reviravolta no conceito da missionação:
“Entre as nossas maiores necessidades políticas, morais e económicas de potência colonial sobressai a de se nacionalizarem e civilizarem esses milhões de seres humanos, em relação aos quais os nossos deveres de soberania não ficam em plano inferior ao dos nossos direitos. É absolutamente preciso chamá-las da barbaria e da selvajaria em que se encontram em grande parte para um estado social progressivo em que elas tenham cada vez mais as vantagens morais e materiais da família bem constituída, da vida municipal e nacional, da agricultura, da indústria e do comércio evolutivos de um verdadeiro organismo económico.

Aqueles povos que estão ainda entregues, frequentemente, a um estado de barbarismo cruel, sujeitos ao despotismo de régulos e sobas, abismados em degradações de várias espécies; habituados a lançar geralmente o peso dos trabalho agrícolas para cima das mulheres e das filhas, deixando assim aos homens a especulação da poligamia, que obtém rendimentos do esforço feminino das vendas da prole; dominado em tudo pelas superstições mais grosseiras e brutais; explorados pela chusma, chegam a formar seitas ocultas e que por vezes fazem ou provocam assassínios, mutilações e torturas.

Pelas razões que ficam resumidas, os tratados internacionais tendem a estabelecer progressivamente um certo direito novo para as missões religiosas ultramarinas, obrigando-se as potenciais coloniais a admiti-las seja qual for o credo confessional e até a nacionalidade.

Da tolerância que vinha de longe e de outros compromissos internacionais resultou que se formaram e se espalharam na África portuguesa missões exclusivamente estrangeiras, hoje numerosíssimas em Angola e sobretudo em Moçambique, com numerosas sucursais e estações dependentes e as suas escolas e centros de catequese. Sustentadas por sociedades poderosas da Europa e da América, dispõem de recursos de centenas de milhares de dólares para a sua manutenção, desenvolvimento e propaganda. Não têm a alma portuguesa e chega em ter em muitos casos outra oposta a ela. Serviram desígnios desfavoráveis aos nossos direitos, prepararam factos graves contra eles, ao pé do Niassa e do Borotze. Depois não foi raro até hoje terem focos de intriga não só entre os indígenas, o que já não seria pouco, mas também na Europa e na América do Norte.

Portugal tem de acentuar o esforço de desenvolver nos seus domínios as missões religiosas portuguesas. Só podemos considerar serviços missionários nacionais nas colónias de África e em Timor os que foram constituídos, sustentados, desenvolvidos com subsídios do Estado, ainda que em parte exercidos transitoriamente por elementos estrangeiros.”


O diploma elenca a diferente natureza de serviços previstos na missionação portuguesa: paróquias missionárias; missões católicas de padres seculares; missões católicas de sociedades missionárias de ambos os sexos. “No fecho de todo o edifício está o prelado, verdadeiro diretor geral das missões no território da sua jurisdição espiritual; é ele português e aí está outra garantia saliente de que a ação daquelas é nacional e patriótica.”

O diploma faz referência à história da missionação a partir da I República e como se degradara uma obra de civilização que vinha do passado, apresentam-se números referente ao clero e paróquias em Angola e Moçambique e no caso da Guiné insiste que as paróquias missionárias passaram de cinco para duas. Também se faz referência às casas de formação missionária, tudo insuficiente em apoios. “Mas os três grupos de missões católicas nacionais das nossas colónias precisam absolutamente de ter na metrópole diversas dependências para a educação de pessoal, sendo, pelo menos, uma casa para a de missionários de cada um deles, três para a das cooperadoras correspondentes e três para a de auxiliares do século masculino.”

E são referidos subsídios extraordinários para Moçambique e Angola. E é então que se define a legislação para as missões católicas portuguesas:
“A República Portuguesa faz três declarações categóricas diante das outras nações da Terra. Uma é a de que Portugal, antes de todas elas, espalhou nas outras parte do Mundo as ideias superiores e universais que estão na base da civilização moderna. A outra é a de que Portugal vem sustentando, com recursos importantes do Tesouro Público, as missões religiosas que se dedicam ao levantamento das condições das raças indígenas, em continuação das tradições mais generosas do seu domínio aperfeiçoado. A última é a de que a República Portuguesa, depois das perturbações trazidas a esse trabalho honroso por certas circunstâncias excecionais, sendo ainda maiores as da Guerra, vai decididamente dar-lhes um impulso vigoroso.”

E temos então um quadro legislativo: definição das missões católicas portuguesas e a sua liberdade de estabelecimento; a sua personalidade jurídica; pessoal e casas de formação; classificação das missões, dotação e programas; papel dos diretores das missões, missionários e auxiliares; exposições gerais e transitórias.

Com significado específico para a Guiné é o constante no suplemento ao Boletim Oficial n.º 12, a 26 de abril desse ano, o inquérito sobre as raças da Guiné e os seus caracteres étnicos, portaria assinada pelo governador Leite de Magalhães. Deixamos o seu conteúdo para o texto seguinte.


Fortaleza de Bissau
Rio Grande de Bissau
Bissau
Planta da Praça de São José de Bissau. Imagens provenientes do Arquivo Histórico Ultramarino, constam da dissertação de Mestrado em História de Carlene Recheado, As Missões Franciscanas Na Guiné (Século XVII), com a devida vénia
Viagem do ministro das Colónias, Francisco Vieira Machado, à Guiné em 1935, Arquivo Histórico Ultramarino
Casa de férias do presidente Luís Cabral em Bubaque, fotografia de Francisco Nogueira, com a devida vénia
Obras de alcatroamento do Bissau Velho, foto moderna
Residência do antigo administrador de Bubaque

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 25 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26956: Historiografia da presença portuguesa em África (487): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1926, dois documentos a abonar o desejo de bem servir do Governador Velez Caroço (41) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26956: Historiografia da presença portuguesa em África (487): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1926, dois documentos a abonar o desejo de bem servir do Governador Velez Caroço (41) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Janeiro de 2925:

Queridos amigos,
Andava a mexer e a registar o que mais de significativo seria para destacar do ano de 1927, quando me faltava algo a mencionar da governação de Vellez Caroço. Fui buscar o meu livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba", procurei este ano de 1926 e apercebi-me que o BNU e uma boa parte do comércio exportador dava por paus e pedras quanto às medidas propostas pelo governador para que não faltasse fluidez em cambiais para as transferências do encargo do Governo, pensões dos funcionários, necessidades do comércio importador, insurgiram-se e encaixavam-se a Lisboa, irá começar um contencioso assaz dramático que levará ao governador pedir a demissão, prontamente aceite pelo ministro João Belo e Vellez Caroço despede-se magoadíssimo, diz mesmo que há para ali um sinistro bater de asas dos abutres que pretender exercer a sua ação de rapina. Tenho para mim que devia merecer uma investigação aturada toda esta governação de 5 anos de alguém que, iniludivelmente, mudou a Guiné, ou pelo menos a valorizou e pode escrever à saída que dela saiu com as mãos limpas.

Um abraço de
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1926, dois documentos a abonar o desejo de bem servir do governador Velez Caroço (41)


Mário Beja Santos

Considerei necessário voltar ao último ano de governação de Vellez Caroço, recordado que estava do litígio monumental que existia entre o governador e os parceiros económicos e financeiros, quando estava a preparar o meu livro Os Cronistas Desconhecido do Canal de Geba: O BNU da Guiné, ambos os chefes de delegação do BNU em Bolama e em Bissau criticavam profundamente as cambiais, dirigiam-se ao ministro das Colónias dizendo que a Guiné caminhava para o desastre mais completo. Ora Vellez Caroço dirigiu-se ao ministro das Colónias em 12 de abril apresentando os difíceis problemas das transferências e propondo soluções, como se pode ler:
“Atendendo à grave crise que atravessava a província da Guiné, devido à falta de transferências por parte do BNU, que alegava não ter coberturas para que em troca do escudo guineense a província pudesse satisfazer os seus encargos no estrangeiro e na metrópole, foi o Governo da província obrigado a pôr em execução um diploma, ultimamente tão discutido na imprensa, mas que, incontestavelmente, incalculáveis benefícios trouxe à província da Guiné.

Como grandes são esses benefícios Sr. Ministro, que seria um grave prejuízo para a administração daquela província tal problema não fosse mantido, ou então, substituído por uma outra medida equivalente que cabalmente satisfizesse os fins visados nesse diploma, isto é, garantir ao BNU em cambiais as coberturas necessárias para as transferências dos encargos do Governo, pensões de funcionários e necessidades do comércio importador.
Com a suspensão por parte do BNU das transferências, ficou uma casa comercial da Guiné, a mais importante da província, a Casa António Silva Gouveia, Limitada, a fazer transferências com prémios exagerados, desvalorizando assim o escudo da Guiné a seu talante, o que, necessariamente, importaria dentre em bem pouco tempo o monopólio de toda a exportação da província a favor desta firma. Pouco interessa ao governador da Guiné a forma de processos de comerciar desta ou qualquer outra empresa, mas a Casa Gouveia, estando a fazer operações bancárias, estava fora da lei pretendendo monopolizar a exportação das oleaginosas, esse plano prejudicava os altos interesses da província.

Difícil é avaliar de longe Sr. Ministro, as perniciosas consequências que a execução de um tal plano acarretaria para a Guiné, mas, quem ali vive há perto de 5 anos, com aqueles que ali têm interesses e afanosamente trabalham em explorações industriais, agrícolas e comerciais, e que pelo exercício dos seus cargos e misteres são obrigados a tratar com os indígenas e, portanto, conhecem alguma coisa da sua psicologia e os incentivo imprescindíveis que eles precisam para o trabalho, no qual reside toda a riqueza e em cuja intensificação assenta todo o progresso e desenvolvimento desta nossa rica colónia, não poder ter dúvidas nem hesitar em afirmar que esse monopólio tinha como consequência uma diminuição de trabalho por parte do indígena. Senhora da exportação de oleaginosas, a Casa Gouveia estabeleceria preços mínimos na sua compra ao indígena e estes, imediatamente, afastariam a sua atividade, reduzida simplesmente ao necessário, para a cultura de arroz, milho, feijão, mandioca e outros géneros que bastavam à sua alimentação.”


E, mais adiante:
“Outro perigo há ainda a evitar: é o contrabando para o território francês. A fronteira da Guiné é extensíssima e não há forma económica de obter-se uma fiscalização eficaz. A única forma é a concorrência de preços. Este ano, como no território francês pagavam a mancarra por melhor preço, principalmente no início da campanha, já se fez muito contrabando para lá. O que será amanhã quando a Casa Gouveia, ou qualquer outra, conseguir acabar com a concorrência e puder estabelecer no mercado interno preços a seu talante?”
Não escondendo que o diploma por ele mandado publicar fora alvo de reclamações quer por parte do comércio estrangeiro quer por parte da Casa Gouveia, o governador afirma que o diploma encerra um erro na parte que diz respeito ao depósito de 50% das cambiais dos produtos despachados para a metrópole, alegando que esse erro não traz ilegalidade ao diploma.

E escreve o seguinte:
“Mas, caso assim não fosse, nas mãos do Governo da Metrópole estava a resolução do assunto. Devido, porém, às reclamações que V. Ex.ª tem sido apresentada contra o diploma, uma solução eu venho propor que satisfará por completo os pontos de vista que o Governo da província procura efetivar com o seu diploma, e em coisa alguma irá lesar interesses do comércio exportador, quer estrangeiro quer nacional. Consiste essa solução em o Governo da Metrópole ceder das cambiais provenientes da exportação e reexportação da Guiné e que o Governo cobra, e que serão depositadas no BNU, ficando este obrigado a publicar no Boletim Oficial da Colónia uma conta corrente que sumariamente mostre a aplicação dessas cambiais e onde o Governo e o comércio facilmente possam verificar que 50% das cambiais da Guiné tem uma rigorosa e exclusiva aplicação às suas necessidades de transferência.

Outra solução há mas essa acarretará necessariamente uma maior intensificação nas reclamações do comércio estrangeiro, pois a adotar-se, poderá dizer-se que o diploma que eu promulguei só foi feito para agravar esse comércio, o que, debaixo do ponto de vista internacional e da boa harmonia existente hoje em todo o comércio da Guiné, que muito favorece a nossa política colonial, reputo inconveniente.
Essa outra solução consiste em manter o meu diploma na parte relativa à exportação para os portos estrangeiros e sustentar os produtos destinados aos portos da metrópole, mas sendo, todavia, as cambiais resultantes da reexportação desses últimos produtos, não aproveitados na indústria nacional e enviados a portos estrangeiros, depositados no BNU para servirem de coberturas ao movimento de transferências da Guiné.”

E conclui:
“Eis, Sr. Ministro, o que sobre tão momentoso problema ouso que expor a V. Ex.ª, esperando que as minhas propostas mereçam a esclarecida atenção de V. Ex.ª e que uma rápida solução seja dada para que a província da Guiné prosseguir o seu caminho de civilização e progresso.”


O diploma em referência irá conhecer alterações conforme aparecem publicadas no suplemento do Boletim Oficial, com data de 29 de junho, e igualmente o Boletim Oficial publica alterações propostas em harmonia com o acordo estabelecido entre o Governo central e o governador da Guiné, ouvidas as entidades interessadas que aí tinham a sua representação, haveria discussão destas alterações na sessão do Conselho Legislativo. O comércio exportador continuará a protestar e o BNU a negar financiamentos, será um braço de ferro terrível, os governos sucedem-se, Vellez Caroço dirige-se ao ministro das Colónias João Belo, faz ver a situação desastrosa em que se encontra a Guiné e se não lhe der uma solução pede a demissão. João Belo demite prontamente o governador a 16 de dezembro e a 18 está nomeado um encarregado do Governo, o Capitão António José Pereira Saldanha.

No suplemento publicado em 17 de dezembro, Vellez Caroço dirige-se aos militares de terra e mar o funcionalismo da Guiné em geral:
“Sei que entre alguns de vós tenho inimigos e detratores da minha obra na Guiné; não é agora a ocasião de a discutir; o tempo fará justiça e as nossas mútuas ações serão um dia julgadas com retidão e imparcialidade.
Saindo, porém, da Guiné de consciência e mãos limpas, saberei esquecer as ofensas para só me lembrar daqueles que com lealdade comigo cooperaram no desenvolvimento e engrandecimento desta rica província, joia inestimável e preciosa do nosso vasto domínio colonial.
Faço votos para que o sinistro bater de asas dos abutres e aves agoirentas que, rapaces esvoaçam nos céus da Guiné, se perca no espaço infinito e, lá bem longe dos nossos domínios, vai exercer a sua ação de rapina. Ao sair da Guiné trago mais uma vez, com toda a minha alma, com o coração sangrando, ferido pelas injustiças dos homens: Viva a Pátria! Viva a República Portuguesa!”


Tenente-coronel Vellez Caroço
A primeira central elétrica de Bissau, em 1940
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Nota do editor

Último post da série de 18 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26933: Historiografia da presença portuguesa em África (486): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, de 1925 a 1926, é o fim da era do governador Vellez Caroço (40) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26933: Historiografia da presença portuguesa em África (486): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, de 1925 a 1926, é o fim da era do governador Vellez Caroço (40) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Janeiro de 2925:

Queridos amigos,
1925 é um ano marcado por operações em Canhabaque, Vellez Caroço declarara estado de sítio em virtude de insubmissão do régulo, seguiram-se operações que se estenderam por vários dias de maio, delas o governador publicará um relatório bastante pormenorizado; como sabemos, a submissão foi sol de pouca dura, será necessário chegar a 1936 para dar os Bijagós como região pacificada; a estrela que tem acompanhado esta governação vai empalidecer, não por perda de firmeza na governação, vamos chegar a 1926 com gravíssimos problemas financeiros, caiu a I República, temos agora governos da Ditadura Militar, Vellez Caroço pede insistentemente ao ministro João Belo que tome as medidas necessárias, por fim ameaça demitir-se, e o ministro demitiu-o mesmo, tudo isto se vai passar no final do ano de 1926. Vellez Caroço, sem margem para dúvida, foi um dos mais brilhantes governadores da colónia da Guiné.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1925 a 1926, é o fim da era do governador Vellez Caroço (40)


Mário Beja Santos

O ano de 1925 é fundamentalmente marcado pelas operações de Canhabaque, vamos ter acesso ao suplemento ao n.º 26, do Boletim Oficial n.º 9, de 30 de junho desse ano, está aí o relatório das operações redigido pelo próprio governador, o tenente-coronel Vellez Caroço.

Em números anteriores há já indícios da insurreição e da declaração de estado de sítio, como se viu no texto anterior. No Boletim Oficial n.º 21, de 23 de maio, o governador mandara publicar uma portaria em que se referia explicitamente ao estado de sítio nas ilhas de Canhabaque, Galinhas e João Vieira, mas o foco da rebelião era Canhabaque, houvera uma operação para destruir estas povoações e os indígenas refugiaram-se no mato e nunca fizeram a sua apresentação nos comandos militares. O governador convocou o Conselho Executivo, que deu o seu voto para que Canhabaque e João Vieira ficassem provisoriamente sujeitas a um comando militar, com sede em Meneque, e postos em Bine, Bane, In-Orei e Meneque, ficando igualmente proibido todo o comércio para o exterior; e mais: todo o coconote, arroz, gado e galinhas seriam apreendidos pelos agentes do Governo, enviados para Bolama e vendido em hasta pública; não seria permitida nova construção de palhotas aos indígenas enquanto não fizesse a sua apresentação incondicional.

Vejamos agora este documento marcadamente histórico, o referido relatório de Vellez Caroço que começa por fazer um historial dos acontecimentos. Em março de 1917 fora estabelecido o estado de sítio no arquipélago dos Bijagós, tinham-se recusado a entregar as armas e pólvora e também recusado a pagar o imposto de palhota; fora organizada uma coluna para os castigar, as nossas tropas tiveram muitas baixas, ocupara-se exclusivamente postos do litoral; os indígenas de Canhabaque nunca desarmaram, geraram um estado de coisas intolerável; em fevereiro de 1925 o Governador recebera um ofício da autoridade dos Bijagós anunciando que fora a Canhabaque a fim de proceder ao arrolamento para a cobrança do imposto, não teve qualquer sucesso; e Vellez Caroço escreve:
“Tive em Canhabaque três vezes as forças de auxiliares que o administrador propunha, tive um avião, tive artilharia, metralhadoras e duzentos homens de forças reguladas e, apesar disso, embora tivesse derrotado os rebeldes em todos os pontos onde em número apareceram a oferecer resistência, o facto é que eles ainda lá estão refugiados no mato, e que nas suas ciladas e emboscadas continuam causando bastantes baixas nos nossos soldados. Estou convencido que batidos como foram em todos os combates que nos ofereceram, destruídas por completo todas as suas povoações, pois nem só uma escapou, e feita agora a ocupação pelas forças militares em todos os pontos importantes da ilha, os rebeldes hão-de acabar por se entregar à discrição, visto que, dentro em pouco tempo, acossados pela chuva, sem terem coberturas ou abrigos e apertados pela fome, por lhes faltarem os géneros que lhes forem apreendidos, por lhe estar interdito o comércio com o exterior, não terão mais remédio do que submeterem-se.”

Posta esta exposição preliminar, Vellez Caroço relata os procedimentos adotados, seguiu para Bine um contingente militar, reconheceu-se a necessidade de fazer um desembarque em Canhabaque, foi recrutado um corpo de auxiliares indígenas, declarou-se o estado de sítio, realizaram-se voos sobre a ilha de Canhabaque, a ver se se atemorizavam os indígenas. São explicadas pormenorizadamente as operações em Bine, estavam presentes no contingente militar os auxiliares do régulo Monjur do Gabu, foi atacada a povoação de Bine, seguiram-se novas operações com mais auxiliares e ocupou-se Ambene e In-Hoda; houve depois operações em Meneque e Bane, seguiram-se operações em Canhabaque, o relatório refere a composição das colunas e a natureza do comando, e faz-se o histórico da operação a partir de 1 de maio, na marcha rompeu um nutrido fogo de longa sobre a coluna, Vellez Caroço acompanhado por um médico, Sant’Ana Barreto, dirigiram-se para a linha de fogo, foi uma hora de tiroteio e levou-se o inimigo de vencida, mas os rebeldes contra-atacaram, sendo repelidos, isto passou-se em Meneque, no dia seguinte as operações prosseguiram para Bane, mais tiroteio, os rebeldes fugiram; a 3 de maio, saiu uma coluna de Meneque em direção a Indena; mais fogo, as nossas tropas tiveram baixas, mas reagiram com firmeza, no fim do combate foi indiscritível a alegria de todo; enfim, a 12 dava-se ordem para a ocupação definitiva e no dia seguinte iniciou-se a evacuação dos auxiliares.

No resumo final, o governador refere que tivemos 22 mortos e 74 feridos. “A resistência foi tenaz. O estado de indisciplina era mais profundo. A propaganda dos comerciantes ambulantes, criaturas desonestas e sem noções de patriotismo e deveres cívicos, foi persistente e por largos anos exercido impunemente. Estou convencido de que acabou agora o seu reinado e ai daquele que for apanhado a permutar armas e pólvora com o indígena! Seja tudo Pró-Pátria!” O documento prossegue com um longo rol de louvores abarcando as forças intervenientes, de terra e mar, e mesmo louvado o médico pelo seu comportamento de destemor e bravura.

O ano de 1926 será vivido por Vellez Caroço com inúmeras inquietações no plano financeiro, há falta de dinheiro para pagar aos funcionários da administração, é grande o contencioso entre o Governo e o BNU, Vellez Caroço não se cansa de reclamar medidas enérgicas ao ministro das Colónias, no final do ano este governador é pura e simplesmente demitido.

Veremos com mais detalhe as situações por ele vividas no próximo texto. Já não se vivia na I República, era o Governo da Ditadura Militar.

Imagens publicadas na revista Ilustração Portuguesa, n.º 124, de 6 de junho de 1908, tem a ver com as operações militares no Cuor, fotografias de José Henriques de Mello, o primeiro fotógrafo militar português, estas operações no Cuor foram comandadas por Oliveira Muzanty, governador da Guiné, nunca até então a Guiné conhecera um contingente militar tão grande de tropa vinda da Metrópole e de Moçambique, marcou a derrota de Infali Soncó e Abdul Indjai recebeu como prémio o regulado, revelou-se um patife de todo o tamanho.
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Nota do editor

Último post da série de 11 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26908: Historiografia da presença portuguesa em África (485): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, continuamos na era do governador Vellez Caroço (39) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26908: Historiografia da presença portuguesa em África (485): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, continuamos na era do governador Vellez Caroço (39) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Estamos a viver a época das circunscrições civis, a Guiné vive numa angustiante situação económica e financeira, o próprio BNU chegou a proibir as transferências para a metrópole, houve insurreição no território do comando militar dos Balantas, de Nhacra a Jugudul, não foi fácil de sanar, os acontecimentos dos Bijagós exigiram uma expedição militar, com o governador à frente, houve muito tiroteio, mortes e feridos. Excecionalmente, este texto deu lugar a uma série de anúncios que são reveladores do grau de transparência com que o governador agia, era meticuloso na análise dos dossiês, comprova-se com o despacho que ele elaborou sobre a situação dos médicos na Guiné, era igualmente um governador que acompanhava as situações do abastecimento interno, e por isso aqui se mostra a sua decisão de impedir temporariamente a exportação de arroz, para que não faltasse este alimento básico à população.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1924 a 1925, continuamos na era do governador Velez Caroço (39)


Mário Beja Santos

O governador Vellez Caroço também se distinguiu e singularizou pela forma como comunicava com os cidadãos. Nenhum outro governador fez publicar com tanta minúcia os relatórios das operações ou explicar cabalmente os motivos que as empreendia. Vimos em texto anterior como se pauta pelo rigor e tratamento de equidade nos casos de infrações, desleixos e sanções de todo o tipo quer na administração civil quer na administração militar. Vamos começar por ver as imagens e comentá-las de acontecimentos passados em 1924, a Guiné vive ainda sequelas da Primeira Guerra Mundial, cresceu o número daqueles que pedem concessões, há sociedades agrícolas em plena atividade (embora com vida precária, como a Estrela de Farim ou a Sociedade Agrícola do Gambiel). O destaque do ano vai para os acontecimentos militares e mostra-se o teor de um despacho que tem a ver com o cuidado que o governador punha nos serviços de saúde.

Tenente-coronel Vellez Caroço
Anúncio da declaração de estado de sítio na região de Nhacra por desobediência de Balantas
Anúncio da manutenção de estado de sítio em território de Balantas e nomeação de um oficial averiguante assumindo o comando militar dos Balantas
Uma amostra de como o governador cuidava do abastecimento interno, estava atento aos preços do arroz, por isso decretou a exportação desse alimento até ver a normalização de transportes marítimos.

No Boletim Oficial n.º 25, de 26 de junho, publica-se um despacho do governador, que reza o seguinte:
“Não concordo com o parecer do Conselho de Saúde e Higiene na parte referente a considerar mais importante e de necessidade mais instante a colocação de um médico em Cacheu, do que prover o importante centro comercial, que é Bissau, com uma população tanto indígena como europeia maior do que Bolama e com tendências pronunciadas com rápido crescimento dos recursos clínicos reclamados pelo seu comércio e Câmara Municipal. De há muito venho reconhecendo essa necessidade e sempre considerei a cidade de Bissau como sendo a povoação da Guiné que melhor e mais urgentemente precisa ser dotada de um bom hospital com todos os melhoramentos que se encontram em outras colónias nossas, apesar de estarem em piores condições financeiras do que a Guiné, e por consequência, com os respetivos serviços médicos. A necessidade dos dois médicos em Bissau, quando não tivesse outros argumentos que a defendesse, bastava a circunstância providenciada de importantes lucros auferidos pelos que ali têm feito e fazem serviço, para plenamente a justificar. É incontestável que mesmo com dois médicos, o serviço clínico de Bissau é remunerado por forma tal que qualquer dos médicos fica com lucros superiores ao chefe e subchefe dos serviços de saúde da província.

Cacheu está há muito tempo sem médico, assim como o estão outros centros importantes e mais populosos da Guiné. Esse inconveniente está hoje, até certo ponto, compensado com as facilidades que há de comunicações, que permitem socorros médicos rápidos e o transporte de doentes para Bissau, como frequentemente está sucedendo. De resto, folgo bastante em constatar que o Conselho de Saúde e Higiene concorda com a necessidade de haver dois médicos em Bissau, como aliás já está consignado no Regulamento de Saúde, apresentando como único inconveniente para que Bissau seja desde já dotado de assistência clínica por dois médicos a falta que presentemente há de facultativos na província, mas, certamente o Conselho esqueceu que se apresentou recentemente na direção dos serviços de saúde o médico de Cacheu, o Dr. Sant’Ana Barreto, que muito bem podia voltar ao seu antigo lugar, visto que a Saúde considera tão imperiosa a necessidade de haver médico em Cacheu (e assim será se essa necessidade se confirmar) sendo dispensável o provimento desde já de diretor, interino, do Laboratório Central de Análises, pois esse cargo está desocupado há pelo menos quatro anos, embora oficialmente constasse que estava a cargo do sr. chefe dos Serviços de Saúde. Não há, pois, razão para deixar de atender as justas pretensões de Bissau, tendo chegado agora a oportunidade de restabelecer um pouco o equilíbrio de interesses dos médicos do quadro da Guiné, reduzindo aos limites do razoável a ucharia de Bissau, que tantos dissabores tem causados aos governadores da província pela luta de interesses que sempre provoca quando se lhe pretende bulir.

O Governador tem de orientar-se pelo bem geral ou interesses e comodidades do maior número, embora tenha de ir ferir interesses e necessidades, aliás ainda não criadas, do ilustre facultativo que é agora chamado a chefiar a secção médica de Bissau e por quem tem a maior consideração. Os outros pontos da província, e especialmente Cacheu, terão médico quando a Guiné tiver o seu quadro de saúde completo. Bolama terá dois médicos, Bissau terá dois. Cumpre-se assim o que está estabelecido no Regulamento de Saúde. É o que em última análise determino; indo para Bissau o Dr. José Vitorino Pinto e ficando ali fazendo serviço o Dr. Brandão que já lá se encontra e tem prestado serviços clínicos em Bissau a contento de toda a população. O Dr. Sant’Ana Barreto, se o sr. chefe dos serviços de saúde entender que os seus serviços são mais necessários em Bolama, poderá aqui continuar como diretor interino do Laboratório de Análises.”

Novo ciclo de rebeliões nos Bijagós, Canhabaque atacou à mão armada as forças do destacamento, o governador anuncia estado de sitio
Ficou na História com o nome Golpe dos Generais, Filomeno da Câmara pertencia à Cruzada Nun’Álvares, caminhamos passo a passo para o 28 de maio de 1926
Anúncio de que as operações em Canhabaque tiveram sucesso
Novo Governo, os Governos duram cada vez menos em Lisboa, os militares estão plenamente descontentes e começou a sua aliança com as forças conservadoras
Um dos problemas mais graves da economia guineense, havendo mesmo paralisação da economia, de tal modo que nem os funcionários públicos podiam transferir dinheiro para a metrópole, era resultado dessa suspensão do BNU, pelo que o governador autoriza as firmas comerciais a título provisório a fazer livremente transferências de dinheiro para a metrópole.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 4 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26881: Historiografia da presença portuguesa em África (484): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Guiné 61/74 - P26881: Historiografia da presença portuguesa em África (484): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Há indícios de progresso nestes tempos de grande penúria, impacto das carestias deixadas pela Primeira Guerra Mundial e a constante instabilidade política que se refletiu em governações incolores até à chegada de Vellez Caroço. A década de 1920 marca a chegada do primeiro voo de Lisboa a Bolama, de que se mostra aqui uma fotografia aérea; e surgiu a Empresa de Viação da Guiné que anuncia em sucessivos Boletins Oficiais o seguinte:
"Com o fim de estabelecer carreiras automóveis para transporte de passageiros entre Bissau e as principais povoações desta colónia acaba de se constituir esta empresa com sede nesta cidade (Bissau). As carreiras serão abertas ao público com dois automóveis, de 1 de outubro próximo em diante. Para serviço de transporte de carga temos em Bissau dois camiões à disposição dos nossos excelentíssimos clientes. Possuímos garagens em Bissau e Nhacra, e para manter com regularidade estas carreiras teremos permanentemente um automóvel Overland nesta última localidade. Passagem e fretes a preços módicos e sem competência, o gerente técnico, Adriano Pinto da Costa."
Velez Caroço terá forte contestação pela questão dos câmbios e sobretudo dos cambiais, tive a oportunidade de desenvolver esta questão no livro sobre o BNU da Guiné, tudo tinha a ver com o estado financeiro do país.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, de 1922 para 1923, é a era do governador Vellez Caroço (38)


Mário Beja Santos

Nem tudo o que domina a atualidade política e governamental está sob a égide da firmeza do governador Vellez Caroço. Há outros acontecimentos que talvez mereçam a nossa atenção. O Boletim Oficial n.º 51, de 23 de dezembro de 1922, são publicados os estatutos da Associação Desportiva de Bissau, ela tem como finalidade praticar todos os jogos desportivos e recreativos adaptáveis ao meio, futebol, críquete, ténis, jogos atléticos, etc., mas conseguir a união de toda a mocidade de Bissau promovendo passeios e festas, logo que os seus fundos permitam (confesso que não voltei a ouvir falar nesta associação, nem sei mesmo se não passou de uma boa intenção). Antes, em 18 de março, no Boletim Oficial n.º 11, uma singular notícia emanada da Secretaria dos Negócios Indígenas: “Para conhecimento dos interessados e devidos efeitos, faz-se público que na madrugada 16 do corrente se suicidou, cortando as carótidas o régulo da região de Ganadu, área na 9.ª Circunscrição Civil (Bafatá) de nome Iobá Sirá.”

Estamos agora em 1923, no Boletim Oficial n.º 21, de 26 de maio, vamos de novo ouvir falar de Jaime Augusto da Graça Falcão. Ele interpusera recurso junto do Conselho Colonial, nessa altura Falcão era administrador efetivo em Cacheu, fora punido com 30 dias de suspensão. No seu recurso Falcão alega que não houvera propósito de desrespeito, atenda-se à natureza da decisão deste Conselho:
“O motivo da suspensão foi o de o recorrente não dar cumprimento à ordem que contratara alguns indígenas da sua circunscrição para o serviço do tráfego comercial em Bolama, por entender que a ordem era ilegal, por não poder ser engajador de serviçais para particulares, tanto mais que o recorrido sabia que na circunscrição que administrava lhe eram precisos trabalhadores para a construção do edifício para a administração e para a conservação de estradas e ainda era sabido que as casas comerciais costumavam arranjar diretamente os trabalhadores de que necessitavam.
A Secretaria dos Negócios Indígenas sabia bem que aquela ordem era ilegal, tanto assim que lhe a mandou por telegrama em cifra, confirmando-a também em cifra em nota de serviço, e que se tivesse sido ouvido, como manda a lei, teria exposto quais as razões por que não dera cumprimento à ordem, mas que isso podia não agradar aos dimanantes da ordem.


Visto e examinado o processo e tudo mais que dos autos consta e ouvido o Ministério Público:
Considerando que não existem nos autos os termos da nota que a portaria recorrida reputa desrespeitosos;
Considerando que, embora a nota fosse redigida em frase menos respeitosa, isso não constitui motivo para deixar de ser ouvido o arguido, conforme manda a lei, sendo, portanto, uma formalidade legal e indispensável que tinha de cumprir-se;
Considerando que não é boa prática as autoridades administrativas compelirem-se a desempenharem o papel de engajadores, antes lhe cumprindo apenas de facultar o fornecimento de trabalhadores para a respetiva circunscrição e dentro dela, o que é diferente do que ser seu engajador;
Considerando que ninguém pode ser compelido a fazer senão aquilo a que a lei obriga; e
Não restando dúvida de que a ordem dada ao recorrente de forma indicada determinava que angariasse trabalhadores para particulares em Bolama, o que não é justo, dão provimento ao recurso e anulam a portaria recorrida.”


Mas já é tempo de voltarmos às medidas firmes e de autoridade que Velez Caroço vinha assumindo desde o início do seu mandato. No Boletim Oficial n.º 21, de 26 de maio, temos um despacho sob um processo inquérito a acontecimentos que tinham dado em Canchungo, em 20 de julho de 1922, o governador era levado a concluir:
“1.º Que Baticam Ferreira, ex-régulo, residente na Costa de Baixo, é um elemento de discórdia naquela circunscrição, sendo em volta do seu nome e com a sua própria instigação que se deram os atos de indisciplina em Canchungo
2.º Que os indígenas Emcari, irmão do Baticam; e Nhará, não só desobedeceram às ordens diretas do administrador, capitão António José Pereira Saldanha, quando mandava dispersar um numeroso grupo de Manjacos que em frente à administração protestavam contra a nomeação do chefe do Potabo, mas inclusivamente agrediram os agentes das autoridades, quando estes, no uso legítimos dos poderes que lhe confere esta autoridade, empregavam meios mais enérgicos para os compelir a respeitar as suas determinações, agredindo o Emcari e Nhará o próprio administrador;
3.º Que o indígena Vicente Macúta foi o mandatário do Baticam, sendo ele uma pessoa que andou instigando os indígenas a reunirem-se e a vir protestar a administração;

Em vista do exposto determino:
1.º Que ao ex-régulo Baticam Ferreira seja fixada a residência por cinco anos na circunscrição dos Bijagós, ficando ali debaixo da vigilância da autoridade;
2.º Que os indígenas Emcari, Nhará e Vicente Macúta sejam desterrados para a circunscrição dos Bijagós por dez anos, devendo o respetivo administrador fixar-lhes como residência uma ilha diferente daquela em que ficar residindo o Baticam Ferreira;
3.º Para sossego da região o estabelecimento da boa harmonia entre os indígenas, seja desde esta data destituído o chefe de Potabo, deverá, todavia, ser reconduzido, se em uma nova eleição entre os indígenas, a que o atual administrador deve mandar proceder imediatamente, se o seu nome for novamente indicado;
4.º Que o administrador da Costa de Baixo ouça todos os indígenas ou os grandes das regiões onde houver descontentamento com a escolha dos chefes e, em nota devidamente informada, para este Governo, proponha a realização de eleições segundo o costume indígena.”


Para concluir, vejamos agora o teor de uma nota também bastante curiosa publicada no Boletim Oficial n.º 39, de 29 de setembro, trata-se de um aviso da Direção dos Serviços de Marinha, fora encontrado nas praias de Puana e Pidjiquiti um apreciável número de bocados de madeira e sibes inteiros ainda com utilidade, mas abandonados, causando estorvo ao encalho de embarcações, quando podres estes bocados de madeira poderão prejudicar a saúde pública, é conveniente avisar os respetivos donos para procederem à sua remoção. Aviso complementar é o de estado de abandono, nas praias de Bolama e Bissau, de várias embarcações, quase todas inutilizadas, prejudicando serviços de utilidade pública como também funcionando como depósito de dejetos, os seus proprietários eram convidados à reconstrução ou à demolição das mesmas embarcações.
Tenente-coronel Vellez Caroço
Teixeira Gomes é Presidente da República
Vista aérea de Bolama tirada do avião antes de aterrar, em 1928
Um pormenor da estrada de Bissau para Bor, anos de 1930

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 28 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26859: Historiografia da presença portuguesa em África (483): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1921, começou a era de Vellez Caroço (37) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26859: Historiografia da presença portuguesa em África (483): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1921, começou a era de Vellez Caroço (37) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Na minha despretensiosa apreciação há três nomes de governadores, desde a criação da autonomia da Guiné até ao fim do primeiro quartel do século XX, que se impõem pela coragem das decisões tomadas, pela nobreza de espírito e um certo olhar visionário: Pedro Ignácio de Gouveia, Carlos Pereira e Vellez Caroço. Este último aparece na Guiné após os turbulentos acontecimentos da pacificação de Bissau em 1915 (que ainda hoje não estão verdadeiramente deslindados, importava à propaganda oficial exaltar o heroísmo de Teixeira Pinto e procurar pôr na sombra de atrocidades praticadas por Abdul Indjai e os seus irregulares), a penúria da guerra, o Sidonismo, a passagem meteórica de vários governadores, que se limitaram à rotina, e não havia dinheiro para o desenvolvimento. Vellez Caroço veio disposto a fazer obra, a impor a disciplina, a proibir a preguiça e a lançar as pedras de projetos indispensáveis para manter a economia da Guiné viável às exportações. Veremos adiante que Vellez Caroço encontrará muita contestação, sobretudo por parte das casas comerciais, é uma situação que eu já tinha detetado quando li os relatórios financeiros da delegação do BNU de Bolama. O que se pode dizer é que Vellez Caroço introduz um modo de liderança e de respeito pelas funções a que se obrigarão os governadores seguintes, caso de Leite de Magalhães ou Carvalho Viegas.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1921, começou a era de Velez Caroço (37)


Mário Beja Santos

O Governador Vellez Caroço é figura dominante do Boletim Oficial no ano de 1921. Até chegar, o que nos é dado a saber é uma pura rotina, parece estar tudo em conformidade dentro dos trâmites usuais. Com Vellez Caroço, ele assume-se como a voz do Governo, quer gestões sérias, vai atacar a indisciplina, enfrenta com rigor a sonolência burocrática. Logo no Boletim n.º 35, de 27 de agosto, aparecem duas portarias que são elucidativas de que quer seriedade nos negócios da administração e premeia os comportamentos exemplares. No primeiro caso, veja-se o que ele escreve:
“Tendo-se dado ultimamente nesta província alguns conflitos de caráter pessoal entre diferentes funcionários e entendendo que devo terminar com tão pouco edificantes exemplos, hei por conveniente mandar publicar:
Ao fazer a minha apresentação nesta província, e referindo-me à disciplina que desejo manter e manterei custe o que custar, declarei: ‘admito que se deem conflitos entre diferentes funcionários, no desempenho das suas funções, mas não posso tolerar, nem tolerarei, tanto nas participações de factos ou delitos, como na apresentação de queixas, se faça uso de uma linguagem despejada e se empreguem termos injuriosos para a dignidade pessoal seja de quem quer que for. Faça-se justiça mas guarde-se a compostura e o decoro.’

O funcionalismo, tanto o militar como o civil, deve impor-se à consideração pública pela sua extrema correção, pela sua delicadeza e fina educação; deve ser um exemplo frisante de altas virtudes cívicas, do mais acendrado patriotismo, do respeito aos poderes constituídos de dedicação à instituições.
Infelizmente, para a disciplina, para o bom nome de alguns funcionários, que ocupam posições de destaque, e para a ordem social pela qual, eu, por dever do cargo, tenho de velar, têm-se ultimamente dado factos que em absoluto se afastam deste ponto de vista.

A bem de todos, e mais uma vez, como manifestação de benevolência e espírito de conciliação, previno e chamo a atenção dos funcionários sobre a forma como encaro este problema de ordem e como interpreto as minhas funções de primeira autoridade da província, na manutenção da disciplina: podem todos ter a certeza que não me afastarei uma linha só que seja do cumprimento dos meus deveres e que, fiel executor das leis, igualmente aplicarei sem tergiversar o rigor dos regulamentos.”


Noutra portaria, Vellez Caroço louva os altos serviços prestados pela guarnição do rebocador Bissau, louvando particularmente o chefe da missão geoidrográfica, o imediato do rebocador e um conjunto de sargentos e praças. E o Boletim Oficial começa a publicar decisões que espelham o que acima o governador advertiu. É o caso do despacho publicado no Boletim Oficial n.º 35, estávamos em 27 de agosto:
“Conformo-me com a opinião do sr. Tenente-Coronel Araújo Júnior, por mim nomeado para proceder às averiguações sobre a queixa apresentada pela Casa Pereira Neves, de Bissau, contra o procedimento do Administrador do Concelho, sr. dr. Francisco Augusto Regala. Não pode invocar-se nem se estabelecer precedente de cada um fazer justiça pelas suas mãos. É contra os mais elementares princípios de justiça e revela inclusivamente uma falta de confiança nas autoridades encarregadas de velar pela ordem.

Por este Governo serão dadas as instruções a todas as autoridades administrativas para que tais factos se não repitam, instaurando com escrupuloso cuidado o processo de investigação e enviando-se a Juízo, devidamente testemunhado, o respetivo auto de notícia. Em harmonia com esta doutrina, oficie-se desde já ao sr. Administrador do Concelho de Bissau para que proceda às devidas investigações sobre os crimes de furto praticados na Casa Pereira Neves e que remeta em seguida o respetivo auto de notícia ao tribunal competente.”


No mesmo Boletim publica-se o despacho do governador quanto a um processo de inquérito mandado proceder aos atos do administrador interino da 6.ª Circunscrição Civil (Papéis):
“Em face do processo de averiguações e respetivo relatório, apresentado neste Governo pelo sr. Tenente-Coronel Araújo Júnior, e referente ao Administrador Vitorino António Casse Mendes, verifica-se que são caluniosas as acusações produzidas contra o referido administrador, que era acusado de condenar os indígenas ao pagamento de multas excessivas e injustificadas e de aplicar-lhes bárbaros castigos corporais.
Folgo de ter ocasião de manifestar a minha satisfação por não se terem confirmado tais acusações, pois embora entenda que os administradores de circunscrições, isolados e sem força pública que os possa apoiar, precisam por vezes de empregar meios enérgicos para manter a disciplina, merecem-me a maior reprovação os exageros e os castigos corporais aplicados como sistema.

Encontrarão sempre as autoridades desta província em mim o maior apoio na defesa do seu prestígio, quando injustamente agravado: não regatearei louvores a quem os merecer; mas, se procedendo assim cumpro simplesmente com os deveres do meu cargo, correlativamente é-me imposta obrigação de fazer justiça, punindo os que se desmandarem.
É com esta orientação que, concordado com as conclusões do relatório do sr. Tenente-Coronel Araújo Júnior, por mim nomeado para proceder a averiguações sobre os atos praticados pelo administrador de Bor, aprovo o seu procedimento enviando a Juízo e exigindo responsabilidade aos indivíduos que falsamente acusaram o referido administrador de faltas tão graves.”


Em outubro, Vellez Caroço faz publicar as propostas orçamentais para 1921-1922, aqui se publica um extrato:
“A Província da Guiné tem as suas finanças equilibradas e tem havido inclusivamente saldos orçamentais, mas, devemos confessá-lo, isso tem sido principalmente devido a não se fazerem melhoramentos com a largueza de vistas que o desenvolvimento comercial e agrícola da província exigem; a ter um constante défice de funcionários, porque poucos são os que querem vir para esta província, onde, a par de uma vida caríssima, verdadeiramente incomportável para quem não negoceia ou não tem que vender, há a suportar as agruras de um clima quase inóspito, e ao qual, só rodeado de comodidades e de um relativo bem-estar, o europeu pode resistir; à incidência de uns direitos excessivamente pesados sobre a exportação das oleaginosas, principal riqueza da Guiné, dificultando-lhe assim a livre concorrência nos mercados (…)
Assim, em breve regulamentaremos o trabalho indígena, melhoraremos os portos de Bissau e Bolama, terminando a construção do cais acostável do Pidjiquiti e consertando a ponte, que ameaçava ruína para as embarcações de maior tonelagem; terminaremos as obras da ponte acostável de Bolama (…)
Somos absolutamente contrários à orientação até agora seguida de terem imobilizados os saldos da colónia, que atingem uma quantia superior a mil contos, sem vencimento de juro algum, quando esses fundos só à colónia pertencem. Como início deste programa e para criar receitas compensadoras que permitam ao orçamento da Guiné comportar o aumento das despesas, onde principalmente avultam o acréscimo dos vencimentos aos funcionários civis e militares, proponho à consideração das entidades competentes as seguintes propostas orçamentais.”


Foram assim os primeiros meses da governação de Vellez Caroço.

O anúncio da chegada do Tenente-Coronel Jorge Frederico Vellez Caroço
Tenente-Coronel Vellez Caroço
Aldeia Fula, 1910
O Geba em Bafatá

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 21 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26827: Historiografia da presença portuguesa em África (482): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, estamos em 1920 (36) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Guiné 61/74 - P26838: Notas de leitura (1799): José Gomes Barbosa 'versus' Jorge Frederico Vellez Caroço no Boletim Oficial de 1 de julho de 1922 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2024:

Queridos amigos,
Permitam-me uma confissão. Há uns bons meses, dirigi-me à bibliotecária da Biblioteca da Sociedade de Geografia, agradecendo-lhe todas as amabilidades de que tenho sido alvo ao longo destes anos, indesmentíveis ajudas em encontrar documentação com realce para as minhas investigações, e confessei-lhe que ia mudar de ramo, fazer outras coisas. Olhando-me com firmeza, disse-me prontamente que não aceitava tal resposta, que eu devia pensar seriamente que havia uma pesquisa à minha espera: primeiro, consultar o Boletim Oficial de Cabo Verde e da Guiné, até à separação das duas colónias; e, segundo, percorrer por inteiro o Boletim Oficial da Província da Guiné, estas publicações, observou, trazem-me por vezes surpresas que não constam nos artigos.
O que de facto aconteceu quando, lateralmente na sequência cronológica me pus num rasto do autor da única História da Guiné, João Barreto, veio de Margão para Lisboa, aqui terá permanecido ano e meio, seguiu depois para Cabo Verde, em plena Primeira Guerra Mundial, andou por Santiago e Ilha do Fogo, irá aparecer na Guiné em 1919, primeiro em Cacheu, depois em Bafatá, mais adiante em Bolama, onde foi alvo de grande reconhecimento pelo seu trabalho como tenente médico de Saúde Pública. Ao folhear o Boletim Oficial de 1 de julho de 1922, encontrei este naco de prosa que muito nos dá que pensar.

Um abraço do
Mário



José Gomes Barbosa versus Jorge Frederico Vellez Caroço

Mário Beja Santos

Depois de ter escrito um livrinho sobre um afamado epidemiologista goês, muito louvado em Bolama na década de 1920, de nome João Barreto, decidi-me consultar por todo este período o Boletim Oficial da Província da Guiné, o que faço com bastante entusiamos na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa. Estes boletins têm maioritariamente informações sobre chegadas e partidas de funcionários, promoções e exonerações, relatórios de saúde pública, taxas alfandegárias, predomina o formalismo e a rotina. Só raramente uma notícia assombrosa, um soco no estômago, algo que nos ajuda a entender melhor a mentalidade num certo tempo e num certo lugar. No Boletim Official n.º 26, de 1 de julho de 1922, chamou-me a atenção o processo disciplinar instaurado contra o professor oficial José Gomes Barbosa. Não posso resistir de publicá-lo na íntegra, ocupa as páginas 300 e 301 do referido Boletim:

“Tendo o primeiro oficial, interino, da Secretaria do Governo, José Lourenço da Conceição Leitão, instaurado, por ordem superior, um processo disciplinar contra o professor José Gomes Barbosa, foram a este enviados os seguintes requisitos:

1.º Por que sendo funcionário público, proferiu na loja do sr. João Marques de Carvalho, comerciante estabelecido nesta praça, palavras que demonstram bem o seu nenhum respeito pela pátria portuguesa?

2.º Como professor, devia ser o primeiro a reprimir campanhas de descrédito contra a pátria portuguesa. Por que foi que na loja referida perfilhou as palavras escritas por René Maram?

3.º Por que na mesma loja disse que estávamos sendo governados por mer… e quanto o dono da loja lhe disse que fosse ao palácio dizê-lo a Sua Ex.ª o Governador, por que respondeu que não era quem o dizia, mas sim o René Maram no seu livro?

Assina o instrutor do processo disciplinar, Conceição Leitão

O arguido respondeu nos seguintes termos:

Resposta ao 1.º quesito: Não houve nas palavras proferidas pelo signatário nenhuma falta de respeito para com a pátria portuguesa, que ama e venera, mais que sua própria mãe, como mãe que é de todos os portugueses. O signatário preza-se de ser tão bom português como os melhores, nascidos em Portugal, na metrópole. Houve unicamente uma troca de palavras entre o signatário e alguns dos presentes, e no decorrer da conversação saíram aquelas desgraçadas palavras, que lastima e se arrepende de ter proferido.

Resposta ao 2.º quesito: Como professor, e como português, nunca fez campanhas de descrédito contra a pátria portuguesa. Mormente agora, que é um acontecimento mundial de travessia de Portugal às terras de Santa Cruz, feita por dois heróis, dois portugueses, enfim, os Exmos. Srs. Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que tão alto elevou o nome português, o nome de todos nós.
Não perfilhou as palavras escritas por René Maram antes talvez as tivesse proferido com azedume, porque branco, conquanto natural de Cabo Verde, e portugueses acima de tudo, também se sentia magoado.

Resposta ao 3.º requisito: De nenhum ato de Sua Ex.ª o Governador tem o signatário conhecimento que o levasse a proferir semelhante frase, referindo-se ao mesmo Exm.º Senhor. Tem o mais profundo respeito por Sua Ex.ª, como homem e Governador. Não se lembra de ter referido semelhante frase com referência a Sua Ex.ª o Governador. A conversação que deu origem às frases que me atribuíram e que confessei ter proferido, teve lugar não na loja de comércio do sr. João Marques de Carvalho, mas sim num anexo do mesmo estabelecimento.

É quanto me cumpre dizer em resposta aos quesitos enviados. Bolama, 24 de junho de 1922, José Gomes Barbosa professor oficial.

Sua Ex.ª o Governador da Província deu por último o seguinte despacho:

“Vistos os presentes autos, mostra-se que o professor oficial da escola primária do sexo masculino, em Bolama, José Gomes Barbosa, esquecendo que deve a si mesmo, ao nome português que usa e muito especialmente à nobre missão do Governador que lhe está confiada, proferiu, em público, num estabelecimento desta cidade, umas frases insultuosas para os europeus, para o Governador da Província e, inclusivamente, chegou a renegar a sua própria nacionalidade, dizendo que não era português mas sim cabo-verdiano; e,

Considerando que este professor, pela sua ilustração, exerce uma certa influência entre os seus conterrâneos e que a sua propaganda contra os europeus aqui residentes pode trazer consequências graves;

Considerando, que a fraseologia empregada pelo professor Barbosa, além de imprópria para um indivíduo da sua categoria social, é deprimente e vexatória para a sua raça, admitindo que a pureza do seu sangue seja de uma incontestável autenticidade – o que queremos acreditar porque o sr. Barbosa o afirma?

Considerando ainda, que dando o professor Barbosa circulação a uma manifestação de ódio do preto contra o branco, com imagens e frases que a par de uma grosseria e baixeza de sentimentos, denotam uma crassa imbecilidade e asinina estupidez, está, não somente acirrando ódios e malquerenças do cabo-verdiano contra os metropolitanos, mas, inclusivamente, incitando o preto contra o branco, o que é inadmissível e perigoso; mas,

Atendendo a que o professor José Gomes Barbosa, por completo se retrata das informações que fez e na sua resposta aos quesitos dá cabais satisfações a todos nós, portugueses:
Determino que este funcionário seja repreendido com repreensão averbada no seu registo disciplinar, publicando-se este despacho no Boletim Oficial da Colónia, com a resposta que ele dá aos quesitos que lhe foram propostos, para que tenha toda a publicidade a reparação, visto que público foi o agrado. Cumpra-se e publique-se, Jorge Frederico Vellez Caroço.”


Governador da Guiné Jorge Frederico Velez Caroço
Bolama no tempo do Governador Velez Caroço e do professor oficial José Gomes Barbosa
Nunca encontrei comunicação publicitária como esta, a Loja Nova de António Machado era realmente irresistível
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Nota do editor

Último post da série de 19 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26817: Notas de leitura (1798): "Pára-quedistas em Combate 1961-1975", por Nuno Mira Vaz; Fronteira do Caos Editores, 2019 (2) (Mário Beja Santos)