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quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27117: Historiografia da presença portuguesa em África (493): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1937) (48) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Vamos finalmente saber alguma coisa sobre as operações de Canhabaque, que decorreram no ano anterior, o governador concede múltiplos louvores e vale a pena observar um punhado de régulos premiados, um bom número deles irá aparecer no apoio às autoridades portuguesas, durante a luta de libertação. A colónia vè crescer a sua administração, estruturam-se mais e mais serviços, o governador vê-se que tem mão dura com os atos de corrupção. Pela leitura atenta das reuniões de Conselho de Governo vê-se que há um apreciável anseio em expandir as infraestruturas, em melhorar a urbanização de Bissau, nesta altura é inevitável a transferência da capital de Bolama para aqui, aliás os diferentes serviços básicos vão sendo transferidos, desde a saúde às comunicações. Há expetativas que ficarão por concretizar, irão materializar-se quando o comandante Sarmento Rodrigues aqui chegar com alguns alforjes de dinheiro e um dinamismo insuperável.

Um abraço do
Mário


A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1937 (48)


Mário Beja Santos

O grande destaque para os acontecimentos deste ano é o do crescimento da Administração, espalha-se de modo capilar por todo o território, veremos, enfim, referência aos acontecimentos de Canhabaque, há mão dura para os atos de corrupção. Regressou o major Carvalho Viegas à Guiné, depois de uma apreciável ausência, em que este substituído pelo Encarregado de Governo, capitão Salvação Barreto. A A.E.G. Lusitana, representante da Telefunken, fica responsável pelo fornecimento e instalação na Guiné de postos radiotelefónicos e radiotelegráficos. Já no segundo semestre será criada a secção de estatística da colónia (suplemento ao Boletim Oficial n.º 35, de 2 de setembro); processa-se formalmente uma orientação da lavoura com a criação de um organismo dito estreme (puro, que não tem mistura) destinado a estudar todos os problemas que se relacionam com a produção agrícola, o organismo chama-se Conselho Técnico da Agricultura, tem a principal finalidade de promover que sejam modificados os métodos e sistemas de agricultura empregados pelos indígenas (BO n.º 39, de 27 de setembro, com a legislação respetiva publicada no BO n.º 40).

Falou-se atrás que o Boletim Oficial vai dando conta de várias demissões por roubos administrativos, como se passa a referir. No Boletim Oficial n.º 3, de 18 de janeiro, ficamos a saber que Jorge António Medina, secretário do Quadro Administrativo e chefe de posto, que estava na inatividade por dois anos, era arguido de ter desviado em seu proveito próprio, do cofre da Administração da Circunscrição Civil de Farim, uma quantia superior a 28 contos, e tinha pretendido atribuir o desvio ao aspirante Eduardo Melo, na data gravemente doente no hospital de Bissau, onde faleceu.

Nos autos provou-se a má-fé com que procedera, ludibriando o seu superior hierárquico, que na sua honestidade confiara; havia contra ele as agravantes de já ter sido punido com a pena de regresso à categoria inferior em consequência de um desvio de 6 contos e também pelo desaparecimento de conhecimentos de cobrança do imposto de palhota, numa quantia superior também a 6 contos.

O conselho disciplinar, de forma retórica procede a despacho, elabora portaria a demiti-lo; na mesma data, o conselho disciplinar demite o professor auxiliar do ensino primário Zeferino José Simão Monteiro de Macedo por atos praticados contra a moral e prestígio da função pública, tinha levado alunos de ambos os sexos da escola oficial a seu cargo a banharem-se no rio, em completo estado de nudez e numa promiscuidade imoral; levou os alunos a uma dança regional, caracterizadas por gestos e atitudes obscenos, dançando conjuntamente com eles… Houve depois relações sexuais com uma aluna, com a mulher de um aluno.

Foi-me dado ver pela primeira vez que havia apartheid puro e duro, consagrado na legislação. No Decreto n.º 27:491, do Ministério das Colónias, publicado no Boletim Oficial n.º 9, em 1 de março, pode ler-se, tendo em consideração que os caminhos-de-ferro de algumas colónias não dispõem de carruagens de 3.ª classe próprias para nelas puderem viajar os cabos e os soldados europeus, era necessário providenciar que se evitasse que aquelas praças viajassem em promiscuidade com os indígenas durante largos períodos de muitas horas; o governador-geral do Estado da Índia tinha procurado providenciar sobre a matéria, a fim de ser mantida a dignidade da farda. Assim sendo, era decretado que quando os cabos e soldados europeus viajassem, por motivo de serviço, em caminho de ferro onde as respetivas carruagens de 3.ª classe não possuíssem compartimentos especiais para europeus, sendo apenas destinado a indígenas, tinham o direito ao transporte em 2.ª classe.

Temos finalmente uma referência a Canhabaque, consta da Portaria n.º 37, Boletim Oficial n.º 13, de 20 de março. Ficamos a saber que tinha cessado as medidas de exceção do arquipélago dos Bijagós:
“Sendo certo que o prolongado estado de insubmissão do indígena – obrigando o Governo à adopção de um regime de força – o empobreceu pela perda do seu armentio (rebanhos) e outros valores, o que aconselha que se anotem medidas de proteção que restabeleçam, naquela ilha, o primitivo índice de riqueza indígena, determina-se que entre imediatamente em vigor:
1.º Que seja restabelecido, na ilha de Canhabaque, o regime de administração civil, constituindo a área da ilha um posto administrativo com sede em Inorei integrado na circunscrição civil dos Bijagós;
2.º Que seja criado, na mesma ilha, um centro comercial fixado na sede do posto, sendo expressamente vedado o exercício do comércio fora dele;
3.º Que a concessão de licenças do comércio fique rigorosamente limitada a firmas individuais ou coletivas que se encontrem matriculadas no Tribunal do Comércio.”
E os indígenas de Canhabaque passavam a ter completa liberdade de se movimentarem.

No suplemento ao n.º 14 do Boletim Oficial n.º 9, de 8 de abril, publicam-se várias portarias emanadas do gabinete do governador, louvores. “Terminadas as operações militares na ilha de Canhabaque, com o bom êxito das quais ficou a Colónia inteiramente pacificada, e sendo de justiça publicamente patentear o esforço dos que expuseram a vida em serviço da Pátria e da civilização, não se poupando a sacrifícios, mostrando patriotismo, desinteresse pessoal e destemor, operando numa região de climas deveras inóspito, e através de uma serrada vegetação em que todas as emboscadas são fáceis”, louvam-se tenentes de infantaria e um tenente-médico, dois sargentos, vários primeiros-cabos, é promovido a capitão de 2.ª linha o então tenente de 2.ª linha, régulo de Badora, Boncó Sanhá, pela maneira decidida como mandou os auxiliares do seu regulado durante as operações na ilha de Canhabaque; também promovido a capitão de 2.º linha o régulo de Sancorlá, Bram Jam, pela coragem, brio e valentia que deu provas num combate, apesar de ver cair morto, a seu lado, o seu filho primogénito, a tenente de 2.ª linha, o alferes de 2.ª linha, régulo do Ganadú, Demba Danelho, pela dedicação, coragem e valentia que dera provas; e também promovidos a alferes de 2ª linha os régulos de Quinará, Buli Jassi, Braima Baldé e do Cossé, Infali Baldé, pela coragem e valentia que deram provas.

E termina-se com mais medidas disciplinares, constantes do Boletim Oficial da Guiné n.º 46. Desta feita estava envolvido o capitão do extinto quadro de administração de saúde das colónias, António das Neves Jacob:
“a) Sendo Fiscal do Hospital de Bolama, apesar de fazer expedir de uma maneira irregular circulares para o fornecimento de géneros para dietas, continuava a proceder incorretamente, não respeitando as propostas mais vantajosas, prejudicou os interesses do Estado;
b) Pretendeu mancomunar-se com o seu subordinado e inferior hierárquico, combinando com este as repostas a dar ao encarregado do inquérito;
c) Falta de lealdade para com o diretor do hospital, dando-lhe a assinar um recibo e não lhe levando à assinatura o talão respetivo, diversamente escriturado;
d) Praticou graves irregularidades de escrituração das contas e recibos dos doentes;
e) Serviu-se de dinheiros do Estado para pagamento das suas contas circulares, sem lhes ter dado entrada na fazenda, como cumpria.” Com todas as atenuantes somadas, não acusando o seu registo disciplinar castigo algum, o governador aplicou-lhe o mínimo de pena de inatividade por 181 dias, ficou com direito às regalias concedidas aos militares das Forças Armadas e tem vencimento militar, perde as gratificações de comissão e de serviço.


Bombas contra Franco
Luta da Mantampa, Papéis, Guiné Portuguesa
Imagem de evento Bijagó, 1946
'Beleza Bijagó, Guiné', fotografia de Domingos Alvão, postal fotográfico da 1.ª Exposição Colonial Portuguesa, 1934
Indígena Bijagó, Guiné, 1940

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 6 de agosto de 2025 > Guiné 61/74 - P27097: Historiografia da presença portuguesa em África (493): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, (o segundo semestre de 1936) (47) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Guiné 61/74 - P27097: Historiografia da presença portuguesa em África (493): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, (o segundo semestre de 1936) (47) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2025:

Queridos amigos,
Em jeito de desabafo, a leitura que fiz deste segundo semestre de 1936 é uma seca, tudo muito arranjadinho, uma administração composta com gente a ir para férias ou delas regressar, nomeações, passagens à aposentação, não tivesse havido, como sabemos, a campanha de pacificação de 1936 em Canhabaque, teríamos que perguntar porque é que dela jamais se faz menção a não ser nos primeiros dias de janeiro, onde se fez referência no texto anterior e agora se volta à carga aquela acalorada sessão do Conselho de Governo que aqui se reproduz, visto à distância destas décadas (mais de nove) há qualquer coisa de estrambótico naquela reunião em que a votação resultou empatada. Foi me dado ler o Decreto que saiu do punho de Salazar para a criação da Legião Portuguesa, pareceu-me útil aqui fazer a sua menção.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné (o segundo semestre de 1936) (47)

Mário Beja Santos

Na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, onde regularmente trabalho, pus-me à cata de uma fotografia do Major Carvalho Viegas, foi encontrada numa publicação que tem a ver com a 1.ª Conferência dos Governadores Coloniais, que decorreu em Lisboa, houve discursos de Salazar e do ministro Armindo Monteiro, Carvalho Viegas discursou, disse logo que só tinha cinquenta dias da Guiné, mas que entusiasmo não faltava para que a colónia progredisse. Prometeu à assistência que se ia centrar no essencial: a questão financeira e económica, a administrativa, a assistência ao indígena.

Lendo-o, passadas todas estas décadas, e sabendo alguma coisa do que era a Guiné nesta altura, as suas observações são surpreendentes: a situação financeira da Guiné não inspirava cuidados. Tudo se satisfazia com os recursos da colónia, a Guiné por sis só se bastava, tinha uma receita de 22 mil contos. Certamente que havia alguns empecilhos pelo caminho, logo a questão dos cambiais e lembrou a reclamação da Casa Gouveia no sentido de se anular o diploma em vigor e voltar ao regime dos 25% de entrega de cambiais. O novel governador fará discretamente uma defesa dos cambiais dizendo que eles são benéficos para o Estado, funcionários e particulares, ao comércio importador para pagamento de géneros da primeira classe, até para a Companhia Colonial de Navegação. Recordou que a posição devedora da Guiné era desafogada.

Falando da economia, lembrou aos presentes que tinham diminuído as cotações das oleaginosas, por si só diminuíram o poder de compra do indígena, mas também diminuíram as importações, com prejuízo quer para o país quer para a marinha mercante. A crise mundial chegara à Guiné e caminhava-se para uma diminuição de receitas.


Fez uma dissertação sobre as oleaginosas, mas não afastou um cenário de tremendas dificuldades: “Apesar do encorajamento e promessas que lhe poderão ser feitas, das distribuições de sementes, etc., o indígena que se recuse a renovar o seu esforço, de que nada de positivo obterá. Se não lhe dá a absoluta certeza que poderá vender os seus produtos em condições de suficiente renumeração, ele afastar-se-á de nós, da nossa civilização, voltará para a sua vida primitiva de antanho.” Falando da assistência ao indígena, declara aos presentes de que o Governo da colónia tem um programa para ela: assistência médica, assistência agrícola e zootécnica, assistência escolar rural e de beneficência. Não deixa de nos surpreender dizendo que é fundamental criar na colónia um movimento associativo rural.

E mudando de discurso recorda à assistência que a Guiné está vivendo condições que não são boas, está passando maus dias, as exportações são quase maioritariamente amendoim e coconote, a exportação de arroz não passa ainda de uma experiência, o comércio vive do descoberto das suas contas nas casas financeiras da Europa. E certamente que terá surpreendido quem o ouvia: “Se um esforço de imediato heroico se não produz, a colónia desmoronar-se-á, e, em poucos anos, de tudo quanto o comércio e o Estado fizeram, nada restará, absolutamente nada, que recorde Portugal ter feito alguma coisa para atualizar a colónia.” Está ciente que não se podem proporcionar mais recursos às necessidades existentes à colónia, mas há o espectro da ruína total, o verdadeiro desaparecimento de edifícios e do material dos serviços públicos.


Se fiz este destaque, é para recordar ao leitor no texto anterior, apresentado dois anos mais tarde, a narrativa toma outro tom, quem investiga estas matérias sente o embaraço nas dissonâncias da narrativa, é bem verdade que naquele ano de 1934 a austeridade era fortíssima, imposta para haver o milagre financeiro de Salazar, dois anos depois o discurso é completamente tranquilo e pede-se muitíssimo para haver boas infraestruturas portuárias, rodoviárias, de saúde, de comunicações – quem investiga tem que ter muita prudência em avaliar as exposições, umas em que predomina a escuridão, outras feitas de luz, quase encadeadora.

Estamos agora já no segundo semestre de 1936 e surge a ata da segunda sessão do Conselho de Governo da Colónia que se realizou em 4 de janeiro desse ano. O governador toma a palavra dizendo que segundo informações oficiais, como protesto a medidas promulgadas por este Conselho, em 23 de dezembro do ano findo, um grupo de indivíduos capitaneado pelo cadastrado Jaime Duarte, no dia 2 do corrente, entrou em várias casas estrangeiras para as compelir a encerrar os seus estabelecimentos comerciais. O governador trazia uma proposta onde se aludia ao incitamento à indisciplina pela Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau, exatamente no momento em que se proclamava o estado de sítio da ilha de Canhabaque e, conforme já se escreveu no texto anterior, fora decretada a dissolução desta associação.

O vogal Granger Pinto pediu a palavra dizendo que era infundada esta acusação, contestou que ela tenha provocado incitamento à indisciplina, houvera, é certo, um grupo de indivíduos que entrara na sé da Associação, a protestar legislação referida, a Associação não tivera forças para o fazer retirar. O que efetivamente acontecer é que o comércio da cidade de Bissau, em sinal de protesto contra tal medida legislativa encerrara as suas portas durante os dias que seguiram à publicação do diploma, mas tudo correu em normalidade.

O governador veio à estacada dizendo que houvera entendimentos prévios para se proclamar a greve, ato punível, que a associação se mancomunou com os tais indivíduos, de novo Granger Pinto diz que tudo tinha corrido normalmente, que Mário Campos e Alfredo Vieira das Neves tinham embarcado para Bolama para falar com o governador, à procura de uma plataforma conciliatória, só que a embarcação fora recebido a tiros, o governador interrompe e diz que não é verdade, “o governador da colónia não recebe, nem trata com desordeiros, nem lhe fora pedida antecipadamente para receber qualquer indivíduo ou comissão.” O que em verdade acontecera é que uma vedeta da delegação marítima de Bolama tinha feito sinal à embarcação que transportava o senhor Mário Campos para que parasse, que a embarcação não obedeceu e por esse motivo fora disparado um tiro para o ar, que ouvido o tiro a embarcação do senhor Mário Campos parou.


Interveio agora um outro vogal, de nome José Júlio de Sousa, dizendo que não está convencido que a Associação tivesse provocado o incitamento à indisciplina social. Entende que antes da promulgação do diploma cujo projeto se discute neste Conselho, se deveria proceder a um rigoroso inquérito aos atos de que é acusada. Deve frisar que não pode e nem deve aceitar o projeto do diploma por entender que o seu objetivo só prejudica os interesses do comércio e muito especialmente os da colónia. O governador retoma o seu discurso dizendo que a direção da Associação se manifestara sediciosamente. Agora intervém o senhor Capitão Lima Júnior dizendo que a manifestação havida em Bissau não apresentava senão um protesto contra a legislação, e que não a votava até haver um processo de inquérito. Voltando ao uso da palavra, o governador retorquiu dizendo que já tinha mandado proceder a um rigoroso inquérito, que se concluiu ter havido um pacto com os desordeiros e que o programa enviado ao ministro, redigidos em termos incorretos, era assinado pelo presidente da Associação. O Capitão Lima Júnior responde que seria bom saber se o telegrama fora forjado sem que os interessados dele tivessem conhecimento, interrompe o governador dizendo que o telegrama do presidente da direção agira contra os atos emanados do Conselho da colónia. É a vez de tomar a palavra o delegado do Procurador da República dizendo que estavam proibidas as greves e que como representante do Ministério Público no Conselho votava o projeto do diploma proposto.

Submetida a proposta à votação houve empate, o governador pediu a discussão para outra sessão. Estamos agora em outubro, no Boletim Oficial da Guiné n.º 44 vem o texto do Decreto-Lei n.º 27:058, estava constituída a Legião Portuguesa. O texto é inequivocamente escrito por Salazar, veja-se um extrato:
“Dura há dez anos nova ordem política criada pelo Exército e mais uma vez confirmada pela vontade expressa da grande maioria dos portugueses. À sombra dela tem sido possível reparar as ruínas do passado e lançar as bases do nosso ressurgimento material e moral. Mas, acima de tudo, tem-nos permitido gozar o benefício inestimável da paz. Sempre que se tem querido perturbá-la, a força armada a tem defendido e sustentado. Ela continua, na verdade, a ser a grande reserva moral da Nação.
Mas as forças do mal não desatam. Um inimigo de especial virulência tenta instalar-se no corpo social das nações, infiltrando-se nas escolas, nas oficinas e nos campos, nas profissões liberais e nas próprias fileiras. Nega a Pátria, a família, os sentimentos mais elevados da alma humana e as aquisições seculares da civilização ocidental (…) As formas de atuação do inimigo convencem da utilidade de uma força composta de ardentes e esclarecidos patriotas que, sendo por si mesma uma fonte de saúde moral na sociedade, ajude, caso venha a ser necessário e na esfera de ação que lhe venha a ser atribuída, as forças regulares contra os inimigos da Pátria e da ordem social.
E para que não se corrompa nem desvie dos seus fins, antes viva a exaltação das virtudes cívicas e militares, dá-se-lhe a forma de corpo organizado, sujeito a rigorosa disciplina e diretamente subordinado ao Governo.”


Um dos aspetos mais assombrosos deste Boletim Oficial, é que ao longo de 1936 jamais se ouvirá o resultado da campanha de pacificação de Canhabaque, estamos muito longe do tempo do governado Vellez Caroço que punha em letra de forma este Boletim o que fazia e com que resultados.
Revista Ilustração. Lisboa n.º 205, 1.07.1934. Aspetos da aldeia indígena guineense e imagens dos africanos expostos aos olhares do público. Fonte Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Aspeto da aldeia bijagós e um dos muitos retratos de 'Rosinha' a jovem balanta. (Fonte Maria do Carmo Serén. A Porta do meio, a Exposição Colonial de 1934. Fotografias da Casa Alvão. Porto: Centro Português de Fotografia, 2001)
Espaço onde esteve o Antigo Quartel do Centro de Instrução Militar, em Bolama
Reconhecimento do rio Geba, desde a foz do Corubal até ao rio Geba, 1897, Comissão de Cartografia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 30 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27071: Historiografia da presença portuguesa em África (492): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, (o primeiro semestre de 1936) (46) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27071: Historiografia da presença portuguesa em África (492): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, (o primeiro semestre de 1936) (46) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2025:

Queridos amigos,
O Major de Cavalaria Luís António Carvalho Viegas entrou de pingalim em riste, destituiu a Assembleia Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau, encontrou-lhe sérias ligações com o que se estava a passar naquele exato momento na sublevação em Canhabaque, resistente contra uma medida do Governo que estava em vigor em quase a totalidade das colónias, mordera mesmo quem lhe estava a fazer bem, pois não tendo fundos para comprar o edifício para a sua sede pedira um adicional sobre a importação no porto de Bissau, e revelava claramente um desinteresse absoluto na colaboração com o Governo, isto no mesmo Boletim Oficial em que por portaria se ordenava um rigoroso inquérito aos acontecimentos ditos anormais da cidade de Bissau. Criou-se o Império Sporting Club de Bissau, muito provavelmente a partir de 1951, quando desapareceram colónias e apareceram as províncias ultramarinas terá nascido o Sporting Clube de Bissau. Mais adiante Carvalho Viegas também aparece impetrante contra os procedimentos da Associação Comercial de Bolama. E provavelmente o leitor irá ficar com o resumo do documento enviado para a 1.ª Conferência Económica do Império Colonial Português, era assim a Guiné em 1936, curiosamente o que se pede é o que irá ter andamento nos anos subsequentes.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa (o primeiro semestre de 1936) (46)


Mário Beja Santos

Este período de 1936 é fundamentalmente ocupado por questões de Canhabaque e pela participação do representante da Guiné na 1.ª Conferência Económica do Império Colonial Português. No Boletim Oficial da Colónia n.º 1 vamos ser informados do estado de sítio na ilha de Canhabaque e na destituição da Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau, acusada de ligação às sublevações de Canhabaque; e não deixa de ser importante ler o que Rodrigo de Sousa Coutinho Osório de Castro, em representação da Guiné enviou como relatório para a 1.ª Conferência Económica do Império Colonial Português.

Na Portaria n.º 1 publicada no Boletim Oficial, com data de 4 de janeiro, escreve o Major de Cavalaria Luís António de Carvalho Viegas:
“Tendo ocorrido em Bissau factos anormais, atentatórios da ordem e tranquilidade públicas e que urge averiguar para o fim de serem tomadas as correspondentes responsabilidades; Considerando a extrema gravidade do caso que pode assumir proporções de melindrosa contingência, sabido que os aludidos factos se estão desenrolando precisamente na altura em que o Governo da Colónia acaba de declarar, por motivos da rebelião indígena, o estado de sítio na ilha de Canhabaque;
Considerando que a coincidências destas ocorrências obriga o Governo a adotar medidas rápidas e enérgicas que extirpem focos de subversão da ordem social, evitando a sua propagação entre o elemento nativo, o que seria de bem perigosas consequências;
O Governador da Colónia da Guiné, no uso das faculdades que lhe são atribuídas, determina:
1.º É ordenado um rigoroso inquérito aos acontecimentos anormais da cidade de Bissau, para o apuramento das responsabilidades individuais ou coletivas da ocorrência, inquérito que deverá ter feição sumária.
2.º Fica encarregado do referido inquérito o Administrador do Quadro Administrativo Alberto Gomes Pimentel.”


No mesmo Boletim Oficial temos um diploma legislativo e vamos perceber o que aconteceu em Bissau. É referido que a Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau provocou o incitamento à indisciplina social, promovendo manifestações coletivas atentatórias da ordem e da tranquilidade públicas. Diz-se que a mesma associação já por várias vezes manifestara o seu espírito de rebelião, e por isso fora dissolvida temporariamente em 1929; juntaram-se a esta associação elementos a ela estranhos capitaneados por agitadores de profissão, alguns com cadastro judicial; associação que não se moveu sequer pelo sentimento patriótico, agora que foi proclamado o estado de sítio na ilha de Canhabaque; promoveu reuniões clandestinas, desviando-se dos seus verdadeiros fins associativos; a resistência desta associação contra uma medida do Governo, em vigor na quase totalidade das colónias, não tem a apoiá-la qualquer razão séria de ordem económica ou de interesse de classe; e não tem procurado cooperar a favor das questões sociais que interessam à coletividade, apesar das constantes instâncias para uma intima colaboração com o Governo. E após um outro punhado de considerandos e invocada a legislação pertinente, o governador manda dissolver a associação e o edifício em construção destinado a ser usufruído para sede dessa coletividade entra imediatamente na posse do Estado.

No Boletim Oficial n.º 6, de 10 de fevereiro, são aprovados os estatutos do Império Sporting Club de Bissau, a agremiação destinada a promover e praticar todos os jogos desportivos e recreativos, festas para a distração dos seus associados e concorrer para o desenvolvimento intelectual destes. Neste mesmo Boletim Oficial dá-se a saber que o Governo da colónia solicitara à única associação económica e profissional existente na cidade de Bolama, a Associação Comercial de Bolama, a nomeação de quatro vogais para fazerem parte da Comissão Municipal da cidade. E o governador escreve o seguinte:
“Considerando que as pessoas indicadas para vogais efetivos não estão em condições de oferecerem garantias de idoneidade moral para representarem condignamente o comércio, proprietários, empregados do comércio, visto que um dos referidos elementos tem vários processos, um a correr no Tribunal Militar por lhe haverem sido apreendidas 22 latas de pólvora, outro a ir para o Tribunal da comarca por possuir ilegalmente uma arma de fogo e não ter pago a respetiva multa, e, ainda mais, um outro que segundo os depoimentos de vários indígenas feitos prisioneiros na ilha de Canhabaque foi quem vendeu a maior parte da pólvora sem a qual não se podia ter dado a rebelião do gentio e de que resultou a perda de dezenas de vidas, mais do que uma centena de feridos; e quanto ao outro eleito, por haver na documentação do Governo comunicação da Companhia Colonial de Navegação que não lhe foram ainda pagas as passagens que em tempos àquele lhe concedera; considerando que, por prudente recado, tendo sido comunicados, confidencialmente, à associação comercial tais factos, e pedido a substituição desses vogais efetivos, a assembleia quis manter a sua eleição.”
E com mais outros considerandos a eleição dos vogais efetivos e suplentes deverá ter uma nova eleição.

Logo no primeiro Boletim de 4 de janeiro, o governador nomeara um funcionário, Rodrigo de Sousa Coutinho Osório de Castro, para representar a Guiné na 1.ª Conferência Económica do Império Colonial Português. Este funcionário elaborou em Bissau, com data em 12 de janeiro, um relatório, que aqui relevamos algumas análises:
“Colónia onde apenas desde 1915 foram abertas as primeiras estradas, pelas necessidades da sua pacificação e ocupação, no curto prazo de 22 anos, quase exclusivamente com os seus, de começo, parcos recursos (…) Urge que esta colónia possua transportes rápidos e seguros que lhe permitam lutar com as vizinhas colónias francesas (...) Colónia com carências absolutas, rede de estradas em grande parte em péssimo estado. Na Guiné existem 245 viaturas automóveis das quais 166 camiões e 79 automóveis, na sua maioria modelos antiquados, abundando os camiões Ford, modelo T. No tocante à aviação, havia um campo de aterragem em Bolama, o de Bissau ainda não estava concluído. Na navegação fluvial, havia três vapores do Estado a necessitar de substituição por outros movidos a óleos pesados, havendo também a necessidade de adquirir um rebocador para fazer o serviço de farolagem, porque é perigoso fazê-lo com os barcos existentes. Os portos interiores estão desprovidos de qualquer utensilagem. Não há trabalhos de irrigação na colónia, os telégrafos são deficientes. No tocante aos portos marítimos, o de Bissau necessita de importantes obras, o de Bolama apenas exige o prolongamento da sua ponte-cais.”

O relator apresenta um plano de obras públicas onde cabem material de apetrechamento maquinista (britadeiras, tratores…), obras (construção das pontes de Ensalmá, sobre o Geba, Braia, Armada, Puloa), edifícios (Palácio do Governo, escolas primárias, bairro para residência de funcionários da cidade de Bissau), portos (grande reparação da ponte-cais de Bissau, prolongamento da ponte-cais de Bolama), estradas (abertura de nova estrada S. João-Fulacunda-Xitole) e reparação geral e retificação do traçado das restantes estradas, faróis (conclusão do plano de farolagem dos serviços da Marinha, construção dos faróis da ilha das Cobras-Areia Branca-Ponte Barel e Orango).

A finalizar o seu relatório, expõe o cômputo de receitas das explorações das obras que se pretendem realizar, modo de pagamento e o plano de fomento das comunicações marítimas e fluviais da Guiné, bem como os correios e telégrafos. Castro Osório conclui falando da necessidade de rever os acordos com a África Ocidental Francesa para o alargamento dos serviços postais e telegráficos e também os estabelecimento de acordo com os correios de Cabo Verde para permuta radiotelegráfica com todo o arquipélago.

Luís António Carvalho Viegas, foi Major de Cavalaria enquanto Governador da Guiné, terminou a sua carreira em Brigadeiro
Monumento comemorativo das operações de pacificação em Canhambaque, 1935-1936.
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
Bissau, um trecho da Avenida, bilhete-postal, 1920
(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 23 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27047: Historiografia da presença portuguesa em África (491): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 930-1936 (45) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27047: Historiografia da presença portuguesa em África (491): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1930-1936 (45) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Fevereiro de 2025:

Queridos amigos,
Apresentando-se o Boletim Oficial da Província da Guiné, com a Ditadura Militar, cada vez mais opaco, quanto às questões internas, ao modo de relacionamento entre a administração e populações insubmissas ou francamente hostis, porventura na suposição de quem governa em Bolama de que se tem de enviar para Lisboa o sinal de que a casa está arrumada, pacificada e a caminho do progresso, procurou-se ajuda primeiro no acervo documental organizado por Armando Tavares da Silva e nos 10 anos seguintes recorrendo à leitura de René Pélissier.
Contestamos o ponto de vista deste último de que 1936 é o marco que define um quadro identitário para a colónia. Basta ler o que escreveram sigilosamente os chefes da delegação do BNU da Guiné para a sua administração em Lisboa para se perceber com meridiana clareza que foi preciso esperar por Sarmento Rodrigues e os meios que ele trouxe para que a Guiné fosse alvo de um salto qualitativo e quantitativo quanto a educação e saúde, transportes e comunicações, cultura, investigação científica e conhecimento aprofundado em domínios como a etnografia e a medicina tropical. Devemos, no entanto, a René Pélissier, o recordar-nos a combatividade étnica que ocorreu depois da chamada pacificação de Teixeira Pinto e a forma como releva as etnias que profunda e claramente hostilizaram a presença portuguesa como aquelas que acabaram por ter um papel bastante à margem na guerra da libertação.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1930-1936 (45)


Mário Beja Santos

Sendo cada vez mais penoso encontrar no Boletim Oficial informações que nos permitam ficar esclarecidos da efetiva presença portuguesa, do desaparecimento ou não de hostilidades, da existência de conflitos interétnicos, etc., socorro-me da parte final do trabalho de René Pélissier, História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936, Editorial Estampa, 1997.

Vellez Caroço retira a sua exoneração com a chegada da Ditadura Militar, em dezembro de 1926, era republicano convicto, vê-lo-emos envolvido em insurreições, mais tarde. O novo governador é António Leite de Magalhães, até abril de 1931, data da chamada Revolução Triunfante. O novo governador pretendia ser o homem do desenvolvimento económico dos indígenas, chega à Guiné quando as plantações europeias, do final do século passado, estavam mortas ou falidas. A grande exceção era uma sociedade luso-alemã, a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné, será alvo de suspeitas de camuflar uma futura base de submarinos dos alemães, nos Bijagós. Constrói-se muito em Bissau, Bolama começa a morrer lentamente. Fruto das severas restrições orçamentais, reduzem-se os efetivos metropolitanos e até o número de postos administrativos, estes só voltaram a subir em 1936. Em 1928, o Regime do Indigenato codifica a distinção entre assimilados e indígenas, o que deixa uma boa parte dos Grumetes indignados, por não poderem demonstrar que têm conhecimentos suficientes de português. O poder militar e político dos chefes indígenas está morto, primeiro com a prisão de Abdul Indjai, e depois com a operação de retalhar o império do Gabu do régulo Monjur.

A chamada Revolução Triunfante é o grande acontecimento de 1931, os republicanos dominam a situação na Guiné entre 17 de abril e 7 de maio, foi uma aventura sem futuro. Contrariando o que dizem muitos historiadores de que o continente guineense está pacificado em 1915, Pélissier regista um massacre étnico, entre setembro de outubro de 1931. Os Papéis atacam à espada ou à catana uma aldeia de Mancanhas, a guarnição de Bissau não intervém, os Grumetes terão um comportamento ambíguo. Os massacres ganharam tais proporções que Soares Zilhão, que viera substituir Leite de Magalhães, decreta o estado de sítio na ilha, irão ser irradiados os chefados Papéis de Intim e Oncompia, os chefes de Antula, Bandim, Bor e Safim, todos deportados para São Tomé.

O Major de Cavalaria, Luís António de Carvalho Viegas, será governador entre 1933 e 1940. É do seu tempo o famoso caso de um avião francês desaparecido em chão Felupe, que tratei largamente aqui no blogue, Pélissier dá-nos um vastíssimo quadro de idas e vindas, com toda a turbamulta que ocorreu nesses pontos do Norte da Guiné. E o historiador aborda o problema cabo-verdiano. “Os portugueses metropolitanos na Guiné não amam os cabo-verdianos. Censuram-lhes serem indignos de confiança e terem uma mentalidade de guarda de forçados das galés em relação aos negros. Inversamente, os cabo-verdianos instruídos consideram-se muito superiores aos portugueses. Os números mostram-nos que a Guiné volta a ser uma colónia de Cabo Verde, ou melhor, de certos cabo-verdianos, bem mais claramente que durante o período 1879-1909. Em 1936, metade dos funcionários de craveira média são cabo-verdianos. Bissau comporta um bairro cabo-verdiano com uma dezena de ruas; grande número das amantes dos brancos são mestiças de Cabo Verde. Nos 6009 civilizados e assimilados da Guiné, em 1933, bem pode avaliar-se que mais de metade são cabo-verdianos.”

Temos agora a última campanha de Canhabaque entre novembro de 1935 e fevereiro de 1936. Canhabaque é o último bastião que não quer conhecer o seu colonizador, é uma singularidade desse arquipélago em que a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné possui plantações de palmeiras em Bubaque, Rubane e Soga, é de longe a maior empresa da Guiné com os seus 300 km de pistas privadas, um cais em betão e exportações diretas em cargueiro vindo de Hamburgo. O historiador descreve a evolução dos acontecimentos, a capacidade de resistência da gente de Canhabaque, a necessidade que as autoridades portuguesas tiveram de chamar para a expedição militar régulos Mandingas e Fulas. A gente de Canhabaque foi forçada a render-se, mas mantiveram-se inteiramente livres, apesar de três postos existentes naquela terra Bijagó.

No final do seu trabalho, Pélissier lembra-nos que a velha fortaleza de Bissau, por uma portaria de novembro de 1939, foi classificada como monumento nacional. Quando chegar a Segunda Guerra Mundial, a Guiné vive em paz, apesar de não se poder falar em domínio completo quanto aos Bijagós e aos Felupes, e tece uma observação: “Contrariamente aos Macondes, os últimos a submeterem-se e os primeiros a lançarem-se na luta de libertação em Moçambique, a participação dos Felupes e dos Bijagós ao lado do PAIGC, foi coletivamente subestimável, enquanto que, sem falar de Canhabaque, o triângulo Felupe estava estrategicamente bem situado para desempenhar o papel de abcesso de situação.”
E temos as conclusões.
“Sem querer entrar numa análise muito profunda, constatamos que a Guiné regista, entre 1841 e 1920, o mínimo de 72 campanhas. A História da Guiné é regada pelo sangue das suas vítimas. Se afirmarmos que, em 140 causas económicas, políticas ou específicas à colonização portuguesa, somente dez são económicas, estando os problemas fundiários notoriamente ausentes, contrariamente à colonização em Angola, devoradora de terras. A hostilidade ou a agressividade comercial continua marginal em todos os aspetos.

Do mesmo modo, com 18 casos, as causas específicas à colonização portuguesa na Guiné, são secundárias. A única e tardia aparição (1924) do trabalho forçado leva-nos a dizer que nada existe de comum entre a Guiné e a África centro-austral portuguesa. Impõe-se, de maneira incontestável, a preponderância das causas políticas (…) Podemos colocar uma questão que, aos olhos do historiador da colonização, não é tão ociosa quanto parece. Qual teria sido a situação na Guiné, se o Portugal do século XIX tivesse obtido o território que reivindicava (grosso modo, da Gâmbia ao Cabo Verga, com as terras altas do Futa-Djalon)? As constatações que desenvolvemos quanto à fraqueza dos futuros angolanos e moçambicanos, face à colonização portuguesa, parece-nos igualmente válidas para os futuros guineenses serão assim recapituladas: a) ausência ou fragilidade da sua coesão; b) falta de capitais, de conhecimentos modernos, de apoios exteriores e mesmo líderes carismáticos. Nem uma vez, durante o período formador (1841-1936), se viu na Guiné uma revolta anticolonial supraétnica. Casos de resistência, sim; revoltas após submissão, não. Nem uma vez encontramos um só chefe ou notável africano, na Guiné, falar em nome de outra coisa que não seja dos interesses do seu clã, da sua etnia, da sua classe ou da sua religião (Islão). Era inevitável num país tão fragmentado e batido por vagas exteriores, que o consideravam mais como um terreno de caça ou de refúgio, que como a entidade política que ainda não era.

Nascida no cheiro da pólvora, a Guiné parece-nos ser uma das consequências típicas da artificialidade da colonização europeia na África negra mas, ao mesmo tempo, ela confirma o seu papel insubstituível de matriz das jovens nações.”


Damos por concluída esta digressão de pontos de vista que possam contrabalançar todos os silêncios que existem no Boletim Oficial da Província da Guiné.

Fotografia oferecida por René Pélissier (1935-2024) ao blogue
Tríptico do pintor Manuel Lapa, alusivo aos preparativos de Nuno Tristão e à sua expedição até ao Norte da Senegâmbia, onde faleceu. Constava na Segunda Sala da exposição do V Centenário do Descobrimento da Guiné, 1946
Imagem retirada do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, finais de 1950, onde se refere que o tríptico foi oferecido à Casa do Algarve, que já não existe. Por onde andarás, Nuno Tristão?
Documentos referentes à chamada Revolução Triunfante, o movimento revolucionário que conquistou precariamente o poder em 1931, depois foi rapidamente sufocado pela Ditadura Militar
Escarificações no arquipélago dos Bijagós
Homens grandes de Bubaque.
Estas duas últimas imagens foram retiradas do trabalho Por Entre As Dórcades Encantadas: Os Bijagó Da Guiné-Bissau, por Dilma de Melo Silva, 2000
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Nota do editor

Último post da série de 16 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27021: Historiografia da presença portuguesa em África (490): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1928 e 1929 (44) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P27021: Historiografia da presença portuguesa em África (490): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1928 e 1929 (44) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2025:

Queridos amigos,
Estamos a revisitar os últimos anos da década de 1920, e não podendo contar, a partir de agora com o acervo documental de Armando Tavares da Silva, bateu-se à porta do livro de René Pélissier, "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", o olhar do historiador abarca a pacificação continental devido a Teixeira Pinto, a Guiné no Pós-Guerra, a continuação de expedições aos insubmissos Bijagós, o historiador desenvolve a queda de Abdul Indjai (que nesta súmula não se aborda, dá-se como exaustivamente tratada noutros textos); a década inicia-se com os dois mandatos de Vellez Caroço, ele próprio comandará uma expedição a Canhabaque, Vellez Caroço deixará o seu posto com o derrube da 1.ª República, suceder-lhe-á António Leite de Magalhães, antigo governador do Cuanza Norte, vinha cheio de ideal para o desenvolvimento económico, irá assistir ao desaparecimento de companhias e sociedades agrícolas; reflexo de austeridade imposta pela Ditadura Nacional, reduzem-se as despesas, corta-se nos efetivos militares e no número de circunscrições e de postos, o que significa uma diminuição da presença da administração no Norte e no Leste. O regime militar ganhou o hábito de deportar para a Guiné opositores políticos também condenados de direito comum. Um ponto bastante curioso é a vinda de um alemão para uma missão dita de ciência, viagem de longos meses, os germânicos terão armazenado uma fantástica recolha de arte dita primitiva, durante o Terceiro Reich serão publicados vários estudos abarcando a Guiné a particularmente os Bijagós.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, ainda 1928 e 1929 (44)


Mário Beja Santos

Tenho procurado destacar no Boletim Oficial informações que nos habilitem a entender a evolução do nosso processo colonial, a disseminação da administração e uma ocupação efetiva, a resolução de conflitos e diferendos, campanhas e expedições, a melhoria das condições do colonizado, os aspetos fundamentais do desenvolvimento económico, etc., etc. Somos confrontados com um quadro de rotina burocrática, muitos destes aspetos procurados aparecem noutras fontes. Não foi por mero acaso que se tentou um certo contraponto aqui fazendo reaparecer o monumental acervo documental organizado por Armando Tavares da Silva sobre a presença portuguesa na Guiné entre os tempos da separação de Cabo Verde e até 1926. Havia que suscitar um outro olhar, é a razão pela qual convocamos um outro investigador, desta feita René Pélissier, e a sua História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936. Porque se estava a viver uma época de transformação, havia brigadas agrícolas e zootécnicas, já forjavam relatórios, procurava-se inclusivamente instituir o acompanhamento das movimentações da população nativa. Pode ler-se no Boletim Oficial n.º 2, de 14 de janeiro de 1928, que “Nenhum indígena maior de 18 anos poderá transitar no território da colónia sem estar munido de caderneta. O portador de caderneta será dispensado solicitar qualquer autorização para se deslocar da área da jurisdição a que pertence, ficando apenas obrigado a efetuar a sua apresentação nas sedes de circunscrição e postos por onde passar, a autoridade respetiva visará a caderneta, o nome e a naturalidade do indígena.”

Com o reforço da organização administrativa, emergem questões jamais sonhadas no passado recente. Em 1932, no Boletim Oficial n.º 1, de 2 de janeiro, é promulgada uma Portaria que fala na proteção das espécie e variedades da fauna que são mais raras ou com tendências a rarear por abuso na sua caça, tendo sido nomeada uma Comissão de Caça com poderes para elaborar uma carta da colónia da Guiné indicando as zonas onde predominam determinadas espécies zoológicas, especialmente das ordens dos mamíferos e aves, elaborando igualmente um projeto de organização das reservas de caça – não era ainda uma preocupação ecológica, era uma salvaguarda onde não faltavam motivações de ordem turística.

Procurava aperfeiçoar-se a divisão administrativa da colónia, já se falava na etnografia; referiu-se anteriormente que houve um inquérito etnográfico a que respondeu o administrador da circunscrição da Costa de Baixo. Por não haver referências neste período a quadros de insubmissão e rebeldia deve-se ao facto que as campanhas de Teixeira Pinto deixaram as etnias do continente guineense num quadro de acatamento da ordem colonial. Como recorda René Pélissier no livro acima citado, o período de 1909-1925 foi caracterizado, no plano da conquista, por quatro grandes campanhas e cinco operações secundárias que tiveram lugar quando Teixeira Pinto era o chefe de Estado-maior da província. Canhabaque e o arquipélago dos Bijagós continuaram a ser a pedra no sapato. Mas Pélissier também explica o que há de verdadeiramente de impressionante nas campanhas do capitão Teixeira Pinto: a fraqueza dos efetivos dos auxiliares recrutados, como foi evidente na campanha de 1915. Com efeito, com o máximo de 1600 homens contra os Papéis e os Grumetes, chega-se a um efetivo inferior a 7 mil, quando era triplo entre 1891 e 1908. Os portugueses já não estavam à mercê da debandada de auxiliares altamente voláteis, confiavam no mercenarismo de Abdul Indjai, era gente disposta a tudo e que tudo pilhava.

Quem saiu severamente punido pela drástica lição foram as etnias animistas, Papéis, Manjacos, Baiotes, Felupes, Balantas. Militarmente, os Grumetes acabaram por ser marginalizados; manteve-se o pacto de aliança entre o colonizador e os regulados muçulmanos. Fulas e Biafadas foram totalmente eliminados da lista dos inimigos de Bolama. Estas duas etnias acabaram por substituir a equipa de Abdul Indjai com a entrada em força dos regulares, quando se tratou de vencer os animistas.

Pelissier aborda o Pós-Guerra. A entrada em guerra de Portugal ao lado dos Aliados (10 de março de 1916), teve incidências secundárias para a Guiné, a opinião pública em Bissau e Bolama mantinha-se pró-germânica, a relação com os franceses nunca fora boa. Os súbditos alemães (9 casas comerciais, 11 alemães em julho de 1916) e sírio-libaneses serão temidos em Cacheu nesse mês de julho; os bens alemães ficaram sequestrados, os cidadãos seguiram para os Açores; intensificou-se a cultura do arroz, a Guiné transformar-se-á num país exportador de arroz.

Dá-se como dado assente a classificação continental, o mesmo não se pode dizer dos Bijagós, em março de 1917 o governador Manuel Maria Coelho decretou estado de sítio e organizou uma coluna de polícia (que por razões desconhecidas não embarcará). Havia a má memória de acontecimentos de maio desse ano, um desembarque de 150 homens que terminou com 3 mortos e 22 feridos; quase sem munições, houve que reembarcar. Constitui-se uma coluna sob a direção do chefe de Estado-maior da província, mobiliza-se uma companhia de atiradores com três oficiais, são nomeados auxiliares o alferes de 2.ª linha Mamadu Sissé, Abdul Indjai recusou-se a ir pessoalmente. Acreditou-se que a rebelião ficara sufocada, nada de mais falso. Seguir-se-ão outras expedições, há que voltar à região de Cacheu, em janeiro de 1918 régulos de Canhabaque vêm assinar a sua demissão em Bolama, mas as hostilidades irão manifestar-se até 1936.

O historiador francês analisa a chamada rebelião de Abdul Indjai, é assunto que se dá aqui como tratado. Temos agora Vellez Caroço como governador, o seu primeiro mandato conhecerá uma febre de construções no sertão, o governador é um homem das estradas e das pontes, esforçar-se-á por desenvolver a instrução pública dos guineenses; é também moralizador, proíbe as importações de álcool superior a 50º. Estamos na década de 1920, a Guiné está solidamente ancorada no ciclo das oleaginosas (representam 95% das exportações em valor). O governador Vellez Caroço informa o ministro em 1922 que a Guiné está pacificada, o que não correspondia à verdade, os Balantas de Nhacra revoltaram-se contra o chefe de posto, caroço desloca-se com três peças de artilharia e metralhadoras, a população sente-se intimidada, apresenta-se ao governador, o estado de sítio é levantado, e virá o tempo em que Vellez Caroço irá à frente de uma exposição em Canhabaque.

Deixamos para o próximo texto tudo quanto vai acontecer até 1936, Pelissier terminará o seu trabalho fazendo um balanço da resistência de guineenses ao colonizador e dando-nos um quadro do desenvolvimento económico.

Os empréstimos falhados que levaram os próceres da Ditadura Nacional chamar Salazar para ministro das Finanças
Primeira referência a Salazar como ministro das Finanças
Medidas tomadas para evitar a peste, um terror constante
Cacheu, monumento em homenagem do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, século XXI
Bissau, década de 1950
Capela de Nossa Senhora da Natividade, Cacheu

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 9 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26999: Historiografia da presença portuguesa em África (489): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927 e 1928, por inteiro (43) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Guiné 61/74 - P26999: Historiografia da presença portuguesa em África (489): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927 e 1928, por inteiro (43) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
Há que reconhecer que o inquérito sobre as raças da Guiné elaborado pela Direção dos Serviços e Negócios Indígenas e aprovado pelo governador Leite Magalhães, e enviado às autoridades administrativas preponderantes com obrigação de resposta é uma peça de bastante interesse, abre caminho a sucessivos inquéritos que irão envolver governadores como Ricardo Vaz Monteiro e Sarmento Rodrigues, já na década de 1940. Terão seguramente estes inquéritos exigido às autoridades em causa a obrigação de olhar as populações na sua identidade socioeconómica e cultural. Agora, que acabo de ler integralmente o Boletim Oficial de 1928, só encontrei a resposta do administrador da Costa de Baixo e não me recordo de ter lido nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa outros elementos. Inquérito que dava muito trabalho, são múltiplas as questões levantadas pelo questionário, havia que ouvir os régulos e perceber a natureza das chefaturas, ouvir os comerciantes, conversar com os sipaios, os milícias, os chefes de posto, os professores, organizar convenientemente a resposta aos quesitos. Não era só o governador que ganhava informação e passava a deter conhecimento, a recolha de informação ajudava implicitamente a melhorar as relações humanas entre o colonizador e o colonizado. Ponto curioso, não conheço qualquer estudo que se debruce quanto à natureza destes inquéritos e as suas respostas.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927 e 1928, por inteiro (43)


Mário Beja Santos

O major António Leite Magalhães, através de portaria publicada em 12 de abril de 1927, determina aos administradores de concelho e circunscrições que efetuem um inquérito sobre as raças da Guiné de acordo com um questionário que fora elaborado pelo diretor dos Serviços e Negócios Indígenas. Alega, nos considerandos, que é um dos primeiros deveres das autoridades administrativas o de procurar conhecer o meio social indígena, sem esse conhecimento nenhum administrador de circunscrição se poderá julgar competente para o desempenho profícuo da sua missão. Além do mais, uma das funções mais importantes dessas autoridades é a administração da justiça dentro dos usos e direito consuetudinário quanto não ofenda os nossos direitos de soberania. É também uma das obrigações dos administradores promover o bem-estar económico dos povos, o que exige o conhecimento prévio e perfeito da sua organização económica, etc., etc.

O inquérito solicita aos respondentes que caracterizem os tipos diferentes de população, a sua origem segundo a tradição, as relações de simpatia ou hostilidade com os vizinhos e até as guerras e formas de combate praticadas; passando para as características morfológicas, pede informações sobre a estatura dos homens, a cor mais recorrente de pele, a conformação da cabeça (não esquecer que ainda estávamos numa época em que prevaleciam doutrinas raciais e a cabeça ser redonda ou alongada assumia grande importância), a cor e a inclinação dos olhos e dos cabelos, a forma e o comprimento do nariz, passava-se depois para a vida material (alimentação, habitação, vestuário, meios de existência), era bem pormenorizado o questionário sobre a organização familiar; e os últimos quesitos prendiam-se com a organização socioeconómica, a chamada vida psíquica (lazeres, artes, religião e ciência); e, por fim, competia aos administradores traduzir em todas as línguas um conjunto de palavras referindo os dez primeiros números, seguindo-se Deus, homem, mulher, pai e mãe, e acabando em alimentos correntes.

Posso informar o leitor que as únicas respostas que chegaram a ser publicadas no Boletim Oficial no ano de 1925 tem a ver com a circunscrição da Costa de Baixo, que, em termos muito reduzidos dá informações do seguinte tipo: a sede da circunscrição é Canchungo, as etnias predominantes são os Manjacos e os Brames ou Mancanhas, mas há também outras etnias com menos peso como Balantas, Fulas, Mandingas, Papéis, Fulas do Toro ou Turancas, Soninqués e Felupes. Habitam fundamentalmente entre os rios Cacheu e o Mansoa; são bastantes os regulados existentes, por exemplo: Costa de Baixo, Pelundo, Calequisse, Bassarel, as ilhas de Pecixe e Jata.

O administrador disserta com detalhe sobre as lendas existentes, isto com base numa relação amorosa entre um Mandinga e uma Fula de nome Bula; quanto à origem da etnia aventa a hipótese de ser um povo aborígene do Sudão. Considera que o Brame está destituído de espírito guerreiro, defende-se por necessidade, é singularmente indolente e guloso por bebidas; quanto ao aspeto étnico observa que os habitantes das ilhas de Pecixe e Jata devem ter conservado o primitivo tipo da etnia; não esquece de se falar das guerras dizendo que Manjacos, Brames e Papéis não se guerreiam entre si, já houve guerras entre Brames e Balantas, a última guerra datava de 1911.

A estatura média destes homens variava entre 1,60 m e 1,70 m; a cor da pele é preta, brilhante ou pardacenta; crânio pequeno, levemente alongado com um pronunciado achatamento nos temporais; olhos pretos ou castanhos; faces ossudas, de maçãs salientes pela dilatação dos côndilos maxilares que definem o traço facial; os rapazes têm muito orgulho nos seus trabalhosos penteados; a alimentação destas etnias é predominantemente vegetal: arroz, milhinho cozinhados com azeite de palma; cozinha-se em potes de barro e os alimentos são servidos em cabaços; constroem as suas casas de forma redonda.

Depois de dissertar sobre a dispersão das povoações, vai responder ao inquérito dizendo que o vestuário dos homens é uma tira de pele de cabra a tapar os órgãos genitais. É vulgar o uso de tatuagens, especialmente as mulheres e explica a natureza das mesmas: pequenas incisões à navalha localizadas no ventre, peito e braços, operadas as incisões são cobertas de uma mistura de cinza e azeite de palma que provoca nelas uma cicatrização em relevo.

Detalha-se sobre a circuncisão, passa para a agricultura e para as produções mais importantes: arroz, feijão, milhinho e o fundo; criam vacas e cabras, são muito habilidosos na indústria da tecelagem, tecem em tiras medindo 20 cm de largura, as quais, depois, cosidas umas às outras, formam os panos ricos de grande apreço.

Manjacos e Brames são polígamos e também se alonga a explicar a organização familiar, refere a dissolução do casamento, a gravidez, o parto, compete ao homem escolher o nome da criança, havia a curiosidade de escolherem nomes cristãos como Vicente, Ambrósio, Luís ou João Bico. O régulo principal tem o nome de Baticã, que significa Deus teve dó de mim. Trata-se de uma resposta ao questionário com imenso pormenor, tem praticamente resposta para tudo, quando não sabe e as perguntas que fez a seus colaboradores não lhe merecem confiança, prefere não responder. Irá até ao fim, tem referências sobre a educação dos filhos, sobre o direito sucessoral, enfatiza o respeito pelos velhos e loucos e os ritos funerários. Detalha a organização económica e dá resposta a questões sobre a religião, cultura e lazer, fala dos feiticeiros, jogos, danças, das manifestações da religião fetichista e da importância do Irã. Estima que o modo de contar dos Manjacos e Brames é muito rudimentar e termina com uma lista dos vocábulos tidos como essenciais.

O ano de 1928 merece necessariamente destaque. A Ditadura Nacional não encontrara solução para minorar a crise da dívida, negou-se a aceitar os termos do empréstimo que exigiam a presença de uma entidade vigilante em Portugal. Lançou-se desesperadamente a desempregar, a baixar ordenados e pensões, a encerrar instituições. Verificando os falhanços, mandaram um conjunto de políticos a Coimbra, pedir a Salazar para formar Governo. Encontramos no Boletim Oficial referências ao sufoco de sublevações e à prisão de republicanos, as deportações podiam ir dos Açores a Timor. Ainda estamos longe de 1931, haverá uma insurreição que começa nos Açores e chega à Guiné, haverá mesmo a destituição e o envio de Leite Magalhães para a metrópole. Mas vamos falar primeiro de 1929 e 1930.

Porto de Bissau, 1930
Decreto em que a Ditadura Nacional conforma a ação missionário do Império como missão civilizadora com Portugal na vanguarda
Movimento revolucionário dominado pela Ditadura Nacional
Leite Magalhães nomeado governador da Guiné
Resposta ao inquérito sobre as raças da Guiné e seus caracteres étnicos, dada pelo administrador da circunscrição civil da Costa de Baixo, Vítor Hugo de Menezes
Chegada de Salazar ao poder
Começam as prisões dos democratas

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 2 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P26976: Historiografia da presença portuguesa em África (488): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1927, o novo governador é o major Leite de Magalhães (42) (Mário Beja Santos)