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sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26398: Eufemismos: o "acidente com arma de fogo" como causa de morte (1): o caso o cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, cmdt da CART 1613 (Guileje, 1967(68), morto em São João, em 24/12/1966




guardião das memóras da CART 1613 e de Guileje (1967/68). 
Foi um histórico (e um entusiasta) do nosso blogue
 e o primeiro a "deixar-nos"...  Tem mais de 80 referèncias.




Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 8.° volume: Mortos em Campanha, Tomo II, Guiné - Livro I, 1ª ediçáo. Lisboa, 2001,  pág. 224


1. Houve vários casos de homicídio, suicídio, automutilação, "fogo amigo", erro humano ou técnico, falha no manuseamento de arma de fogo, mina ou armadilha, etc,  ocorridos entre as NT, no TO da Guiné, e que originaram baixas mortais, tendo  invariavelmente sido tratadas, para os devidos efeitos (incluindo estatísticos) como "acidentes com arma de fogo". 

Trata-se de um "eufemismo", ou seja, um figura de estilo que usamos para, sem alterar o essencial do sentido,  encobrir, branquear, disfarçar ou atenuar factos, situações ou ideias  grossseiras, rudes, desagradáveis ou dramáticas, recorrendo a expressões mais suaves ("lerpar", por exemplo, em vez de "morrer", "levar um par de patins" em vez de "ser punido")...

O eufemismo é muito usado pelos seres humanos (não sei se os robôs já sabem usá-lo: depois de aprenderem a matar, aprenderão todo o resto). Os portugueses não são exceção. O eufemismo ajuda-nos a alijar a culpa, escamotear a responsabilidade, humanizar a tragédia, dourar a pílula, aligeirar a realidade, suportar o absurdo, fazer humor...e até "fazer amor" (outro púdico eufemismo).

No caso do meio militar, em tempo de paz ou de guerra, a expressão "acidente com arma de fogo" afeta menos o moral da tropa do que expressões ou vocábulos com "carga negativa" como fogo amigo, homicídio, suicídio., erro humano, falha técnica... Não sei como o exército, durante estes período de 1961/75, dava estas "funestas notícias" à família... De qualquer modo, o eufemismo também a ver com o pudor face à morte e sobretudo à "hipocrisia social".

Talvez por isso, por estas e outras razões, se prefirisse usar a expressão "acidente com arma de fogo" em vez  de "chamar os bois pelos nomes"...E no entanto as forças militares e militarizadas correm mais o risco de usar, indevidamente, as armas que estão à sua guarda... (Mas nós, convém dizê-lo,  não somos especialistas em ciências forenses, nem em justiça militar...)

Alguns destes casos já foram relatados aqui no blogue.. Vamos recapitulá-los, esperando com isso sistematizar esta matéria (que é melindrosa e dolorosa) e suscitar eventualmente novos contributos por parte dos nossos leitores.... Em tempo de paz ou de guerra, estes casos não chegam, em geral,  ao conhecimento público. Não chegavam ontem (nem hoje, apesar da liberdade de imprensa)...


2. Foram contabilizadas durante a guerra colonial (1961/75), no conjunto dos combatentes dos 3 ramos das forças armadas (e incluindo os do recrutamento local), em Angola, Guiné e Moçambique:

  • 10425 baixas mortais ("mortos"), por todas as causas (combate, acidente e doença),
  • a par de 31300 feridos graves (3 feridos graves por cada morto; 10 feridos, graves e não graves, por cada morto)
No TO da Guiné, esses números foram os seguintes:

  • 2854 mortos (dos quais 1717 em combate);
  • 9400 feridos graves.
"Excluindo as milícias", os mortos do Exército na Guiné foram os seguintes, discriminados por principais causas:

  • Ferimentos em combate = 1273 (58,5%)
  • Doença = 281 (12,9%)
  • Acidente com arma = 251 (11,5%)
  • Acidente de viação = 166 (7,6%)
  • Afogamento = 138 (6,3%)
  • Acidente de aviação = 2 (0,0%)
  • Outras causas  = 66 (3,0%)
  • Total= 2177 (100%)
(Fonte: adapt de Pedro Marquês de Sousa, "Os números da guerra em África". Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2021, cap. II, pp. 97 e ss.)

Pelo menos, cerca de 12% das mortes no TO da Guiné foram devidas a "acidente com arma de fogo"... 

Estarão aqui, nestes casos,  as situações, mais frequentes de falhas no manuseamento de minas, armadilhas, dilagramas,  granadas de LFog e de armas pesadas, disparos acidentais com pistolas, pistolas-metralhadoras, espingardas automáticas, erro humano ou técnico, etc.,  mas também "fogo amigo", homicídio, suicídio, automutilação...



3. O caso do cap art Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz é, inegavelmente, um dos que podemos classificar como homicídio.

 O autor, confesso, do crime, o soldado Cavaco,   foi condenado em Tribunal Militar a 23 anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. Vejamos, sumariamente, como tudo ocorreu.

Na vésperas da noite de Natal de 1966, uma tragédia vai ensombrar a história da CART 1613/BART 1896, a companhia que estava em IAO em São João, na região de Quinara, frente á ilha de Bolama, e que iria, seis meses depois, para Guileje (onde esteve, como unidade de quadrícula,  de junho de 1967 a maio de 1968). 

BART 1896, mobilizado no RAP2, Vila Nova de Gaia, esteve originalmente destinado a Angola. Tinha desembarcado em Bissau em 18 de novembro de 1966 (e regressaria à metrópole em 18 de agosto de 1968).  (Além da CCS, e da CART 1613, era formado ainda pela CART 1612 e CART 1614.).

No livro da CECA (8.° volume: Mortos em Campanha, Tomo II, Guiné - Livro I, 1ª ediçáo. Lisboa, 2001,  pág. 224) diz-se que "o cap mil art com o nº mecanográfico 1036/C", de seu nome Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, a comandar a CART 1613, foi vítima  de "acidente com arma de fogo" (sic), ocorrido no aquartelamento de S. João (e não Cachil...), vindo a morrer a 24 de dezembro de 1966 no HM  241, em Bissau.(*)

 (Há aqui, parece-nos,  um erro a corrigir: O cap art Fausto Ferraz não era milicino, pertencia ao QO, e foi-lhe,  "a posteriori", feita a correção de antiguidade, ao abrigo da Lei 15/2000, de 8 de agosto:  alferes com a antiguidade de 1 de novembro de 1952; tenente com a antiguidade de 1 de dezembro de 1954; capitão com a antiguidade de 1 de dezembro de 1956; major com a antiguidade de 25 de Maio de 1966; na ficha da unidade, publicada pela CECA aparece como "cap mil grad art"; o seu nome também não consta da lista dos antigos cadetes da Academia Militar mortos ao ao serviço da Pátria durante a Campanha do Ultramar, 161/74).

O malogrado cap art Fausto Ferraz (de que não temos, infelizmente, qualquer foto) foi inumado no cemitério da Conchada, em Coimbra. Era casado com Maria Fernanda Ferreira da Costa, filho de Manuel Fonseca Ferraz e Ana Rosa Manteigas, sendo natural da freguesia de Pousafoles do Bispo, concelho de Sabugal.

Houve testemunhas desse funesto acontecimento. O cap SGE ref José Neto (1929-2007), um dos históricos do nosso blogue (**), contou-me (e depois contou-nos), antes de morrer,  que o autor dos disparos foi o soldado condutor autorrodas José Manuel Vieira Cavaco. 

O Cavaco era madeirense, tendo recebido na véspera de Natal provisões remetidas pela família, entre elas uma garrafa de aguardente de cana de açúcar (rum da Madeira) (ou mais provavelmente poncha, a bebida tradicional da Madeira, feita de aguardente de cana-de-açúcar, açúcar ou melaço de cana e sumo de limão). 

Já não poderemos confirmar se era rum da Madeira, só regulamentado em 2021,   ou a tradicional poncha da Madeira, cuja produção e comércio também só foi regulamentada há uns anos atrás, em 2014, pelo Governo Regional da Região Autónoma da Madeira; de qualquer modo,  o rum tem um teor alcoólico minimo de 37,5º, superior à poncha (25º).

Chegado à Guiné há pouco mais de um mês, a CART 1613  estava em S. João, frente a Bolama, em treino operacional.

A mobilização para a Guiné (em vez de Angola), as andanças do batalhão e da companhia, 
as saudades da terra, a incerteza face ao futuro, as recordações do Natal na ilha e a poncha (ou o rum)  fizeram uma mistura explosiva. 

Sob o efeito do álcool, e sem qualquer motivo aparente, o Cavaco abateu a tiro o comandante da companhia, "alferes de artilharia, graduado em capitão", Fausto Manteigas da Fonseca Ferraz, na véspera de Natal, 24  de dezembro de 1966.

Creio que feriu mais militares. O Zé Neto, na altura 2º sargento a exercer as funções de 1º srgt,  "teve que o esconder para ele não ser linchado" (sic). (***)


3. Voltemos ao relato do Zé Neto (que foi a principal testemunha):

(...) No dia 25 de Dezembro [de 1966] vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia. (...)

Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.

Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM [Polícia Militar] e dum sistema de deteção de velocidade discutível.

O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BENG [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária. (...)

O primeiro ato de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:

 
– Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.

Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.

Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o setor da alimentação com os desvarios que o Furriel vagomestre tinha apontado na reunião.

Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no setor administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.

Em princípios de janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do Comando-Chefe, era outra. 

Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.

Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a minha tropa foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:

 – O nosso comandante... é o capitão Corvacho!

Com a voz embargada pela comoção, o Capitão Corvacho disse-lhes:

– Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.

Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3. (...)

PS - Acrescente-se que a quadra natalícia, coincidência ou não, parece que era propícia à ocorrência de baixas mortais (os nossos camaradas do Portal UTW - Dos Veteranos da Guerra do Ultramar publicaram uma lista de cerca de seis dezenas de combatentes, dos 3 TO, que tombaram na véspera e no dia de Natal, por todas as causas, incluindo acidente com arma de fogo, acidente de viação e afogamento. Talvez houvesse mais álcool a correr, nesses dias...
 

4. Eis um excerto do relato do Zé Neto sobre o julgamento do Cavaco, realizado um ano depois em Bissau. (O cap inf Eurico Corvacho ficará entretanto no lugar  do cap art Fausto Ferraz, não sabendo nós o destino que foi dado ao cap art Lobo da Costa que o vinha substituir) (****)


(...) No final do ano [1967], eu, o furriel Martins e o 1º cabo Santos fomos chamados a Bissau para depor no julgamento do soldado Cavaco . O Tribunal Militar funcionou nas salas do tribunal civil e, em duas sessões, ficou tudo resolvido. 

O Cavaco deu-se como culpado e o seu defensor, um tenente miliciano de Administração Militar que era advogado, apenas se deu ao trabalho de procurar provar atenuantes para reduzir a pena.

Tanto eu como o furriel e o cabo respondemos apenas às perguntas que nos foram formuladas. O tenente, a certa altura, perguntou-me qual era a minha opinião sobre o comportamento do réu, anterior aos factos.Gerou-se uma pequena quezília processual entre o promotor e o advogado que acabou com o juiz auditor (civil) a intrometer-se e declarar que aquele Tribunal tinha a obrigação de conhecer o caráter do réu e, naquele momento, ninguém mais conhecedor do que o depoente (eu) podia responder a perguntas que levassem a fazer um juízo acertado.

Fiquei sob o fogo cerrado, ora de um, ora de outro, com respostas curtas, quase sim e não. O coronel presidente acabou por me interpelar dizendo-me que, por palavras minhas, classificasse a qualidade de soldado do réu. Respondi com convicção:

– Um excelente e infeliz soldado.

A pena foi de vinte e três anos de prisão maior, a cumprir em estabelecimento penal adequado na Metrópole. Nunca mais o vi, mas tive notícias de que o rapaz não cumpriu nem metade da pena. (...) (***).
______________


Notas do editor:

(*) Vd. poste de 
13 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26386: Humor de caserna (95): Os meus Natais de 66 e 67 no HM 241, em Bissau (António Reis)
 
(**) Vd. postes de:


10 de janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - P417: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26311: (In)citações (259): A melhor prenda de Natal que vou ter é saber que vocês fazem parte desse exército de sonhos onde a meta é atingir a dignidade e o respeito pelos uns outros (Eduardo Estrela, Cacela Velha,. V. R. Sto António)

1. Mensagem do Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2592/CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha, Vila Real de Santo António; membro da Tabanca Grande desde 29/2/2012 (foto à direita)


Data - terça, 24/12/2024, 22:57
Assunto - Espera contínua

São 22,28 e a emoção toma conta de mim. Não riam, eu sei que bem lá no fundo vocês aguardam tal como eu a chegada do momento da partilha .

Continuamos a ser as crianças agora mais adultos, que aguardam com algum alvoroço emocional a hora da troca.

Pela vida fora trocamos uns com os outros muita coisa . Felizmente e a maior parte amizade e amor. Mas há quem tenha um prazer mórbido em alterar a força da racionalidade e pretenda transformar o bom no mau .

Desde tempos imemoriais assim tem sido .

Eu acredito que havemos de conseguir transformar este mundo onde estamos num mundo melhor. Um mundo de solidariedade e de concórdia e onde a riqueza seja mais equitativamente distribuída.

A melhor prenda de Natal que vou ter é saber que vocês fazem parte desse exército de sonhos onde a meta é atingir a dignidade e o respeito uns pelos outros.
 
A guerra transformou-nos em irracionais. A sua memória obriga-nos a ser tolerantes .

Abraço fraterno
Eduardo Estrela

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 1 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26221: (In)citações (258): Era ele... Todo inteiro (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26302: Manuscrito(s) (Luís Graça) (263): Neste Natal não mandei cartões de boas festas a ninguém



O arroz doce da "chef" Alice | Luís Graça (2024)


Jardim da Nita (1947-2023), Madalena, V. N. Gaia |  Luís Graça (2024)





Quinta de Candoz |   Luís Graça (2008)

Neste Natal não mandei cartões de boas festas a ninguém

por Luís Graça


Eu poderia ter escrito:

Neste Natal
tornem o mundo mais bonito
com o vosso sorriso,
com as vossas gargalhadas,
com as vossas emoções à flor da pele…

... e ter mandado um cartão
para os meus amigos
com votos de boas festas
nas mais desvairadas línguas do mundo:
Feliz Natal
Merry Christmas,
Joyeux Noël,
Feliz Navidad,
Buon Natale,
Frohe Weihnachten,
God Jul …

Mas não,
não escrevi nem mandei.
Neste Natal não mandei cartões de boas festas a ninguém.
Nem neste ano nem no ano passado.
Não me perguntem porquê…
Estou amuado com o mundo,
com os senhores deste mundo e do outro.
Mas este mundo e o outro
estão-se literalmente nas tintas para comigo
e para com os meus amuos.

Pensando bem,
os meus amigos (incluindo os meus camaradas da Guiné)
deviam merecer um cartão de ocasião,
um bilhete postal,
um 'cartanito', como dizem os alentejanos,
com os meus votos de boas festas
e como prova de vida e pedido de desculpas.
Eles não me levariam a mal,
esboçariam até um sorriso de condescendência,
quiçá até de compaixão…
Coitado,
está radioativo, protésico,parkinsónico,
quiçá alzheimareado!...

Queridos amigos e camaradas:
não é fácil não cair nos chavões
repetidos até exaustão, até à náusea,
nesta época dita natalícia
em que a natureza, a vida, os bichos,
os homens e até os deuses renascem…
Mas por outro lado
também é insuportável o silêncio,
a muralha da China do silêncio às costas do mundo.
Mesmo que haja excessivo ruído e poluição estética
nestes dias que antecedem o Natal e o Ano Novo,
mesmo que haja crise das comunicações,
é nos difícil não-comunicar.
É quase impossível não-comunicar.
É mesmo impossível não-comunicar.

De uma maneira ou doutra
acabamos por dizer aos outros, em geral
e aos amigos, em particular,
que estamos vivos,
que consumimos logo existimos,
que comunicamos logo pensamos,
que pensamos neles
e logo lhes mandamos um cartão, 
um simples email ou um poste no blogue.
Afinal, já não se mandam cartões de Natal pelo correio,
toda a gente tem agora uma caixa de correio eletrónico,
toda a gente está ao alcance de um clique,
já ninguém é infoexcluído,
toda a gente tem um telemóvel
e sabe mandar pelo Whatsapp
um cartão de boas festas natalícias.

No fundo, queremos sentir e fazer sentir
que os nossos amigos estão vivos,
que eles e nós estamos ainda vivos,
que somos uns felizardos por estarmos vivos…
É talvez a altura do ano
em que a solidão dói mais, custa mais,
custa mais a passar,
se é que algum dia passa.
Como se fora uma simples dor de dentes, ou de ouvidos…
Mas não é uma dor que passe com analgésicos.
Estás só, nos dois grandes momentos fulcrais da vida,
no alfa e no omega,
no princípio e no fim, 
no nascer e no morrer.
E, episodicamente, ao longo da vida,
tens a ilusão de estar acompanhado.
Afinal, estás só nas grandes decisões que tomas
ou que tomam por ti:
no nascer e no morrer,
no ir à guerra e matar
no ter um filho,
no assumir a paternidade…

Por isso hesitei
entre a palavra e o silêncio,
entre o pavor da palavra
e o horror do silêncio.
Gostaria de ter a certeza
que os amigos também se entendem através do silêncio,
também sabem deixar espaços em branco
para que o jardim da amizade se construa e se consolide
no silêncio dos dias e no pesadelo das noites,
em que não damos ou não queremos dar
sinais de vida uns aos outros.

Gosto, ou já gostei noutros natais,
da ideia, algo pueril,  de que o Natal deveria ser todos os dias.
Mas, por outro lado, recuo
ante a perspetiva de 365 dias de felicidade bovina,
365 dias todos seguidos,
sem um dia de discórdia,
de conflitos,
de chatices,
de problemas,
de incidentes,
de acidentes,
de stresse,
de adrenalina,
de ameaças,
de desafios,
de alegrias e tristezas,
de vitórias e derrotas,
enfim, de pequenos altos e baixos…

Como bom cristão
ou bom budista,
ou bom muçulmano
ou outra qualquer filiação do catálogo das religiões,
que não sou, 
ou como simples agnóstico,
manifestaria o desejo
de nos podermos organizar nesse sentido,
ou seja, de virmos a ter Natal todos os dias.
Não no calendário ,
mas em nós mesmos,
nos nossos corpos e almas,
nas nossas casas,
colmeias,
casulos,
redes neuronais,
casernas,
ilhas,
ilhotas,
arquipélagos,
empresas,
guetos,
depósitos de velhos a que chamamos lares de 3ª idade,
bairros,
cidades,
países,
mundos…
Nas nossas covas da moura, nas nossas mourarias,
ou nas nossas moradias de um milhões de euros.

Dito isto, hesitei...
hesitei entre o silêncio e a palavra,
sabendo que a comunicação é uma armadilha,
mas mais forte é o apelo dos sons, dos cheiros,
dos sabores, das cores e dos tons
o amor e da amizade
neste princípio de Inverno de 2024,
na despedida de mais um ano,
em que inexoravelmente ficamos mais velhos
e estamos mais sós,
irremediavelmente sós
tão sós como os milhões, biliões, trilióes de estrelas do universo
mas continuamos a ser animais, de sangue quente,
mamíferos, primatas, territoriais, sociais,
circadianos e heliocêntricos.
Animais que deixam peugada, 
muitas peugadas, 
existenciais e ecológicas,
físicas e simbólicas.

Não sei se foi mais um annus horribilis,
mas não foi um ano fácil,
lá isso não foi.
Como o não foi o 2023,  e por aí fora,
e como o não será  o de 2025,
para todos nós, homens e mulheres
que procuramos manter habitável e amigável o planeta,
a começar por aqueles que não têm motivos,
grandes, pequenos, assim-assim,
para sorrir, dar gargalhadas,
ter esperança e ter alegria.
Não foi fácil viver e sobreviver em 2024.

Penso naqueles,
para quem o ano de 2024 não foi pai nem mãe,
mas padrasto e madrasta,
mesmo que o ano, coitado,
não tenha personalidade jurídica,
nem coração nem razão,
contrariamente ao nosso patrão,
ou ao polícia do nosso bairro,
e o calendário seja o bombo da festa das nossas frustações…
Penso naqueles que vão morrer em 2025,
de uma lista onde estamos todos, de A a Z.

Neste Natal gostaria de poder enviar-vos daqui,
uma palavra
que fosse doce, quente, amiga, solidária,
fofa, calorosa, vistosa, feliz,
em forma de bolo-rei 
(gosto mais do bolo-rainha porque não tem frutas cristalizadas),
ou de pires de arroz doce com canela
ou de aletria (para os do Norte)
ou de prato de rabanadas,
acabadas de fritar.
Ou ainda de girândola de foguetes,
do estuário do Tejo à baía do Funchal.

Mas sinto-me colado ao teclado,
vidrado, bloqueado, cristalizado,
enquanto lá fora a neve coze as pencas do Norte
que irão ser comidas na Consoada
com o bacalhau com todos.
Ou chegam grandes paquetes
com gente que pagou uma nota preta para fugir
do Natal da tundra e do deserto e da estepe
com velhos e louros e novos,
que vêm ver a feérica cidade-presépio mais a sul,
que não é seguramente
a cidade do Menino Jesus da minha infância.

Talvez antes
eu devesse convidar-vos
para se sentarem à mesa comigo
nesta consoada ou na passagem de ano.
Mesmo simbolicamente que fosse.
À mesa somos verdadeiramente companheiros,
porque partilhamos do mesmo pão
e bebemos do mesmo vinho.
Na guerra, sim, somos ou fomos camaradas.
Fico na dúvida sobre o que é
física, mental, emocional,
social e espiritualmente mais correto.
Já não acrescento o politicamente correto
porque não queria estragar a quadra que é natalícia
e que deve ser festiva
e que deve ser de paz para todos os homens de boa e má vontade.

Neste ano (nem nos passados anos) 
não vos mandei um cartão de boas festas
com os dizeres:
Neste Natal
tornem o mundo mais bonito
com o vosso sorriso,
com as vossas gargalhadas,
com as vossas emoções à flor da pele…


Não tive coragem,
confesso que não tive coragem nem lata.
Ou sobretudo lata.
Não tive lata, falta de vergonha ou de pudor,
Ou se calhar não quis,
não tive pachorra, não pude,
fiquei sem internet, estive com gripe, ou houve greve dos correios…
Poderia invocar outra desculpa qualquer,
que seria sempre uma desculpa,
esfarrapada…

Este ano (nem nos anos passados) 
não mandei um cartão de boas festas
nem para aqueles que cuidam da minha saúde,
e para quem quem tenho uma dívida de gratidão,
da minha médica  de família aos meus enfermeiros,
do  meu urologista à oftalmologista que me operou às cataratas,
da minha neurologista à minha hematologista,
do meu ortopedista ao meu personal trainer,
da minha audiologista ao meu otorrino,...
sem esquecer a senhora ministra da indústria da doença.

Mesmo não podendo ou não querendo,
ou não querendo e não podendo  ao mesmo tempo,
acabei, afinal, por vos mandar, a todos e a todas, 
os meus votos de boas festas de Natal e Ano Novo.
Atabalhoadamente...

Que sejam, ao menos, quentes e boas
…como as castanhas assadas.

Madalena, 24 de dezembro de 2007.
Revisto:  Funchal, 31 de dezembro de 2008  | Madalena, 23 de dezembro de 2024.| 

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quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26290: Desejando Boas Festas, Feliz Ano Novo de 2025, e aproveitando para fazer... prova de vida (8): "Outras Festas Natalícias - Natal, uma época mágica", por Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74

OUTRAS FESTAS NATALÍCIAS

NATAL – UMA ÉPOCA MÁGICA[1]

Juvenal Amado

Naquela casa, pouco mais que remediada, o Natal era celebrado com grande alegria. Na altura a árvore era enfeitada de algodão e bugalhos pintados com purpurinas douradas e prateadas, alguns chocolates seriam pendurados mais próximo da data. Na antevisão das prendas não se sonhava com as grandes e inacessíveis montras das lojas que ofuscavam com o brilho e cores.
Tanta coisa que soava a agressão, para quem não podia reclamá-las.

A mãe fazia os fritos de abóbora, a batata doce frita em rodelas envoltas em açúcar e canela e uns bolinhos também fritos a que chamam hoje carolinas.

Era uma azáfama com que se preparava o festejo.

Comiam carne pois de bacalhau estavam fartos, eventualmente havia laranjada, bebia-se café de cevada e petiscavam os fritos e bolinhos.
As crianças deitadas agitadas mal dormiam para ir ao sapatinho onde as esperavam as alegrias que o menino Jesus lá tinha deixado - e também desilusões.

O comboio tinha ficado nalguma estação e a boneca tinha ido parar por engano a outra casa. A título de justificação o pai e mãe diziam que iam ver como tal tinha acontecido.

O pai fazia a maior parte dos brinquedos às escondidas. Pistolas e espingardas, camas e guarda-roupa para as bonecas. Era tudo lindo, a que se juntava uns lápis e chapéus de chocolate.
O tempo foi passando e, na vez de brinquedos, começaram a receber umas meias, uns sapatos, uma mala para a escola – material que há muito fazia falta. Rapidamente se passou dos brinquedos para as necessidades mais prementes.

Os Natais foram melhorando em função dos filhos que logo que saídos da escola iam trabalhar. Perdia-se a magia em troca de mais alguns bens que se podiam comprar.

Para o filho mais velho o Natal teve mais tarde outro significado, que foi o da saudade, quando em África passou três Natais seguidos.
O tempo corria lento e pesado, o suor corria denso encharcando o caqui nas longas noites de serviço ou em patrulhas esgotantes e perigosas. Não pensava no regresso pois era doloroso, embriagava-se e espantava assim a melancolia junto com os camaradas. Para casa escrevia que tinha sido bom e que estava bem.

Em Abril de 74 regressou a casa. Para trás ficou um muro de recordações de bons, assim-assim e inesquecíveis maus momentos.

Perderam-se os convívios, os calores humanos, tinha regressado - mas nunca totalmente. O que se perdeu lá ficou no passado por vezes sangrento, feito de medo e solidão, que hoje será coragem.

Casou, teve filhos e finalmente reviu-se nos Natais passados ao assistir à agitação dos mais pequenos na antevisão das prendas no sapatinho.
E a magia voltou a acontecer.

17 de Dezembro de 2024
Juvenal Sacadura Amado

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Notas do editor

[1] - Com a devida vénia ao Blogue da Tabanca do Centro

Último post da série de 18 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26285: Desejando Boas Festas, Feliz Ano Novo de 2025, e aproveitando para fazer... prova de vida (7): Mensagens natalícias de José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381; Grã-Tabanqueiro José Carlos Mussá Biai; Grã-Tabanqueiro Patrício Ribeiro, fundador da Impar em Bissau e Joaquim Fernandes Alves, ex-Fur Mil da CART 1659

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26276: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (33): Um presépio de há 60 anos, na Lourinhã, com um Menino Jesus muito "elétrico"... (Horácio Mateus, 1950-2013)

 


 Capa do livro "Apontamentos de Etnografia", de Horácio Mateus (1950-2013). Lourinhâ: GEAL - Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã, 2014, 56 pp.  (Foto da capa: o autor) (Com a devida vénia...)






1.  Fez este ano 40 anos o Museu da Lourinhã. `À sua criação e à sua história está indissoluvelmente ligada a figura do lourinhanse Horácio Mateus (1950-2013). Meu conterrâneo, amigo e vizinho, já não foi à guerra, fez a tropa. 

Em vida, foi etnólogo, espeleólogo, arqueólogo, paleontólogo, museólogo...Amador. Por paixão. Por muito amar a sua terra, a sua gente, o seu património cultural, material e imaterial.

C0mo  eu disse na oração fúnebre, aquando da sua despedida terrena, ele foi "um exemplo de paixão pela vida, pela terra, / pelos seres que o habitam ou habitaram, / pelas artes e ofícios dos nossos antepassados, / pelas pedras das suas casas, / pelos muros dos seus caminhos, / pelas árvores dos seus campos"... Cultivou "a paixão pela história, / pela ciência, /pela cultura, / pelo património de todos nós" (*)

"Não gostava de escrever", dizia a viúva, infelizmemnte também já desaparecida, a Isabel Mateus (1950-2021). Mas, com muito amor foi ela quem juntou e organizou  estes apontamentos de etnografia, histórias e notas que oo Horácio  foi 5registanbdo na memória e fixando no papel, associadas à riquíssima coleção etnográfica do museu, cuja recolha se deve em grande parte a ele... 

Mas mais do que as peças, em risco de se perderem para sempre (da bicleta do ourives ambulante aos rótulos e e recipientes da "fábrica de pirolitos",  ou das ferramentas dos correeiros e dos ferradores), interessavam-lhe as histórias dos seus donos, a começar pelo seu pai que  era o "pitrolino" (vendedor ambulante de petróleo, azeite, sabão, aguardente e outros produtos de uso doméstico)  e pelo sr. Garcia, taberneiro e amola-tesouras, galego de Ourennse, fugido  da guerra civil espanhola de 1936-1939...


Brasão de armas da Lourinhã

Histórias que foram as da nossa infància, como a do presépio que se montava todos os anos (e ainda hoje de monta) na Igreja Matriz da Lourinhã. Em homenagem ao meu amigo, e para enriquecer a série "Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços" (**), foi repescar esta história do presépio, que remonta à primeira metade da década de 1960, já a guerra tinha "rebentado" em Angola, e depois na Guiné e em Moçambique, e já a Lourinhã tinha alguns dos seus filhos mortos, feridos e até aprisionados (como foi o caso da Índia, em finais de 1961),

O Vigário aqui referido era o padre António Pereira Escudeiro (Tomar, 1917-Lisboa, 1994), que veio de Alcanena para a Lourinhã em 1953 (e onde permaneceu até 1983). (Fundou e dirigiu na Lourinhã,  os jornais quinzenários regionalistas "Redes e Moinhos, em 1954, e depois o "Alvorada", em  1960; fundou e dirigiu também o Externato Dom Lourenço, em 1958. Quanto ao outro protagonista da história, era o José Andrade de Carvalho, hoje veterinário.









Excerto do livro "Apontamentos de Etnografia", de Horácio Mateus (1950-2013). Lourinhã: GEAL - Grupo de Etnologia e Arqueologia da Lourinhã, 2014. pág. 31. (Com a devida vénia...)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de > 19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21918: Manuscrito(s) (Luís Graça) (199): Elegia para Isabel Mateus (Soure, 1950 - Lourinhã, 2021)

(**) Último poste da série > 1 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26220: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (32): da "pubela"... ao vidrão, sem esquecer a "cesta-secção" e a "poubellication" (Luís Graça)


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Guiné 61/74 - P26273: Desejando Boas Festas, Feliz Ano Novo de 2025, e aproveitando para fazer... prova de vida (2): Recordando o Natal daqueles tempos (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS)

1. Em mensagem de 14 de Dezembro de 2024, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), enviou-nos esta sua recordação do Natal daqueles tempos:


“Recordando o Natal daqueles tempos”

Já lá vão muitos anos, mais de sessenta, mas é bom puxarmos pela memória para recordarmos como era o Natal nessa época do após guerra.

Com mais ou menos frio próprio da época, parecia que toda a gente andava empenhada em dar algum brilho a essa quadra diferente.

Os miúdos andavam a procurar os melhores sítios para apanharem o musgo para o presépio. E encontravam-no naquelas oliveiras muito grandes e já velhas, mas também nas ribanceiras. Cada um procurava o melhor, mas também ajudava os seus amigos na mesma busca e recolha. As pedras, para se fazer a gruta e as elevações do terreno, essas facilmente se encontravam em qualquer monte. Era só escolher as que melhor se podiam aplicar, e levar para casa.

As figuras já existiam de anos anteriores. Era o Menino Jesus, S. José e Nossa Senhora, mas também a vaca e o burro para aquecerem o Menino. No alto da gruta, para além dos Arcanjos e da Estrela, também lá estava o galo para cantar ao amanhecer do dia. Mas o presépio também tinha o pescador e, claro, os pastores e o seu gado, sem esquecer o cão de guarda. Também lá estavam as casinhas, os ribeiros, as pontes e a igreja e ao longe também já se viam os Reis Magos, a serem guiados pela estrela, e que haviam de chegar à gruta no dia de Reis para darem ao Deus Menino as suas prendas Era uma festa, especialmente para a gente pequena, que se renovava todos os anos.

Naquela altura ainda não tinham chegado as modernices do Pai Natal nem a Árvore de Natal. Era o presépio e a bota, ou o sapato, na chaminé a ver se o Menino Jesus trazia alguma prenda.
De facto, já se sonhava com as prendas, mas nada do consumismo dos últimos anos. Os brinquedos eram de madeira ou de lata e era um consolo quando um caía na bota. Mas as melhores prendas acabavam por ser as meias, as camisolas ou algum boné para a cabeça porque de resto já havia a certeza do “rancho melhorado” lá em casa, onde também não faltavam os fritos.

À meia-noite havia a Missa do Galo na Igreja Matriz. Mas antes disso já o adro da igreja estava pejado de lenha, de árvores inteiras, para que a fogueira durasse até de manhã. Era a tradição.
A Missa era rezada com uma solenidade própria dos dias festivos da Igreja. E nessa noite a igreja enchia até não levar mais gente. Sentia-se algo de diferente. Mesmo com o frio da noite, cá dentro, sentia-se um calor humano, que não era derivado do calor da fogueira.

Em casa, as mães e as avós também tinham andado nos últimos dias numa lufa-lufa constante. Eram as limpezas da casa, era a procura da galinha para servir de prato forte no dia de Natal. Era a procura do bacalhau que também não podia falta na noite da Consoada e o “fiel amigo” nessa altura andava muito fugidio. Mas sempre se arranjava algum. As couves também não faltavam e o belo azeite da serra, para regar o prato, também estava presente.

Por vezes, enquanto as mães preparavam os fritos, também se arranjava tempo para se grelhar uma febra de porco nas brasas da chaminé. Era uma noite diferente em tudo. A garrafa de tinto também compunha a mesa, se bem que os mais novos não lhe tocavam.

O maior trabalho era das mães. Era todo o trabalho da casa e da cozinha, mas especialmente a preparação das massas para os fritos. Era um trabalho interessante que os mais novos nunca perdiam de vista. Amassar, levedar, estender e depois fritar os coscorões, muito finos e estaladiços que eram polvilhados com açúcar pilé com um pouco de canela, mas também as filhoses e as velhoses, depois de amassadas e preparadas para a fritura, também eram polvilhadas com o mesmo açúcar e a mesma canela. Depois tudo era colocado, separadamente, naqueles alguidares grandes de barro vidrado e tapados com um pano de linho para mostrar o esmero da casa e da cozinheira, de onde depois das refeições, durante uma série de dias, se tiravam alguns fritos para servir de sobremesa.

Voltando ao final da Missa, que terminava sempre com a cerimónia de se beijar o Menino, já passava da uma hora e os mais pequenos, apesar de alguns terem dormido uma sesta de tarde, já sentiam o peso do sono na cabeça e nos olhos. Mas ao saírem da Igreja lá estava a fogueira, bem acesa a despertar-lhe a curiosidade já que se tratava de acontecimento raro. Mas os olhos tinham que estar ainda abertos para, quando se chegasse a casa, ainda se ir ver a bota e se havia mais alguma coisa para além do tal par de meias.

No dia de Natal voltava a haver Missa ao meio-dia. A fogueira do adro ainda ardia mas as chamas já eram pequenas. Lá dentro, as cerimónias religiosas voltavam a acabar de novo com o beijar do Menino. Cá fora, se o tempo não ameaçasse chuva, já se mostravam as coisitas novas que o Menino Jesus tinha posto na bota ou no sapatinho.

Depois era o almoço. Começava sempre com uma canja de galinha, feita com sopa de pão e um raminho de hortelã até que depois vinha a galinha corada para a mesa, com a travessa do arroz corado no forno, arroz doce para compor a refeição, e depois os fritos da época e da véspera.

Era o Natal dos simples. Mas era saudável e sempre esperado pelas crianças.

Carlos Pinheiro
14 de Dezembro de 2019

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Nota do editor

Último post da série de 11 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26254: Desejando Boas Festas, Feliz Ano Novo de 2025, e aproveitando para fazer... prova de vida (1): João Crisóstomo (e Vilma) (Nova Iorque)

domingo, 8 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25922: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (34): "Canção de Natal"

Adão Pinho Cruz
Ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547
Autor do livro "Contos do Ser e Não Ser"


Canção de Natal

Sábado à noite, dia vinte e um, vésperas do Santo Natal.
O frio enrugava os ossos. A rua de Santa Catarina era um rio de gente, um rio de águas desencontradas sem destino nem rumo, umas correndo para baixo, outras para cima e mesmo para os lados, se algum dia se viu! Gente por cima, gente por baixo, gente saindo e entrando não se sabe bem onde. Tanta porta aberta, tanta porta fechada, não se sabe ao certo.
Pessoas em cima de gente embrulhadas em pessoas e sacos e mais gente e mais sacos pendurados nas mãos, nos ombros, no pescoço, nas orelhas, nos olhos.

Uma velha andrajosa, suja e gorda, - de doença seria a gordura e não de fartura! Uma provável anasarca cardíaca - que faz do doente uma espécie de boneco Michelin rebentando de inchaços.
Uma velha gorda excrescente tumoral (de trapos seria a gordura também! O frio enroscara-lhe o corpo com todos os farrapos do lixo).
Uma velha feia tentava subir a rua por entre a multidão limpa. Com grande agonia, arrastava pelo chão, puxada por um cordel, uma caixa de papelão que dentro continha outras caixas e restos de caixas e mais papelão (provavelmente toda a sua mobília de quarto que haveria de montar nesse arrastado andar lá para o meio da noite no vão de uma porta muito acima do 575, mais fora dos olhos dos enxotadores de pobres).

A velha, cuja idade lhe mirraria as carnes se os inchaços se escoassem, não ia bem-disposta, nem dava ideia de estar bem no meio daquele mar de gente, antes de tudo, sentia-se afogar, não era inveja dos sacos nem dos cheiros nem dos casacos nem do luxo (sabia lá ela o que era o luxo! Importava-se lá ela com todo o papelão dos outros todo o papelão que ia dentro daquele mundo de sacos!), ela só queria o seu papelão e que não estorvassem os seus bocados de passos que juntos não dariam mais passos do que dez à hora.
Ela só queria que aquela gente toda ali, parida pelo diabo, não a impedisse de arrastar a sua casa, então praguejava bem alto:
- Vão todos pró caralho, vão-se todos foder.

Ouvia-se como música de fundo um lindo cântico de Natal...
- Filhos da puta, deixai-me passar, vão-se todos foder.

Dois putos atiçaram a velha: - Vai-te foder, tu, velha ranhosa, ao mesmo tempo que ironizavam à gargalhada:
- Avariou-se o Mercedes à gaja!

A velha não se agastou mais do que já vinha, estava treinada na cena para não perder energias com a inutilidade de erguer a voz e ripostou num grunhido cavo:
- Vai levar no cu, paneleiro de merda.

A melodia de Natal escorria pelos ouvidos cheios de sacos de paz e harmonia.

Já quase exausta, com voz mais cava, a velha dizia: - Deixai-me passar, bandalhos.

Lá em cima, Deus não deve ter levado a mal.
Como reza o Divino Testamento, dos pobres é o reino dos Céus.
Em breve, ela estaria com Ele para usufruir da eterna justiça e.… na altura devida, Ele lhe daria com ternura um puxãozito de orelhas.
Deus não é bandalho.

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Nota do editor

Último post da série de 1 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25902: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (33): "Na senda do poema azul"

domingo, 31 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25024: Manuscrito(s) (Luís Graça) (242): De que nos servem os "anjos da guarda" se os que estão de serviço ao presépio deixam roubar o Menino Jesus em Vila Nova de Cerveira ? Não tenho nenhum alibi, mas juro que não fui eu que o roubei...






Vila Nova de Cerveira > 28 de dezembro de 2023 > Presépio, sem o Menino Jesus,  junto á igreja matriz local, também conhecida por igreja de São Cipriano (na foto acima, vista do Jardim Mestre José Rodrigues, Escultor, 1936-2016)

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 


1. Viajando, "amuletado" e tristonho, pelo Alto Minho, na semana de dilúvio pós-natalícia, achei-me de repente numa praça, vazia,  de Vila Nova de Cerveira onde se erguia, na parede exterior da igreja matriz local, um presépio à escala humana. 

De máquina fotográfica a tiracolo, ali largado, sem grandes ideias nem expetativas, na rua principal da "Vila das Artes", despertou-me o presépio  a curiosidade de turista estúpido em férias... e fui lá espreitar. 

Tirei meia dúzia de  chapas. E só agora, de regresso a casa, na Madalena, Vila Nova de Gaia, ao visionar as fotografias que tirei na minha Nikon D-5300, comprada em Tóquio mas "made in Thailand", é que dou conta que a figura principal deste teatro sagrado estava ausente.  Na primeira foto, que publico acima, é bem visível  que o Menino Jesus não está no seu berço improvisado com as palhinhas da manjedoura do burro e da vaca,,,,

Pensei logo: algum engraçado da terra terá levado para casa, de noite, a imagem do Menino Jesus, para desgosto, no dia seguinte de manhã, da "canalha", do padre, da comissão fabriqueira, das beatas e do vereador do pelouro do turismo... (E até do burro, de orelhas espetadas,  sem esquecer  o pobre Baltazar que veio de longe, quiçá da Guiné, para trazer ao novo  Rei dos Reis a mirra, símbolo da imortalidade.)

Brincadeira, reinação, vandalismo, malvadez ?!...  Parece que todos os anos há cenas destas em Espanha. Roubam e sequestram o Menino Jesus, na Catalunha, por pirraça, bravata ou até com a intenção, já criminosa,  de pedir um resgate... E agora com as redes sociais, estas cenas são rapidamente imitadas...

Não sei se  foi o caso em Vila Nova de Cerveira, pacatíssima terra raiana onde vi poucos indígenas, e os raros de que  me aperecebi, em noite fria e chuvosa, num tasco, eram vizinhos galegos, em geral famílias, alegres e ruidosas,  que vieram  ao lado de cá do rio Minho para "tapear"... (Já não há o escudo nem a peseta, mas o raio do euro vale mais na margem direita do rio, pelo que os comes & bebes na margem esquerda são mais baratos.)

Fiquei deveras intrigado e até preocupado. Será que as autoridades lá da terra  (religiosas, autárquicas e policiais)  já deram conta do misterioso desparecimento do Menino Jesus, que era pressuposto estar nas  suas palhinhas deitado, e fortemente guardado por um "securitas" celestial  ?  

E se alguma beata, pela frincha da janela, me viu rondar o presépio e até tirar fotografias, com o meu ar estranho, suspeito e até louco ? Para mais com duas muletas, barba e cabelo comprido, não é difícil à PJ fazer-me um rápido-robô e depois ir, com mandato judicial na mão,  bater-me à porta da rua dom Afonso Henriques, na Madalena, onde procurei abrigo provisório por estes dias tristes, em fim de ano amargo como foi o de 2023... 

"Estou feito ao bife!"...  e ainda passo as festas do Ano Novo com termo de residência e identidade ou até pulseira eletrónica,,,  Enfim, não foi nada que não me tenha passado pela minha pobre cabeça!...Ou então foi algum pesadelo securitário que tive esta noite, fruto das pesadas digestões da quadra natalícia.... 

Daí apressar-me agora, a escassas duas horas do fim do ano,  para, publicamente, neste blogue de antigos combatentes da Guiné, protestar a minha inocência... Dormi em 28 e 29 de dezembro de 2023 num hotel por ali perto,  junto ao rio Minho, não tenho nenhum alibi, mas juro que não fui eu que roubei o Menino Jesus do Presépio da "Vila das Artes"...  

Só me resta desejar um noite descansada para aqueles que, na nossa terra e na nossa democracia, zelam pela nossa segurança, próxima, mediata e remota... E que para o ano sejam tão bons ou melhores zeladores  e guardiões  que o "anjo da guarda da minha companhia" que, na minha infância , me guardava  "de noite e de dia". Ámen.  

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P25003: Manuscrito(s) (Luís Graça) (241): o meu primeiro Natal no Norte, em 1976

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25014: Natal 71, documentário de Margarida Cardoso (1999, 52 min)


NATAL 71 de Margarida Cardoso (1999) – excerto

(Reproduzido com a devida vénia...)

Ficha técnica:

Documentário : Natal 71 (1999) | 52 min

Realização: · Margarida Cardoso

Argumento: · Margarida Cardoso

Editado em DVD pelo jornal Público e pela Midas Filmes

Sinopse: 

(...) "Natal 71 é o nome de um disco oferecido aos militares em guerra no Ultramar português nesse mesmo ano.

Cancioneiro do Niassa é o nome que foi dado a uma cassete áudio, gravada clandestinamente por militares ao longo dos anos de guerra, em Moçambique.

Era o tempo em que Portugal era um grande império colonial pelo menos era o que eu lia nos livros da escola - e para que assim continuasse, o meu pai e grande parte da sua geração combateu nessa guerra, que durou treze anos.

Hoje transportamos, em silêncio, essas memórias. Olho para trás e tento ver.

Em casa do meu pai encontrei algumas fotografias, a cassete e o disco.

A cassete é uma voz de revolta, o disco é uma peça de propaganda nacionalista. São memórias de uma ditadura fascista. Memórias de um país fechado do resto do mundo, pobre e ignorante, adormecido por uma propaganda melosa e primária que nos tentava esconder todos os conflitos, e que nos impedia de pensar e de reconhecer a natureza repressiva do regime em que vivíamos. (...)

Fonte: Margarida Cardoso] (-) Fonte: CINEPT - Cinema Português (com a devida vénia...)