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domingo, 10 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26135: As nossas geografias emocionais (32): Bafatá, 1959, ano de cheias, fazendo jus ao nome da vila ("o rio vai cheio") (Leopoldo Correia, ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65)

 

Foto nº 1 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > O jardim local, na margem direita do rio Geba Estreito. Ao centro, a estátua de Oliveira Muzanty.


Foto nº 2 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (1): Uma das ruas da zona ribeirinha inundadas; à esquerda, o comerciante Carlos Marques da Silva


Foto nº 3 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (2):  uma loja com um passadiço improvisado


Foto nº 4 > Guiné > Região de Bafatá > Bafatá > 1959 > Cheias (3):  o mercado que já existia nos 30, de arquitetura revivalista



1. Ainda não se falava de "alterações climáticas", mas já o rio Geba Estreito (ou Xaianga) transbordava, periodicamente, as suas margens, inundando a baixa da vila de Bafatá (próspera, a partir dos anos 30/40, graças ao "ciclo da mancarra")...


As fotos chegaram, há uns largos anos atrás, ao nosso blogue, pela mão do nosso tabanqueiro Leopoldo Correia (ex-fur mil, CART 564, Nhacra, Quinhamel, Binar, Teixeira Pinto, Encheia e Mansoa, 1963/65) (foto à esquerda).

Estas e outras fotos de Bafatá, de 1959, foram tiradas por um familiar seu, ligado ao comércio local (Casa Marques Silva), casado com uma senhora libanesa, filha do senhor Faraha Henen.

Mais tarde, falando com o Leopoldo Correia, ao telefone, vim a descobrir que afinal o Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca... é Grande!...

De facto:

(i) era um homem das sete partidas: depois da "peluda", viveu em Angola, trabalhou na Diamang;

(ii) voltou para o "Puto', trabalhou na EDP, por exemplo na Central Termoelétrica do Barreiro onde fez amizade com amigos e conterrâneos meus, o Carlos e o Hugo Furtado (que andou comigo na escola primária);

(iii) na Guiné, também conheceu, entre outros, o Fernando Rendeiro, comerciante de Bambadinca a cuja casa fui algumas vezes almoçar, no tempo em que lá estive (julho de 69/março de 71)...

(iv) falou-me da viúva do Rendeiro, mandinga, Auá Seid (entretanto já falecida) e dos filhos (que  o comerciante de Bambadinca, natural da Murtosa,  nunca nos mostrava mas de quem falava com tanto carinho e orgulho: tinha uma filha a tirar direito, em Coimbra)...

(v) vivia em Águas Santas, Maia;

(vi) não tenho, há muito, notícias dele.

As fotos revelam um drama que se tem agravado com o tempo: as cheias do rio Geba (ou Xaianga).

A antiga cidade colonial de Bafatá (topónimo que vem do mandinga, "baa faata", "o rio vai cheio), infelizmente ainda não conseguiu ultrapassar a decadência urbana,demográfica e económica, que tem a idade da independència do país. (**)

O fim do "ciclo da mancarra", " a semente do diabo" (imposta pelos "colonialistas", e de queo grupo CUF, através da Casa Gouveia, foi o grande beneficiário)  foi também, material e  simbolicamente, o fim da "princesa do Geba". Em contrapartida, o "ciclo do caju", imposto pela nova economia planificada de Luís Cabral, não produziu a riqueza que se esperava, para a grande maioria dos guineenses, em geral, e os bafatenses, em particular, que criaram novas tabancas  ao longo do eixo rodoviário do leste, que liga Bambadinca a Nova Lamego. 

No nosso tempo havia as tabancas da Rocha,da Ponte Nova, da Nema... Há muitas mais... Mas continua a haver inundações no Vale de Bafatá, como este ano, provocando grandes estragos, em culturas (arroz de bolanhas de água doce) e em habitações, ao longo do curso do rio até Bambadinca,
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Notas do editor:

sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24731: Notas de leitura (1622): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Esta obra de Valentim Alexandre é um portento de rigor, não se conhece estudo mais exaustivo quer para a génese do movimento anticolonial quer para estes tão profundamente documentados três primeiros meses dos acontecimentos angolanos de 1961. E não hesito sequer a dizer que todo este trabalho de História Colonial que cronologicamente o autor abriu com o seu monumental Contra o Vento - Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), em 2017, e que agora tem os seus primeiros capítulos que garantem não só uma leitura palpitante e esclarecedora como um acervo documental único. E o distanciamento, pedra angular dos historiador, fica suficientemente comprovado para tornar todo este corpo de investigação uma pedra angular da História de Portugal Contemporâneo.

Um abraço do
Mário



O início da guerra em Angola, os três primeiros meses (1):
Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial


Mário Beja Santos

Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril), por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo, ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe.

Logo na introdução o autor equaciona os propósitos da obra a partir do momento em que o movimento de descolonização se pôs em marcha em vários continentes. As incidências no sistema político português tiveram uma resposta lenta, mesmo com a crise de Goa e os primeiros sinais das independências africanas, em 1958. 

O Estado Novo procurou responder com uma muita prudente reforma das Forças Armadas, uma certa preparação em contraguerrilha, o envio a conta-gotas de unidades militares para África e a criação de delegações da PIDE. Mesmo no crescendo de informações inquietantes, nada de significativo se tinha alterado na Guiné e em Angola, os locais onde se previa que viesse haver turbulência, com independências à volta. 

É nesse contexto que irrompem três grandes convulsões angolanas, a revolta da Baixa de Cassange, de janeiro a março; o assalto às prisões de Luanda, em fevereiro; e a insurreição no Norte do território a partir de 15 de março, o autor dar-nos-á uma empolgante, metódica narrativa dos acontecimentos e protagonistas. 

E teremos o repositório dos efeitos da crise angolana, torna-se percetível que velhos aliados se posicionem prudentemente à distância. É uma narrativa que entreabre as portas para uma guerra de 13 anos, este período do primeiro trimestre de 1961 é de grande turbulência, sangrento, timbrado para acontecimentos horríveis onde não faltam corpos desmembrados a execuções sumárias e bombardeamentos aéreos arbitrários.

Com o rigor que pauta sempre os seus trabalhos, Valentim Alexandre aborda os prenúncios e avisos dirigindo-se exatamente para o local onde era suposto haver o primeiro incêndio, a Guiné. Em 1958, é enviada uma missão militar à Guiné, constata que ainda não havia qualquer ação ativa, mas não deixou de se referir que já se fazia sentir uma “pressão insidiosa” que poderia “causar dificuldades num espaço de tempo relativamente curto”, não se ignorava que os dirigentes dos novos países independentes eram manifestamente anticoloniais e revindicavam a retirada dos europeus. 

Por esse tempo há um relatório de Silva Cunha assinalando o significado da independência da Guiné-Conacri e anotando um “sentimento geral de descontentamento” que começava a verificar-se nas camadas de nativos mais evoluídos, principalmente em Bissau […] quanto à sua situação social. E Silva Cunha não dourava a pílula, acusava “Portugal de não cuidar suficientemente de proporcionar aos nativos da Guiné meios de progresso cultural, social e político equivalentes aos que se encontravam nos territórios vizinhos”.

No ano seguinte, ocorreram os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti, de que resultou um número elevado de mortos e feridos. Uma comissão militar presente na colónia ajuizava a natureza do incidente devido aos baixos salários pagos pela Casa Gouveia e Sociedade Ultramarina. 

A propaganda de Conacri fazia-se sentir a partir das transmissões de rádio, proponham-se medidas, desde a neutralização desta propaganda até à ocupação em superfície do território, dizia-se mesmo que o interior se encontrava completamente desguarnecido. Boa parte destas recomendações só anos mais tardes serão aplicadas, o poder central limitou-se a remeter um chefe de brigada e seis agentes da PIDE, um destacamento de paraquedista com cerca de 30 homens e por mar partiu uma companhia de caçadores que chegou a Bissau em 18 de agosto.

Passamos agora para Angola, o grande abalo no continente e na política mundial veio do Congo Belga, estamos em 1959 quando se inicia a crise congolesa que o autor explica ao pormenor. Nesse mesmo ano os colonos do distrito do Congo (Angola) reclamavam que lhes fossem fornecidas armas para sua defesa pessoal, pressintam que a convulsões batiam à porta. 

O autor dá-nos a situação no Norte de Angola, a importância do Reino do Congo, cuja existência independente voltava a ser reclamada pelos autóctones, que eram um perigo sentido pelo Ministério do Ultramar investiram o novo Reino do Congo; há agitação política a que a campanha presidencial de 1958 deu algum folgo, dado o impacto que teve em Angola a candidatura de Humberto Delgado, formam-se vários movimentos anticoloniais, cresce a concertação entre movimentos independentistas provenientes das colónias portuguesas, formara-se em 1957 o MAC – Movimento Anticolonialista, que agregava, entre outros, Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Lúcio Lara e Eduardo Santos, com antenas no exterior, tentava-se obter apoio dos países africanos já independentes, iniciativa que se revelou frustrante. 

No fim da década de 1950, o MAC transformou-se na FRAIN – Frente Revolucionária para a Independência das Colónias Portuguesas, o MPLA e o PAI (futuro PAIGC) são acolhidos em Conacri; o MLG – Movimento de Libertação da Guiné, de Rafael Barbosa, incorpora-se no PAIGC, os são-tomenses criam o seu próprio movimento de libertação. 

O autor procura dar-nos um quadro da génese do MPLA e da UPA, ideologias e influências. Este contexto da deterioração da situação na Guiné e em Moçambique não é ignorado pelos departamentos oficiais portugueses, ademais o cenário internacional modifica-se com a chegada dos países independentes à ONU, as resoluções anticoloniais surgem umas atrás das outras.

E temos a rebelião da Baixa de Cassange, tudo bem contextualizado por Valentim Alexandre, ficamos a saber como trabalhava a Companhia Geral dos Algodões de Angola (COTONANG), de nacionalidade portuguesa, com capitais luso-belgas, uma exploração miserável, com descarado trabalho forçado, temos um quadro da rebelião, as influências externas e até religiosas, a resposta foi brutal, logo os bombardeamentos com metralha e bombas por parte da aviação. As autoridades portuguesas tudo farão para que não se fale desta revolta onde a força motriz, de acordo com os factos documentais existentes, teve a mão declarada da UPA. 

Os militares portugueses no terreno não se escusaram a dizer a verdade do que viam: os castigos corporais, caso das chicotadas, as sovas dos capatazes que aplicavam arbitrariamente multas a torto e a direito, os roubos no peso e no pagamento e na qualificação da fibra, a corrupção impetrada pela COTONANG às autoridades administrativas que recebiam envelopes com quantias avultadas para fecharem os olhos aos abusos. Valentim Alexandre também releva o caráter messiânico na contestação ao poder colonial. E chegamos assim a fevereiro de 1961, os assaltos às prisões de Luanda.

(continua)

Imagens da reportagem de James Burke para a LIFE Magazine em 17 de fevereiro de 1961
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24719: Notas de leitura (1621): "Tertúlias da Guerra Colonial"; edição da Associação dos Pupilos do Exército, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24161: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte I: Eu estive lá (Mário Dias)

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs cabos milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo): estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (*)

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Passados tantos anos, continua a haver curiosidade, da parte dos nossos leitores, sobre o que se passou em Bissau, no cais do Pijiguiti (lê-se: Pidjiguiti), ou  Pindjiguiti (como escrevem, mais recentemente, os guineenses), ainda uns anos antes da guerra em que estivemos envolvidos.  No nosso blogue, publicámos logo no início duas versões, de Luís Cabral (na altura "guarda-livros" da Casa Gouveia) e do nosso camarada Mário Dias, um dos históricos do nosso blogue (**), e que frequentou, em 1959,  o 1.º CSM que se realizou na Guiné e de que fizeram parte alguns futuros quadros do PAIGC, como Domingos Ramos, o Constantino Teixeira ou o Rui Djassi.

Escrevemos na altura (***):

(...) O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional", na narrativa do PAIGC (que então se chamava apenas PAI).

Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos  marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF – Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. 



Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", edição de 4 de agosto de 1959 (em que o destaque ia para as peripécias da XXII Volta a Portugal em Bicicleta): a agència Lusa, noticiava, a partir de Lourenço Marques, um "fait-divers": "Elefantes trucidados pelo comboio no vale do Limpopo"... 

Fonte: Citação:(1959), "Diário de Lisboa", nº 13166, Ano 39, Terça, 4 de Agosto de 1959, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_17262 (2023-3-22)

Na época, é bom lembrá-lo,  a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo. E, nós, adolescentes (eu tinha 12 anos), estávamos longe de pensar que a futura guerra da Guiné iria sobrar também para nós (dez anos depois, no meu caso)...

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa. (...)

Guiné-Bissau > Bissau > 1976 >  Planta da cidade em mapa publicado a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). Imagem gentilmente cedida por A. Marques Lopes (2005).
 

Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959: 

depoimento de Mário Dias (***)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (*****). Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas), Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas 
– umas à vela e outras a motor  – que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.



Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente  –   na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente 
 [António] Carreira – sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica 
 [na altura, Subsecretário de Estado da Aeronàutica, Kaúlza de Oliveira de Arriaga (1955 - 1961)].

Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca.

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão 
  [José Severiano]  Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá.. Foto do 
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. 

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com es
pingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. 

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local [o intendente António 
Carreira],  os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.

– Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? 

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe  que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. 

Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

(i)  O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

(ii)  Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

(iii) Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

(iv) Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (****), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

(v) E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Parênteses retos: LG]



Guiné-Bissau > Bissau > 2005 > Também eles, os filhos, netos e bisnetos do Pidjiguiti, os filhos, netos e binetos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros e trabalhadores do Porto do Pidjiguiti, em 3 de agosto de 1959, têm direito à verdade.(*****)

Foto: © Jorge Neto (2005). Todos os direitos reservados
 [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas de L.G.:



(...) Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné. (...)


(****) Fui eu que fiz referência, em 2006, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos soldados (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

(*****) Vd. poste de 21 de março de 2023  > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959

terça-feira, 21 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959

Imagem alusiva aos incidentes de 3 de agosto de 1959 no Pidjiquiti, retirada de Esquerda.net, com a devida vénia

1. Comentário do Valdemar Queiroz (*):

A fotografia em que aparecem policias e corpos de mortos pelo chão, não tem nada a ver com o
massacre do Pidjiquiti em Bissau.

É fácil de verificar tratar-se de polícias e ambiente da África Sul racista.

Valdemar Queiroz 20 de março de 2023 às 21:58 

2. Comentários posteriores  do editor LG:

(i) Valdemar, obrigado pelo teu olho clínico. A foto em questão é um embuste. Não tem nada a haver com Bissau. Temos de ter mais cuidado com a escolha das fotos que andam por aí nas redes sociais com falsas legendas... Vamos continuar a investigar melhor... a sua origem e autoria.

(ii) A imagem, polémica, deve ter sido retirada da entrada da Wikipedia, em português, sobre o "massacre do Pidjiguiti" (sic).

Lamentavelmente não se indica a fonte.

(iii) Na Wikipedia em inglês essa falsa imagem não aparece...

https://en.wikipedia.org/wiki/Pidjiguiti_massacre

A sua origem pode ser portuguesa... Creio que é da Esquerda Net, ilustrando um artigo, de 3/8/2021, da Sílvia Roque, uma jovem investigadora da Universidade de Coimbra que não deve ter idade para (mas tem a obrigação de, como académica, historiadora, doutorada...) saber distinguir a PSP, colonial,  de Bissau, em 1959, e a polícia do regime sul-africano do tempo do "apartheid".

https://www.esquerda.net/dossier/3-de-agosto-de-1959-massacre-de-pindjiguiti-bissau/63784

A imagem, sem indicação de fonte e de créditos fotográficos, tem a seguinte legenda: "Massacre de Pindjiguiti, Bissau. Reprodução" (sic).

Não sabemos de quem é a responsabilidade por este dislate: se dos editores da Esquerda Net, se da Sílvia Roque.


Sugestão (**): confira-se esta imagem, que reproduzimos acima,  com outras em que aparece a antiga polícia do regime  sul-africano do apartheid (cujo equipamento incluía as "shortguns"...). As fardas dos oficiais não condizem com as da nossa PSP... Os agentes nativos  usam "capacete colonial"... O fundo, com estruturas edificadas ao fundo, também não parece condizer com o cais do Pijiguiti que todos nós  conhecemos nos anos 60 e 70... Enfim, os corpos não parecem ser de marinheiros e trabalhadores portuários... 

De qualquer modo, não queremos ignorar ou branquear o hediondo crime que foi a repressão brutal  da greve de 3 de agosto de 1959, trágicos acontecimentos  que o partido de Amílcar Cabral (na altura um grupúsculo) "cavalgou", aproveitando-se para fazer deles a sua propaganda... Mas a luta política é assim, em todo o lado e em todos os tempos.  As autoridades portugueses, o Grupo CUF, a Casa Gouveia e o António Carreira, por seu turno,  ficarão sempre mal na foto da História...
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 28 de janeiro de 2023  > Guiné 61/74 - P24017: Fotos à procura de... uma legenda (170): um "aerograma"... da Suécia com, brrr!, muito frio (José Belo)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24105: Notas de leitura (1559): Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus; A Esfera dos Livros, 2013 - Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Evento de indiscutível importância para o futuro da Guiné, o que se passou no cais do Pidjiquiti em 3 de agosto de 1959 foi alvo de diferentes olhares e os números apontados estão longe de coincidir. O PAIGC manifestou sempre uma certa reserva em chamar a si a greve. A hipótese posta por Leopoldo Amado foi que teria sido Rafael Barbosa e o seu Movimento de Libertação para a Guiné a dinamizá-la, parece próxima da realidade. Mas foi mesmo um momento de viragem, as autoridades sabiam perfeitamente que houvera mudanças nos países vizinhos, um já independente e o outro a caminho, era fatal a aspiração nacionalista.

Um abraço do
Mário



Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: para cada um a sua verdade

Mário Beja Santos

Histórias Coloniais, por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, A Esfera dos Livros, 2013, reúne a descrição de uma série de conflitos sociais que ocorreram nas antigas colónias portuguesas e que deixaram rasto para os movimentos de libertação, entre eles o massacre de Batepá, 1953, S. Tomé; a greve do Pidjiquiti, 1959, Guiné; a manifestação de Mueda, 1960, Moçambique; a greve da Baixa de Cassange, 1961 Angola, e o motim 1-2-3, 1966 Macau.

Foquemo-nos nos acontecimentos do Pidjiquiti. Nunca se demonstrou qualquer associação causa-efeito entre a greve de marinheiros e estivadores, mormente da etnia Manjaca, e as atividades do PAIGC. Há muita fabulação e os testemunhos posteriores são contraditórios. Luís Cabral, por exemplo, não insinua nem ao de leve a existência de uma associação. Isto para desdizer o que escrevem os autores, isto é, de que entre a meia centena de membros ativos do PAI (primeira designação do PAIGC) contavam-se marinheiros e estivadores, isto dito a cru e com o que se segue faz subentender o que os factos históricos não demonstram. Verdade era a miséria em que viviam estes trabalhadores: “Os salários mensais variavam entre os 150 e os 300 escudos. E por cada viagem, o tripulante recebia para alimentação certa quantidade de arroz e mais uns 50 centavos para o molho. Ora, o transporte de cabotagem era o que garantia mais elevados lucros às empresas, pois os custos por tonelada transportada estavam entre os mais baratos. Encorajados pelo descontentamento dos estivadores, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho se as suas reivindicações não fossem atendidas”. Mas nada aconteceu e veio a greve.

Os autores relevam as diferentes versões a que tiveram acesso, a do Tenente Sousa Guimarães, a de um responsável da Sociedade Comercial Ultramarina, a da PIDE e a do Padre Franciscano Henrique Pinto Rema. Sousa Guimarães envia uma carta em 18 de agosto ao Comandante Salgueiro Rego, alude ao impedimento feito pelos marinheiros da saída de uma lancha da Casa Gouveia, dois agentes da PIDE prenderam três dos identificados, os grevistas revoltaram-se, o patrão-mor chamou a PSP. Começa a pancadaria, dá-se a agressão dos 2 chefes da Polícia, vem então um corpo de agentes da PSP, há tiroteio, e ele escreve que destes acontecimentos resultaram 4 mortos, e vários feridos do lado grevista. A versão da Sociedade Comercial Ultramarina anda próxima da anterior, refere mortos, gente ferida e fugitiva, tendo os feridos sido retirados das embarcações e da água e conduzidos ao hospital, resultaram 7 mortos e numerosos feridos, destes viriam a falecer mais 3 ou 4. A versão da PIDE refere a precipitação dos acontecimentos, os grevistas a tentar libertar os companheiros detidos, as agressões aos polícias, atirando paus, remos e tijolos contra o piquete da Polícia. Houve detenções, o número de mortos foi de 12 e o de feridos de umas dezenas. A própria Polícia publica uma lista identificando 8 mortos. O Padre Henrique Pinto Rema diz explicitamente que estes trabalhadores respondiam às solicitações do Partido, não conseguiu haver diálogo entre as duas partes em confronto, houve 17 guardas feridos e a Polícia começou a matar em força, no final houve uns 13 a 15 mortos e mais cadáveres de marítimos e estivadores foram arrastados pelas águas do Geba, não se sabendo ao certo quantos.

A propaganda do PAI anunciou 50 mortos. Contudo, Amílcar Cabral, numa carta enviada ao angolano Lúcio Lara, refere 24 mortos e 35 feridos. Todo este grave acidente demorou a sanar, os grevistas fizeram exigências, reclamaram a libertação dos presos, aumentos de salários, a saída de António Carreira, gerente da Casa Gouveia, e também a do encarregado da secção marítima da Sociedade Comercial Ultramarina, atribuíram-lhes responsabilidades pelas mortes.

Para a PIDE, tudo se devia essencialmente ao contexto externo, ao papel catalisador da independência da República da Guiné e das emissões da Rádio Conacri, de infiltrações perniciosas. Já na década de 1990, Carlos Fabião, que foi o último Governador da Guiné, atribuía os acontecimentos do Pidjiquiti a três causas: o não cumprimento do administrador da Casa Gouveia da indicação dada pela CUF em Lisboa, no sentido de aumentar os salários aos trabalhadores; um desentendimento entre a PIDE e a administração civil; um ajuste de contas entre polícias Papéis e estivadores Manjacos. Todo este incidente irá transformar-se num símbolo de combate pela libertação, no decurso da reunião do PAI de 19 de setembro de 1959, em que Amílcar Cabral está presente, o líder procura retirar os devidos ensinamentos, a subversão deverá centrar-se nas zonas rurais, era inevitável a partir de agora caminhar-se para a luta armada, ficou decidido a transferência para o exterior de uma parte da Direção do Partido.
Aqui se recorda que há mais interpretações e testemunhos sobre os incidentes do Pidjiquiti. Já se escreveu sobre o relatório do Comando da Defesa Marítima, que vem apenso à História dos Fuzileiros, 3.º volume, dedicado à Guiné, de Luís Sanches de Baêna, Comissão Cultural da Marinha, 2006. António Duarte Silva, no seu livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", Almedina, 2010, refere abundantemente estes factos a partir da página 102, apontam-se 9 mortos, 15 feridos de certa gravidade e hospitalidades e 23 marítimos presos. O autor recorda que este número de 9 se limita aos cadáveres transportados para a casa mortuária e que nenhum dos relatórios oficiais refere os grevistas que foram abatidos pelos guardas e mesmo alguns civis quando fugiam pela lama e lodo e cujos cadáveres foram arrastados pelas águas do rio Geba. António Duarte Silva cita o historiador Leopoldo Amado, o PAI não teria tido diretamente uma ação naquilo que veio a desembocar em Pidjiquiti. Terão sido ativistas do Movimento de Libertação da Guiné a empenhar-se. Rafael Barbosa era membro deste Movimento de Libertação da Guiné e reconheceu ter sido um dos responsáveis da questão do Pidjiquiti. Barbosa vai estabelecer um pacto com Cabral, o MLG fundiu-se com o PAI.
Em "Os cronistas desconhecidos do canal do Geba", Húmus Edições, 2019, relato a partir da página 252 a versão apresentada pelo responsável do BNU da Guiné. Dirá que houve 12 mortos, 15 feridos e a prisão de muitos e a fuga de alguns. Voltará a escrever em 20 de agosto anunciando que se voltara à normalidade e informa Lisboa do seguinte:
“Há a deplorar o número de vítimas resultantes da repressão prontamente efetuada na medida adequada à intensidade da investida dos amotinados e lamenta-se que estes tenham recorrido à greve como meio de revelar as suas reivindicações, numa ocasião em que o Governo da Província, por intermédio da Secção Permanente do Conselho do Governo estava há tempos procedendo ao estudo do ajustamento dos salários dos trabalhadores indígenas. Verifica-se com satisfação que a vida no cais retomou o seu ritmo normal e que cessou a perturbação provocada na economia da Província pela suspensão da atividade comercial portuária”.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24094: Notas de leitura (1558): Fernanda de Castro, uma figura de proa da literatura colonial guineense, autora de livros como África Raiz e Mariazinha (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23005: Notas de leitura (1420): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): uma excursão a Lisboa, de 4 dias, em 1959


Guiné > Bissau > s/d [1971/73 ] > Um autocarro dos transportes colectivos de Bissau, carreira Bissau/Bissalanca!... Uma verdadeira peça de museu...  Tinha tejadilho, como o da excursão a Lisboa, em 1959, aqui narrada pelo António Carvalho... Mas seria seguramente de um modelo muito mais antigo... Matrícula G-620...  Empresa: ABP (?)... Uma foto para o nosso Álbum das Glórias... Foto do nosso saudoso Victor Barata (1951-2021), o "Vitinho".

Foto (e legenda): © Victor Barata (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementa: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Capa do livro: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. 
Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.


1. Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro no sul da Guiné, durante dois anos (CART 6520/72, Mampatá,1972/74), já aqui reproduzidas na série "Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho..." (vd. os oitos postes publicados) (*),  encanta-nos, na primeira parte do livro "Um caminho de quatro passos,  as memórias da infância do autor passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que muitos de nós conhecemos, tanto no Portugal continental como insular.

Como já tivemos ocasião de o dizer, são apontamentos, observações, registos, relatos, pequenos retratos e histórias de pessoas da família e outros conterrâneos. de inegável interesse etnográfico ou documental para se poder conhecer um pouco melhor a infância e a adolescência da geração que fez a guerra colonial / guerra do ultramar, bem como as suas  origens (**).

Por outro lado, o António Carvalhal tem um grande talento narrativo e sabe usar, com maestria, o léxico próprio das suas gentes, vocábulos e expressões que não se usam no Sul (como moletes, canalha, coxão de  carneiro).  

Em dia de anos (72), e em sua homenagem,  tomamos a liberdade de reproduzir aqui mais um excerto de uma das suas saborosas narrativas, a excursão que fez a Lisboa, de 4 dias, em 1959, acompanhado do mano Fernando, do avô e do tio-avô (que era professor) e dos filhos deste, seus primos. Para os putos da província, ir à capital do império, nesse tempo, era uma pequena grande aventura... à ida passaram pelo Mosteiro da Batalha e , no regresso, ainda passaram pelo Estoril e por Mafra...

Mas o nosso António, com os nove anos feitos,  estava longe de imaginar que os "sinos do império" iriam tocar a rebate, menos de 2 anos depois... E que a guerra colonial / guerra do ultramar também iria sobrar para ele e para o mano Manel... (LG)

 

A EXCURSÃO

por António Carvalho


O nosso avô tinha-se distraído das horas, deslumbrado com o movimento da cidade grande, na companhia do cunhado. Um tinha levado os netos, o outro os filhos que lhe vieram bem tarde. Os netos éramos nós, eu e o meu irmão Fernando, os filhos iam sob a autoridade de um pai já tão avantajado na idade que bem podia ser avô deles.

Nós e os nossos primos ficámos por ali, enquanto os cunhados se passeavam pelas artérias da urbe, olhando as novas formas da cidade, os grandes prédios das avenidas novas, os cafés e leitarias, os fatos e até os vestidos e saias esticadas, que emproadas mulheres de lábios pintados envergavam.

Tínhamos saído no dia anterior, para uma excursão a Lisboa, que demoraria quatro dias. Entrámos na camionete, no Largo da Igreja, ainda o dia se não tinha feito, e lembro-me que trazíamos uma cesta de verga com tampa e um garrafão de verde tinto do nosso, que o chofer acomodou, subindo pela escada da traseira da camionete, no tejadilho, conforme faria com os merendeiros que todos levavam para o consumo, se não de toda a viagem, pelo menos para as primeiras jornadas.

Não era qualquer um que se podia dar ao luxo, em 1959, de integrar aquele grupo excursionista, embora já se tivesse tornado, por esta quadra, mais acessível uma digressão destas do que as primeiras que se fizeram nas décadas anteriores. O ano de 1930 marca o início do ciclo dos automóveis e das camionetes na freguesia, com a chegada da estrada à igreja. Em 1934, o bilhete para uma viagem de três dias, a Fátima, custava sessenta e cinco escudos, o equivalente a sete dias de labor de um trabalhador já com alguma especialização. Mais tarde, em 1941, um bilhete, para uma viagem de idêntico itinerário, custava oitenta escudos, quantia que o mesmo trabalhador auferia em cinco dias. 

Instalou-se no primeiro banco, logo a seguir aos dois degraus que teve que escalar com o esforço que lhe impunha o sacana do reumatismo que lhe pegara logo depois dos cinquenta. Tinha reservado ali dois lugares, o do lado do corredor para si, ficando, por deferência, o da janela para o cunhado e amigo, professor. Este era irmão da minha avó e exerceu o magistério primário, na escola do lugar de Vila Cova, preparando para a vida várias gerações de medenses, durante o longo período de trinta e nove anos, só superado pelo professor José Moreira Gomes que lecionou durante quarenta e três anos, nessa mesma escola.

Nós, a canalha, iríamos mais atrás. Depois daquela primeira estação, o autocarro pararia apenas em dois outros sítios, para se engordar dos pouco mais de quarenta passageiros. Em Vila Cova entraria o cunhado, professor, com os dois filhos. Instalou-se, ainda que relutante, no lugar do lado direito do meu avô, junto à janela, por achar perigoso fazer a viagem naquele posto avançado, sem a proteção que lhe dariam as costas do banco da frente. O problema é que na frente do seu lugar só existia o precipício formado por aquele poço das escadas. Poderia, se o chofer tivesse que travar a fundo, cair de escantilhão, naquele buraco fronteiro formado pelas escadas, mas como o cunhado lhe tinha, por amabilidade, arranjado aquele poleiro, mais não podia fazer do que se precaver, agarrando-se a uma guarda de ferro, uma espécie de corrimão, que lhe dava pelo umbigo.

Nós, o bando dos quatro rapazinhos, éramos dos poucos, talvez os únicos da nossa idade, daquela caravana, que um passeio daqueles era mais para gente grande. Lembro-me do Mosteiro da Batalha e da impressão que me causaram as colunas enormes debaixo de arcos ogivais que pareciam poder ruir a todo o momento, das estátuas jacentes e das rosáceas policromáticas.

Na memória me ficou também a imagem icónica da Torre de Belém e o gigantismo dos Jerónimos. Mas se pasmei perante a visão desses monumentos, pela sua grandiosidade e valor simbólico, como marcos de afirmação da independência e púlpitos da epopeia marítima, confrontado com a aparente modéstia do Palácio de Belém, senti-me desiludido, porque julgava que ele não tinha, proporcionalmente, a relevância institucional do seu locatário. Mais tarde vim a saber que, afinal, naquele tempo, o ápice do poder, estava no Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar.

Os quase dois dias de paragem em Lisboa deram para tudo o que precisávamos de ver e fruir, segundo o plano que o meu avô tinha mentalmente traçado e, naquele caso, o que lhe servia também a nós interessava. Atravessámos o rio, muito mais largo que o nosso Douro, numa barcaça, até Cacilhas, de onde se via agigantada a cidade, fomos ao Jardim Zoológico e ainda andámos de metro, debaixo do chão, como nunca tínhamos experimentado.

Ao segundo dia o sol acordou-nos, de manhã, já em Lisboa, onde tínhamos chegado pela noite dentro e dormido, enroscados, sobre os macios assentos de couro da camionete. O meu avô levou-nos a uma leitaria ali bem próxima do largo onde a camioneta se ancorou e de onde só saiu no dia do regresso a casa, com passagem pelo Estoril e pequena paragem em Mafra.

Eu e o meu irmão comemos dois moletes com manteiga e bebemos uma chávena de café com leite cada um e o mesmo terá sucedido com os nossos primos que se sentaram com o pai na mesma mesa. Foi aí que eu fiquei a saber, quando tivemos que traduzir, para o empregado de mesa, moletes por papos-secos, que os nomes de algumas coisas podem ser diferentes quando mudamos de cidade.

Julgavam os cunhados que a canalha poderia ficar ali, queda e serena, enquanto eles iam vadiar pela cidade ? Os nossos primos, esses bem admoestados pelo seu pai, cumpriram quase todas as normas, mas eu e o meu irmão, cansados de andar por ali a calcorrear ruas, por um perímetro que nos parecia seguro, já não quisemos esperar mais pelo almoço que estava à nossa espera, naquela cesta grande arrumada sobre o tejadilho da camionete.

A agilidade e a sofreguidão empurraram-nos pelo escadote de ferro até lá acima , subestimando os avisos que o nosso avô nos fizera. Havia ainda dentro daquela grande lancheira, um alguidar de arroz a par de outro com um avantajado coxão de carneiro. Foi a primeira e única vez que almocei sobre um autocarro e, por certo, nunca mais repetirei a experiência, porque já não há autocarros com cestas no tejadilho. (...) (pp. 154/156).


Selecão de excertos, e negritos, da responsabilidade do editor LG. (***)
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Fonte: António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.

O livro pode ser adquirido, ao preço de 15,00 Euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) Contactos do autor, António Carvalho, Medas, Gondomar

Email: ascarvalho7274@gmail.com 
Telemóvel: 919 401 036


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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

24 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21942: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (8): O valor da seringa

22 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21935: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (7): O milagre de Nhacobá

19 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21920: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (6): O soldado dos pés inchados

17 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21912: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (5): Dormir com o inimigo

15 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21905: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (4): A vaca

12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

12 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21762: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Manpatá, 1972/74) (1): Contra os canhões marchar, marchar...

(**)  Vd. postes anteriores:



(***) Último poste da série > 16 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23003: Notas de leitura (1419): Prefácio do nosso camarada Adão Cruz, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Caquelifá e Bigene, 1966/68) , ao livro "A Máscara (teatro)" (2015), de Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73)

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19860: Bibliografia de uma guerra (95): Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC, por António Duarte Silva em Cadernos de Estudos Africanos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Agosto de 2018:

Queridos amigos,

Este ensaio rigoroso e muito bem elaborado de António Duarte Silva será posteriormente reelaborado por este autor e plasmado no livro "Invenção e Construção da Guiné-Bissau", uma obra admirável que ainda é possível adquirir.

Traça a conceção da Guiné como colónia-modelo, na visão de Marcello Caetano, refere as cautelas do poder português face à atmosfera anticolonial não só à escala mundial como à volta da região guineense e disseca a fundação do PAI, o massacre de 3 de agosto de 1959 e as decisões da reunião de 19 de setembro desse ano, em Bissau.

Pela sua coesão e objetividade, é um documento de referência, até pelas dúvidas que levanta quanto à reunião de 1956.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: a causa do nacionalismo e a fundação do PAIGC

Beja Santos

Na publicação Cadernos de Estudos Africanos, n.º 9/10, dedicada às Memórias Coloniais, o historiador António E. Duarte Silva, de quem temos feito várias referências aos seus livros, designadamente ao mais recente, publicação da Almedina, “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, 2011, que ainda é possível encontrar no mercado, publicou um artigo cujas ideias centrais me parece da maior utilidade aqui reproduzir. É o que se segue.

O autor chama a atenção para a escolha da Guiné como primeiro campo de ensaio da política de Marcello Caetano enquanto Ministro das Colónias, baseada tal política numa progressiva autonomia administrativa com desenvolvimento económico e social e com olhar atento à conjuntura internacional do pós-guerra e ao sentimento anticolonialista. Marcello pretendia uma equipa que saneasse a política colonial do “ambiente de depressão e intriga”. A escolha recaiu em Sarmento Rodrigues, a sua governação ficará inesquecível: reforço da administração colonial, construção de uma rede de infraestruturas, lançamento de uma investigação cultural e científica que ainda hoje é referência. O seu sucessor será Raimundo Serrão, traz novas instruções do novo Ministro, Teófilo Duarte, as preocupações agora centram-se na economia, sobretudo na cultura do arroz e em produtos de exportação. O novo governador não tem a aura do anterior, inaugurou muito e interessou-se verdadeiramente pelo incremento agrícola.

A colónia reposicionava-se com a mudança da capital em 1941. O Subsecretário de Estado Raul Ventura percorre a Província em 1953, visita inclusivamente a Granja do Pessubé “na companhia dos Engenheiros Agrónomos Nobre da Veiga e Amílcar Cabral”. O novo Governador será o Capitão-de-Fragata Diogo Mello e Alvim, então Governador da Zambézia. É Ministro das Colónias Sarmento Rodrigues. Mello e Alvim escreve ao Ministro que a Guiné estava muito diferente daquela que Sarmento Rodrigues deixara em 1948: “todos mandavam e ninguém se entendia. A pouco e pouco, tenho chamado os comandos ao Governo que posso assegurar-lhe que, presentemente, já voltou a haver mais um bocadinho de ordem e tudo; nas despesas, na disciplina e até, perdoe-me o desabafo, na justiça. Os indígenas vêm em mim um continuador da sua obra".


Rafael Barbosa e Amílcar Cabral na Granja de Pessubé, 1952.
Imagem retirada de Casa Comum, Fundação Mário Soares, com a devida vénia.

A PIDE demora a instalar-se, a sua rede só será completada em junho de 1958, mediante a criação de cinco postos em S. Domingos, Catió, Bafatá, Farim e Gabu, todos dependentes da sede em Bissau. É à Polícia de Segurança Pública que devemos as primeiras notas sobre movimentações subversivas em Bissau. A PSP, com data de 3 de maio de 1955, registou as reuniões dirigidas por Amílcar Cabral visando a constituição de uma associação desportiva e recreativa. Os estatutos da associação não foram aprovados e a PSP registava que “o engenheiro Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de atividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade dos direitos dos nativos". Há igualmente referências de várias fontes que terá sido criado em Bissau um Movimento para a Independência Nacional da Guiné, mas não há qualquer prova da atividade nacionalista deste grupo.

Há uma greve dos descarregadores africanos em 6 de março de 1956, a polícia não utiliza a força, Mello e Alvim foi à esquadra libertar os detidos. Em setembro desse ano, Amílcar Cabral chega a Bissau para visitar a família. Chega o momento de referir a reunião de 19 de setembro de 1956 em que Amílcar Cabral interveio num círculo de amigos para propor a constituição de um partido político com o objetivo de alcançar a independência da Guiné e Cabo Verde, o Partido Africano da Independência (PAI).

Há bastante nevoeiro sobre esta reunião: não há qualquer documento comprovativo, há testemunhos postos em causa, não há sequer consenso quanto ao número de fundadores nem quanto ao alcance efetivo da reunião, para além da intenção de formar um partido político. Para o autor, esta reunião de 19 de setembro e a intervenção de Amílcar Cabral terão sido apenas o momento do lançamento do PAIGC como ideia e organização nacionalista. Anos mais tarde, no seu trabalho de doutoramento, Julião Soares Sousa dirá que era totalmente impossível nesta data Amílcar Cabral estar em Bissau.

Em novembro de 1957, Amílcar Cabral e Viriato da Cruz convocaram a recente “diáspora parisiense” (Mário Pinto de Andrade, Guilherme Espírito Santo e Marcelino dos Santos) para uma reunião de consulta e estudo para o desenvolvimento da luta nas colónias portuguesas. Serão provados princípios e resoluções e fez-se o lançamento do MAC – Movimento Anti-Colonialista.

Em agosto de 1958, uma dezena de quadros forma em Bissau um Movimento de Libertação da Guiné (MLG). Diz o autor que era um movimento nacionalista que se pretendia continuador da republicana “Liga Guineense” e defendia que a Guiné se deveria tornar num Estado Federado da República Portuguesa.

Nesse mesmo ano chega à Guiné a “Missão de Estudo dos Movimentos Associativos em África”, chefiada por Silva Cunha, aproveito para lembrar ao leitor que se fez uma ampla recensão dos trabalhos desta missão. Silva Cunha não acreditava num perigo imediato de “efeitos de reação antiportuguesa”, mas podia “surgir, de um momento para o outro, em resultado de influências externas”, atendia naturalmente ao que se estava a passar na nova República da Guiné.

O Capitão-Tenente Peixoto Correia é designado Governador da Guiné em outubro de 1958, chegará a Bissau no final do ano. E o autor recorda que também em meados desse ano visitara a Guiné Armando de Castro, estava a preparar um estudo destinado ao Partido Comunista Português, escreveu que se desenvolvia entre os guinéus uma “resistência surda à exploração, e havia repressão policial, comprovada com a recente instalação da PIDE".

António Duarte Silva é dos historiadores que tem mais apurada investigação sobre o chamado Massacre do Pindjiguiti, tive oportunidade de lhe enviar o relatório confidencial do gerente do BNU da época, confirmou-me que as informações batem certo com os elementos de que dispõe e que constam dos seus trabalhos. As consequências serão múltiplas, os acontecimentos serão aproveitados pelo Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas. Logo em 7 de agosto, em carta a Ruth Lara, escrita em Kano (Nigéria), Amílcar Cabral informava-a, de modo telegráfico, que na Guiné houvera “há dias 7 mortos e 5 feridos”. Em carta de 24 de setembro, resume aos seus amigos do MAC a sua ida a Bissau e dá mais pormenores sobre o balanço de mortos, teriam sido 24, mais 35 feridos, alguns muito graves.

Durante a sua estada de uma semana em Bissau, Amílcar Cabral realizara “a mais decisiva reunião” da história do PAIGC, nessa reunião de 19 de setembro o movimento nacionalista adotara várias medidas que se irão revelar estratégicas, tais como: evitar manifestações urbanas e deslocar a ação para o campo, mobilizando e organizando os camponeses; preparar-se o recurso à luta armada; transferir parte da direção para o exterior, indo Amílcar Cabral instalar-se em Conacri.

De acordo com o autor, três documentos testemunham esta importante reunião: um relatório confidencial da autoria de Cabral onde são compulsadas as medidas tomadas e as conclusões; a “Carta da Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde”, também assinada por Amílcar Cabral; uma expressiva carta enviada de Conacri, em 16 de junho de 1960, assinada por Cabral onde conclui com incitamentos e pedidos de notícias, identificando-se como Secretário-Geral do PAI. Como diz o autor, o PAI só vai afirmar-se publicamente aquando das intervenções dos representantes do MAC na II Conferência Pan-Africana, realizada em Tunes, em fins de janeiro de 1960. Numa outra conferência realizada em Dacar, em outubro de 1960, o PAI altera definitivamente a sigla para PAIGC.

Perto da conclusão, o autor observa que o massacre do Pindjiguiti se tinha convertido no símbolo da libertação na Guiné-Bissau. O “3 de agosto” passou mesmo a ser o dia da solidariedade internacional com os povos das colónias portuguesas e o dia da proclamação da ação direta, na Guiné, em 1961. A subversão não veio do exterior da Guiné nem foi desencadeada por associações influenciadas pelo Islão. Começou em Bissau, liderada por uma elite política urbana e crioula.

No período subsequente, após as resoluções sobre a descolonização aprovadas pela ONU em dezembro de 1960, os movimentos nacionalistas privilegiarão a defesa da nova legalidade internacional. Esta linha predominará na Guiné-Bissau até aos princípios de 1963, tudo mudará com a luta armada. E assim conclui António Duarte Silva: “O PAIGC ainda sobrevive como sigla. Tudo aquilo por que lutou e chegou a alcançar – libertação nacional, paz, progresso, independência, melhoria das condições de vida, unidade Guiné-Cabo Verde, um Estado, uma Constituição – falhou, está em ruínas, desapareceu. Se a libertação viera do campo, Bissau, a cidade, tudo devorou.”
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19110: Bibliografia de uma guerra (94): “Tu não viste nada em Angola”, por Francisco Marcelo Curto; Centelha, 1983 (2) (Mário Beja Santos)