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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26516: Notas de leitura (1774): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: A sua colaboração num livro de arromba, Orlando Ribeiro em 1947, na Guiné (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Momentos há em que tiro da estante este livro que tem para mim um incalculável valor só para consultar a transcrição da agenda de Orlando Ribeiro. Mas tenho que fazer jus à importância do trabalho desenvolvido por Philip Havik e Suzanne Daveau, tem logo à partida o inegável mérito de nos lembrar que há um conjunto importante de informações relevantes sobre sociedades e paisagens africanas que se conserva inédito em arquivos portugueses. Mérito pela forma como contextualizaram a organização desta missão, como explicam a estrutura do conteúdo do caderno (onde Orlando Ribeiro guardou o seu trabalho de campo) e para além da publicação numa revista, anos depois, a obra tem igualmente muita importância pelos anexos e o acervo fotográfico. Estou absolutamente seguro quando digo que se trata de um livro de arromba, indispensável a quem queira conhecer e estudar este momento tão exaltante do período colonial, correspondente à governação de Sarmento Rodrigues.

Um abraço do
Mário



Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné:
A sua colaboração num livro de arromba, Orlando Ribeiro em 1947, na Guiné (2)


Mário Beja Santos

Desta obra já aqui falei no blogue e fiz um outro texto que publiquei num livro online. Philip Havik, conjuntamente com a viúva do professor Orlando Ribeiro, trouxeram a público um documento portentoso, demonstrativo do poder de olhar do mais conhecido e célebre geógrafo português que contribuiu para o conhecimento da Geografia no Ultramar, nos anos 1940. Havik e a viúva de Orlando Ribeiro, Suzanne Daveau, organizaram o documento, com as notas e os desenhos do caderno de campo que aparece reproduzido no livro, bem como as fotografias que o geógrafo tirou durante as suas estadias na Guiné, em 1947.

Os organizadores desvelam a essência do modo de trabalhar, observar e escrever do consagrado geógrafo:

“Os temas preferidos da investigação foram o povoamento, a economia e os modos de vida rurais, aos quais muitas notas geomorfológicas e climáticas são subordinadas. A importância que sempre deu âs relações com disciplinas próximas, como a agronomia, a etnologia ou a história, perpassa nestas notas.”

E explicam os organizadores como tudo começou:

“A Missão de Geografia na Guiné insere-se nas atividades promovidas pela Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, fundada em 1936, e que a partir de 1951 se passará a chamar Junta de Investigações do Ultramar. Orlando Ribeiro acabava então de solicitar uma missão de estudos a Cabo Verde, mas decidiu aproveitar a oportunidade de ir conhecer e estudar a Guiné. Com efeito, a segunda Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, a decorrer em Bissau, encontrava-se em preparação. Decidiu-se juntar este conhecido cientista que iria dirigir uma Missão de Geografia. O reconhecimento geral da colónia seria feito em conjunto por Carrington da Costa, o seu ajudante Décio Thadeu e Orlando Ribeiro, para se aproveitar o melhor possível os recursos disponíveis. O essencial do que se sabe, hoje ainda, da geologia da Guiné resulta principalmente daquelas missões.”

Havia, é certo, já trabalhos científicos preliminares, caso da Carta da Colónia da Guiné, em 1933, atuava a Missão Geo-Hidrográfica, havia estudos etnográficos que eram animados pelo então tenente Teixeira da Mota. Os autores recordam que o governador da Guiné era o comandante Sarmento Rodrigues, Avelino Teixeira da Mota dava impulso a uma plêiade de colaboradores locais. 

Fora criado em Bissau um Centro de Estudos (1945) e um Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota dirigiu um Inquérito Etnográfico, uma obra de referência. A ajuda de Teixeira da Mota e de funcionários coloniais revelou-se muito importante para a missão de Orlando Ribeiro. Decorria na época uma investigação sobre a habitação indígena, que serviu também de oportuno pano de fundo da missão. Mais tarde, um jovem sociólogo formado pela Escola Superior Colonial, Francisco Tenreiro, iria publicar um estudo sobre as “Populações Nativas da Guiné”, que contou com o inquérito etnográfico de 1946 e com o material recolhido por Orlando Ribeiro durante a sua missão.

Orlando Ribeiro não percorreu toda a Guiné, embora tenha viajado centenas de quilómetros pela rede de estradas de terra batida não conseguiu visitar a parte Sul da província, mas o geógrafo chegou até às solitárias colinas do Boé. Como escrevem os organizadores, as observações e experienciais pessoais feitas no terreno tornaram-se, atualmente, parte integrante das teses de doutoramento em Antropologia, a sua publicação, noutras disciplinas como a Geografa, não era regra, nem o é ainda hoje. Observam os coordenadores:

“É importante ponderar em que medida o caderno agora publicado reflete as observações realizadas pelo autor durante esta curta missão. A preparação da sua edição deparou com várias dificuldades. O autor teve raramente o cuidado de datar exatamente os seus apontamentos e de registar imediatamente as numerosas fotografias que foi recolhendo. Tornou-se, portanto, necessário reconstituir o melhor possível o desenrolar da investigação, com a ajuda de uma pequena agenda de bolso, de um caderninho de fazer as contas, também irregularmente preenchido. (…) O caderno contém essencialmente – além de alguns cortes topográficos e geológicos, cuidadosamente levantados – plantas pormenorizadas de casas rurais e inquéritos realizados junto de camponeses ou colonos, sobre as suas atividades, recursos e modos de vida.”

Nestas notas introdutórias, os coordenadores também têm o cuidado de mencionar o conjunto de monografias que se publicaram na época e posteriormente e dão um amplo esclarecimento sobre o significado da missão na Guiné de Orlando Ribeiro. Dá-se igualmente conta da organização do caderno, explana-se sobre as características geomorfológicos e pedológicas da Guiné, as fases da missão e como se plasmam as duas partes do caderno.

Segue-se a transcrição do caderno que, confesso, põe à prova o grau apurado deste intelectual, senão mesmo a prova provada de um raríssimo poder de análise, ainda por cima de um geógrafo que pisava pela primeira vez aquele terreno. Segue-se a reprodução do artigo que Orlando Ribeiro publicou em 1950 sobre esta missão de geografia na publicação Anais, da Junta de Investigações Coloniais do Ministério das Colónias. Há parágrafos que são bem elucidativos da têmpera deste geógrafo e do seu humanismo:

“Procurei entrar em contacto com as populações e informar-me dos seus modos de vida e economia. A época era má, visto que as culturas se fazem quase só durante o tempo das chuvas. Vi ainda lavrar algumas bolanhas e recolhi uma coleção de instrumentos gentílicos usados no amanho de terra (…) Qualquer trabalho de geografia carece de base cartográfica. A colónia possui apenas um mapa de reconhecimento na escala de 1:500 000, cheio de imperfeições, lacunas e erros. As necessidades da colónia e da investigação científica tornam urgente a publicação de um mapa mais exato, com o relevo figurado e em maior escala.”

Descreve os objetivos do trabalho, faz uma súmula de resultados científicos, o seu capítulo sobre a colonização é de inegável interesse, merece reflexão o que este investigar escreveu em meados do século XX:

“A Guiné não é uma colónia de povoamento. Sejam quais forem os atrativos do desenvolvimento recente da capital e outras vilas proporcionem aos europeus, sem embargo da exceção velhos colonos que gozaram sempre de saúde e robustez, o clima é pouco propício aos brancos. O paludismo grassa com intensidade, principalmente na época das chuvas; as formosíssimas ilhas de Pecixe e Jata são grandes focos de doença do sono espalhada mais ou menos por toda a colónia, assim como a lepra, a disenteria amibiana, a ancilostomíase, etc. Saneou-se parte dos arredores de Bissau, mas é impossível sanear as bolanhas do litoral que são uma das grandes fontes de riqueza da Guiné pela cultura do arroz. A temperatura é elevada e torna-se molesta e depressiva, principalmente no interior, pior ainda quando no tempo das chuvas se lhes junta uma humidade sempre alta. 

"Salvo durante umas breves horas da manhã ou à tarde estão vedados aos brancos o trabalho agrícola e a longa exposição ao Sol. Onde principalmente se vê quanto esta terra é imprópria para o europeu é no aspeto pálido e enfezado que as crianças normalmente robustas adquirem ao fim de pouco tempo de permanência. O branco vem para se demorar uns anos que os azares da vida podem alongar, mas nunca com o espírito de fixar-se; a família fica muito longe ou passa largas temporadas noutro clima. Lentamente o homem isolado, ruído pela melancolia, abandona-se à sedução das belezas locais e às vezes uma prole batizada pode fixá-lo a este solo hostil.”

Por último, esta edição preparada por Philip Havik e Suzanne Daveau recolhe importantes imagens de áreas portuárias, trabalhos agrícolas, palmares, moranças, cenas de mercado, gentes de todas as idades e há uma imagem para a qual ele guardou sempre um grande sentimento, a fotografia em que ele aparece com o seu companheiro guineense de toda a missão, Talibé. Os coordenadores juntam materiais de apoio como glossário e bibliografia.

Não se pode estudar na Guiné deste tempo sem ler este livro admirável, é mesmo de leitura obrigatória.

Orlando Ribeiro
_____________

Notas do editor:

Vd. post de 14 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26496: Notas de leitura (1772): Philip J. Havik, um devotado historiador da Guiné: Uma mulher singularíssima, Bibiana Vaz, século XVII (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 17 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26504: Notas de leitura (1773): "Os Mais Jovens Combatentes, A Geração de Todas as Gerações, 1961-1974", por José Maria Monteiro; Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26122: As nossas geografias emocionais (30): A "toponímia" da colónia ou a "Babel linguística": Bafatá devia ter sido grafada como "Báfata" e Gabú como "Cabo" (do mandinga "caabu")...







Governador Manuel Sarmento Rodrigues (1945-1949) 
[ foto: cortesia da Revista Militar]. 
Também era carinhosamente conhecido com o "Mamadu" Rodrigues
e havia uma tabanca conhecida como Sinchã Sarmento.  


1. "Em bom português nos entendemos" ? ... Nem ontem nem hoje...

Foi em 1948, quando era governador da Guiné (então colónia  portuguesa, parte do Império Colonial Português, e sem complexos, de natureza semântica e conceptual, e muito menos político-ideológica!),  o  capitão de fragata Sarmento Rodrigues,     que se  fez um primeiro esforço sério para grafar os topónimos (nomes geográficos) guineenses, através da Portaria nº 71, de 7 de julho de 1948...


Ainda hoje, há um pequena "Babel linguística" no nosso blogue  (e demais redes sociais), quando escrevemos alguns nomes de terras por onde passámos e que nos são familiares (dolorosamente familiares, em muitos casos)

Por exemplo, deve escrever-se:
  • Guileje e não Guilege ou Guiledje;
  • Guidaje e não Guidage;
  • Jabicunda e não Djabicunda:
  • Bajocunda e não Badjucunda (e muit0 menos Bajicunda);
  • Iracunda e náo Ira Cunda;
  • Áfia e não Afiá;
  • Piche e não Pitche;
  • Xime e não Chime;
  • Xitole e não Chitoli;
  • Contuboel e não Contubo El;
  • Pecixe e não Peciche;
  • Porto Gole e não Portogole;
  • Gandembel e não Gã Dembel;
  • Camamadu e não Cã Mamadu;
  • Copelão e não Cupelom ou Cupilão ou Pilão (para os "tugas");
  • Poindom e não Poidon ou Poidão;
  • Sinchã e não Sintchã;
  • Sare e não Saré;
  • Tombalí e não Tombali ou Tombáli;
  • Quitáfine (e não Quitafine) (palavra exdrúxula, mas o "e" final é aberto: Quitáfinè);
  • Ilha de Jeta e nãoo Jata ou Jete...
O caso de Pigiguiti então é divertido...Temos visto as mais diversas grafias: Pijiguiti, Pidjiguiti, Pidgiguiti, Pindgiguiti... 

Bambadinca também já tenho visto como Babadinca e até Bambarinca  e Bambadinga (num anúncio comercial, erro tipográfico comum na nossa imprensa da época colonial). E deve dizer-se Bambadincazinho e não Bambadincazinha... tal como de resto vem na carta de Bambainca (1955), escala de 1/50 mil.

Nalguns casos, ficaram consagradas pelo uso  grafias erradas como;
  • Bafatá (que deveria ser Báfata, como pronunciam os fulas);
  • Gabú em vez de Cabo;
  • Sinchã Jobel em vez de Sinchã Jaubel...
Gabú (do mandinga, "caabu") era o nome de uma circunscrição, Gabú-Sara era uma povoação (p. 37, da Portaria, abaixo citada) e Nova Lamego uma vila tal como Nova Sintra (p. 52).

As cartas geográficas seguiram esta orientação de "aportuguesamento" dos nomes geográficos da Guiné, de acordo com  as regras fixadas na Portaria nº 74, de 7 de julho de 1948 e a ortografia então em vigor.

No nosso blogue (que é escrito, em geral, em Português europeu...) devemos seguir esta "normalização"  dos nomes geográficos da Guiné que conhecemos..., sob pena de cairmos na babelização linguística...

A crioulização do português da Guiné.Bissau é outro problema  (complexo e delicado...) sobre o qual não nos vamos debruçar agora... Na dúvida, perguntamos ao Ciberdúvida da Língua Portuguesa...

Até 1948, as tropelias linguísticas nesta matéria (grafia dos nomes geográficos da Guiné) era confrangedora, agravada pelas frequentes gralhas tipográficas (vd. por exemplo anúncios comerciais da imprensa da época). 

Leia-se, também,  um folheto como o "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é hoje", da autoria do 2.º Sargento António dos Anjos (Bragança, Tipografia Académica, 1937, c. 97 pp.) que  publicámos no nosso blogue. Cite-se alguns nomes, mal grafados: 

  • Gábu
  • Xôroenque,
  • Sáfim, 
  • Gêba
  • Gade-Mael
  • Xôro
  • Bacerél
  •  Sozana, etc.

Armando Tavares da Silva (1933-2023)


Obrigado ao nosso saudoso amigo e grão-tabanqueiro Armando Tavares da Silva (1933-2023), especialista da história político-militar da Guiné (1878-1926) que nos fez chegar cópia desta portaria e de alguns dos seus anexos. 


2. Voltamos a reproduzir aqui a mensagem do prof Armando Tavares da Silva, com data de 3/10/2017 (*)

Luís,

Enviei por WeTransfer 14 páginas da "Primeira Relação de Nomes Geográficos da Guiné Portuguesa" elaborada em 1948 nos tempos do Governador Sarmento Rodrigues.

Por ela se pode ver que havia 2 povoações Canchungo, uma na área de S. Domingos e outra na área de Cacheu. Teixeira Pinto existia e era uma Vila.

Quanto a Portugal, havia uma povoação na área de Bolama e uma fulacunda. A do régulo Bacar Dikel deve ser esta.

Gabú era uma circunscrição e Nova Lamego uma Vila.

Quanto a Aldeia Formosa esta aparece como uma fulacunda, e Quebo outra fulacunda, aparecendo também como povoação na região de Catió (páginas não enviadas).

Curioso é ler o preâmbulo da Portaria de Sarmento Rodrigues e as normas adoptadas para a escrita dos nomes geográficos.

Sinchã foi introduzida para designar uma nova povoação fula. Entre elas notei a existência de uma Sinchã Comandante, outra Sinchâ Sarmento e (entre muitas outras) uma Sinchã Marío (com acento agudo!?).

Espero que isto anime a discussão...

Abraço, 
Armando






Excerto da Portaria nº 71, de 7 de julho de 1948 (publicada no Boletim Oficial, suplemento nº 10, de 7 de julho de 1948, Império Colonial Portuguêrs, Colónia da Guiné)
 

3. Veja-ser também o Anexo à Portaria nº 71, de 7 de julho de 1948, do Governo da Colónia da Guiné, de que publicámos, por ser muito extenso, apenas alguns excertos (pp. 7, 23, 37, 52, 57, 68, 67, 69, 72) (*).


Por essa lista (onde parece haver gralhas tipográficas da sempre rigorosa Imprensa Nacional - Casa da Moeda) se pode ver, por exemplo, que havia duas povoações Canchungo, uma na área de S. Domingos e outra na área de Cacheu (p. 23). O Canchungo, nome gentílico, de povoação,  coexistia com a nova vila, Teixeira Pinto (p. 72).

Quanto à tabanca Portugal, havia dois lugares com este nome: (i) povoação na área de Bolama; e e uma outra na região de Fulacunda, sendo nesta que morava, em 1947, o régulo Bacar Dikel (p. 57).

Gabú era uma circunscrição (e região), Gabú-Sara era uma povoação (p. 37) e Nova Lamego uma vila tal como Nova Sintra (p. 52). 

Também existia uma Nova Cuba (p. 52) (que só podia sere a Cuba do Alentejo e não a Cuba do...mar de Caribe).

Quanto a Aldeia Formosa (p. 7) esta aparece como uma povoação de Fulacunda, a par de Quebo (p. 57).

Como se lê no preâmbulo da Portaria de Sarmento Rodrigues, houve uma expressa vontade de normalização da escrita dos nomes geográficos da Guiné. Alguns nomes são novos, ou aparecem pela primeira vez: 

  • Teixeira Pinto, 
  • Nova Lamego, 
  • Aldeia Formosa, 
  • Nova Sintra, 
  • Nova Có,
  • Nova Cuba (...do Alentejo ?)...

Lembre-se, por fim, que Sinchã foi introduzida para designar uma nova povoação fula, acompanhando a "expansão" do chão fula... Entre elas (e são mais de centena e meia) notámos a a existência de uma Sinchã Comandante (p. 67) e outra Sinchã Sarmento (p. 68)... E, já agora, uma Áfia do Governador (p.7).

Por sua vez, Sare que dizer povoação fula não recente...

Também, para além de Aldeia Formosa, há mais 3 Aldeias (p. 7). 

Também havia muitas Pontas (pp. 56 e 57) (não temos a pág. 56 do Anexo):

  • desde a Ponta Brandão à Ponta Varela, 
  • de Ponta do Inglês a Ponta de Janadá, 
  • de Ponta Augusto Barros à Ponta Luís Dias.

 (Ponta era sinónimo de horta, pomar, terra agrícola, em geral junto a um curso de água ou bolanha.)

Há ainda, topónimos pouco vulgares ou pitorescos como:

  • Algodão, 
  • Acampamento,
  • Achada do Burro (p. 7),
  • Olho Grande, 
  • Olhozinho (p. 52),
  • Porcoa, 
  • Preço Leve
  • Quartel (p. 57)
  • Sinchã Fodê (p. 67)...

Pode ser que o Valdemar Queiroz ou Ramiro Jesus, que são os nossos campeões dos passatempos "Vê se és bom observador" e "As gralhas da nossa embirração"..., sejam capazes de descobrir se alguns destes topónimos, aportuguesados, sobreviveram à guerra e à independência...

No nosso blogue há, por exemplo, há várias referências a lugares começados por Sinchã... Destaque para Sinchã Jobel (ou Jaubel, mais correto) e foi uma base do PAIGC ou "barraca" no regulado de Mansomine (carta de 1/50 mil. Bambadinca).

Sinchã Abdulai (1)
Sinchã Bambe (1)
Sinchã Dumane (1)
Sinchã Jobel (16)
Sinchã Madiu (1)
Sinchã Molele (1)
Sinchã Queuto (2)
Sinchã Sambel (1)

Tirando um ou outro nome português, do nosso roteiro poético-sentimental (Nova Sintra, Nova Lamego, Nova Cuba, Aldeia Formosa, Teixeira Pinto...), o essencial dos nomes geográficos (ou topónimos) da Guiné não nos diziam nada, nem tinham que dizer, eram exóticos, pitorescos, gentílicos... mas não suscitavam curiosidade por aí além... Muito menos, emoção... nem faziam sorrir como alguns topónimos portugueses, com conotações erótico-burlescas (Coito, Pito, Picha, Rata, Rabo, Cabrão, Coina, Cu,  etc.)

Eu, que não sabia mandinga, só muito mais tarde é que vim a saber, por este bliogue,  que Bambadinca, por exemplo, queria dizer "a cova do lagarto"...

De facto, quem é que se lembraria de ir fazer umas "férias", em 1948, a Contuboel, a Gadamael a Pejungunto, ou a Buruntuma ou a Catió... ? Eram nomes completamente estranhos aos militares portugueses que foram aportando a Bissau, a partir de 1961... 

Mas muitos desses topónimos hoje fazem parte das  nossas "geografias emocionais" (**), de Madina do Boé a Guidaje, de Gadamel a Guileje, de Canquelifá a Mansoa, de Fajonquito ao Xime, de Piche a Contabane, de Buruntuma a Cumbijã, de Buba a Bambadinca, de Olossato a Farim...

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25864: Historiografia da presença portuguesa em África (437): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
É inegável que o texto elaborado pelo comerciante francês Georges Courrent visava dar um quadro atrativo a potenciais investidores que desconheciam as potencialidades e oportunidades que o autor relata com um certo entusiasmo: uma Guiné com a reforma administrativa, pacificada, baixas tarifas aduaneiras, uma agricultura atraente, etc; deu-se ao trabalho de ilustrar este rincão colonial, explica cuidadosamente como se fazem as ações comerciais na Guiné, disseca convenientemente o regulamento aduaneiro e termina aludindo a projetos de lei que estavam naquele momento a ser apreciados no Parlamento sobre o novo modelo de administração e de organização financeira; há sempre uma tecla em que insiste; a prosperidade da Guiné é incontestável. O artigo é publicado em abril, em agosto começa a Primeira Guerra Mundial, e lembrei-me de que valia a pena pôr em cima da mesa o contraditório. E deste contraditório fui buscar os relatos do chefe da delegação do BNU em Bolama a partir de 1917, a imagem que ele dá diverge completamente: os Bijagós estão sublevados; os governadores são ineptos, uns atrás dos outros; o comércio de Bolama começa a ter um forte e temível concorrente, Bissau; a inflação arrasou as economias locais; o BNU, também funcionava como casa de penhores, encheu-se de joalharia e ourivesaria. Enfim, as previsões do Sr. Courrent não bateram certo.

Um abraço do
Mário



Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (2)

Mário Beja Santos

Confesso que foi uma agradável surpresa conhecer este estudo do comerciante francês Georges Courrent publicado numa importante revista destinada a leitores com conhecimento do mundo colonial sobre o que ele entendia ser mais útil dar como síntese da Guiné Portuguesa. Vale a pena ter em conta a data da edição, 15 de abril de 1914. Considero significativo não só o que ele escreve como a qualidade das imagens que ilustram o seu trabalho, julgo que algumas delas são mesmo inéditas, e até mesmo de grande beleza, como é o caso do efeito do tornado no porto de Bissau, a vista de Bissau tomada numa embarcação no Geba, o interior da Fortaleza de S. José, o mapa que ele apresenta e que diz ser do serviço geográfico da revista, a deslocação de um efetivo militar dentro de Bissau, o que seria a vila indígena de Bambadinca e o aldeamento indígena de Geba.

Recapitulando, dá-nos a situação geográfica, expõe os serviços marítimos, as comunicações e transportes no interior (diz expressamente que o transporte de mercadorias terá de ser feito em pequenas embarcações e que a construção de vias-férreas é quase impossível e no arquipélago dos Bijagós seria totalmente inútil). Elenca os principais produtos exportados e dá um quadro aprofundado da natureza das operações comerciais e como elas podem ser efetuadas; lista as casas comerciais e companhias instaladas na Guiné Portuguesa, numa lista de oito a A.S.G., de Lisboa, aparece em penúltimo lugar. Revela-se seguro quanto à natureza do seu auditório, fala das operações bancárias, das tarifas aduaneiras, dá-nos o quadro dos produtos exportados e do movimento comercial entre 1903 a 1912; apresenta o novo regime aduaneiro e as respetivas taxas, tudo esmiuçado.

Faz um destaque à administração colonial portuguesa. Começa por dizer que o ministro das colónias acabara por enviar ao Parlamento português dois importantes projetos lei, um relativo à administração das possessões ultramarinas e o outro à sua organização financeira. Tais projetos baseiam-se no princípio de que as colónias são parcelas do território nacional, indissoluvelmente ligadas à metrópole, constituindo entidades administrativas autónomas. E faz menção de referir que o sistema ainda em vigor caracteriza-se por uma assimilação sem discussão e uma centralização excessiva. Se aprovados estes projetos de lei, haverá em cada uma das colónias um governador encarregado da administração geral, tudo na dependência do respetivo ministro; em cada uma das colónias haverá um conselho de governo que compreende os representantes dos interesses locais, tal conselho deliberará em sintonia com o governador; o conselho terá alguns membros eleitos mas haverá também na sua composição funcionários civis e judiciais; afigurar estes projetos lei, os antigos conselhos de província serão transformados em tribunais encarregados de conhecer os contenciosos administrativos e fiscais; as colónias são divididas em distritos tendo à frente os governadores distritais, haverá depois as circunscrições lideradas por administradores ou então por comandantes militares.

O regime financeiro está estabelecido nestas mesmas bases de descentralização, cada colónia estará investida de autonomia financeira, o mesmo é dizer que será dotada de personalidade jurídica, agirá sobre a sua própria responsabilidade; compete ao conselho de governo elaborar o orçamento. Para Georges Courrent era importante lembrar aos portugueses que as instituições valem sobretudo pelos homens que as dirigem. Quanto à reforma administrativa, não se pode eludir a questão que está estritamente ligada ao valor económico da região. Eis a síntese do que este negociante francês publicou antes da Primeira Guerra Mundial numa importante publicação francesa destinada a potenciais investidores, certamente também analistas da política colonial e funcionários. Meditando no quadro deixado por Georges Courrent, lembrei-me de um trabalho que publiquei há anos: Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019. Desapareceu imensa documentação dos primeiros anos do BNU, em termos cronológicos, a primeira documentação interessante data de 2017, o chefe da delegação de Bolama estava certamente autorizado a dizer verdades com punhos, como deixou escrito e eu limitei-me a transcrever: a qualidade dos governadores era péssima, vinham impreparados e regressavam impreparados, mostrando-se incapazes de inverter a degradação dos serviços públicos, gente ronceira, pouco amiga do trabalho, praticamente inerte na época das chuvas; comerciantes estrangeiros astutos, nada interessados em projetos agrícolas ou industriais, simplesmente à procura de bons preços para os produtos da terra e para as mercadorias vindas do estrangeiro; o comerciante francês em nenhuma circunstância falava em tumultos e sublevações, elas aconteciam ainda nos Bijagós, a campanha do capitão Teixeira Pinto fora determinante para a pacificação dos regulados da ilha de Bissau.

Há que fazer justiça ao senhor Courrent, ele não podia prever que dentro de meses se iniciaria uma guerra mundial, era inevitável deixar marcas na Guiné, como deixou: os interesses alemães, altamente representativos, foram neutralizados; manteve-se um bom quadro de exportações, mas perdera-se o principal mercado das oleaginosas, que era o alemão; a inflação delapidou quem tinha dinheiro, o BNU, que na época funcionava também como uma casa de penhores, encheu-se de joias e ourivesaria, o sistema de funcionamento deste comércio baseava-se nas puras operações de intermediários, havia que pagar aos produtores, os comerciantes pagavam depois das operações de exportação. Vai-se viver um período calamitoso, aparecerá nos anos 1920 um governador de mão cheia, Vellez Caroço, tentará um saneamento financeiro, mas sempre com os comerciantes a queixarem-se para Lisboa. A época áurea que o senhor Courrent preconizava não aconteceu, e a falta de infraestruturas que ele observou ao longo do seu estudo também demorou a ser invertida, Lisboa exigia um controlo rigoroso das contas, o dinheiro vai aparecer com o Comandante Sarmento Rodrigues, será ele o Governador que lançará a Guiné num modelo de progresso, de desenvolvimento, de valores culturais e até da promoção dos direitos humanos.

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Nota do editor

Último post da série de 14 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25841: Historiografia da presença portuguesa em África (436): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 20 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25290: Historiografia da presença portuguesa em África (415): Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Setembro de 2023:

Queridos amigos,
É facto que tem que se ler a Crónica dos Feitos da Guiné com sérias reservas, é opinião consensual de todos os investigadores da chamada expansão portuguesa. Fica-se ciente que este cronista-mor do reino não dispunha de elementos fundamentais dos relatos das navegações efetuadas no período henriquino, aí o historiador Duarte Leite fez críticas acerbas a erros e omissões, aqueles e estas incontestáveis. Joaquim Barradas de Carvalho lança o seu olhar numa outra dimensão, compara o que escreveu Zurara com o chamado "Manuscrito de Valentim Fernandes", este altamente depurado de considerações que seguramente o seu autor achava desnecessárias ou de duvidosa importância. Isto para dizer que o olhar de uma geração para uma outra anterior, um padrão cultural distinto (Zurara de cultura livresca, Valentim eminentemente pragmático) saldam-se em textos igualmente distintos, e o que Barradas de Carvalho procurava intencionalmente provar é hoje um dado incontestável, escreve-se de acordo com uma mentalidade, está-se marcado pelo tempo. A mim sobra-me a dúvida, vou apresentar Zurara como peça de abertura do meu trabalho ainda com mais reservas das que tinha antes de ler Joaquim Barradas de Carvalho...

Um abraço do
Mário



Cuidados a ter quando se lê a "Crónica dos Feitos da Guiné", de Gomes Eanes de Zurara

Mário Beja Santos

Ando entregue a uma empreitada de alguma dimensão, a antologia de obras imprescindíveis para conhecer a presença portuguesa numa colónia que se chamava Guiné, desde meados do século XV até ao fim da primeira metade do século XX, quando este território, mais do que fronteiras, ganhou organização e passou a ter um projeto consequente para o seu desenvolvimento (no sentido mais amplo), era seu Governador o Comandante Manuel Sarmento Rodrigues, o nome Guiné passara a ser mais do que um ponto das cartas e mapas.

Obviamente que é necessário procurar saber o rigor com que Zurara escreveu a sua crónica panegírico sobre os trabalhos do Infante. Comecei por ler alguns estudos de Vitorino Magalhães Godinho e dou com o ensaio de Joaquim Barradas de Carvalho na Revista de História n.º 15, julho-setembro, 1953, Ano IV, São Paulo, Brasil, publicação científica em que colaboraram alguns jovens historiadores portugueses marcadamente oposicionistas. O trabalho de Barradas de Carvalho é uma comparação entre o que escreveu Zurara e Valentim Fernandes, este um natural da Morávia, que se distinguiu como impressor em Lisboa, onde faleceu. A análise do historiador prende-se com a mentalidade, o tempo e os grupos sociais, é por isso que ele vai fazer o confronto entre os escritos de Zurara e Valentim Fernandes no que toca à "Crónica da Guiné" (o leitor mais interessado tem à sua disposição o texto integral no site: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/35728/38444).

Em 1837, na Biblioteca Nacional de Paris, Ferdinand Denis encontrou um manuscrito da "Crónica dos Feitos da Guiné", única obra contemporânea do Infante D. Henrique em que se relatam os seus descobrimentos africanos. A sua impressão ficará a ser devida ao Visconde de Santarém. Em 1847, é descoberto em Munique um códice que viria a ser editado pela Academia Portuguesa de História com o título "O Manuscrito Valentim Fernandes", onde há um texto intitulado “Crónica da Guiné”. Anos depois, em 1879, Ernesto do Canto revela a existência de cópias do manuscrito em Madrid e Munique, que se revelaram ser simplesmente cópias.

A "Crónica da Guiné" é posterior a 1460 (ano do falecimento do Infante), põem-se hipóteses altamente discutíveis quanto à organização do texto de Zurara, admite-se mesmo haver a junção do texto de Zurara com uma hipotética crónica de Afonso Cerveira, já que o texto não é homogéneo, mas o seu autor não faz menção de outros intervenientes. Zurara foi o cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo que sucedeu a Fernão Lopes, não se pode dizer que foi pessoa habilitada como investigador. A partir do século XX, os historiadores detetaram erros e deficiências no trabalho de Zurara. Uma das figuras gradas dos estudos da expansão portuguesa, Duarte Leite, identificou que esta crónica é pobre de dados sobre os produtos vindos da Guiné até ao reino, nada comenta do poder dos mouros ao longo do noroeste africano; não ficamos com a mínima ideia da configuração dos litorais, também a nomenclatura dos lugares sucessivamente achados é escassa, mas Duarte Leite não se ficou por aqui. Outro problema posto pelos historiados é conjeturar se a Crónica sofreu ou não censura quanto à política de sigilo, a opinião mais corrente é de que não houve censura, tais e tantas são as referências a estrangeiros que tiveram papel de relevo nestas viagens, como Cadamosto e Usodimare, acresce que se levaram para Veneza cartas de marear, eram relatados para Génova episódios das viagens, escreveram-se descrições como as Navegações de Cadamosto ou o "De prima inuentione Guinee", de Martim Behaim, a partir do relato oral de Diogo Gomes.

Jaime Cortesão, por seu lado, encontra duas espécies de deturpações na Crónica: umas feitas deliberadamente, outras provenientes da política de sigilo. Mas a generalidade dos historiadores considera imaginárias as conjeturas de Cortesão. Feita esta exposição de contextualização, Barradas de Carvalho alude aos quatro géneros de literatura de viagens (crónicas, descrições de viagens e de terras, diários de bordo e roteiros), e vai fixar-se exclusivamente no género crónica para comparar Zurara com o que posteriormente escreveu Valentim Fernandes.

O Manuscrito Valentim Fernandes, disse-se acima, foi descoberto em Munique em 1847. Dentro do acervo de escritos deste manuscrito há uma chamada “Crónica da Guiné”, dizendo o próprio Valentim Fernandes que foi dele autor Zurara. Os investigadores estão divididos quanto à autenticidade de tal manuscrito, há quem admita que é um resumo do códice de Paris ou cópia de Valentim Fernandes de um outro manuscrito. Dias Dinis é de opinião tratar-se de resumo e mutilação feita por Valentim Fernandes da obra de Zurara, Barradas de Carvalho também defende essa postura.

Mas o Estado de diferença dos dois textos de Zurara e Valentim permite observar duas mentalidades distintas: Valentim omite as razões pelas quais o Infante se sentiu movido a buscar as terras da Guiné, Zurara, para além de dar razões que hoje são estudadas como indiscutíveis, fala da astrologia judiciária como a mais importante das razões pelas quais o Infante se sentiu impulsionado às navegações da costa ocidental africana; Valentim não lhe faz uma só referência. Barradas de Carvalho toma posição. O resumo e arranjo da crónica feita por Valentim Fernandes assume um profundo significado. A mentalidade depende dos grupos sociais e depende do tempo. Valentim arranja a seu modo um texto de Zurara, homem que viveu noutro ambiente social e com uma outra experiência social. Há diferenças geracionais inequívocas. Sabemos que Valentim faz ressaltar, releva, no arranjo do texto de Zurara, ou mínima no mesmo texto, aspetos que definem duas intensões, duas valorizações das coisas e dos acontecimentos, dois graus de refinamento da utensilagem mental, haverá mesmo duas utensilagens. E, por isso, pergunta, quem foi Zurara e quem foi Valentim? Zurara foi um cronista palaciano em toda a aceção da palavra, cronista oficial e Guarda-mor da Torre do Tombo, cavaleiro da casa d’El Rei. Valentim, morávio, foi notário dos comerciantes alemães de Lisboa, a partir de 1503. Sabe-se ter sido editor e autor e um dos mais importantes, se não mesmo o mais importante dos impressores portugueses da época. São homens com experiência de vida, situações sociais e profissionais diversas. Valentim omitiu ou depurou textos da Crónica de Zurara, certamente pela simples razão de lhes conferir falta de substância; omitiu igualmente os textos transcritos por Zurara da Vertuosa Benfeytoria do Infante D. Pedro; Valentim substitui a quase totalidade dos algarismos peninsulares ou luso-romanos por algarismo árabes.

Em suma: Zurara era um cronista palaciano de mentalidade livresca e cavalheiresca; Valentim era um homem ligado à vida comercial do tempo, notado de mentalidade prática e com outra visão do mundo e das coisas.

Postas estas considerações sobre o que separava a mentalidade de Zurara de Valentim Fernandes, a mim fica-me uma questão fundamental por resolver e que tem a ver com a essência do escrito de Zurara, mais do que os seus erros este primeiro escrito sobre as navegações impulsionadas pelo Infante deixam-nos omissões de tomo, a despeito de se ficar com a ideia de que o Infante é visto inequivocamente como um senhor do seu tempo, entusiastas de cruzadas, ávido por saber os contornos do mundo desconhecido e ainda dotado de uma mentalidade medieval naquilo que hoje se configuram os direitos humanos.


Gomes Eanes de Zurara no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa
Marca do impressor Valentim Fernandes
Joaquim Barradas de Carvalho (1920-1980)
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Nota do editor

Último post da série de 13 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25269: Historiografia da presença portuguesa em África (414): A Guiné na Exposição do Mundo Português, 1940, Lisboa (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25031: Historiografia da presença portuguesa em África (402): Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Outros antes de mim, e com incontestável competência reconheceram a importância da governação de Sarmento Rodrigues que governou a Guiné num momento de viragem da política colonial. Por exemplo, merece toda a atenção o ensaio que António Duarte Silva dedicou à personagem e ao período, recomenda-se a leitura: https://journals.openedition.org/cultura/586. O governador impõe-se pelo programa de trabalho, pela vontade de congregar esforços, sabe ao que vem, respeita os projetos em andamento deixados pelos antecessores, cumulam-no de ofertas, ele agradece e traça mais projetos, de tal modo que o seu sucessor, Raimundo Serrão, no essencial concluiu-lhe a obra. Percorreu a Guiné de uma ponta à outra, diz-se maníaco pelas árvores e pelas plantas, está cercado de gente muito competente, e à Guiné chegam num quase turbilhão especialistas em medicina tropical, um eminente geógrafo, figuras proeminentes da investigação tropical, geólogos, jornalistas, a Guiné saiu do torpor, aparecem escolas, hospitais, fontanários. Alguma coisa de muito sério aconteceu, quando Sarmento Rodrigues regressa à Guiné em 1955, na comitiva de Craveiro Lopes, a propaganda do regime não esconde que ele é figura triunfante, as populações não o esqueceram, ele tinha posto a Guiné no mapa.

Um abraço do
Mário



Sarmento Rodrigues, o definidor da colónia guineense, pô-la no mapa

Mário Beja Santos

Não é por puro acaso que escolhi a governação de Manuel Sarmento Rodrigues como o termo da viagem antológica dos textos fundamentais da presença portuguesa na Guiné. É visto como uma escolha inédita, o ministro que o nomeia não os conhece, o futuro governador é um homem que não esconde a sua independência, é um crente nos valores do Império, conhecido pelo rigor e pelo pragmatismo. E de uma seriedade que já não se usa, quando toma posse em 15 de março de 1945, já sabe a dimensão das tarefas que tem pela frente, e dirá em público que começará por acabar as obras de quem o antecedeu. Nesse ato de posse, não lhe falta o desassombro: “Se me disserem que na Guiné tudo está por fazer, não devemos espantar-nos.” E fala do património deixado pelos seus antecedentes, a Guiné entrara numa nova via de desenvolvimento: “O ministro enfrenta um vasto programa de melhoramento na Colónia para a realização dos quais já começaram a trabalhar os organismos superiores do Ministério. Habitações, saneamento, águas e hospitais; pontes, portos, obras hidráulicas, aeroportos, farolagem; missões científicas de geodesia, hidrografia, zoologia, antropologia, botânica, medicina, etc.; desenvolvimento do serviço missionário, na parte religiosa e na parte do ensino indígena; defesa militar da Colónia; assistência às atividades económicas; ensino dos indígenas em agricultura, pecuária e artes e ofícios; e outros.”

Já está em Bissau, vai ser empossado, avisa a classe política, os funcionários, os militares, os empresários. Reafirma o que dissera ao ministro Marcelo Caetano: “Temos uma vasta lista de obras projetadas para um período que desejaríamos que fosse bastante curto. Coloco à frente as construções por acabar e que pretendo arrumar: Palácio, Sé, capelas de Catió, Bafatá, Canchungo, Mansoa e Gabu, moradias projetadas para os funcionários em Bissau, o monumento ao Esforço da Raça, edifício da Praça do Império, cuja origem quase se desconhece e outras tentativas dispersas pela colónia, aguardando que as acabem.”

Faz questão de dar ampla publicitação ao que diz aos administradores, quer transparência, respeito pelos direitos dos indígenas, eles devem ser acompanhados pela administração, não esconde ser um humanista e diz: “Nada de estatísticas rosadamente falsas, nem problemas a que se volte a cara para não os resolver. É preciso que tudo seja são e posto à luz do dia.” Isto é afirmado em 4 de novembro de 1946. É um obcecado pelo trabalho, tem uma informação atualizada sobre tudo o que se está a fazer em prol do desenvolvimento, desde fontanários a campos de futebol, escolas e creches, desenvolvimento agrícola, sente-se atraído por novas espécies e novas culturas, como dirá em 1947: “Plantámos este ano muitos campos de cajueiros. Haveremos de prosseguir no mesmo ritmo para o próximo ano, pois que bem se viu ser fácil conseguir que as plantas vinguem. E dentro de alguns anos será uma nova riqueza que existirá na colónia. Deve ser mania minha a defesa e expansão das árvores, sobretudo de fruta. Mas creio que muito pior seria consentir na sistemática derruba, feita a qualquer pretexto.”

Há textos em que podemos apreciar como o governador domina na perfeição os dossiês, veja-se este conjunto de documentários que ele profere no Concelho de Governo em 8 de fevereiro desse ano. Aborda as instalações dos serviços públicos em Bissau; a propósito da conclusão do Palácio do Governo alude à transferência de serviços; aguarda-se dinheiro para pôr de pé o museu e a biblioteca; não esconde as imensas obras que se impõem, elenca um vasto conjunto de postos administrativos, secretarias das administrações, residências dos administradores; aguarda os estudos para a construção da ponte do Impernal, há reparações de envergadura nas pontes de Bolama e Mansoa e uma verdadeira reconstrução da ponte de Bafatá; ainda não é possível criar a ligação do Norte com o Sul da colónia, conta poder adquirir jangadas a motor; virá em breve a Missão Hidrográfica; prevê-se para 1948 um novo local acostável para os navios de longo curso, no porto de Bissau; seria em breve publicado o Regulamente dos Serviços de Saúde da Colónia, prevê igualmente para breve a resolução das águas em Bissau e também em Bolama; impõem-se uma redistribuição das forças militares; aborda a necessidade de se revolucionarem os métodos agrícolas, fornecer aos indígenas melhores sementes; aborda as vacinas para os animais, pretende que se aumente a rede telefónica, quer mais bibliotecas. E termina: “Quando vim para esta colónia, chamado do serviço onde me encontrava, não foi certamente para aqui estar e durar. Não tenho intenção de durar, de assistir placidamente ao desenrolar lento da vida, assim de atuar num ritmo veloz. Conto que ao sair desta colónia não tenho onde me acusar de deixar qualquer coisa feita. A obra que surgir será de todos, e que eu não sirva senão para os animar na confiança nas suas capacidades.”

Não esconde em todas estas circunstâncias que é um cultor do detalhe, que não lhe escapa a visão de conjunto, veio com a incumbência de mudar hábitos de civilização e por vezes refere que sente desconsolo: “Alguns régulos do Gabu pediram e levaram carros. Não tendo podido acompanhar-lhes as atividades, nem sei como os têm utilizado. Se consideraram apenas agradar-me pessoalmente levando-os para apodrecerem ociosos, enganam-se. No entanto, eles já eu vi circulando-o numa estrada, carregando arroz. Mas em que estado! As rodas laqueantes, uma delas sem cavilha, outra com ela metida ao contrário! As autoridades têm o dever de olhar para estas coisas, de ensinar e acompanhar o indígena. Estes simples engenhos precisam de ser estimados, conservados, reparados, multiplicados, tudo no local, com os recursos locais, visto que com outras não foram eles feitos.”

Sempre que é oportuno esclarece que muito do que se está a fazer é obra dos seus antecessores: “Não são iniciativas minhas. Tudo tinha sido começado ou projetado pelos meus ilustres antecessores.” Sarmento Rodrigues era seguramente um homem influente, a sua obra impressionava e ele não esconde que em Lisboa se lhe abriam os cordões à bolsa, e di-lo publicamente:
“Quando no fim de 1945 estive na metrópole, obtive tudo, vim cheio de dádivas para a Guiné. O Ministério da Guerra ofereceu-me um avião Tiger e os dois mil contos do Fundo de Defesa Militar do Império. O Ministério da Marinha deu-nos todo o material de guerra para armar a Polícia de Segurança Pública. Do Ministério das Colónia, então, não houve facilidade que não fosse concedida, por todos os seus departamentos.
O Gabinete de Urbanização Colonial esteve durante um longo período a trabalhar quase exclusivamente para a Guiné, elaborando projetos que nos têm permitido desenvolver as obras que todos conhecem e que nunca poderiam ter execução sem eles.”


É uma governação que decorre em tempo vertiginoso, ao abandonar a coordenação da Guiné deixa um museu, o boletim cultural que continua a ser uma referência, todas as obras encetadas pelos seus antecessores foram concluídas, estão em curso iniciativas que irão dominar a atividade do seu sucessor, Raimundo Serrão. Sarmento Rodrigues procura apagar-se, enquanto todos lhe batem as palmas pela sua dinâmica de governação, dirá em jeito de despedida: “As obras que todos vemos nada valem por si; apenas significam que num dado momento houve, sobre esta terra escaldante, um grupo de homens que viveu em harmonia para as construir.” Recorda o leitor que quando ocorreu a visita do presidente Craveiro Lopes em 1955 Sarmento Rodrigues fará parte da comitiva e as reportagens publicadas não puderam esconder que era em toda a parte recebido com aplauso, não houvera antes governador como ele, traçou uma trajetória para a cultura, para o ensino, para uma miríade de infraestruturas, fez criar hospitais, estimulou boas relações com as colónias vizinhas.

E nesta vertigem aconteceu que a Guiné passou a figurar no mapa do império como terra de oportunidades, a Guiné passou a ter um lugar no mapa e até na História, ele aproveitou intensamente as comemorações em 1946 do quinto centenário da chegada à costa da Guiné; e cruzaram-se com a mesma intensidade cientistas e homens de letras que deixaram relatos inapagáveis; o desenvolvimento humano dos indígenas guineenses deu um passo em frente, atacou-se as doenças do sono e outras doenças tropicas, abriram-se postos sanitários. Dir-me-ão que nem tudo foi róseo, é verdade, o ensino não conheceu o mesmo dinamismo que o das infraestruturas, continuaram a faltar recursos humanos. Mas o fundamental é que este governador deixou uma semente de exigência e nada mais voltou aos tempos da pura exploração e do aleatório do trabalho forçado.

Manuel Sarmento Rodrigues
Um torneio internacional de futebol em Bissau do tempo do governador Sarmento Rodrigues
Fotografia de Bissau em 1945, imagem retirada do Arquivo Científico Tropical, com a devida vénia
Travessia do rio Impernal, 1945, imagem retirada do Arquivo Científico Tropical, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P25007: Historiografia da presença portuguesa em África (401): Pedido de subsídio para uma exploração geográfica e comercial à Guiné, 1877 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24872: Historiografia da presença portuguesa em África (395): O problema das florestas da Guiné portuguesa, anos 1950 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
É bem conhecido que desde a governação de Sarmento Rodrigues havia a preocupação permanente de enviar missões científicas à Guiné, desde a antropologia à saúde, à investigação das potenciais riquezas do subsolo, é bem farta a lista de publicações destinadas a identificar problemas e a propôr soluções. Creio que esta contribuição para o estudo do problema florestal da Guiné suscitará mais do que curiosidade, poderá permitir aos ambientalistas e aos silvícolas guineenses uma fundamentação para a denúncia das derrubas que se fazem no país por pura ganância.

 As denúncias são bem claras: a mais célebre superpotência comercial da Ásia, que se diz amantíssima da paz e fiel amiga do progresso dos povos, socorre-se de intermediários que compram à socapa ou às claras estas preciosas madeiras exóticas que serão transportadas para satisfazer as necessidades das classes possidentes chinesas. Toda a gente sabe o que se passa com o drama florestal da Guiné, mas o melhor é não falar na questão, ela dá réditos valiosos a quem permite este tráfico criminoso.

Um abraço do
Mário



O problema das florestas da Guiné portuguesa, anos 1950

Mário Beja Santos

Este livro intitulado Contribuição para o Estudo do Problema Florestal da Guiné Portuguesa, editado em 1956 pela Junta de Investigações do Ultramar, interessará essencialmente aos engenheiros silvícolas e aos agrónomos em geral, mas espelha uma realidade das florestas do tempo, terá certamente a sua chamada de atenção para os peritos de hoje, assoberbados com a gravidade do problema florestal, sujeitos a ameaças de ganância e a pressões ambientais de elevada intensidade. 

Aquele trabalho da brigada de estudos florestais que se deslocou à Guiné portuguesa nos primeiros meses de 1954 tinha a intenção de ali realizar os primeiros estudos concretos sobre o reconhecimento florestal da Guiné, a produção madeireira já era muito apetecida; e havia também a incumbência de avaliar o comportamento do complexo ecológico perante a alteração mais ou menos profunda do coberto florestal. 

Como acontece em muitos destes estudos, da ambição de muito fazer, havendo pouco tempo, os peritos limitaram-se às regiões florestais de Farim e do Cantanhez, justificando Farim pelo comprovado valor económico e o Cantanhez pela sua tão especial composição florística e fisionomia.

Falando das regiões climáticas da Guiné, os autores lembram que há duas grandes zonas climáticas: Sahelo-sudanesa e Sahelo-guineense. A Guiné integrar-se-á nas duas sub-regiões climáticas daquelas zonas, Baixo Casamansa e Guineense Marítima. O clima do Baixo Casamansa é uma variante marítima do clima Sahelo-sudanês, tal como o clima Guineense Marítimo é uma variante marítima do clima Sudano-guineense. 

Os autores dissertam longamente sobre as parcelas de estudo, obviamente que não podem abdicar da sua terminologia técnica, aqui dispensável. Reportam que o território da Guiné é ocupado na maior parte da sua área por um tipo de vegetação que se engloba na “formação aberta” do tipo da “floresta seca aberta”. E adiantam: 

“Esta formação, bastante complexa e com muitas variantes florísticas, é caracterizada principalmente pela sua fisionomia, em que predomina um estrato arbóreo de 20 a 30 m de altura, relativamente espaçado, um estrato arbustivo, frequentemente muito denso”; lianas e cipós, hoje muito pouco representados.

Quanto ao caráter florestal, concluem ser o bissilão a essência que tem maior interesse, pela sua elevada frequência e valor económico; o pau de sangue é também notável pela sua abundância; o pau-incenso é uma essência de grande porte. Refere igualmente o pau-de-sangue-branco, a tabá (uma essência que consideravam extremamente importante na biologia da floresta), não esquecendo a farroba de lala.

Analisando o equilíbrio entre a floresta e a presença do Homem, destacam o amendoim, então a principal fonte de riqueza da província, não deixando de observar:

“Sendo importantíssima a sua cultura, é curioso notar que algumas das características mesológicas não são das melhores para tal cultura; no entanto, esta cultura tem toda a tendência para se expandir e é, em nossa opinião, uma das causas do empobrecimento florístico da província, devido ao sistema de agricultura itinerante que se utiliza.

" Tais processos culturais constituíam, antes de a agricultura indígena ser chamada aos produtos de exportação o método mais cómodo eficiente pelo prolongado período de pousio que dava à terra, permitindo o retorno da floresta. Hoje as terras não têm pousio suficiente e daí resulta um desequilíbrio que se traduz na intensa laterização do solo, simultaneamente com o profundo empobrecimento florístico. Ao estabelecer as suas lavras de mancarra, o indígena lança fogo à floresta, não cuidado em limitar a área da queimada somente ao terreno de que necessita, pelo que, uma vez queimadas as pequenas árvores e arbustos que protegiam os solos, fica aberto o caminho para o estabelecimento de um estrato muito denso de gramíneas, que em muito inibem a possibilidade da regeneração florestal.”

E traçam um vaticínio algo pessimista:

“O futuro da riqueza florestal da província apresenta, quanto a nós, perspetivas pouco animadoras, pois, por razões várias, a regeneração natural não permite a manutenção das essências valiosas, nem ao menos no seu nível atual.”

E chegam à previsão que dentro de 40 anos o bissilão correrá o risco de ter praticamente desaparecido da floresta guineense. 

"Havia, pois, de encarar a realidade do empobrecimento da floresta da Guiné, propondo: limitar os seus funestos efeitos, condicionando as queimadas; delimitar determinados lotes de terreno e retirar de todo o direito do seu uso; proceder a repovoamento florestais de essências valiosas.”

E escalpelizam os elementos do que deveria ser uma política eficiente contra o uso tradicional e incontrolado das queimadas.

“A ilha de Bolama, hoje uma savana, é exemplo frisante do empobrecimento ambiental de que vimos falando. Ainda seria possível multiplicar estes exemplos alargando as nossas considerações a outras regiões da Guiné, como sejam as regiões interiores do Gabu e do Boé, onde o maior relevo e menor pluviosidade são fatores que facilitam a citada degradação; é necessário estabelecer uma larga rede de proteção florestal, judiciosamente escolhida, de modo a definir quais os terrenos que deverão ser entregues à agricultura ou os que deverão ser entregues à exploração florestal.”

Já no termo do seu trabalho, os autores estimam que era possível adotar “reservas florestais”, sem se correr o perigo de prejudicar a natural expansão da área agrícola e de exploração madeireira da província. E abonam a seguinte argumentação: 

“Além destas reservas florestais de caráter geral, deverão ser estabelecidas ainda reservas integrais de proteção da fauna e da flora. É evidente que na Guiné estas reservas integrais não poderão ser muito extensas. Deverão ser estabelecidas sempre que haja qualquer tipo de flora que, pela raridade ou composição florística, ou, ainda, pela riqueza ou raridade da fauna, seja útil preservas da destruição. São exemplos destas reservas integrais a mata de Umpacaca, pelo seu raríssimo povoamento de pau-ferro, a mata do Cantanhez, pelas suas características de floresta com fácies higrófila, talvez a região mais setentrional do tipo da floresta densa do golfo da Guiné e a lagoa de Cufada, pela sua rica avifauna.” 

Alertam para os riscos que corria a mata do Cantanhez perante o assalto das derrubas agrícolas.

Enfim, uma obra que merecia estar nas bibliotecas dos agrónomos guineenses que se debatem com terríveis problemas para os quais, na generalidade dos casos, não têm o apoio político que o gravíssimo problema florestal guineense justifica

Imagem retirada do livro em análise
O poilão
O transporte de madeiras na Guiné-Bissau, os ativistas e ambientalistas do país contestam a liberalidade desta comercialização
Imagem do Pau de Sangue
O caju
Edição do Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas Dr. Alfredo Simão da Silva, Bissau, 2019
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24852: Historiografia da presença portuguesa em África (394): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2) (Mário Beja Santos)